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NO PENSAMENTO ECONÔMICO*
(*) Do livro “Economia e Política das Finanças Públicas: um guia de leitura à luz do
processo de globalização e da realidade brasileira, 2007”.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
BIBLIOGRAFIA
1. INTRODUÇÃO
Desde a sua formação, o Estado moderno não mais parou de crescer. Desfrutando de um
poder absoluto nas suas fases iniciais, mas com acanhada estrutura material, institucional e
financeira, evoluiu, nos períodos seguintes, para estender seu domínio e ampliar o controle
sobre a sociedade civil em todos os campos da vida econômica e social, ao ser legitimado
como instrumento de organização e de realização da humanidade e ao completar o
processo de constituição de suas estruturas, com a profissionalização das forças armadas e
o avanço da burocracia.
Segundo Musgrave & Musgrave (1980, Cap. 1), que atribuem grande importância
às falhas do mercado para explicar sua forma de atuação, “…há explicações ideológicas,
sociais e políticas [para justificar tanto os papéis que cumpre como o seu tamanho], mas o
fato é que o mecanismo do sistema não pode desempenhar sozinho todas as funções
econômicas. A atuação governamental é necessária para guiar, corrigir e suplementar este
mecanismo em alguns aspectos, o que torna o tamanho apropriado do setor público uma
questão técnica ao invés de uma questão ideológica.”
Nem sempre, entretanto, essas idéias prevaleceram ao mesmo tempo, assim como
também nem sempre os papéis por ele desempenhados integraram o corpo teórico do
pensamento dominante. Houve períodos na história do capitalismo em que o papel do
Estado consistiu precipuamente em criar e garantir as condições para o triunfo do capital,
ainda que isso implicasse restrições à sua liberdade. Em outros, quando muito se admitia o
desempenho de sua função alocativa para prover a sociedade de bens que o mercado não
seria capaz de produzir, deixando o capital livre das amarras que aparentemente prendiam
seus movimentos ao Estado. Assim como houve períodos em que não somente essas
funções foram ampliadas como também lhe foram conferidas atribuições de forte
regulação da vida econômica para impedir que a concorrência intercapitalista conduzisse o
sistema ao colapso. Na atualidade, depois de um longo período de regulação e de
ampliação dos papéis do Estado, ressurgiram, com força, as teses antiEstado e anti-
regulamentação, sob o argumento de que sua intervenção provoca mais prejuízos para o
sistema do que o mercado com suas falhas.
Desse breve relato, pode-se inferir que as funções do Estado tendem a se modificar
historicamente. E, como num movimento pendular, fases de liberdade econômica tendem a
se alternar com fases de maior regulação, modificando-se seus papéis. E mais: a
legitimação de sua forma de atuação encontra, em cada um destes períodos, respaldo em
um conjunto de explicações teóricas que a sustentam e justificam. Por isso, para entender
as transformações qualitativas operadas em seu aparelho e nas suas formas de atuação,
torna-se necessário acompanhar sua trajetória à luz das grandes mudanças ocorridas no
modo de produção capitalista, desde o seu nascimento até os dias atuais, e analisar como o
pensamento teórico dominante, que em alguns períodos condenou sua intervenção no
campo econômico, em outros a justificou como necessária para revitalizar suas forças,
utilizando os mesmos argumentos que antes combatera.
O arcabouço teórico que dava amparo à tese de que o Estado deveria ter uma
atuação passiva na economia tinha suas raízes plantadas nas idéias liberais que se
consolidaram no século XVIII e que representaram um libelo contra a doutrina
mercantilista, que imperou durante o período que separa a Idade Média do liberalismo, e
que demarca, historicamente, a época em que ocorre a acumulação primitiva do capital.
Neste período, também conhecido como Mercantilismo, dado o predomínio do capital
mercantil sobre o capital industrial, o Estado, ao contrário daquele que o sucederá,
exerceria um papel tão amplo quanto agressivo na vida da sociedade.
Não foi um processo simples, linear e nem coincidente, no tempo, nos países que o
percorreram. Pelo contrário, foi um processo longo, que exigiu mudanças na visão
predominante de mundo sobre o fim da vida social e do Estado, lutas contra as forças
políticas que sustentavam e se beneficiavam do sistema dominante, e criação das
condições econômicas e também de infra-estrutura necessárias para viabilizar a nova
perspectiva de vida e de realização da humanidade que brota deste período. Para Denis
(1974:98), com as idéias mercantilistas “...teremos, pela primeira vez, diante de nós, uma
teoria da sociedade que se desenvolve essencialmente no âmbito da economia, dado que o
fim da vida social [passa a ser] concebido com um fim econômico e que [...] os meios
encarados para realizar esse fim são também econômicos.”. Condenado pela igreja, a busca
pelo lucro oriundo das atividades comerciais e financeiras transforma-se, a partir deste
período em atividade indispensável para o homem alcançar a felicidade.
Tarefa de tal envergadura, só poderia ser realizada por um Estado forte. É isso que
explica porque as idéias mercantilistas, favoráveis ao fortalecimento do Estado, mantêm
uma admirável coerência, uma unidade irrepreensível de pensamento, evidenciando-se em
todas as obras de seus representantes. Não sem razão o Estado atua, nessa época, como o
termômetro da sociedade, como o seu grande regulador, imiscuindo-se em áreas tão
variadas quanto abrangentes, tais como as que se referem, inter alia, ao controle exercido
sobre os salários, à promulgação de leis sobre o desemprego, à concessão de monopólios
para a exploração de determinadas atividades, ao mesmo tempo em que é ele quem
comanda as grandes conquistas coloniais. Nas palavras de Faoro (2000:70), nesse período
Todos os seus esforços são voltados, diante disso, para identificar a fonte de
valor das mercadorias e as leis que determinam sua distribuição entre os salários, os
lucros e a renda da terra, bem como os fatores que a modificam, durante o processo de
crescimento, provocando desvios de sua “tendência natural”, com prejuízos para a
acumulação. Mas, apesar dessas inevitáveis fricções, se o Estado não se imiscuísse neste
processo, o organismo econômico, por meio de suas leis naturais, seria capaz de corrigir
esses desvios e recolocar a economia em sua trajetória natural. Era, para o que nos
interessa, a senha para se pôr cobro à sua liberdade de intervir na vida econômica, tão
defendida pelos mercantilistas.
Este edifício da economia, no qual não havia lugar para o Estado, recebeu
contribuições de vários autores em sua construção. Comandado por uma “mão
invisível”, ou por leis naturais, o sistema contaria com mecanismos estabilizadores
automáticos que garantiriam uma situação permanente de equilíbrio. Neste sistema, não
havia lugar para a ociosidade do capital e nem crises gerais, já que a Lei de Say,
também incorporada ao modelo teórico de Ricardo, assegurava que toda produção
encontraria mercado; a flexibilidade dos preços, salários e taxas de juros, bem como a
ausência do Estado no interior deste organismo, garantiam a correção de eventuais
desvios da trajetória de equilíbrio da economia; e a igualação da taxa de lucro,
determinada pela concorrência, aparecia resolvendo, por sua vez, os conflitos entre os
distintos tipos e dimensões do capital (industrial, agrícola, financeiro etc.) e garantindo
a reprodução do sistema. Apesar das inevitáveis fricções que poderia surgir, mantida a
liberdade de cada um de buscar seu interesse pessoal, essa seria o motor (a força, ou
alavanca) que movimentaria a roda da produção da felicidade geral, beneficiando a
sociedade como um todo.
É importante fazer uma distinção sobre o conceito de eficiência utilizado por essa
escola da economia, denominada clássica, pois este conhecerá modificação substantiva nas
escolas que surgirão nos períodos seguintes, conhecidas como neoclássica e novo-clássica.
Na construção deste edifício, percebeu-se, contudo, que nem tudo poderia ser
produzido e ofertado pelo mercado, já que este não era capaz de captar e transmitir, para
certos tipos de bens, os sinais dos consumidores para o sistema produtivo, o que, se não
corrigido, geraria ineficiência para o sistema como um todo. Era o caso, por exemplo, de
alguns bens e serviços que apresentavam características distintas dos que são produzidos
pelo setor privado, por não serem divisíveis para o consumo individual e, por essa razão,
não serem capazes de fornecer os elementos para o cálculo de custos, preços e volume
produzido necessários para a determinação da taxa de lucro, motor primus do sistema.
Essenciais para sua eficiência, a responsabilidade pela produção destes bens de
consumo coletivo – chamados modernamente de bens públicos – passou a ser atribuída ao
Estado, com o seu financiamento sendo garantido pela cobrança de impostos gerais. A
condição para que isso fosse possível, era a de que o Estado não deveria incorrer em déficit
orçamentário, operando, portanto, com contas equilibradas, um dos pilares que sustentava
a visão de equilíbrio geral do sistema. Da construção da teoria econômica, apoiada nos
ideais do liberalismo, derivou-se, assim, uma função específica para o Estado, mais
modernamente conhecida como função alocativa, justificada pela existência de falhas
apresentadas pelo mercado na produção de bens e serviços de consumo coletivo. Pelo que
representa na trajetória do Estado, convém explicitar melhor o seu significado, bem como
as diferenças e características do que aqui chamamos de bens públicos e bens privados.1
A função alocativa atribuída ao Estado surgiu, neste novo corpo teórico, como
resultado do reconhecimento da incapacidade do mercado de suprir a sociedade de bens e
serviços de consumo coletivo, tais como os conhecemos na atualidade: defesa e segurança
públicas, iluminação de ruas e avenidas, proteção ambiental, etc. Isso porque, como o
consumo desses bens e serviços por determinado(s) indivíduo(s) não obedece ao princípio
da exclusão - um princípio que assegura o acesso ao mercado somente para aqueles que
dispõem de recursos para adquirir determinado produto - por se caracterizar como um
consumo não-rival - seu consumo por um ou mais indivíduos não reduz a sua quantidade
para o consumo de outros - não há meios do mercado estabelecer/definir seu preço,
tornando-se, portanto, inviável sua produção pelo setor privado. Como se tratam,
entretanto, de bens e serviços indispensáveis para a sociedade, cabe ao Estado destinar
recursos de seu orçamento para produzi-los e satisfazer sua demanda.
São estes denominados bens públicos, os quais não permitem, por apresentarem
essas características, a mensuração da quantidade consumida e, consequentemente, dos
benefícios com eles recebidos pelo indivíduo - problematizando o estabelecimento da
contribuição a ser cobrada pelo poder público -, à medida que os consumidores não se
sentem propensos a revelar a sua escala de preferência por estes bens e serviços.
De acordo com essa visão, apoiada, portanto, na crença de que leis naturais
governavam o organismo econômico ( a "mão invisível" de Smith), qualquer interferência
"externa" a esse mundo seria capaz de provocar fricções e de reduzir a eficiência do
sistema. E, como se considerava o Estado uma força externa, à medida que este não surgira
1
Deve-se chamar a atenção para o fato de que não foram os economistas da escola clássica que
desenvolveram estes conceitos e estabeleceram princípios para diferenciar bens públicos de bens
privados. Embora a eles se refiram, foram os economistas da chamada “Síntese Neoclássica” – uma
combinação de teoria keynesiana com teoria neoclássica renovada, de acordo com Osdchaya (1974:289),
que reuniram em torno de três funções – alocativa, distributiva e estabilizadora – as ações desenvolvidas
pelo Estado, para avaliá-los em termos de eficiência e desenvolveram princípios de distinção entre estes
bens, à luz dos mecanismos do mercado e de equilíbrio do sistema.
com a sociedade, mas em determinado estágio de seu desenvolvimento, sua presença na
vida econômica era vista como uma barreira que impedia a sociedade de alcançar essa
eficiência. Isto porque, ainda de acordo com essa argumentação, desde que cada indivíduo
tenha liberdade de escolher as atividades de seu interesse e em que apresente condições de
obter maiores ganhos, o resultado final deste processo seria, no conjunto, benéfico para
toda a sociedade. Por isso, o Estado deveria manter-se à margem do sistema econômico,
sem nele intervir e restringir-se a garantir a defesa e a segurança do país. Essa constituiria a
época de ouro do laissez faire, quando se acreditava, como o Dr. Pangloss, de Voltaire,
que tudo corria pelo melhor no melhor dos mundos possíveis.
Embora as idéias de Keynes não captem essa politização do Estado, são elas as
responsáveis – ou as que lhe fornecem o arcabouço teórico e a caixa de ferramentas a ser
usada para essa finalidade, através dos instrumentos de política econômica – para justificar
sua intervenção na economia, visando salvar o capitalismo. Foi a partir de sua germinação
e sua difusão que se ampliaram suas tarefas, e deram sustentação teórica ao surgimento do
Estado do bem-estar nas economias desenvolvidas (ou o Estado Providência) e ao Estado
com maior presença na vida econômica nos países de industrialização retardatária,
ancorados em doutrinas teóricas que, tendo como referencial de análise a matriz
keynesiana, caso, por exemplo, da Comissão de Estudos Econômicos para a América
Latina (CEPAL), deram origem ao desenho de Estados com forte conteúdo
desenvolvimentista.
Sua obra "A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, vinda a lume em
1936, estabelecerá os contornos teóricos definitivos e desvelará a importância dos
investimentos públicos para atenuar as flutuações cíclicas do capitalismo e para viabilizar
uma política de pleno emprego. A obra de Keynes representaria, assim, um verdadeiro
libelo contra a ortodoxia imperante, a qual garantia que os ajustes do sistema ocorriam de
forma automática, com a economia tendendo para um único ponto de equilíbrio possível,
sob a condição de que não houvesse entraves à livre flutuação da taxa de juros, do nível de
salários e dos preços.
2
Essa interpretação se encontra em Denis, para quem a explicação de Keynes das crises de superprodução
se aproxima muito da marxista, ao atribuir à insuficiência do investimento a causa de depressão, partindo
de conceitos como o de custo de produção dos bens produzidos no ano (de equipamentos e de consumo)
que eqüivale “... ao valor da produção nacional líquida, no sentido marxista, i.é, à soma dos salários e da
mais valia.” (Denis, 1974:696-8)
garantir a reprodução do sistema no longo prazo. Alguns esclarecimentos devem ser feitos
sobre essas novas funções a ele atribuídas como resultado do reconhecimento de que o
mercado apresentava mais falhas do que era capaz de supor a teoria dominante.
Ganhou importância, nessa perspectiva, a provisão pelo Estado dos chamados bens
semipúblicos também conhecidos como bens meritórios (merits goods). Diferentemente
dos bem públicos puros, os bens semipúblicos apresentam características semelhantes aos
bens privados, como as de serem divisíveis para o consumo individual, obedecerem ao
princípio da exclusão e tratarem-se de consumo rival. É o caso, por exemplo, dos serviços
de saúde, educação, saneamento, por exemplo.
Sua importância para a sociedade – e também pelas externalidades que gera para o
próprio sistema econômico -, bem como a necessidade de se garantir o acesso ao seu
consumo aos cidadãos que não dispõem de poder de compra para adquiri-los, aumentou
consideravelmente a sua provisão pelo Estado, especialmente a partir das idéias
keynesianas e da importância assumida por políticas redistributivas com a constituição do
welfare state.
3
Para entendimento da teoria da CEPAL, consultar os trabalhos de Cardoso de Mello (1998 ) e da
CEPAL (1951) sobre seus fundamentos.
Tabela 1.1.
Participação da Despesa Governamental no PIB ou no PNB
(em %)
Países Ano
1880 1929 1960 1985
França 15,0 19,0 35,0 52,0
Alemanha 10,0 31,0 32,0 47,0
Japão 11,0 19,0 18,0 33,0
Suécia 6,0 8.0 31,0 65,0
Inglaterra 10,0 24,0 32,0 48,0
EUA 8,0 10,0 28,0 37,0
Fonte: Banco Mundial: Relatórios sobre o Desenvolvimento Mundial, 1991, p.158
Se na vida real as idéias de Keynes deram vida proativa a um Estado renovado, necessário
para corrigir desequilíbrios e atenuar as flutuações cíclicas do sistema, e à política fiscal
um papel nuclear entre os instrumentos de política econômica para ultimar estes objetivos,
no plano teórico, a ortodoxia, após absorver o golpe desferido pela revolução keynesiana
em seus pressupostos, voltaria à carga, com armas renovadas, visando fornecer explicações
para a inflação dos anos 1960 e desmontar a visão positiva que predominava sobre a ação e
intervenção do Estado na economia.
Neste contexto surgiu nessa época, em oposição à visão de Keynes, para quem a
inflação é um fenômeno decorrente do excesso de demanda, a teoria monetarista, a qual,
apoiada em modelos de expectativas inflacionárias, concluía serem inócuas as políticas
fiscais expansionistas voltadas para os objetivos de ampliação da renda e do emprego e
responsáveis pela aceleração do nível de preços e, portanto, pela instabilidade do sistema
econômico.
Essa teoria tomou como ponto de partida para explicar a manutenção da taxa de
inflação a partir do modelo das expectativas, a curva de Phillips, assim conhecida em
homenagem ao trabalho empírico que foi desenvolvido por A.W. Phillips sobre a evolução
do desemprego e da taxa de variação dos salários nominais na Inglaterra entre 1862 e
1957, no qual constatou a existência de uma relação inversa entre essas duas variáveis.
Dois anos mais tarde, em 1960, R.G. Lipsey teorizou a curva de Phillips e formalizou a
existência deste trade-off entre inflação crônica e desemprego, reforçando a tese de que
taxas de desemprego menores podiam ser obtidas por meio de políticas expansionistas,
mas produzindo inflação dos salários nominais e, por extensão, dos preços em geral. Era o
que o pensamento ortodoxo necessitava para assestar suas baterias contra o pensamento
keynesiano.
Para essa teoria, assim como para a escola neoclássica, como visto anteriormente, o
mundo econômico funciona de forma harmoniosa, com os mecanismos de mercado
garantindo a plena utilização dos fatores produtivos e a inexistência de desemprego de
caráter involuntário. A acomodação do sistema aos movimentos cíclicos da economia é
garantida por uma “taxa natural de desemprego”, hipótese central em seu corpo teórico,
que varia para cada economia e em cada contexto histórico. Admite-se, apenas, a
existência do desemprego voluntário e friccional. O primeiro revela uma situação em que o
trabalhador não se dispõe a trabalhar pelo salário vigente no mercado, preferindo manter-se
ocioso. O segundo, um período de transição em que o trabalhador fica momentaneamente
desempregado enquanto não encontra trabalho em outra empresa. Como naquela escola,
tudo se assemelha a uma ficção, sem correspondência no mundo real.
A nova concepção teórica sobre o papel negativo do Estado ganhou força com o
avanço da Terceira Revolução Industrial e do processo de globalização, os quais, pelas
suas características, exigiam compromissos com a abertura da economia, o aumento da
concorrência e da eficiência produtiva e com a desregulamentação dos mercados
financeiros e de produtos, o que implicava retirar, novamente, o Estado da vida econômica
por sua ação ser considera prejudicial para seu funcionamento. No mundo globalizado
(mundializado), em que se restringem os espaços de atuação do Estado, surgem, em
diversos campos, várias contribuições teóricas, contrapondo-se ao pensamento keynesiano,
para dar sustentação à nova investida contra suas ações.
a) A Teoria da Regulação
Nos EUA, a década de 1970, quando esses trabalhos foram publicados, foi
marcada, de um lado, por um amplo processo de desregulamentação, especialmente em
setores da atividade produtiva (setores de transportes, telefonia, petróleo, gás natural),
movimento que pareceu representar a negação – ou seguir a recomendação – da Teoria
da Regulação, como anotam Mattos et. al. na Introdução do livro que organizaram
sobre o tema (Mattos et. al., 2004:16). De outro, várias agências de regulação foram
criadas em outras áreas, como na dos direitos dos consumidores, ambientais,
trabalhistas, da saúde e do bem-estar social. Tais movimentos contraditórios para a
Teoria da Regulação conduziram à sua revisão e refinamento de seus pressupostos por
Peltzman, em 1989 (Peltzman, 1989), que conclui não existir um “único interesse
econômico que captura o ente regulatório” e que se deve “encará-la como fruto de uma
política de coalizões, na qual os políticos tenderão a maximizar suas vantagens por meio
da distribuição a diferentes grupos de interesse envolvidos no jogo regulatório.” (Mattos
et. al., 2004:16)
Os agentes deste modelo são mais ágeis e atualizados do que o das expectativas
adaptativas: não se guiam por informações do passado, mas do presente (da atualidade)
para a formação de expectativas nem repetem os erros que cometem, procurando
corrigi-los quando atualizam as informações. Os erros tendem a ocorrer não pelas
fraquezas da condição humana (são racionais), mas pela existência de informações
incompletas ou imperfeitas (caso de choques não antecipados, como os de decisões não
divulgadas sobre a implementação de políticas expansionistas tomadas pelo governo,
por exemplo), o que pode produzir, momentaneamente, desvios da economia de sua
posição de equilíbrio. Atualizadas as informações, os agentes rapidamente corrigem
suas expectativas, neutralizando a ação do governo e garantindo a convergência entre a
inflação esperada e a efetiva e a taxa de desemprego efetivo e a taxa de equilíbrio.
Como bem anota Carvalho (2001:216) sobre essa questão:
Para essa escola de pensamento, que se apoia nas mesmas premissas teóricas dos
neoclássicos, mas modifica radicalmente sua posição em relação ao Estado, este é sempre
sinônimo de ineficiência para o sistema, mesmo quando sua atuação visa apenas corrigir
eventuais falhas do mercado. De acordo com este argumento, se o mercado pode, de fato,
apresentar falhas – o que no pensamento neoclássico e keynesiano justifica a intervenção
pública – a ação estatal voltada para corrigi-las – ou mesmo a simples possibilidade de
fazê-lo –, pode revelar-se ainda mais danosa para a eficiência do sistema. Assim, como
também apresenta falhas, que podem ser mais prejudiciais que as derivadas do
funcionamento do mercado, a intervenção do Estado passaria a ser condenada por essa
escola, justificando as proposta de esvaziamento de suas funções e de sua redução à
condição de Estado mínimo, através da implementação de políticas de desregulamentação,
privatização das empresas estatais, encolhimento/extinção do welfare-state etc. É
importante conhecer suas bases teóricas e a linha de argumentos que a conduz a tais
conclusões e propostas.
Para seus teóricos, o Estado está sujeito a incorrer em mais falhas do que o
mercado, no processo de produção/provisão de bens e serviços de sua responsabilidade,
tornando-se recomendável reduzir ao máximo suas atividades – daí a concepção do Estado
mínimo – e retransferir para o setor privado muitas de suas atuais atividades. Para essa
escola, portanto, as falhas do mercado não justificam a intervenção do Estado na
economia, porque além de não haver nenhuma garantia teórica de que serão corrigidas, a
ação estatal pode apresentar falhas ainda mais graves para a eficiência do sistema.
Isso ocorre porque, neste mercado, os atores que nele atuam – eleitores, políticos
profissionais, burocratas etc. -, se guiam pelos mesmos objetivos, que é a maximização de
seus ganhos (utilidades), embora com propósitos distintos, mas sem levarem em conta a
existência de restrições orçamentárias para suas ações (o que não ocorre nas trocas
econômicas), produzindo, como conseqüência, um excesso de gastos em relação às
receitas públicas. Assim, no processo democrático, enquanto o eleitor busca, através de
seu voto, maximizar suas utilidades por determinadas políticas públicas, o objetivo do
político profissional, que patrocina essa oferta, é o de maximizar seu mercado de votos,
enquanto o dos burocratas estatais, responsáveis pela sua implementação, o de assegurar,
para si, prestígio e mesmo maiores salários. Essa multiplicidade de interesses tornaria,
segundo a teoria, o processo democrático gerador de ineficiência na alocação de recursos
da economia, acarretando perdas para o sistema.
Para Przeworski (1995:26) “a perspectiva central dessa visão (…) é que o mercado
aloca recursos para todos os usos mais eficientemente do que as instituições políticas. O
processo democrático é defeituoso e o Estado é uma fonte de ineficiência. Nessa versão da
teoria, o processo político é visto como inferior ao mercado por causa de suas
imperfeições.” Mas, em sua versão mais radical, na chamada linha de investigação
conhecida como rent seeking – “caçadores de renda” -, “o Estado sequer precisa fazer
alguma coisa para que as ineficiências ocorram: basta a mera possibilidade que possa vir a
fazer qualquer coisa.” Nessa versão, segundo Pzerworski, “não há espaço para política; a
política é simplesmente um desperdício.”
Segundo Hartle (1983), a “Theory of Rent Seeking” tem por objetivo “… fornecer
uma estrutura conceitual que permita analisar o poder dos lobbies para influenciar
mudanças na política econômica, visando obter benefícios com a sua implementação e/ou
escapar de custos delas derivados.” Para isso, ainda segundo sua argumentação, o objetivo
de investigação da Teoria dos Rent Seeking é o de desvendar como os indivíduos ou
grupos (coalizões) com interesse comum investem com o objetivo de:
Ou seja, a teoria pressupõe que existe, por parte dos agentes econômicos, a busca –
caça – de uma renda criada por alguma ação/intervenção do governo e de que estes se
organizam para sua apropriação através do espaço orçamentário, visando maximizar suas
utilidades. Mas que este processo político termina gerando desperdícios que se traduzem,
inevitavelmente, em redução do bem-estar da sociedade. Não porque alguns perdem e
outros ganham com a ação governamental, mas porque a sociedade, como um todo,
termina tendo prejuízos líquidos. Por um lado, porque ela envolve custos; em segundo,
porque gera rendas monopólicas – o aumento de uma tarifa de importação para um
determinado produto (proteção), por exemplo -, fazendo com que o equilíbrio alcançado
não corresponda ao de “Pareto eficiente”; em terceiro, porque recursos são desperdiçados
pelos grupos envolvidos no processo para influenciar o governo na sua decisão, através de
lobbies, campanhas etc. Nessa situação, mesmo que o governo termine decidindo não
intervir, o desperdício de recursos terá garantido uma redução de bem-estar da sociedade.
Nessa situação em que a intervenção do Estado é radicalmente visto como sinônimo de
ineficiência, não há espaço nem para sua atuação nem para o processo político.
Przeworski (1995:32/3) aponta algumas razões que não sustentam essa tese. Para
ele: a) “…nem todas as alocações podem ser comparadas com a linguagem técnica da
eficiência. (…) o ponto M pode se localizar em uma fronteira de possibilidades que é
superior ao ponto P, mas o movimento de P para M prejudicaria alguém: então M não é
Pareto superior a P. Porque, segundo ele, “a menos que haja uma alternativa que deixe
cada um igual ou melhor que antes, uma política não é ineficiente”; b) “dizer que uma
política provoca desperdícios é afirmar que ela reduz a renda nacional, mas não que reduz
necessariamente o bem-estar social [por ser característica] dessas ações beneficiar algumas
pessoas e prejudicar outras”, tornando indeterminados seus resultados, a menos que, alerta
o autor “ a utilidade seja medida em termos de dinheiro”; e c) “se qualquer ponto na
fronteira de possibilidade de produção fosse economicamente possível, P nunca seria
escolhido por um político maximizador de apoio.”
Gráfico 1
Produção Importada
BM M
MP
BP p MP
0 AM AP Produção nacional
De qualquer forma, para essa escola seria necessário fechar as portas do welfare
state, nos países centrais, e a dos Estados Nacionais Desenvolvimentistas, na periferia do
capitalismo, como observa Affonso (2003:39-40), considerados as principais fontes de
desperdício de recursos e de ineficiência. Dessa concepção, que implica negar às falhas do
mercado a justificativa para a atuação do Estado, a qual integra o corpo teórico do
pensamento clássico, neoclássico e keynesiano, derivaram as primeiras propostas de
reformas do Estado, mais tarde chamadas de reformas de “primeira geração”, tidas como
essenciais para o ajuste macroeconômico, as quais consistem, basicamente, em seu
saneamento financeiro (fonte principal de instabilidade e desequilíbrios do sistema) e na
redução de suas atividades, por meio da privatização das empresas públicas, diminuição
dos gastos sociais e das políticas públicas e da desregulamentação dos mercados em geral.
Em conjunto, essas propostas vão encontrar sua grande síntese, no final da década de 1980,
no projeto que ficou conhecido como “Consenso de Washington”, um receituário
neoliberal com que se pretendeu ensinar aos países como resolver e superar suas crises, por
meio da adoção da fórmula mágica “menos Estado e mais mercado”.
Essa nova concepção teórica talvez não tivesse despertado tanto interesse e apoio
se o mundo capitalista não estivesse se transformando nessa época, com o avanço da
Terceira Revolução Industrial e o processo de globalização, tornando sagrados os
compromissos com a abertura das economias, a concorrência e eficiência e com a
desregulamentação dos mercados financeiros e de produtos. As mudanças ocorridas na
concepção teórica sobre o Estado e o mercado, ao coincidirem com as novas necessidades
do sistema abriram as portas para justificar a onda de privatizações que iniciadas na
Inglaterra no governo conservador de Margaret Thatcher e nos Estados Unidos, de Ronald
Reagan, alastraram-se rapidamente, na década de 1980, pela Europa (Itália, Espanha,
França, Alemanha) e o restante do mundo. Seu coroamento deu-se com a implementação
das propostas contidas no “Consenso de Washington” em economias que apresentavam
vários desequilíbrios no final da década de 1980 e início dos anos 1990, notadamente na
América Latina, Leste Asiático, Leste europeu, após a queda do comunismo, vistas como
capazes de garantir sua redenção.
Não surpreende que nova revisão teórica sobre o papel do Estado tenha sido
deflagrada. Segundo Affonso (2003:89), “instituições ‘multilaterais’ ou ‘interestatais’,
como o BIRD, a ONU e o BID passaram a se preocupar, diante deste quadro, em buscar
alternativas às propostas da teoria econômica neoliberal. Quatro questões seriam
apontadas, segundo este autor, no diagnóstico realizado pelo Banco Mundial sobre a
situação dos anos 1990 para justificar essa revisão: “o colapso das economias da antiga
União Soviética e do Leste europeu; a crise fiscal do Estado do bem-estar na maioria dos
países industrializados; a importância do Estado nas economias do ‘milagre’ do leste
asiático; e o desmoronamento do Estado e a explosão de emergências humanitárias em
várias partes do mundo” (BIRD, apud Affonso, 2003:91). Um diagnóstico que parece
associar crises com o enfraquecimento do Estado e melhorias com o seu fortalecimento. Se
correto, não seria o caso de reduzir ao mínimo o Estado, porque isso poderia acarretar a
própria derrocada do capital, mas de ajustá-lo para desempenhar com eficiência suas
funções. Derivam dessa conclusão as propostas chamadas de “segunda geração” de
reformas do Estado, cujo arcabouço teórico, ainda segundo Affonso, é fundamentado
essencialmente na “teoria neo-institucionalista” e na “Nova Economia Política”, podendo
ambas serem vistas como desdobramentos da public choice.
Como ainda coloca Affonso (2003) em seu trabalho, as duas correntes teóricas que
se afirmam no pensamento hegemônico após os desastrosos resultados colhidos com a
implementação das reformas neoliberais de primeira geração, o “Neo-institucionalismo” e
a “Nova Economia Política”, deslocam a ênfase da oposição estéril entre “Estado x
mercado”, que conduziu às propostas do Estado mínimo, para propor alternativas que
conciliem e otimizem sua atuação conjunta. Para a primeira corrente, o neo-
institucionalismo, trata-se de reconstruir e fortalecer as instituições do Estado, visando
torná-lo eficiente, ágil e capaz de contribuir para o funcionamento dos “mercados livres” e
da concorrência. Para a segunda, que admite resultados diferentes do “ótimo de Pareto” e a
inevitabilidade de trade-off entre eficiência, equidade e democracia, ainda segundo aquele
autor, há espaços para acomodar o papel do Estado no sistema, desenhando um novo
sistema regulatório indispensável para garantir uma economia competitiva e inovadora.
Baseadas nos fundamentos teóricos dessas correntes, convergem, na atualidade, as
propostas de reformas (chamadas de “segunda geração”) do Estado formuladas pelo BIRD,
FMI e BID.
A visão marxista a respeito do Estado evolui do que Hirsch chama de uma "crítica
ideológica" do Estado, que subentende uma polarização simples entre este e a classe
operária para um estágio em que para apreender "... o modo de funcionamento pelo qual a
dominação da burguesia se reproduz [torna-se crucial] elucidar um campo complexo de
relações entre classes e frações de classes que encontram seu ponto de cristalização
contraditório no sistema institucional do Estado." Ou seja, o tratamento dessa questão
exige que se desvele como "... a classe dominante não apenas justifica sua dominação, mas
consegue preservar o consenso ativo daqueles que são governados", ou, através de que
formas se garante a reprodução da dominação de classes na sociedade capitalista. (Hirsch,
1977:86-7)
Partindo do pressuposto "de que toda sociedade de classe se caracteriza por uma
relação de violência que garante a exploração de uma classe pela outra" Hirsch levanta a
questão chave colocada por Paschukanis: “se o Estado é um instrumento da classe
dominante, por que não se constitui ele num aparelho privado dessa classe e dela se separa,
revestindo-se de um aparelho público institucional, separado da sociedade? Sua resposta é
a de que, diferentemente dos outros modos de produção anteriores, "... numa formação
social capitalista é preciso que a exploração e a reprodução das classes não se efetuem (e
não possam se efetuar) diretamente pela utilização física da violência, mas através da
própria reprodução das relações de produção, regida pela lei do valor." Essa tende a ser
transferida para uma força externa ao processo - o Estado -, ocorrendo, assim, uma
separação entre o que ele chama de dominação econômica - a violência "muda", a
exploração, que é inerente ao próprio modo de produção capitalista - e a dominação
política - a violência física - comandada pelo Estado. Para ele "...esta separação do
aparelho de coerção física com relação ao proletariado e à burguesia é o elemento
fundamental da forma de dominação da classe burguesa." (Hirsch, 1977:88)
Para O’Connor "... o Estado capitalista tem de tentar desempenhar essas duas
funções básicas, que são, muitas vezes, contraditórias. São essas funções que determinam o
volume e a alocação das despesas estatais distribuídas, respectivamente, entre capital social
e despesas sociais ( 1977:19).
Cabe notar que não existem regras nem quotas específicas para a distribuição ou
aplicação dos recursos apropriados pelo Estado tanto nesses campos de sua atuação como
no seu interior. Cada contexto e realidade histórico-concretos determinam essas
necessidades, de acordo com o objetivo de garantia da reprodução do sistema. Como
apontam Salama e Mathias (1983:9-11), “nos países capitalistas desenvolvidos, o Estado
intervém relativamente mais na reprodução da força de trabalho do que no setor produtivo,
ao contrário do que se constata nos países subdesenvolvidos.” Isso se explica porque, na
primeira, as forças produtivas já foram devidamente constituídas, dispensando o Estado de
ocupar áreas mais afeitas ao capital, enquanto na segunda essas se encontram em fase de
constituição, dependente de sua ação. Por isso, as estruturas orçamentárias e o padrão de
intervenção do Estado costumam ser distintos nessas realidades, embora persigam os
mesmos objetivos.
2. Uma vez assentadas as bases desse sistema, que opera sob os pressupostos
teóricos da livre concorrência, o Estado se torna desnecessário para o seu
funcionamento. Isto porque, de acordo com a doutrina liberal, o mercado
dispõe de mecanismos auto-reguladores capazes de corrigir seus desequilíbrios
e, segundo a visão marxista, apesar de produzir e reforçar suas desigualdades, a
lei do valor opera plenamente no capitalismo competitivo. Nessa perspectiva,
ao Estado caberia apenas a tarefa de garantir as condições externas para a
reprodução do sistema e atuar para corrigir falhas localizadas na alocação de
recursos, que levam à perda de eficiência do sistema;
Desse relato fica evidente que: a) o papel desempenhado pelo Estado capitalista
tem uma determinação histórica, que só pode ser entendido no contexto das necessidades e
crises do sistema e das condições exigidas para sua reprodução; b) nos momentos em que o
mercado mostrou-se incapaz de garantir, endogenamente, essas condições, o Estado foi
convocado para desempenhá-las, politizando a economia, ao trazer para o seu seio a
regulação dos conflitos entre as classes e suas frações; c) o aumento crescente de seu papel
na economia, como resultado desse processo, terminou conduzindo-o a um forte
desequilíbrio financeiro, que passou a ser identificado como a causa primária da crise do
sistema, cuja remoção se torna indispensável, na visão neoliberal, para restaurar as suas
forças e recuperar sua eficiência. A implementação de suas propostas nessa direção
mostrou-se, contudo, contrárias aos seus propósitos, exigindo a reintrodução, sob outra
forma, do Estado no sistema.
O que parece mais problemático naquela teoria (a dos rent seeking) é a sua
obsessão em opor Estado e capital, em considerá-los pólos opostos, antinômicos, e
compará-los do ponto de vista da eficiência, quando, na verdade, constituem partes
integrantes do mesmo sistema, cabendo ao primeiro o papel de criar as condições
necessárias para a reprodução do sistema. O que torna a questão da eficiência irrelevante
para o processo, uma vez que, em alguns momentos, essa talvez tenha de ser “sacrificada”
para que o capitalismo triunfe enquanto modo de produção.
A maior insatisfação que existe em relação à visão marxista do Estado, que mostra
claramente os limites que a propriedade privada dos meios de produção coloca para a
melhor alocação de recursos pela sociedade, é a ausência de espaços para o processo
democrático influenciar nesse processo (ver, para essa crítica, Przeworski, 1995). Mas
essa não parece uma crítica relevante. Porque, sempre que pressionado – e as conquistas da
sociedade na construção de um capitalismo mais democrático não podem ser ignoradas – o
sistema acabou por acomodar as demandas da sociedade, legitimando-as, sem colocar em
risco seus alicerces.
Pode ser que o atual enfraquecimento do Estado, devido à crise financeira em que
se encontra mergulhado e à sua crescente incapacidade de continuar provendo bens
públicos essenciais à sociedade, mesmo dela extraindo níveis elevados de receitas, por
meio da tributação, conduza à consolidação de novas formas de sua atuação ou até mesmo
à sua substituição por outros meios alternativos de organização da sociedade e de
relacionamento com o capital. Se isso ocorrer – e só a história o dirá – as novas estruturas
que surgirem terão de acomodar essas novas situações. Ou o capital já não mais será o
mesmo sem o Estado.
a) o que se estende até o início da década de 1930, revela um Estado frágil institucional,
econômica e financeiramente, destituído de condições de implementar políticas de
âmbito nacional.
b) o que se inicia nos anos 30 e se prolonga até início dos anos 80, um Estado que deu
início, avançou e consolidou suas bases materiais e institucionais, libertando-se dos
interesses oligárquicos imediatos e colocando-se em condições de atuar como um
Estado moderno, capitalista e de implementar políticas de âmbito nacional. Neste
período é um Estado que se caracteriza por um forte envolvimento, intervencionismo e
regulação em vários campos da vida econômica e social – educacional, trabalhista,
previdenciário etc. No campo econômico, antecede, com essa atuação, já nos anos 30,
as formulações keynesianas a respeito do novo papel que este deveria cumprir diante
das dificuldades postas pela crise mundial deflagrada em 1929, ao mesmo tempo que
se coloca como precursor das idéias cepalinas sobre a sua importância para o processo
de desenvolvimento das economias atrasadas.5
Um, que se estende dos anos 30 até 1964, quando ancorado em bases fiscais e
financeiras frágeis e respaldado por um pacto político - a base do "Estado de
Compromisso" - que he impedia a realização de reformas instrumentais - tributária,
financeira etc. - indispensáveis para o cumprimento de seu novo papel, o Estado se vê
compelido a lançar mão da empresa pública como instrumento de financiamento, através
5
Uma brilhante análise deste processo é realizada por Draibe (1985).
da contratação de recursos externos, e da criação de inúmeros fundos fiscais vinculados
para assegurar recursos de investimentos para os setores nascentes. De fato, como se pode
observar na Tabela 1.2., apesar do maior esforço de investimentos que passou a ser exigido
do Estado, os gastos governamentais da administração direta situaram-se, até o ano de
1964, em torno de modestos 15% do PIB.
c) o que tem início, nos anos 80, revela um Estado em crise, mergulhado numa profunda
crise fiscal, dardejado pelo surgimento das idéias neoliberais, questionado em sua
dimensão e eficiência pelas mesmas elites que o mantiveram prisioneiro de seus
interesses, enquanto vigorou o pacto que deu sustentação ao desenvolvimentismo, e
incapaz, na ausência de novos consensos em torno de seu novo papel, de desenhar uma
nova trajetória para a economia e a sociedade, amortecendo os antagonismos e
conciliando os interesses do capital e do trabalho.
Em resposta a essa situação, o Estado que começou a ser construído neste período,
no Brasil, seguiu as recomendações preconizadas pela doutrina neoliberal,
consubstanciadas nos postulados do Consenso de Washington, representando uma ruptura
com o Estado de vertente keynesiana/cepalina. Ao contrário do Estado que atuou, nas
etapas anteriores do desenvolvimento do País, como condutor, organizador e agente
estruturante deste processo, com forte atuação na constituição de suas bases, por meio das
empresas estatais, dos investimentos públicos e da implementação de políticas voltadas
para estimular o investimento privado, o modelo de Estado que surgiu deste novo
paradigma passou a assentar-se no compromisso de ampliação dos espaços para garantir a
soberania do mercado.
Tudo isso significa, em poucas palavras, promover reformas tanto para sua retirada
da vida econômica como para remover obstáculos que se opõem ou limitam a ação do
capital privado, sobretudo o internacional, na busca de maior eficiência, casos da elevada
carga tributária e de sua incidência sobre a produção, os investimentos e a as exportações,
da forte regulamentação dos mercados, em geral, e, inter alia, do baixo grau de abertura da
economia.
Nessa visão, em que não há mais lugar para o Estado intervencionista nos campos
econômico e social, a este se recomenda libertar da herança keynesiana/cepalina para
libertar o capital do fardo, do ônus que suas políticas impõem e representam para o
crescimento e a estabilidade da economia, reduzindo o seu tamanho e reformando suas
instituições para gerir, com responsabilidade, suas finanças, visando não perder
credibilidade, tendo como prioridade a garantia de pagamento, aos seus credores, da dívida
pública e de seus encargos. Mesmo que, para isso, tenha de comprometer, na perspectiva
marxista, o seu papel como agente de legitimação.
Ironicamente, para garantir o pagamento dessa dívida, foi nesses governos que a
carga tributária conheceu crescimento inédito, ultrapassando a casa dos 35% do PIB – uma
receita produzida por uma estrutura totalmente descomprometida com os princípios da
tributação, como os da competitividade, da neutralidade e da equidade. Seduzidos pela
nova doutrina dominante, empenharam-se, na realidade, em ajustá-lo às exigências do
processo de globalização, não medindo esforços para retirar do Estado o seu papel como
agente de “legitimação”, circunscrevendo-o ao de “acumulação”, apesar das implicações
que isso possa representar para o sistema.6
Com o governo Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu o comando do país em
2002, essa política não somente foi mantida como aprofundada, apesar do discurso em
contrário, dando-se prosseguimento à desmontagem de suas bases materiais e financeiras
como agente responsável pela implementação de políticas essenciais para o
desenvolvimento e para o bem-estar social. A remodelagem (ou “reinvenção”) de seu
aparelho, em nome da eficiência e eficácia, bem como a limitação de seu papel como
agente “regulador”, reflete as exigências colocadas pelo capital, nestes tempos de
globalização, em que o afastamento do Estado dessas atividades é por ele considerado
essencial para garantir seu “curso natural”, sem o ônus representado pela necessidade de
manter o apoio e coesão das classes dominadas, por meio de políticas redistributivas.
Tema, cuja discussão é retomada nos capítulos seguintes.
6
Essas questões são retomadas e discutidas com maior profundidade nos próximos capítulos.
Tabela 1.2.
A Evolução do Estado na economia brasileira na República
1889-2006
Períodos Características
reduzida participação nas atividades
produtivas;
1ª República manejo da política econômica,
Estado liberal e economia agroexportadora principalmente da política cambial, para
(1889-1930) defender os interesses do setor hegemônico,
o cafeeiro;
carga tributária e gastos públicos entre 10%
e 15% do PIB
Avanço e consolidação de suas bases
materiais e institucionais;
Forte intervencionismo na vida econômica e
social;
Estado Desenvolvimentista e Industrialização Carga tributária e gastos orçamentários ainda
1ª fase: 1930-1964 reduzidos (entre 15% e 20% do PIB) devido
à estreiteza das bases de tributação e dos
compromissos políticos (“Estado de
compromisso”);
Mecanismos complementares de
financiamento: empresas públicas, fundos
vinculados, déficits e dívida
Reformas do quadro instrumental e
institucional (tributária, administrativa,
Estado Desenvolvimentista, Autoritarismo e financeira etc.) para aumentar eficiência e
Redemocratização capacidade de financiamento;
2ª fase: 1964-1988 Forte intervencionismo na economia, com
ampliação das empresas estatais;
Elevação da carga tributária e dos gastos
orçamentários para 25% do PIB
Crise fiscal;
Predomínio das idéias neoliberais;
Retirada da atividade econômica, com
privatização de estatais, desregulamentação e
Globalização, Neoliberalismo e Crise Fiscal: desmonte de políticas sociais e regionais;
1988-(...) Reformas das instituições, ajustes e
compromissos com a política de
sustentabilidade da dívida;
Elevação da carga tributária para promover o
ajuste fiscal, que ultrapassa a casa dos 35%
do PIB;
Aumento dos gastos com o pagamento dos
juros da dívida, para evitar seu descontrole
BIBLIOGRAFIA