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A BRINCADEIRA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DO SUJEITO: EDUCAÇÃO DOS CORPOS.

Natália Tazinazzo Figueira


Mestra em Educação
Prefeitura de São Paulo, São Paulo –SP- Brasil
natitazinazzo@gmail.com
Fevereiro, 2017.
Resumo

O presente trabalho procurou analisar questões de gênero que permeiam a brincadeira infantil.
Através da experiência da autora como professora, bem como a relação entre estas práticas e as
teorias correntes sobre o tema, buscou-se discutir como as relações de gênero e imagens de
identidade e diferença que determinam simbolicamente universos e comportamentos femininos e
masculinos, são construções sociais que afetam as crianças, inclusive na escola. Através de uma
prática escolar bem comum, o dia do brinquedo, foi possível observar a relação de meninos e
meninas com as brincadeiras construídas a partir dos brinquedos vindos de suas casas e
disponíveis no ambiente escolar.
Os relatos de prática conversaram durante este percurso com autores das teorias pós-críticas na
pedagogia e sociologia da educação.
O percurso possibilitou detectar reproduções e ressignificações realizadas pelas crianças quanto
à discursos e ações que determinam tipos de comportamentos ditos mais adequados a cada
gênero e que circulam nos grupos familiares, sociais, midiáticos, e por vezes, espaços escolares
e que incorporam a construção destas crianças como sujeitos. Foi possível discutir ainda boas
estratégias e perguntas que podem desestabilizar este lugar comum e convidar os envolvidos a
refletirem e experimentarem possibilidades em busca de uma escola realmente democrática.

Palavras-chave: Educação. Gênero. Infância.


Para começo de conversa...

Estamos na roda de conversa que realizamos todas as sextas-feiras, antes de começarmos “o dia
do brinquedo”. -A maioria dos meninos trouxe carrinhos, observo sem comentar. N. trouxe um
boneco que representa um super herói. “Uauuuuu!” Ele ouve, enquanto mostra o brinquedo para
toda a turma. Uma das meninas apresenta o que trouxe:

-Eu trouxe carrinho também, mas esse eu posso, porque esse é de menina. É rosa e de por
boneca!

O texto acima é um recorte de meus registros de mais um dia na escola. Um dia desses,
que poderia ser ontem ou até mesmo hoje. Desde que tomei por escolha os caminhos da
educação, vivo o que construímos no dia-a-dia como Educação Infantil e Ensino Fundamental I,
tanto no ensino público quanto no ensino privado. A cultura da infância nos traz diversas vozes e
nos ajuda a refletir sobre nossas escolhas quanto à construção simbólica da infância e a formação
do sujeito. Como professora, observo os tempos e espaços da brincadeira dependentes do tempo
e espaço da escola, mas observo a soltura quando o foco são as crianças, procurando resistir à
educação dos corpos. Fica claro ainda que ressignificações de mundo estão presentes no
processo de compreensão das crianças, brincando com o real através do imaginário. Nesse
momento, desde a organização da brincadeira, a escolha de materiais até o final do jogo simbólico
em si, valores e concepções estão sendo atribuídos o tempo todo. Poderíamos falar de
interpretação do mundo, de materiais não concretos, de consumismo, de disputa, porém procuro
nesse trabalho refletir sobre questões de gênero em uma prática denominada “dia do brinquedo”,
em que as crianças podem trazer brinquedos de suas casas para brincar na escola. O que esses
brinquedos nos dizem? Que atribuições ganham estes objetos? Como se dá a brincadeira, em
fim? Há diferenças entre os objetos trazidos por meninos e meninas?
As teorias educacionais mais recentes, felizmente, já firmaram essa essência e o lugar da
brincadeira na educação, especialmente infantil, em suas mais diversas importâncias e
possibilidades de aprendizagem. Tomando o ato de brincar como linguagem de produção e
representação de significados com os quais as crianças se constituem como sujeitos e interpretam
o meio em que vivem, faz-se essencial refletir sobre essas possibilidades de experiências e
discursos perpassados pela brincadeira. A brincadeira no ambiente escolar se diferencia da
brincadeira de rua, no quintal, no playground do condomínio e outros tantos espaços de
convivência, especialmente por todos os aspectos que interferem significativamente em sua
constituição: professoras e professores como mediadores, o próprio ambiente e espaço físico, os
tempos escolares e os materiais disponíveis.
O ato de brincar na escola, atualmente, não é apenas um instrumento, recurso ou
metodologia de trabalho para os educadores: é eixo, pilar da educação, princípio. E como princípio,
tem concepções e valores embutidos que podem estar mais ou menos explícitos, mais ou menos
conscientes, em diálogo ou contradição e que por isso, precisam ser pensados e repensados
constantemente, como parte do processo de formação dos professores e professoras envolvidos,
bem como do projeto político pedagógico e projeto curricular da escola.
Como já mencionado, um dos aspectos cuja necessidade de constante reflexão se
evidencia nos tempos atuais são os padrões de gênero e diferenças de comportamento para
meninas ou meninos. Apesar de, historicamente, avançarmos bastante na questão, principalmente
no âmbito do discurso, não é sempre que temos a consciência da necessidade de rompimento de
algumas práticas. Nos momentos de brincadeira livre ou dirigida, ainda é possível perceber
aspectos que evidenciam uma forte separação entre os gêneros e no dia do brinquedo, esta
questão faz-se ainda mais latente. O corpo ainda é normatizado e controlado e especialmente nas
escolas afastadas das grandes metrópoles, ainda há uma grande exclusão das meninas pequenas
e jovens nos espaços de socialização e de manifestações corporais. Em escolas centrais e mais
urbanas a questão também se evidencia e grupos divididos por sexo durante as brincadeiras ainda
são muito comuns. Para nos aproximarmos da complexidade do processo e dessas vivências
educacionais, faz-se necessário compreender o ponto de partida desta reflexão.

Gênero, diferença e educação

A palavra gênero torna-se cada vez mais presente e evidente nos espaços sociais de
discussão, especialmente quando falamos de desigualdades sociais ou questões de minorias. Na
discussão aqui apresentada, temos que gênero: Não seria um conceito útil apenas na
compreensão das interações entre homens e mulheres, mas uma parte importante dos sistemas
simbólicos e como tal, implicado na rede de significados e relações de poder de todo o tecido
social (SCOTT, 1990; NICHOLSON, 1994).
Assim, gênero seria utilizado para referir-se a toda construção social relacionada à
distinção e hierarquia masculino/feminino, incluindo também aquelas construções que separam os
corpos em machos e fêmeas, mas indo muito além disso, numa grande discussão sobre as
práticas sociais influenciadas e influenciadoras desta separação.
Essa construção que distingue homens e mulheres é histórica e pautada na diferença.
Seu grande embate está na forma como a diferença foi vista durante muitos anos e ainda o é,
apesar de um grande apelo de várias frentes para esta mudança de concepção. Existe ainda hoje
um certo ideal, uma certa prática mais valorizada, determinadas culturas que são legitimadas e
tidas como superiores, em detrimento a tantas outras que são subjulgadas. Um dos aspectos que
evidencia essa afirmativa é o fato de que em alguns lugares do mundo já se reconhecem mais de
30 nomenclaturas de gênero, desconstruindo a dialética masculino e feminino e isso não chega
às escolas. Muitas vezes, diante desta falta de reconhecimento, legitimidade e até por
desconhecimento, uma única cultura é considerada, o que hierarquiza saberes, características,
grupos e assim, as relações humanas. Aspectos atribuídos a determinados grupos ganham pesos
e valores diferenciados, o que influencia nas relações de poder. Bhabha (1998) vai mais além e
traz a diferença como enunciação da cultura, numa relação de afirmação e resistência, de
reconhecimento dos conflitos. A relação entre identidades e diferenças é algo mais profundo do
que reconhecimento, acolhimento ou tolerância.
As identidades são produzidas por meio da marcação das diferenças, que podem ser
simbólicas ou concretas, mas, de alguma maneira, geram uma relação de exclusão entre as
partes, que, normalmente, está embasada em quem, por meio dos processos de significação, de
produção de cultura, detém o que está sendo considerado como saber e poder. A identidade só
faz sentido quando compreendida em diálogo com a diferença, pois são inseparáveis e
mutuamente determinadas, compondo a constituição dos sujeitos.
Essa construção está numa zona de conflitos e quando a representação é compreendida
como um processo cultural, é possível afirmar que estabelece tanto identidades individuais quanto
coletivas e que os sistemas simbólicos que norteiam essa configuração fornecem caminhos para
questionamentos sobre nossa existência: quem somos nós, o que queremos, assim por diante.
Tais questionamentos nos afetam diretamente enquanto corpos, que marcam e são marcados
pelas manifestações culturais as quais são expostos.
Desde muito cedo, os corpos infantis também são perpassados pelas marcas culturais
que constituem os sujeitos e que envolvem aspectos econômicos, sociais, étnicos e de gênero,
dentre outros. Tratando do ponto de reflexão deste trabalho, pode-se afirmar que os discursos e
práticas que pontuam semelhanças e diferenças entre meninas e meninos estão presentes dentro
e fora da escola e começam a interferir nas culturas de infância através de sua influência na
brincadeira. O repertório de jogos e brincadeiras e em especial os brinquedos ofertados são signos
que de certa forma traduzem um pouco deste universo que merece toda atenção quando
almejamos uma educação mais igualitária e democrática. A educação dos corpos é uma tensa
construção da cultura infantil corpórea, que já carrega todos os tipos de preconceitos inclusive de
gênero, tão presentes nas narrativas, mídias, política e até nas ações pedagógicas.

Rosa, azul, panela, carrinho: O que os brinquedos dizem às crianças

Qualquer pessoa que consome brinquedos infantis de grandes e populares lojas já deve
ter reparado em alguns “lugares-comuns” desses espaços: separação por faixa etária, marca
produtora, tipo de brinquedo e até gênero com relação aos produtos oferecidos, este último
demonstrando uma certa tendência a “sugerir” seções para meninos e para meninas. Nas seções
simbolicamente ditas “para meninos”, encontramos, em sua maioria, bonecos ou fantasias de
super heróis, lutadores, brinquedos que convidam à destreza corporal, inúmeros tipos de jogos de
montar temáticos (inspirados em filmes de aventura, piratas, lava-rápidos ou postos de gasolina,
cientistas, personagens de vídeo game, dentre outros), naves espaciais, meios de transporte,
“tecnologia futurista”, etc. Já na seção simbolicamente dita “para meninas”, encontramos bonecas
que representam adultas e bebês dos mais variados tipos, utensílios de cozinha e “fabriquinhas
de alimentos”, desenho, massinha, roupas de boneca e fantasias de princesas, cosméticos,
artesanato, com muito brilho e cor de rosa, com temáticas muito próximas, bem parecidas. Cada
vez menos os brinquedos artesanais e típicos de uma localidade ou grupo têm espaço:

Se em outros momentos da história os brinquedos refletiam a cultura e a


tradição local onde viviam as crianças (...) hoje, para o bem e para o mal, é
possível afirmar que os brinquedos possuem características materiais
semelhantes em qualquer lugar do mundo. E essa constatação vai além da
descoberta do plástico como matéria-prima, que possibilitou que os brinquedos
deixassem de ser um trabalho artesanal para se tornarem itens de fabricação
em série.(...) As crianças do mundo não só brincam com os mesmos
brinquedos –salvo possíveis variações- como também se apropriam em suas
brincadeiras das narrativas que envolvem os mesmos, disponíveis na TV, na
internet, nos outdoors, nas redes de fast food, entre tantos outros.
(GIRARDELLO e MUNARIM In:Arroyo e Silva, 2012, p.333)

Tantas opções ofertadas, marcas consolidadas (não basta ser uma boneca, deve ser a
boneca X, da marca Y), propagandas nos veículos midiáticos constantes e convidativas acabam
influenciando (e limitando) as preferências das crianças e ditando conceitos que viram verdades
únicas. Opções cada vez mais elaboradas tentam embutir a ideia de brinquedos únicos, que
determinam a possibilidade da brincadeira acontecer ou não. Os adultos, como atores sociais,
pais, educadores e familiares muitas vezes encontram-se em armadilhas visíveis e invisíveis que
envolvem estas influências, regras familiares, o que podem e o que querem oferecer à suas
crianças. Escolhas pensadas e pautadas em valores éticos são muito importantes, visto que o
brinquedo muito mais do que um objeto, é o símbolo dessas práticas da infância: O brinquedo
participa desta construção de infância e dela é, ao mesmo tempo, consequência, reflexo e uma
das causas (BROUGÈRE, 2004b:14). O brinquedo influencia na ação que a meu ver é essência
da infância: o processo criador.
Ao propormos que esses produtos consumidos pela família tenham momentos de troca e
compartilhamento dentro da escola, podemos analisar e refletir com mais segurança sobre essas
escolhas repertório, temática e concepções do próprio brinquedo em si, já que o lugar da
brincadeira para a criança é qualquer lugar. Já a escola, pode e deve ser o lugar de
questionamentos, críticas ao já posto e transformações sociais.

O dia do brinquedo: Porque investir nessa prática e o que nós professores (as) aprendemos
com ela.

A brincadeira acontece numa relação imbricada entre o corpo, o movimento e o jogo


simbólico em si, mediada pela imaginação. Por isso, Vygotsky (1994) nos lembra do brinquedo
como um objeto que dá suporte aos processos criativos e simbólicos, dada a plasticidade desse
objeto na interação com diferentes crianças, como reforçado no excerto a seguir:

O brinquedo é considerado relevante no processo de construção da


brincadeira (...) Considerando as diferentes experiências e as características
individuais, percebe-se que meninos e meninas terão experiências e
interações diferentes mediante exploração da brincadeira e do objeto. Tais
situações contribuem para o desenvolvimento e aprendizagem de
comportamentos dados socialmente. (FARIA e FONSECA in Arroyo e Silva,
2012, p.287)

Nesse sentido, a criação de uma situação imaginária não é algo simples na vida da
criança, pelo contrário, é a manifestação da emancipação da criança em relação às restrições
situacionais e sua conexão entre o simbólico e o real. Reconhecida a importância do brinquedo,
oferecer os que estão disponíveis na escola já não seria suficiente ou mais rico?
É fato que diante da globalização e da indústria de brinquedos, a relação com este material
se transformou. Pode-se afirmar que o brinquedo incorporou tecnologia, produções mais
complexas, universalizou temas e também a forma de brincar, já que algo tão concreto e detalhado
acabou perdendo um pouco de sua plasticidade, quase “dizendo” em sua forma como a criança
deve brincar. A escola pode ter um papel importante em resgatar a ludicidade, o “artesanato” do
brinquedo, ao oferecer materiais mais plásticos, flexíveis e não concretos, como tecidos, potes,
fitas, barbantes, bonecos simples, tubos, dentre milhares de possibilidades que as crianças
transformam em artefatos da cultura da infância. Ainda assim, é também papel da escola
problematizar o contexto social, mediar a relação das crianças com os brinquedos disponíveis,
desejados e até mais comuns, com um olhar crítico e reflexivo para esta experiência. Como dito,
essa criticidade pode aparecer na representatividade (ou falta dela) de etnias, na exaltação de
marcas, comportamentos, consumo e finalmente, de gênero.
Quando existe a possibilidade de que o brinquedo também venha de casa podemos
aprofundar as reflexões sobre padrões e oferta para meninos e meninas, além de trabalhar outras
questões como identidade, o vínculo com o espaço da escola e ligação com a casa, dividir,
partilhar, etc. É possível observar mais individualmente o que possuem, o que escolhem trazer,
quais são suas preferências, do que brincam mais, etc. bem como diversificar possibilidades, para
que meninos e meninas tenham contato com materiais mais diversos.
Mesmo diante de tantas possibilidades, são muitas os esteriótipos com que crianças e professoras
se deparam: bonecas, bebês de plástico que representam na maioria das vezes figuras femininas,
panelas e utensílios de cozinha cor de rosa, carros e motos de cores escuras, bonecos que
representam super-heróis (masculinos). É comum ouvir entre as professoras, que ao organizar o
espaço para a brincadeira procuram “equilibrar” propostas para os meninos e propostas para as
meninas, como se isso fosse necessário, ainda que não estimulem que os dois grupos brinquem
em separado ou com determinados materiais. Muitas vezes, esta divisão está tão internalizada
que se torna inconsciente e parte de nossa prática.
Ao planejar o dia do brinquedo, procuro levar em consideração quais as temáticas já
apresentadas em semanas anteriores, bem como o que pode dialogar de maneira interessante
com o que veio de casa. Procuro ainda alternar aquelas que ainda não são estereotipadas no
discurso das crianças como pertencente a um único gênero (escritório, médico, restaurante,
fantoches, por exemplo) com aquelas que são “classificadas” desta forma (pistas de corrida,
casinha, cabelereiro, ferramentas). Também fazemos o que chamo de “roda de apreciação”,
momento em que cada criança pode mostrar o que trouxe e conversamos sobre sugestões para
seu uso: Máscaras e bonecos de heróis, pelúcias, bola, motos, às vezes maquiagem. São muitas
as opções e temos apenas um combinado sobre não trazer eletrônicos, já que priorizamos o jogo
simbólico e a interação.
Quando a exploração do jogo simbólico se inicia, alguns impasses também aparecem:
crianças que circulam livremente por todas as brincadeiras e utilizam tipos variados de brinquedos;
crianças que procuram explorar os brinquedos cuja temática é muito diferente daquelas que têm
em casa; outras que em suas falas trazem afirmações e questionamentos provocadores para todos
nós, como as seguintes:
-Mas, essa panelinha é de menina e ele pegou...
-Futebol é para meninos...
-Todo mundo pode usar rosa, meu pai tem uma camisa rosa...
-Não tem cor de menino e menina, mas essa boneca é de menina...
-Ele vai ser meu pai ou meu filhinho?
Uma das brincadeiras mais elucidativas e convidativas à reflexão é a de salão de
cabelereiro. É comum que as crianças peçam que eu seja sua cliente e por terem as professoras
como forte referência, minha participação torna a proposta um tantinho mais atrativa. Quando os
meninos reivindicam seu espaço no jogo, as meninas argumentam terem preferência na
brincadeira, justamente por serem meninas. Já os meninos percebem uma proposta que não
costumam explorar em outros momentos e despertam seu interesse, uma vez que o corpo e a
estética são tão evidenciados em nossa cultura.
E se a brincadeira é experiência, é comum que meninos e meninas queiram representar
papéis diversos, ora incorporando o “ser” mulher, princesa ou mamãe, ora incorporando o “ser”
homem, príncipe ou papai. Assim, meninas vestem a máscara do herói, pegam sua espada e saem
em aventura, enquanto os meninos pintam os olhos, vestem roupas de fada ou borboletas cor de
rosa. Às vezes, os mesmos são motivo de risos, julgamento ou críticas: -Olha, ele é menina!; – Ele
tá de saia!; -Mas Prô, menino pinta a unha?
Isso aos 5 anos de idade! Aos 7 anos, quase não se arriscam mais! Quanto embutido em
curtas e emblemáticas falas: a pintura do rosto ou do corpo como um atributo exclusivamente
estético e feminino; um preconceito relativo a vestuários, o julgamento de um menino por
experimentar o que se atribui ao gênero feminino, ainda que na brincadeira. O que nos diz um
menino que não quer usar lápis de cor rosa? Ou aquele que faz uma saia com um tecido? E o
menino que brinca de pintar as unhas e nos pede, angustiado, para limpá-las antes de ir embora,
para assim, não ser repreendido em casa? Ainda: Quando propomos que todos brinquem na
mesma temática, que seja blocos de montar de qualquer tipo, construções, restaurantes e a
brincadeira acontece de forma tão leve e divertida, o que falta para que esse tipo de experiência
prevaleça?
Para mim estas questões dizem aprendizados, ou melhor desaprendizados que como
adulta preciso rever diariamente. Apesar destes discursos e ações reprodutoras que ainda
aparecem, estar com as crianças nos mostra que classificações não importam e que é possível
naturalizar a diferença, desde que possamos refletir sobre nossas intervenções, tantas vezes
equivocadas. As crianças nos ensinam sobre o diverso que sem perceber, procuramos afastar. A
brincadeira com a boneca de marca cara e com a boneca comprada na feira é exatamente a
mesma; o secador de cabelo é utilizado com esta função, mas também como avião e até um tipo
de arma; o carrinho serve para reproduzir o transporte escolar que os trouxe à escola; o escudo
de herói vira bandeja e os blocos tornam-se comidinhas. Com muito menos verdades
intransponíveis e determinações, tudo pode ser transformado e ganhar diferentes funções dentro
de um mesmo jogo simbólico, independente do sexo ou do gênero dos envolvidos.
Como já nos alertou Manoel de Barros, “desaprender oito horas por dia ensina os
princípios”. Não apenas no dia do brinquedo, mas em todos os momentos desse tipo de interação
a brincadeira não é só prazer e satisfação, e aí está sua grande beleza. Além dos conflitos
provocados pela partilha, disputa de relações, materiais e espaços, os discursos e práticas
produzem e recriam artefatos culturais, produtores de identidades e diferenças. Identificar a cultura
lúdica na infância significa reconhecer a existência de um processo social de expressão e
convivência na sociedade dado a partir de um universo particular simbólico. Tal universo é
construído mediante a ação e reflexo da ação de brincar, a qual exige e proporciona uma
aprendizagem, que pode ou não contribuir significativamente para os avanços que já tivemos na
questão com relação ao discurso e algumas práticas sociais. Como pensamos e praticamos a
relação da educação e o gênero está embutido nesse universo e precisa ser constantemente
repensado e revivido, relembrando sempre que nosso maior papel não é encucar opiniões e
determinar escolhas, mas sim propiciar que as crianças possam realizá-las e se construírem
enquanto sujeitos com maior tranquilidade.

Considerações finais

As identidades são construídas no cotidiano através dos discursos e das práticas em que
os sujeitos estão envolvidos. Não há identidade fora do meio social:

Por meio do discurso, os sujeitos agem no mundo, posicionam-se e são


posicionados e, nesse processo, formam as visões que têm acerca dos
objetos, dos acontecimentos, de si mesmos e dos outros sujeitos ( CANDAU,
2013, p.57)

Os significados construídos pelas crianças nas interações que acontecem dentro das
escolas interferem em como vão agir e tudo que é visto, dito e vivido afetam essa formação.
Meninas e meninos levam em seu corpo o que dizemos que é ser menina e ser menino e estamos
no momento de que questionar o que as classificações significam na formação do sujeito.
Acredito que a pergunta que sempre devemos nos fazer enquanto educadores e
educadoras é: Os currículos que estamos configurando contribuem para que as crianças, desde
pequenas, construam identidades positivas de seu gênero e dos corpos que habitam?
Reconhecer a corporeidade como lugar do verbo, de linguagens reveladoras de sentidos
nos obriga a aprofundar a análise de como corpos precarizados anunciam e denunciam o vivido e
sofrido e até a precarização de seu viver, que não pela palavra dita. Como revelam suas formas
de leitura-sentimento de si e dos outros? Como escutar suas linguagens e os significados dos seus
corpos? Talvez o caminho seja reconhecendo os corpos das crianças como sujeitos da educação.
(ARROYO e SILVA, 2012, p.16)
Ora, se assumimos o compromisso de formar sujeitos que sejam capazes de transformar
a realidade, precisamos de crianças imaginativas no ato de brincar. Segundo Schiller (1971),
brincar é uma maneira de ser humano e assim, resignificar culturas. Promover a formação cultural
através de valores étnicos, estéticos e políticos do corpo é encurtar distâncias e diminuir muros
entre pessoas e grupos que se diferenciam no pertencimento a identidades culturais. Para tanto,
há que se ter um olhar voltado às diferenças desde a primeira infância, desde a educação infantil.
Os limites de gênero podem influenciar as relações, mas não limitá-las, como ainda vem
acontecendo. Meninos e meninas precisam e devem ter o mesmo acesso, mesmas oportunidades
e mesma voz, levando em conta apenas especificidades de cada criança, o que inclusive pode
modificar as relações de gênero que construirão ao longo da vida. A essência do social deve ser
o próprio envolvimento compartilhado, que incorpora porém não se limita às diferenças. Em busca
de uma sociedade mais justa e democrática, a escola deve se construir em pilares onde as
identidades e diferenças sejam elementos que potencializem o desenvolvimento individual e
coletivo de todas as nossas crianças.
Referências bibliográficas

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outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012.
BARROS, Manoel de. Didática da invenção I. Poema publicado em 1993.
BROUGÈRE, G. Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez, 2004.
FIGUEIRA, N.T. O parque como espaço educativo: Práticas corporais num projeto de formação
de professoras para Educação Infantil. Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
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MOREIRA, A. F. B.; CANDAU, V. M. (Org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas
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SILVA, T.T. (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva
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VYGOSTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. Martins Fontes - São Paulo. 5ª edição, 1994.

Breve currículo

Natália Tazinazzo Figueira é pedagoga e Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo –
USP- na área de Didática e Formação de Professores, atua como professora de Educação Infantil
no ensino municipal de São Paulo e no Ensino Fundamental I na rede privada. Especializou-se na
pós-graduação em A arte de contar histórias, atua ainda como arte educadora e consultora para
livros didáticos.

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