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A Jornada Alquímica Nigredo
Livro
I
Nigredo
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A Jornada Alquímica Nigredo
Rogerio Ribeiro
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A Jornada Alquímica Nigredo
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A Jornada Alquímica Nigredo
―Para minha mãe e meu pai, pois, mesmo sem ter tido a oportunidade de
conhecê-los, sou imensamente grato por terem sido meu portal de entrada nesta
existência.‖
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A Jornada Alquímica Nigredo
A
gradecimentos
Meu muito obrigado aos que dedicaram horas-vida à leitura de meu original.
Ao meu editor, Luiz Vasconcelos, por seu apoio e sua crença no projeto, e a
toda a equipe da Novo Século.
Por fim, agradeço de alma, espírito e intelecto ao meu guia, Augusto Reis.
Sem o seu empenho teria sido impossível chegar até aqui...
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A Jornada Alquímica Nigredo
Um
o momento inicial da ―queda‖ do Sol, o menino que morava dentro do homem
N e estivera sentado por horas esperando por esse mágico momento, começava a
se maravilhar. Foram horas e horas de espera; o crepúsculo o fascinava tal
qual o carrossel quando era bem pequeno.
Um êxtase se apoderava de seu ser enquanto vislumbrava a imensa bola vermelha
mergulhando no oceano Atlântico. Imaginava aonde ela poderia ter ido. O que havia
acolá? E aonde ele, o menino, iria quando crescesse dentro deste homem?
Vivera uma vida inteira e se dedicara pouco a esses pequenos grandes prazeres.
Seus olhos estavam marejados e, por trás da velha aparência que olhava no espelho,
havia uma alma que jamais conhecera o que era idade, o que era o fim... A razão,
porém, martelava insistentemente em sua cabeça que estava acabando.
Casara sem amor, baseado apenas na razão e nos motivos da sociedade. Trabalhara
por anos em algo que sempre detestou, e agora compreendia, de súbito, que nenhum de
seus passos fazia sentido para ele... Vivera uma existência voltada para fora e percebeu
um equívoco sem retorno.
Tornara-se o chefe executivo de uma grande fábrica de automóveis, comprara um
apartamento, sustentara sua família e participara de todas as reuniões sociais que lhe
eram impostas.
Frequentou dúzias de igrejas e nunca sentiu Deus em nenhuma delas.
Fez o que lhe ditaram como receita de felicidade: nasceu, estudou, cresceu, casou,
trabalhou e, agora, estava morrendo.
Buscou durante sua existência diversos significados para a mesma, no serviço
militar, nas ideologias políticas, na fé organizada e, por fim, no modelo de vida
escolhido pela sociedade, mas nada encontrou.
Refletia calmamente enquanto ouvia os pássaros alardear sua existência no azul
infinito do éter.
Começava sem início e terminava sem fim... – pensava.
Aos 54 anos, o menino-homem percebeu que não havia vivido um único dia, e que
apenas sobreviveu durante sua existência; nunca viveu verdadeiramente.
Nunca pensara a respeito desse assunto, e agora, que chegava próximo do fim,
compreendia algo que ninguém poderia lhe dizer, apenas sua alma tinha essa
capacidade, apenas seu coração detinha essa sabedoria, apenas seu olhar poderia lhe
revelar o que de mais óbvio havia. Entretanto, nesta existência a obviedade foi
descartada, renegada à qualidade de algo medíocre, de pessoas não inteligentes e
irremediavelmente incultas.
Seguira detalhadamente o ―modelo‖ oferecido e percebia que sempre esteve sozinho,
e que o modelo imposto, vendido e disponível de caminho a se seguir na vida era
absolutamente equivocado.
Compreendia que tanto as pessoas que seguiam como as que exigiam que todos
fizessem o mesmo estavam mais infelizes que nunca.
Percebia que o caminho deve ser descoberto dentro de cada ser humano, e não em
uma sala de aula, TV, livro, internet ou cinema.
Não há denominação religiosa, instituição de caridade ou ideologia política que dê
sentido, verdadeiramente, à existência humana.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Esse significado, pensava, enquanto o crepúsculo lhe adentrava as retinas, deve ser
encontrado dentro de nós mesmos. Deveríamos buscar esse sentido maior em nosso
maior empreendimento: a VIDA.
Hermes Arauto não era bonito nem feio. Sua estrutura física de descendência
europeia denunciava seus ancestrais de origem espanhola, que deixaram o Velho
Continente em busca de algo melhor na América do Sul. Seu rosto com traços
masculinos, cabelos castanhos e lisos com fios grisalhos, cortados de forma tradicional,
e seus olhos profundamente negros, que remetiam às praias desertas em tardes de
inverno, davam-lhe uma aparência atraente. As mulheres o classificavam como ―um
homem com cara de homem‖.
Essa aparência, aliada à sua formal educação, quando em ação dentro da fábrica,
passava segurança a todos os que o rodeavam. Ele possuía mãos gentis e unhas
finamente roídas na calada da noite, em longas refeições servidas em todos os dedos de
ambas as mãos, onde invariavelmente ―escondia‖ sua insatisfação.
Sempre tivera um olhar terno, porém fora aconselhado a não sorrir demais, pois
passava um ―ar‖ de jovialidade que a diretoria da fábrica, bem como o ―mercado‖ de
trabalho, não via com bons olhos. Também não era de bom-tom que um homem, pai de
família e chefe executivo, fosse visto com risos excessivos e brincadeiras
desnecessárias.
Sua mãe e seu pai haviam se esmerado em lhe dar uma educação formal e sem
exageros. Cabia a cada um fazer sua parte para que a sociedade caminhasse para o
futuro, dizia senhor Lorenzo Arauto Júnior, pai de Hermes. Dona Mercedes Garcia
Arauto, sua mãe, lembrava-lhe sempre das obrigações de um filho e marido zeloso, e
assim sua vida seguiu conforme sua educação, crença e conceitos mercadológicos.
Apesar de seu interesse por línguas exóticas, aprendera o inglês e o espanhol por
necessidade do trabalho e para não esquecer suas origens, porém nunca gostou de
nenhum destes dois idiomas.
Estava inscrito nos anais do sistema burocrático sob o número 9-852-1, no registro
geral de seres humanos, e no sistema de contribuição do governo sob o número 347-
031-0009-51. De posse desses dois números, era considerado um indivíduo que existia,
ou seja, contribuía com o sistema em que vivia: impostos em dia, água, luz, telefone,
seguro-saúde, prestação da casa própria, previdência, para a qual fora aconselhado a
nunca deixar de contribuir, pois quando chegasse à velhice era dela que sairia seu
sustento, bem como a possibilidade de aproveitar um pouco a vida.
Hermes, neste crepúsculo, segurava na mão direita o resultado de um exame com o
símbolo do Hospital Israelita Albert Einstein, com sede na maior capital da América do
Sul, São Paulo, Brasil, que dizia claramente: Confirmação de metástases nos rins e no
fígado.
O médico lhe disse que a cirurgia seria marcada para a próxima semana, devido à
gravidade do caso.
Uma única pergunta Hermes fizera ao médico:
— Quanto tempo ainda tenho?
O médico sorriu sem graça, coçando a cabeça, e abriu uma pequena gaveta em sua
mesa. Tirou um maço de cigarros, acendeu um, dando uma longa e demorada tragada,
olhou os carros que transitavam vagarosamente nas artérias da cidade, olhou para
Hermes e disse:
– Às vezes até eu preciso descarregar a tensão e faço isso com apenas um cigarro ao
dia...
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A Jornada Alquímica Nigredo
A frase morreu na garganta, pois o olhar inquiridor do homem, seu paciente, à sua
frente, o desconcertou... O som saiu baixinho, quase inaudível:
– Nove meses.
– Tão pouco assim?
– Talvez mais, talvez menos, é difícil dizer com precisão antes da cirurgia.
Terminou de fumar, olhou-o mais uma vez e o acompanhou até a porta do
consultório.
Isso acontecera há duas semanas e até agora não havia comunicado a ninguém.
Resolvera pensar em seu curto e finito futuro, bem como sobre sua breve existência
neste planeta.
Hermes não correu grandes riscos, em contrapartida não teve grandes emoções;
nunca sofreu por ninguém, em contrapartida não chorou de amor ou de paixão. Jamais
teve um sobressalto inquietante de insegurança, em contrapartida nunca andou fora de
sua zona de conforto. Nunca dormiu em uma rodoviária ou estação de trem, em
contrapartida nunca conheceu a magia de conversar com estranhos sem nenhuma
obrigação social. Nunca questionou muito o modelo de vida e os valores da sociedade,
em contrapartida nunca provocou ondulações em seu lago existencial.
Fez uma lista dos bens duráveis que conquistou em 54 anos de presença na Terra.
Dispunha de apartamento na metrópole e outro na mesma praia onde seus pais
também eram proprietários, dois automóveis na garagem e uma pequena economia no
banco que não lhe permitia nenhuma extravagância, em contrapartida nunca atrasara
uma única conta doméstica.
Chegou à conclusão que teve uma existência segura, porém sem um único dia de
vida.
Observava que, com apenas algumas exceções, seguira fielmente as determinações,
primeiro de seus pais, depois dos professores e, por fim, da responsabilidade social.
Admitiu nesse momento, enquanto o Sol mergulhava no azul infinito, que fez muito
pouca coisa do que verdadeiramente precisava, mas se dedicou com afinco a tudo o que
os outros queriam.
Fora por diversas vezes o aluno do mês, orgulho de seus pais.
Recebera diversas premiações como o funcionário exemplar, admiração para seus
superiores.
E não foram poucas as vezes que recebera a nomeação de pai, marido e filho do ano
nas organizações que frequentava, lisonjeio para sua esposa e filhos, bem como para seu
ego.
Fora educado para não correr riscos e para tornar-se um ser humano que contribuísse
com a sociedade, retribuindo, com isso, tudo o que seus pais e avós fizeram por ele.
Tornou-se o símbolo de missão cumprida de seus pais.
Tornou-se o exemplo de cidadão respeitoso e marido zeloso. Tornou-se algo que nem
ele mesmo sabia definir, mas, definitivamente, ―aquilo‖ não era ele.
Fizera um plano exemplar para viver: assim que sua aposentadoria chegasse, iria
visitar alguns lugares que gostaria de conhecer, aprenderia a falar uma língua exótica e
viveria perto do mar.
Quando a aposentadoria chegasse, começaria a viver a vida que sonhou para si, após
ter cumprido a missão que lhe fora incumbida por alguém, que não saberia definir
exatamente quem.
Namorara duas ou três meninas e se casara com a mais moldada para ser ―esposa‖.
Sonhara, na infância, em se tornar um músico, porém fora aconselhado a deixar a
música como hobby e buscar um trabalho que pudesse sustentar sua família.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Seu pai, que tentara ser músico durante toda uma vida, terminara sua existência
sendo supervisor de operações em uma empresa de transporte e, quando chegou o
momento de decidir qual profissão seguir, senhor Lorenzo fora incisivo:
– Passei toda minha vida insistindo em ser músico, tornei-me maestro, porém nunca
ganhei um tostão para sustentar minha família. Você não cometerá o mesmo equívoco.
Fará uma faculdade e se formará em engenheiro, com isso poderá conseguir um ótimo
emprego na fábrica de automóveis e terá segurança para manter sua família.
– E quanto à música, pai? E o que sinto em meu coração?
– Filho, coração é coisa de filme ou de mulher. Homens precisam ser práticos, e você
será engenheiro. Trabalhei toda uma vida para você poder fazer o que quisesse, ou seja,
estudar e ser alguém. Problemas nós temos em todas as áreas em que atuamos. Se você
for músico profissional, acabará mais envolvido em problemas do que com a música, e
aquilo que mais te dá prazer se tornará um objeto de tortura. Deixe a música como lazer,
assim você não a corromperá com o dia a dia da profissão.
O menino, atento às palavras do pai, cabisbaixo seguiu...
Ao se formar com louvores, pretendia abrir um pequeno negócio com um amigo, mas
seu pai e sua mãe foram categóricos:
– Negócio, filho? Em negócio há muitas incertezas, altos e baixos. É melhor que
você arrume um bom emprego, em uma empresa sólida, e construa uma carreira, pois
quando as ―coisas‖ apertarem, melhor um pássaro na mão que dez voando.
Infelizmente, esqueceram-se de refletir que um pássaro só pode ser um pássaro
voando, pois, quando está na mão não passa de um animal como outro qualquer.
Quando detemos um talento e não o exercitamos, deixamos de ser um pássaro para
nos tornar apenas mais um animal silvestre; nada de brincar nos céus, nada de
mergulhar em lagos e rios em tardes quentes de verão, nada de risco de ser devorado por
um felino de plantão. Gordo, seguro, bonito aos olhos dos outros, mas frio, feio e infeliz
aos nossos próprios olhos.
Dessa forma, o projeto fora substituído pelo emprego perfeito, objeto de conversas
nas tardes de domingo, quando invariavelmente comia-se macarronada.
Sua vida seguiu. Enfrentara alguns pequenos problemas na fábrica em que
trabalhava, mas, afora o cotidiano, nada ondulava o lago de sua existência.
Nesses últimos momentos pensara em quanto fora tolo.
Pensava no quanto medroso era e sabia, no íntimo, que apesar de todo seu entorno
tentar empurrá-lo para algo que não desejava, fora ele, e apenas ele, o responsável pela
existência que viveu. No fundo, sabia que por receio de enfrentar seus maiores medos
abdicou de uma existência de realizações. Se o haviam ―escravizado‖ a esse sistema,
não foi sem sua conivência e cumplicidade. Era difícil admitir isso para si mesmo, ainda
mais nesse momento, mas decidiu não ser hipócrita ao menos uma única vez na vida, e
o resultado dessa resolução o levou até esse ponto.
Sonhara em ousar. Na juventude, ansiava por descobrir mundos, culturas e
empreender todo esse conhecimento em sua carreira de músico. Mas isso agora era
como chuva de verão que vem nos refrescar: forte e apaixonante, mas que logo passa,
ficando a sensação agradável que saboreamos em um arco-íris que, apesar de lindo de
ver, é impossível de se tocar.
De posse do prognóstico do médico, havia tomado uma resolução: custasse o que lhe
custasse, faria tudo diferente nesses últimos nove meses de existência, faria o que a
sociedade normalmente chama de loucura!
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Seguiria inflexivelmente seu coração, ouviria sua alma e faria, pela primeira vez na
existência, o que julgasse importante. Não hesitaria em decepcionar, não tentaria
agradar, não pensaria em como as pessoas o veriam ou o que diriam.
Buscaria dar um sentido maior à sua presença no mundo, e isso significava declarar
guerra, querendo ou não, à forma como viveu até aquele momento.
Percebeu um mistério envolvendo o tempo de que ainda dispunha na Terra... Nove
meses. Nove meses fora o tempo de sua gestação. Quando tinha nove anos participou
como cantor em uma comemoração na escola e descobrira sua vocação. Também aos
nove anos sentira um frio no estômago e uma vontade incontrolável de ir ao banheiro
toda vez que Larissa, uma menininha negra, passava graciosamente pelo pátio da escola,
e descobrira, mais tarde, que era o calor ardente do primeiro amor que aquecia seu
coração. No entanto, nunca lhe confessou, por medo ou por sua etnia, que seus pais
jamais aprovariam. A verdade era que não tinha coragem de deixar claro o que sentia
para ninguém. Nove foi o número que recebeu na camisa de voleibol quando defendia o
nome da escola cristã em que estudava; e nove também foi o número de seu primeiro
apartamento.
Sentia, dessa forma, que mesmo sendo ignorante sobre o assunto, o número nove lhe
dizia algo e o considerava secretamente seu número da sorte, pois seus pais
consideravam esse tipo de crendice idolatria.
Agora se deparava com o dia 3/6/2007, onde tudo era nove.
Estava decidido a viver essa gestação e ―nascer‖ nove meses depois.
Sua consciência o levou ao fato inquestionável da finitude de seu tempo e, depois, da
finitude de todos os tempos, até chegar à conclusão que o tempo é algo necessário para
os seres vivos, porém, não para a mãe Terra, não para a natureza e, obviamente, não
para o mistério do universo.
Tempo... era algo que ele não tinha e, por isso mesmo, teria de ser objetivo em seus
propósitos, o que, no caso de Hermes, significava fazer uma lista de possibilidades
realizáveis.
Pelas suas contas, teria exatamente 270 dias até 3/3/2008, quando venceria o prazo e,
segundo seu médico, ele partiria.
Apreciava o pôr do sol em uma praia do litoral brasileiro como nunca o fizera, e
observava também como as pessoas criavam ilusões para continuarem a se manter
infelizes. Compravam casas e apartamentos em balneários próximos dos grandes
centros urbanos, aonde iam invariavelmente nas férias e nos feriados. Lá, nesses
balneários, construíam ―ilhas‖ de consumo tal qual nas grandes metrópoles, e ―cadeias‖
de luxo que chamavam de condomínios. Dentro desses ―templos‖ podiam venerar suas
infelicidades sem correr riscos, sem provocar ondulações em seus lagos existenciais e,
sobretudo, podiam sentir-se, mesmo por alguns minutos, pessoas realizadas.
Compravam carros de luxo e os financiavam em anos, a fim de exibirem suas
conquistas. Não se davam conta de que a cada novo produto que adquiriam criavam
mais e mais correntes dentro do sistema, e que isso se retroalimentava de suas vidas.
Agora tudo lhe parecia diferente. Nesse momento gostaria de dar algum bem de
consumo em troca de mais alguns meses de vida, mas descobrira amargamente que era
tarde demais...
Um nó se fez em sua garganta, seus dedos, com unhas roídas, cravaram-se em sua
carne na parte superior das coxas, o gosto amargo de bílis subiu a sua boca, seus olhos
lacrimejaram e as lágrimas que rolaram em sua face eram testemunhas de seu grande
equívoco. Nunca pensara que morreria... Nunca pensara na morte e nunca, nunca
questionara a forma como vivera sua existência. Acostumara-se a se colocar em
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segundo lugar em detrimento dos demais, e percebia agora que nunca fizera isso por
amor, mas sim para colher o fruto de admiração de sua esposa, de seus pais e, por fim,
do círculo social em que vivia. Descobrira amargamente que somente quando nos
fazemos verdadeiramente felizes é que podemos gerar felicidade ao nosso redor,
inclusive para os que amamos.
Gostava de ser elogiado como pai, filho, marido e cidadão exemplar, mas agora
sentia que nada disso poderia evitar o que estava por vir e que nenhum desses
reconhecimentos o fizera verdadeiramente feliz.
Tinha de reconhecer para si mesmo que era uma pessoa medíocre. Vivera à sombra
dos outros e de suas vontades e desejos, tendo ou não consciência disso. Tornara-se, no
fundo, rancoroso com todos. Vez por outra criticava o feito de outro ser humano, pois
quando o fazia, sentia um superficial conforto. Quando criticava e julgava alguém que
tomou caminhos diferentes e fez escolhas pouco ortodoxas sentia em seu íntimo a
sensação de cidadão perfeito, de homem responsável e de mártir, e isso gerava
comentários lisonjeiros.
Certa vez, em uma reunião de fim de ano, sua mãe, eloquentemente, disse:
– Meu filho tem a nobre capacidade de se sacrificar pelos outros, uma alma com
tamanha bondade só pode ser iluminada.
Na época, lembrou-se que o elogio da mãe o regozijou, endossado pela frase final de
Celine, sua esposa:
– Nunca encontrei um homem mais dedicado à família, à moral e aos bons costumes
que Hermes.
À noite, porém, na cama, pouco antes de dormir, suas lágrimas rolaram por não
poder dizer que tudo o que gostaria era estar longe dali, compondo música e viajando
pelo mundo.
Gostaria de ter coragem de assumir perante todos que odiava o emprego e as
reuniões familiares forçadas, porém calou-se na noite silenciosa e sozinho chorou.
O barulho das gaivotas o trouxe de volta ao finzinho do pôr do sol. Era realmente
estonteante a forma como as nuvens se desenhavam no horizonte, havia matizes de lilás
e laranja que bailavam no branco azulado de nuvens acasteladas; o mar compunha uma
música única, e a prova disso era o sorriso branco das ondas na areia cintilante. Tudo
estava em câmera lenta. A brisa que soprava seus cabelos grisalhos era morna e trazia à
seus lábios uma salinidade adocicada, que lhe dava a impressão de um beijo meigo e
delicado de uma moça que descobre o prazer de tal experimentação. Estava vivo!
Perguntou-se o porquê de nunca ter se sentido assim antes e o porquê desse pôr do sol
com tamanho significado!
Lembrou-se que em outros tempos passara mais tempo observando as Mercedes, os
Porches e as Ferraris que desfilavam com as capotas abaixadas na avenida à beira-mar,
que o mar e o sol.
Perdera mais tempo dentro de shopping centers que andando pela praia; seus cartões
de crédito foram muito mais utilizados para adquirir produtos que para lhe proporcionar
vivências...
Agora percebia que estava experimentando algo diferente, justamente porque estava
entregue à experiência por inteiro, não mais dividido. Não havia dúvidas e,
principalmente, não havia outro caminho para si, apenas o caminhar em direção ao final
dessa experiência que chamamos de vida.
Uma menininha se soltou da mãe e correu em direção a um bando de gaivotas que
pousaram despretensiosamente na areia cintilante. Ao se aproximar, os pássaros
levantaram voo e ficaram flutuando em uma massa de ar quente sem bater as asas. A
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Dois
ecidiu eliminar os exageros, os excessos e, principalmente, toda e qualquer
Tocar violão
Andar de pés no chão
Aprender a cozinhar
Parar de comer carne vermelha
Doar todos os ternos e gravatas
Demitir-se da fábrica
Cancelar cartões de crédito
Vender o ridículo apartamento na única praia que invariavelmente frequentava
Andar de bicicleta
Criar um cachorro (que, aliás, nunca lhe fora permitido, primeiro por sua mãe e
depois pela esposa)
Morar sozinho
Experimentar maconha ou qualquer outra coisa alucinógena
Tomar banho de cachoeira nu
Vestir-se como os hippies
Viajar sem planejamento
Tomar um porre
Cantar todos os dias
Conhecer o máximo possível de pessoas
Aprender a escutar a si mesmo e aos outros
Renunciar a todos os compromissos sociais
Comer bacalhau em qualquer dia, e não apenas na Semana Santa
Assar um peru em um dia qualquer
Não dar nenhum presente para alguém em data predeterminada
Sorrir de si mesmo
Apaixonar-se verdadeiramente
Beijar um homem na boca
Soltar uma pipa na praia
Comer um pudim inteiro de leite condensado sozinho
Roubar um anel em uma barraquinha de camelô
Entrar em uma briga de bar, nem que fosse para apanhar
Dormir ao relento
Aprender a dançar
Acampar em uma praia deserta
Ir até o vale dos vinhos na Califórnia (havia visitado os Estados Unidos umas
três vezes, sempre em Detroit, onde ficava a matriz da fábrica de automóveis,
porém nunca gostou da cidade ou de nada que nela viu. O fato mais interessante
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A Jornada Alquímica Nigredo
era que estava próximo do Canadá, país pelo qual nutria uma particular
simpatia)
Visitar um parque de diversões só para brincar
Ter um jegue de estimação
Não tomar remédios
Enfrentar seu medo de tempestade
Caminhar sozinho na mata
Doar tudo o que não lhe fosse essencial
Dormir com uma mulher negra
Mergulhar em um naufrágio
Não fazer mais nenhum curso
Jogar fora todos os seus diplomas, títulos e premiações
Dizer a verdade para Celine sobre seus sentimentos
Eliminar as ridículas camisas de listras e de jacarezinhos
Cuidar de uma hortinha
Comer pimenta
Tomar vinho branco até enjoar
Conhecer Nova York
Visitar os dois lados de Budapeste
Ir a uma quadra de escola de samba
Assistir a um jogo de futebol no estádio
Hospedar-se uma noite no Copacabana Palace
Conhecer as praias desertas do Nordeste
Ler sobre Física Quântica
Eliminar seu e-mail
Parar de ler jornais, ver televisão e comprar revistas
Escrever algumas letras de música
Visitar um templo budista
Passar a noite em uma casa de Streep
Desligar o celular e só ligá-lo quando quiser
Não voltar ao hospital
Participar de uma manifestação popular
Pintar um quadro
Ler histórias em quadrinhos
Rolar com seus filhos na lama
Ir ao banheiro com a porta aberta
Sentir-se como um pássaro
Registrar tudo em um diário
Ao todo, sua lista continha 70 tarefas existenciais que lhe eram importantes,
indiferentemente de sua formação acadêmica, familiar e religiosa.
Estava disposto a dar as costas a todo e qualquer comportamento que o remetesse ao
que fora até aquele ponto de sua vida; estava decidido a descobrir quem era e a seguir as
necessidades de sua alma ou, ao menos, morrer tentando.
Abdicaria, nesse momento de sua existência, de toda e qualquer forma de controle,
segurança ou mesmice.
Faria jus ao nome que lhe fora dado, agiria como o Deus da encruzilhada, ligaria o
impossível ao possível, faria um pacto com o Deus e o defensor que também se fazia
presente em seu nome de batismo: Hermes Arauto. Seria ele mesmo pela primeira vez
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na vida e arcaria com o resultado de suas escolhas, que ao menos seriam suas, e não dos
outros. Apavorava-o deixar esse momento de consciência, que chamamos de vida, com
o arrependimento de não ter tido a coragem de fazer o que lhe desse na cabeça ou, pior
ainda, sem ter atendido às necessidades de sua alma.
Nunca pensara nisso, porém agora não era um pensar, mas um sentir profundo que
tomava todo seu ser interior, impedindo que a razão lhe servisse de cabresto, como
fizera por toda a vida.
Descobriu que baseados pura e simplesmente na razão não corremos riscos, porém
não experimentamos verdadeiramente o que é viver!
Podemos, no máximo, sobreviver com uma falsa segurança e sentindo que
comandamos tudo e todos ao nosso redor.
A finitude inesperada da vida não nos faz cair fatalmente em nosso maior equívoco?
Não nos permite ver que sendo brancos, negros, amarelos ou índios, ricos ou pobres,
letrados ou analfabetos, estamos todos sujeitos a regra universal da existência, que
executa a equação da seguinte forma: nasceu + cresceu = morreu?
Não importa se somos presidente de uma nação, ditadores, empresários ou mendigos,
a soma existencial resume todos em peregrinos, e não em senhores do caminho.
Perdemos muito tempo dizendo aos outros como devem agir e esquecemos de agir
com a integridade de nossa alma, e isso transforma seres divinos em simples autômatos
que alimentam, conscientemente ou não, a insanidade em que vivemos.
Não! Hermes Arauto não agiria mais dessa forma!
Não precisaria mais de símbolos para lembrá-lo quem ele era; não participaria de
nenhuma convenção social por politicagem. Descobriu que tudo devia ter um profundo
significado individual para cada ser vivente, e não para a coletividade.
Como estava com a morte anunciada, não via mais sentido na mesmice em que se
transformou sua vida, tampouco tinha algo a perder que já não tivesse perdido. Foram
54 anos de existência com apenas um dia de vida, e curiosamente esse dia foi
exatamente quando soube que iria morrer.
Detestava a ideia de se refugiar na doença para tomar tais diretrizes em sua vida,
portanto, resolveu nada dizer de imediato às pessoas que lhe eram queridas.
Teria a coragem de assumir tais atitudes como algo inato de seu ser, e não fruto de
um momento sensível e desesperado, até porque não se sentia como se estivesse
morrendo.
Aparentemente, tudo o que mudou foi dentro de seu ser, e não fora.
Estava tendo a oportunidade de se reconhecer pela primeira vez e não queria estragar
tudo com sentimentalismos ou compaixão por seu momento.
Seria ele senhor absoluto de suas resoluções, e não um ser humano escondido atrás
de uma doença para justificar suas atitudes.
Enquanto seu carro subia a serra rumo a uma das maiores metrópoles do planeta, sua
mente voltou há 30 anos... Pensava em como foi incapaz perante suas necessidades
internas. Poderia ter feito escolhas diferentes, mas isso significava, na época, desagradar
a seus pais e magoar profundamente a namorada. Então optou por seguir o ―fluxo‖ da
sociedade e caminhar pelos mesmos passos que todos caminhavam. Não gostaria
verdadeiramente de ter se casado. Apesar de ter grande afeição por Celine, era apenas
um carinho profundo, e não amor verdadeiro. Sempre especulou secretamente que o
amor não poderia florir em um ambiente forçado, como o casamento.
Pensava que deveria sentir saudades do ser amado para que pudesse percebê-lo
verdadeiramente. Precisamos de espaço para manifestar nosso próprio jeito de ser, e
quando decidimos seguir o ―fluxo‖ da sociedade, esse espaço é invadido por exércitos
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Foi até a sacada e lá ficou observando as luzes cintilantes da grande cidade e de seus
apartamentos com janelas acesas; cada janela uma vida, cada vida uma história...
Pensou se alguém também o estava observando.
Sua introspecção fora interrompida por Celine.
– O que você tem, está tão calado?!
– Nada! – respondeu sem tirar os olhos do horizonte salpicado de edifícios.
– Precisamos comprar um computador para o Lucas, pois ele não para de brigar com
a irmã por isso.
Lucas, o filho mais novo do casal, tinha apenas 10 anos, porém não gostava de se
comunicar com os amiguinhos na escola, preferia vir para casa e teclar por horas com os
mesmos pelas ferramentas de comunicação da internet.
Foram alertados diversas vezes por uma orientadora de que isso não era saudável,
mas renderam-se ao fato de que era o único modo de o menino ficar quieto e, assim,
eles se sentiam aliviados com os minutos de paz dentro do apartamento.
Ele acenou com a cabeça.
– Precisamos, ainda – continuou ela – trocar o micro-ondas e preparar a reforma do
apartamento lá da praia. Aliás, está tudo bem por lá?
– Sim – disse autômato. – Celine, andei pensando em nossa forma de vida...
– Lá vem você... Lembre-se, Hermes, nós temos o que todo mundo está aí fora
procurando.
– Não, é que... não sei, precisamos conversar!
– Isso pode ficar para depois, afinal, estou cheia de tarefas aqui em casa e...
– Eu preciso falar com você sobre nós! – Disse em um tom de voz amargurado e um
pouco mais alto que o de costume.
– Fale, então!
O suspiro veio do fundo do peito, trazia o atraso de 30 anos e a reflexão de quem
percebe a finitude do tempo humano na Terra.
– Preciso me afastar por um tempo – falou baixinho, com a voz sumindo no final da
frase.
– Afastar-se do quê? – Perguntou sem compreender o que Hermes estava dizendo.
– De tudo!
– Da cidade? Do emprego?
– Não, Celine, de nós também.
– Espere, não estou entendendo. Como assim afastar-se de nós? Somos sua família,
são seus filhos.
– Não, Celine, são nossos filhos.
– Você quer dizer que precisa de férias? E eu? Quando posso tirar férias de tudo
isso?
– Celine, você me ama?
– Se o amo? Claro que amo, não passamos nossas vidas inteiras juntos?
– Isso não responde à minha pergunta.
– Ora, que conversa é essa? Creio que ninguém sabe direito o que é esse tal amor,
mas posso senti-lo quando vejo nossos filhos dormindo tranquilamente, com saúde,
graças a Deus.
– Celine você nunca pensou em fazer algo diferente de sua vida?
– Creio que está um pouco tarde para isso – respondeu secamente.
– Não estou lhe perguntando sobre o tempo, mas sim sobre a necessidade de sua
alma de fazer algo que nunca fez.
A resposta foi direta:
19
A Jornada Alquímica Nigredo
– Não!
– Pois eu sempre senti. Tentei esconder isso de todos, até mesmo de mim mesmo, e
agora percebo meu equívoco.
– Mas o que você precisa tanto fazer que já não temos aqui em casa? Você tem um
ótimo emprego, nossos filhos estão quase criados e, em breve, você poderá se aposentar.
Mais uns dez anos e viveremos a vida que sempre sonhamos... Poderemos morar na
praia e tudo será perfeito.
Sua voz era meiga, mas por trás havia um receio de não acreditar no que estava
dizendo. Celine fora criada pela tia-avó e aprendera, desde cedo, que devia fazer o que
era possível para manter o casamento.
Havia, secretamente, milhões de desejos dentro de seu ser, possuía necessidades que
lhe assolavam a mente e o corpo, porém jamais confessou a alguém e trabalhou
arduamente para esconder tais necessidades, até de si mesma. Tudo isso foi colocado de
lado. Após o nascimento dos filhos, encontrara força e a desculpa perfeita para abdicar
de seus sonhos, anseios e desejos poucos ortodoxos de uma sexualidade selvagem.
Tivera, secretamente, um caso com uma de suas amigas, e gostaria de ter podido dar
vazão a essa forma de prazer. No entanto, jamais ousara falar sobre tal necessidade com
seu marido, tampouco via alternativa de conciliar sua posição de mãe e sua
bissexualidade, então optou pela sublimação.
Sonhara, na juventude, em ser uma grande advogada, mas não tivera determinação
para manter o foco em sua meta pessoal. Quando conheceu Hermes, reconheceu nele a
segurança necessária para uma vida sem ondulações e riscos, mesmo que isso
significasse abdicar de uma vida cheia de realizações. Agradecia todos os dias aos céus
por ter tido os filhos, pois com eles tinha redescoberto o significado de sua existência,
porém sabia que lá no fundo de sua alma morava uma menina-moça que jamais soubera
o que era se aventurar pela vida.
Gostaria de ter vivido tórridas paixões, de ter viajado por toda a Europa de mochila
nas costas e de ter se deixado levar pela vida, entretanto nunca enfrentara seus maiores
medos, e optou por fugir deles no seio de uma família, que, apesar de amar
profundamente, não era o suficiente para saciar sua sede de viver.
Podia sentir isso nas mentiras cinematográficas, onde todos eram felizes, onde em
um romance o ardor da paixão durava uma eternidade e, invariavelmente, as heroínas
eram corajosas o suficiente para correr o risco de sair de um ambiente familiar e se
aventurar em terras longínquas em nome do coração.
Gostaria de dar vazão a essa mulher que morava dentro de si mesma, mas agora, com
mais de 40 anos, sentia-se prisioneira da vida que criara, e quando se olhava no espelho,
apesar de ser uma bela mulher para sua idade, não percebia o ―brilho‖ que faz de uma
mulher uma grande guerreira.
Sabia que estava perdida dentro de si, mas era mais fácil continuar a vida dessa
forma, pois de outra maneira teria de se defrontar consigo mesma, e isso era algo que
Celine não tinha coragem de fazer.
Tornara-se uma mulher fútil, que falava sobre os assuntos das telenovelas ou das
revistas que reviram a vida de qualquer pessoa que aparece em um programa televisivo.
Como não dera vazão à sua liberdade, transformou-se em uma crítica da vida alheia e
uma carcereira de seus filhos e marido.
Assinava todas as revistas, de moda à decoração, porém não interiorizava nada, não
era adepta da leitura de livros, pois dizia que não tinha paciência, porém acompanhava
até o assassinato da criatividade humana pelos chamados reality shows.
20
A Jornada Alquímica Nigredo
Após o nascimento do segundo filho, gastou uma pequena fortuna para refazer seu
corpo pela cirurgia plástica, porém nunca investiu uma hora de sua existência em
transformar seu interior. Acabara por se tornar o que mais receava na adolescência, uma
pessoa sem conteúdo.
Agora se deparava com Hermes, seu marido, tentando questionar a forma de vida, e
isso ela não podia permitir.
Hermes suspirou profundamente, retirou o papel do bolso e olhou sua lista. Virou-se
para Celine e sorriu. Um riso desiludido, com olhos de uma criança pedindo socorro,
porém sabia que a única pessoa que poderia socorrê-lo era ele mesmo.
Tornara-se um provedor exemplar, zelara pelo mundo em que vivia dentro de suas
regras, deveres e conceitos. Sabia que Celine, na juventude, tivera grandes sonhos,
sonhos que ele tivera medo de incentivar e que a levaria para a outra margem do rio da
existência.
Não a incentivara, muito pelo contrário, afirmara com convicção qual era a função de
uma esposa dita exemplar e defendia com garras afiadas a moral e os bons costumes
coletivos. Esquecera-se de criar um universo secreto que cada casal que se ama
verdadeiramente deve ter.
Hermes nunca soubera fazer isso, além do mais, gostava de ser admirado como
marido e filho perfeito.
Se Celine se aventurasse em algo diferente, o que diria a família, os amigos e os
vizinhos?
Sabia que se Celine nunca fora o amor de sua vida, foi ele quem alimentou essa
mentira e, além dele, seus valores coletivos tornaram sua vida o que era, um paraíso aos
olhos da sociedade e um martírio aos seus próprios olhos.
Estava decidido a fazer realmente diferente, e não por coragem, mas por não dispor
de mais tempo nessa existência.
Virou-se para ela, calmamente, e disse:
– Eu vou embora...
– Embora? Embora para onde?
– Não sei, simplesmente vou sair pela porta deste apartamento e não sei quando
volto.
– Você vai é tomar um banho, descansar, que amanhã é segunda-feira e você tem de
estar cedo na fábrica e...
Ela não terminou a frase. Hermes voltou para a sala, atravessou-a, pegou um
pequeno porta-retratos, onde havia uma foto de todos juntos, e saiu.
Celine correu atrás, mas a porta do elevador se fechou antes.
Não estava compreendendo o que se passava com o homem com quem vivia havia
trinta anos. Mas não pensava muito nisso, e sim em como ele a estava ―desobedecendo‖.
Voltou para o apartamento pensando que, na certa, Hermes daria uma volta ou
beberia uma cerveja com algum conhecido.
Não gostava muito que ele fosse para a praia, pois sempre voltava dizendo que
gostaria de viver próximo do mar e o quanto a vida na metrópole era desgastante.
Daqui a pouco ele voltaria pedindo desculpa e ela iria puni-lo para que tal atitude não
se repetisse.
Quando jovens, sempre que Hermes agia de maneira que Celine não gostasse, ela o
fazia dormir na sala ou, como costumava dizer para as amigas: ―Comigo, se não andar
na linha, eu durmo de calça jeans‖. Todas riam todas e concordavam com ela.
Nunca percebera que pessoas que se relacionam verdadeiramente se desentendem,
pois os conflitos fazem parte da natureza humana, nos ajudam a crescer e a superar
21
A Jornada Alquímica Nigredo
Hermes não estava disposto a desperdiçar nem um dia de sua existência, não estava
disposto a pensar, seguiria apenas o coração.
Não dera nem um beijo em seus filhos, pois sabia que se o fizesse não teria coragem
de sair do apartamento e, antes de morrer, acabaria responsabilizando-os por algo que
não tivera a coragem de fazer. Não responsabilizaria ninguém por seus atos, muito
menos seus filhos.
Precisamos todos descobrir, em algum momento, o que nos é importante nesta
existência, mas não podemos tornar essa importância nossa prisão ou algo que nos
impossibilite de viver outras circunstâncias que nos são necessárias, pois corremos o
risco de perder tudo, inclusive nossa alma.
Precisamos estar abertos para o novo, mas o novo que descobrimos dentro de nós e
não em um comercial de TV ou em um catálogo de produtos.
Temos de criar diferenciações entre o ―nosso‖ importante e o importante coletivo,
somente assim é que colocaremos em um nível sagrado o que nos é indispensável.
Somente dessa maneira é que retiraremos o importante do mundo ordinário e comum e
o levaremos até o lugar sublime.
Se nos rendermos às importâncias coletivas, nunca encontraremos significado nesta
vida. Temos de descobrir, dentro de nós, o que viemos fazer aqui nesta existência e,
quando descobrirmos, nos dedicar incansavelmente a trilhar esse caminho. Somente
assim atenderemos às necessidades da alma e do universo e nos aproximaremos de
Deus.
Quando identificarmos isso, despertaremos o ―espírito empreendedor‖ que habita
todos os seres vivos do universo, e é com essa força que realizaremos o impossível, que
cumpriremos o nosso plano existencial e que descobriremos o significado e as
maravilhas desta existência.
Só seremos quem somos quando deixarmos de procurar externamente e começarmos
a vasculhar nosso ser por dentro. Se desejamos descobrir o maior mistério desse
momento de consciência que chamamos de vida, precisamos empenhar nossas energias
espirituais, intelectuais e corporais nessa direção, não esquecendo nunca que há início,
meio e fim em tudo o que existe embaixo do Sol, e que quando encontrarmos o que
procuramos dentro de nossa alma, não fará sentido, inicialmente nem para nós mesmos,
que dirá para os outros, por isso não devemos buscar coerência ou opiniões externas,
apenas o sagrado que vive dentro de nós tem essa resposta, apenas essa força divina é
22
A Jornada Alquímica Nigredo
quem entende o porquê e onde a jornada nos levará. Cabe a nós caminhar e colher os
frutos dessa descoberta, tal qual uma criança que descobre sua capacidade de andar e
falar.
23
A Jornada Alquímica Nigredo
Três
O
velho hotel ficava no centro da cidade e em cima de um bar onde
compositores e músicos se reuniam havia quase um século. De dentro de seu
quarto podia ouvi-los tocar. Desceu, rapidamente, após se registrar.
O ambiente cheirava a cigarro e álcool, mas a música que o preenchia soava dentro
de Hermes como cânticos celestiais.
Pediu uma garrafa de vinho branco, uma água e um maço de cigarros.
As pessoas conversavam freneticamente umas com as outras, e os olhares
denunciavam o hábito notívago em quase todos.
O esquema do palco era muito simples, havia uma banda da noite e quem quisesse
podia subir até o microfone que a banda o acompanharia. Pelo palco passaram grandes
compositores e músicos, bem como intérpretes que antes da fama viviam de seus sonhos
no anonimato, porém não sem o prazer do talento que o universo lhes concedeu.
Hermes observava todos e sentia que sempre pertenceu àquele lugar.
Um ébrio se aproximou de forma pouco ortodoxa, mas muito simpática.
– Posso te acompanhar em uma taça deste vinho? – disse já sentando.
Sem ação, apenas sorriu e acenou com a cabeça.
O ébrio serviu uma generosa taça e bebeu tudo de uma só vez, encheu-a novamente e
começou a falar:
– Rapaz, venho aqui há tantos anos que perdi a conta. Não existe, nesta cidade, lugar
mais charmoso, agradável e sincero para mim.
– Sincero? – perguntou incrédulo.
– Sim, meu jovem, sincero. Aqui todos são artistas, putas ou bêbados como eu, no
entanto ninguém mente para ninguém, somos o que somos e felizes estamos!
– Vamos cantar uma juntos?
– Quem? Eu?
– Claro, meu jovem, a vida é uma serenata e, para haver serenata, é necessário que
alguém cante! – disse sorrindo com os olhos injetados do álcool que lhe subia à cabeça.
– Eu não sei direito... Ainda não estudei...
Parou de falar e lembrou-se que não faria mais nenhum curso nesta existência. Faria
com a cara e a coragem, pela vontade de realizar, e não por necessidade de diplomas
para decorar seu ego.
– Vamos, então, mas cantaremos o quê?
– Decidimos na hora! – disse, virando a segunda taça de vinho.
Hermes especulava que acabara de descobrir mais um apreciador com mau gosto de
vinho branco.
Subiu ao palco sem pensar. As pessoas conversavam e flertavam, porém Hermes
tinha a sensação de que todos olhavam para ele. Gostaria de não estar usando a ridícula
camisa listrada.
A banda olhava atentamente, e o velho ébrio disse:
– Vamos no improviso, ok? Conhece Carlos Gardel, o rei do tango?
– Sim... Mas vamos cantar tango?
– Rapaz, vamos dar um suingue nesta letra!!! 1, 2, 3...
A banda já o conhecia e começou a tocar. Hermes sentia seu coração bater a 200 por
minuto, suas mãos suavam frio, sua boca secara repentinamente, suas pernas parecia
que iriam falhar e ele desabaria no chão.
O velho olhou para ele sorrindo, enquanto balançava a perna direita em um
movimento de acompanhar o ritmo da música.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Hermes sentia o suor escorrendo pelas costas e encharcando sua camisa. Pensou em
fugir do palco, mas aguentou firme, pois tinha a certeza de que suas pernas não lhe
obedeceriam.
Abriu, então, a boca e cantou... Cantou pela primeira vez na vida na frente de um
público desconhecido. Cantou para celebrar sua vida e sua morte. Cantou um canto
atrasado há 30 anos...
Terminaram a canção e emendaram em outra automaticamente. O velho parecia
envolto em uma misteriosa energia que, aos olhos de Hermes, rejuvenesceu 40 anos.
Após a segunda música, Hermes estava mais solto. Suas pernas ainda tremiam, mas
sabia que agora elas lhe obedeceriam caso quisesse descer do palco, porém, decidira não
o fazer por nada deste mundo.
Começou a cantar uma nova canção na qual a letra dizia:
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A Jornada Alquímica Nigredo
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Muito obrigado pela noite de sono, foi um prazer conhecê-lo, espero te ver mais
vezes para saber quem é você.
Terminou a frase com uma piscada de olho e saiu rapidamente do quarto.
Hermes a observou ir sem dizer uma palavra, não sabia o que dizer a uma estranha
com quem tinha compartilhado a cama.
Tomou rapidamente um banho e seguiu o exemplo de Edna.
O centro da cidade era uma babilônia que se destacava por duas características: a
cacofonia e seus odores.
Dirigiu-se para seu apartamento.
Entrou e foi direto para o quarto. Celine estava em alguma atividade matutina que
não lhe preenchia em nada o ser, porém lhe dava a sensação de estar fazendo algo.
Hermes não gostaria de encontrá-la, não naquele momento.
Foi tirando todos os ternos, camisas de jacarezinhos e listradas do armário, encheu
duas malas com o que classificou de exageros e fez uma pequena bolsa de mão que
classificou como necessário a sua nova vida.
Desceu até a garagem. Sua próxima parada seria no banco.
No caminho para o mesmo, passou embaixo de um viaduto e entregou a seus
moradores as duas malas de exageros.
No banco em que mantivera conta por toda sua vida, seu gerente veio ao seu
encontro.
– Bom dia, Sr. Hermes.
A cordialidade ensaiada por anos de treinamento estava presente no gerente. Hermes
podia reconhecê-la, pois ele próprio agira dessa forma por anos a fio...
Resolveu que seria direto, e assim foi.
– Bom dia, Sr. Gonzales. Meu saldo e, por favor, cancele todos meus cartões de
crédito.
– Mas, Sr. Hermes, por quê? É uma facilidade para todos nestes dias de violência.
– Sr. Gonzales, apenas cancele os cartões, por favor, não me interesso por nenhum
produto que o senhor ou seu banco possam me oferecer, quero apenas cancelá-los, ok?!
– Mas...
– Qual meu saldo total, conta, aplicações e essas coisas como capitalização?
O gerente prontamente imprimiu um extrato que continha todas as economias de sua
vida e colocou em suas mãos.
Havia um total equivalente a cento e vinte e cinco mil e quinhentos dólares.
Trinta anos economizando cada centavo para viver um dia a vida que sempre sonhou
quando se aposentasse... Trinta anos fazendo o que detestava; trinta anos se
negligenciando; e trinta anos mentindo para si mesmo, vivendo das migalhas que seu
ego lhe dava, de falsos elogios de pessoas que não gostavam dele, em reuniões
familiares que detestava e, por fim, trinta anos de falsidade consigo mesmo.
Tentara, equivocadamente, enganar sua alma e acabara percebendo que podia
enganar a todos, porém, quando deixasse esta existência, estaria só.
O encontro se dará entre nós e a inteligência universal. Não poderemos inventar
desculpas para justificar nossa apatia perante o presente que é uma vida. Não
poderemos comprá-la novamente nem com todo o ouro do mundo, tampouco
poderemos usar nossos diplomas e honrarias para ganhar outra chance.
Especulava, caso não houvesse o laudo médico dizendo-lhe que acabaria seu tempo
nesta existência, se teria a coragem de tomar as atitudes que estava tomando, e chegou
rapidamente à conclusão que não.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Nós, seres humanos, muitas vezes precisamos do caos total para, assim como a fênix,
renascer.
Não fosse os malogros da vida, ficaríamos mais apáticos do que somos,
realizaríamos menos do que fazemos e certamente não perceberíamos nossos sucessos.
O gerente voltou com o recibo dos cancelamentos.
– Quero sacar o equivalente a sessenta e cinco mil e quinhentos dólares americanos.
O restante, o senhor transfira para a conta de minha mulher.
O homem rapidamente atendeu à solicitação de Hermes, não por prazer, mas por
receio de perder um cliente antigo.
Saiu do banco e foi direto para a fábrica.
Sabia que seria algo difícil, porém não imaginou que seria tanto. Refletia sobre a
capacidade do ser humano de acostumar-se até com o que mais detesta.
Usamos a razão para criar celas, ao invés de asas; nos rendemos ao medo, ao invés
de utilizá-lo para nos impulsionar. Somos seres divinos que fomos convencidos pela
sociedade de que somos apenas imperfeição.
Nada pode macular a alma humana por ser ela uma expressão divina, porém,
podemos envenenar nossa mente com o que há de mais imundo no mundo por medo de
enfrentar a nós mesmos.
Conseguimos nos tornar ignorantes letrados, cegos pela competição, cobiça, inveja e
medo.
Se nossos comparativos para empreender qualquer ideia fosse nosso ser interior
verdadeiro, conseguiríamos transpor desertos inteiros com um piscar de olhos. No
entanto, utilizamos a vida do outro, a conquista alheia. Tudo que o outro faz é melhor
ou mais bonito, quando não, para o outro as coisas são mais fáceis, ele é um ser especial
e nós uns coitadinhos. Agimos como se qualquer pessoa verdadeiramente bem-sucedida
não enfrentasse dificuldades, não tivesse crises existenciais ou falta de recursos
materiais.
Vemos nos outros apenas o que queremos ver, e não avaliamos os fatos
verdadeiramente.
Se tivéssemos a coragem de agir, não precisaríamos de aparelhos e indústria de
ilusão. Passamos mais tempo diante da televisão, revistas, internet do que com quem
amamos.
Entorpecemos nossa mente com o medíocre mundo das celebridades, sonhando em
um dia também sermos uma, no entanto, não nos dedicamos verdadeiramente a nada
que nos faça sentir que estamos alinhados com o universo.
Vivemos mais ou menos 960 meses e passamos um terço deste tempo dormindo, o
outro terço trabalhando no que não amamos e o último terço dividimos entre os
programas de TV, revistas de inutilidades públicas, internet e o chamado ―matar‖ o
tempo, isto é, fazer nada.
Lá no final da equação, dedicamos um mínimo de tempo ao que amamos e a quem
gostamos indiscutivelmente.
Como nos tornamos uma sociedade repetidora de informações, não por falta de
assunto, mas por falta de seres pensantes, quando nos sentamos na frente de alguém que
amamos, conversamos sobre telenovelas, jogos de futebol e fofocas do mundo das
celebridades, um grande desperdício de força e energias universais. Vivemos como se
esta existência nunca fosse acabar, como se fôssemos eternos... Chova ou faça sol,
sejamos ricos ou pobres, o fato é que todos morreremos, e não pensar sobre o assunto
não nos livrará desse caminho inexorável.
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A Jornada Alquímica Nigredo
A vida caminha para a morte, no entanto, o universo não para de apostar em nós, não
para de investir em seu mais arriscado empreendimento: a vida humana!
O quanto antes percebermos que somos um investimento sagrado, mais rápido
focaremos em nosso plano existencial e, muito mais rápido, colheremos os dividendos
de nossa existência.
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A Jornada Alquímica Nigredo
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Pronto, aqui está nosso grande homem, Sr. Lee, o responsável por toda nossa
produção. Hermes, nosso presidente, Hang Lee, quer lhe fazer uma proposta.
Lee era filho de sobreviventes do comunismo chinês que imigrou para os Estados
Unidos graças à ajuda dos pais, que morreram se opondo ao sistema daquele país.
Nos EUA, lavou pratos, passeou com cachorros e formou-se com louvor no famoso
MIT. Dali em diante, entrou para indústria automobilística e sua carreira foi à
estratosfera.
Lee nunca se apaixonou por não ter disponibilidade de tempo para regar qualquer
relacionamento que tivesse o intuito de se transformar em amor...
Jamais se permitiu descansar, a não ser nos feriados nacionais de cada país em que
trabalhou.
Havia servido a empresa nos Estados Unidos, Canadá, França, Japão, e agora fora
encarregado pelo conselho da multinacional de assumir a operação na América do Sul.
Tinha o Brasil como sede, mas seu principal objetivo era atender à demanda de todos
os países que compõem o continente.
Diversas foram as vezes que Lee pensara em realizar algo diferente.
Possuía alguns milhões de dólares no banco e em propriedades, bem como tinha
milhares de ações da empresa por serviços prestados. Se Lee tivesse uma carreira
militar, estaria sendo cogitado para secretário de Defesa da nação, tamanha sua
dedicação.
Passara por essa situação diversas vezes em sua carreira, e vencera todas.
Hermes olhou para o presidente da empresa e o cumprimentou, enquanto tomava seu
café.
Alguns colaboradores da companhia entraram conversando e, ao verem Lee, Ernesto
e Hermes de pé em frente à máquina de café, baixaram a voz e seguiram cabisbaixos.
A notícia que o presidente da empresa estava na máquina de café espalhou-se
rapidamente, e todos ficaram atentos aos seus trabalhos, porém com a atenção voltada
para a conversa.
– Hermes, o Ernesto me falou de sua resolução. Serei direto, pois você sabe o quanto
nos falta tempo.
Hermes acenou com a cabeça, jamais tivera uma conversa desse nível com nenhum
dos cinco homens que presidiram a empresa. Na verdade, dos cinco que conheceu
apenas dois, e dos dois apenas Lee o questionava sobre seu trabalho. Agora estava de
pé, em frente ao presidente, e seria todo ouvidos.
– Há muito observo seu trabalho... Nosso objetivo de sermos a número 1 no ranking
das montadoras no continente só pode ser atingido graças ao seu trabalho, pois, se
tivermos problemas em nossa produção, todos os nossos esforços cairão por terra. Por
isso, em minha gestão, sempre valorizei a equipe de produção. Você faz um excelente
trabalho, vital para nossa empresa e, por isso mesmo, quero lhe oferecer algo, não para
mudar sua decisão, mas para reconhecer seu trabalho.
– Sr. Lee, não é uma questão de reconhecimento é... – não conseguiu terminar, pois
Ernesto o interrompeu.
– Deixe o Sr. Lee lhe dizer o que tem para você, meu amigo.
– Vamos fazer o seguinte, vamos lhe dar trinta dias de férias e dobrar seu salário.
Você será promovido a diretor de produção, a fim de nos ajudar em nossa nova planta
industrial. Para cada ano trabalhado, receberá um lote de ações, assim você será um dos
nossos sócios e trabalhará em uma empresa que também é sua. Afora isso, terá uma
licença-prêmio, a partir de hoje, de trinta dias para organizar sua vida pessoal.
– Eu...
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Não precisa me agradecer, estou apenas lhe dando o que lhe é de direito e
reconhecendo, mesmo que tardiamente, tudo o que você fez por esta companhia. Não
me responda agora – continuou – apenas vá para casa, descanse e pense que quando
voltar ao trabalho terá uma vaga reservada com seu nome, como diretor.
Lee virou as costas com um sorriso pequeno, dizendo:
– Agora voltarei ao trabalho, pois o tempo urge. Boas férias, Hermes.
Ernesto sorria e segurava um copo com cappuccino em uma das mãos, os biscoitos
pararam de entrar em sua boca e uma feição de vitória e bem-estar estava estampada em
sua face.
– Não lhe disse! Que sair nada, você tem muito por realizar aqui. Se você já fez
tanto, imagine sendo diretor?
Hermes apenas ruminou um estranho som.
– Hum, hum...
E saiu.
Seria diretor, ganharia uma fortuna, teria automóveis exclusivos e milhares de
dólares para gastar. Em pouco tempo, seria um homem de classe média alta, podendo
até mesmo chegar a ser rico em alguns anos.
Sorriu um riso amarelo e agradeceu, por mais absurdo que parecesse, não ter alguns
anos a mais, pois sabia que, se tivesse, não hesitaria em aceitar a promoção de sua vida.
Agora, porém, o assunto era outro. Não queria empreender mais uma carreira, estava
disposto a empreender sua existência.
Sua vida, nesses nove meses, seria seu legado, sua herança para seus filhos. Mesmo
que tardiamente, realizaria seu maior empreendimento: sua própria vida!
Saiu dos portões da fábrica vendo o amigo, na entrada do prédio, segurando o copo
em uma das mãos, tendo a certeza de que vencera. Hermes voltaria ao trabalho em
breve. O homem, no entanto, estava convicto de que não cruzaria mais aqueles portões
pelo resto da sua pequena vida.
O conflito que martelava sua mente era: optar pela vida verdadeira ou se resumir a
alguém que acumula bens materiais sem tempo para usufruí-los?
A dúvida fazia com que crescesse a angústia. No entanto, estava decidido. Sua vida
valia muito mais que todo o dinheiro do mundo. Era, no final das contas, grato a
situação em que se encontrava, pois algo lhe dizia que jamais mudaria sua vida não
fosse o enorme deserto que estava por atravessar...
Sempre que tomamos uma resolução existencial, o entorno se molda a fim de nos
dissuadir do que nos é importante. Basta movermos uma única pedra do caminho para
que todos ao nosso redor, amigos, família, companheiros de trabalho entrem em sinal de
alerta, pois sempre que nos movemos em direção a nós mesmos, invariavelmente
mexeremos na zona de conforto dos demais. De forma direta, quando nossos préstimos
os deixaram em uma situação que não estavam preparados para lidar, ou de forma
indireta, quando não podemos mais ser muletas de suas deficiências.
Em última instância, nossas atenções voltadas para o que nos é importante, o que é
supra-humano, o que viemos aqui realizar, faz com que todos ao nosso redor se sintam
desconfortáveis. Por essa razão, devemos zelar pelo segredo. Os segredos são rituais
entre o nosso eu e o universo, e não algum assunto proibido que possa tornar alguém
refém. Segredos existem para nos ajudar a realizar nosso plano existencial.
Esse desconforto de pessoas que até gostam se nós se dá pelo fato de que quando
descobrimos algo que nos faça sentir vivos, que dê significado sagrado à nossa
existência, resplandecemos isso, brilhamos de forma como nunca aconteceu antes,
32
A Jornada Alquímica Nigredo
geramos uma aura de energia cósmica que abre todas as portas, que nos permite ver
soluções onde ninguém mais vê e que torna o impossível realizável.
Seguir o plano existencial nos dá poder de realização. Teremos desafios, pois é
inerente a esta vida, porém não serão problemas. Aos olhos alheios, certamente
pareceremos loucos ou surtados, alguns nos classificarão como perdedores, e isso não é
a expressão da verdade, mas sim da tamanha ignorância que todos têm a respeito de
nosso propósito existencial.
A vida é feita para se realizar, e só podemos ver isso acontecer dando as costas para
os outros, para os conceitos, educação, religião, política e sociedade, pois é somente
assim que concentramos nossas forças mentais, espirituais e racionais para a realização.
Após passarmos dessa fase, que é intrínseca a qualquer novo desafio que nos
propomos, o mar a nossa frente se abrirá e poderemos navegar até mesmo de olhos
vendados, pois sabemos para onde e por que estamos indo.
Nossa única missão nesta existência é vivê-la de forma plena, e isso só é possível
quando estamos alinhados com o universo. Significa ouvir, mesmo que no início pareça
loucura, nossos sonhos... Se tentarmos explicar a terceiros o que diz aquela voz dentro
da alma que somente nós mesmos podemos ouvir, apenas nos distanciaremos da
mesma.
Empreender nossa vida significa mudar tudo e seguir o que desejamos, e isso vale
para uma carreira, um negócio ou um relacionamento amoroso.
Só viveremos o amor que sonhamos se tivermos coragem de sair de onde estamos,
passo a passo, lágrima a lágrima, porém de cabeça erguida.
Em última instância, empreender significa estar a serviço do sagrado, comungar com
o divino e nos tornar verdadeiramente parte do universo.
33
A Jornada Alquímica Nigredo
Quatro
H
ermes dirigia sem rumo pela cidade, especulava como existiam coisas que nunca
observara pelas ruas por onde passara anos a fio...
Enfiou a mão no bolso e tirou sua lista, o semáforo o mantinha estático. Abriu
o porta-luvas e retirou de lá um rolo de fita crepe, colou a lista no painel do carro para
que pudesse orientar seus próximos passos.
Uma música suave tocava no rádio, porém fora interrompida por uma explosão de
gritos e buzinas.
Pessoas falavam ao celular, outras agrediam verbalmente outros motoristas, alguns
guardas anotavam freneticamente as placas dos automóveis e olhavam com semblante
sisudo para os motoristas, deixando claro quem tinha autoridade, mesmo que a suposta
autoridade lhes fosse dada apenas para cumprir a tarefa de anotar números e repassá-los
à central, para que punisse com multas os que não ―andavam na linha‖. O dinheiro
serviria para eleger políticos corruptos que ajudariam a manter o caos, pois no caos dos
sistemas muitos perdem, entretanto, alguns poucos ganham, e muito.
Após meia hora parado, finalmente o trânsito começou a se mover lentamente.
Envolto em seus pensamentos, ouviu alguém bater gentilmente na janela do carro,
pedindo uma informação, abriu o vidro e sorriu, mas, ao invés de informação, uma arma
foi encostada em sua cabeça.
O menino não tinha mais que 16 anos, falava rápido e os olhos demonstravam
claramente a quantidade de cocaína e crack consumidos.
– Vai tio, passa tudo aí...
– Tudo?
– Vai logo, vai passar ou quer morrer?
Hermes estava extremamente calmo ao falar, não por receio, mas pela ironia do
destino.
– Você me mataria?
– Vai logo, tio!
Hermes entregou-lhe a carteira, o relógio, o celular, tirou a aliança do dedo,
pensando em como as pessoas são ignorantes em relação aos símbolos que significam
algo especial entre dois seres humanos. Usou a aliança por décadas, no entanto, nunca
se sentiu conectado verdadeiramente à Celine.
Pensou que as pessoas deveriam escolher seus próprios objetos simbólicos, pois
somente assim teriam valores espirituais, mas, ao invés disso, falamos todos de amor
eterno e repetimos a mesmice realizada há anos, apenas por seguirmos a tradição,
mesmo que ela não nos diga nada, mesmo que nem sequer saibamos por que utilizamos
algo. No entanto, como todos assim o fazem, seguimos o jeito coletivo de ser.
Valorizamos mais o uso de um pedaço de metal no dedo do que a verdadeira aliança,
que se deve ser estabelecida em nossa alma, e isso só é possível quando aceitamos o ser
amado como ele é, e não como gostaríamos que fosse. Somente quando sairmos da
posição de ditadores da relação é que experimentaremos o sabor da presença de outro
ser divino em nossa vida.
No entanto, especulava Hermes com a arma automática apertada contra sua cabeça,
fazemos exatamente o oposto disso, prestamos mais atenção nos defeitos do que nas
qualidades do ser que está em nossa vida, mais criticamos que elogiamos, mais falamos
que escutamos, mais reclamamos que agradecemos.
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A fogueira foi feita com caixotes de feira, papelão e trapos de pano embebidos com
querosene. Havia uma estranha música no ar, feita a partir de instrumentos andinos de
sopro, cordas e percussão.
As pessoas se reuniam em torno da mesma e contavam suas histórias. Havia hippies,
indígenas, negros, pessoas do interior que vieram à metrópole tentar a vida, pessoas que
saíram de seus países em busca de conhecimento e pessoas que simplesmente viajavam
pela existência...
A bebida era passada de mão em mão e cheirava agradavelmente, uma mistura de
vinho barato com ervas aromáticas.
A luz da fogueira bailava nos rostos com barbas por fazer e nos cabelos desalinhados
das mulheres.
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O ritual era bem simples. Uma pessoa por vez se levantava e contava sua história, o
que estava buscando, fazendo ou sonhando e, em seguida, alguém podia dançar ou
cantar. Não havia regras.
Hermes ouviu a história de um japonês que foi feirante a vida toda e desistiu de tudo,
por não fazer mais sentido; a de uma professora que dedicou a vida a ensinar para
agradar a seus pais, que morreram sem nunca terem percebido seu sacrifício, pois
jamais devemos fazer algo simplesmente para sermos admirados, e sim por fazer um
profundo sentido para nossa alma; a de um indígena que se apaixonou perdidamente por
uma mulher branca e sua tribo não permitiu esse tipo de atitude, como se sentimentos
fossem algo que decidimos com base em um comportamento preestabelecido. E a de um
sacerdote que percebeu, após 25 anos de dedicação a uma religião, que não estava
verdadeiramente ajudando as pessoas, mas sim iludindo-as.
Lua apenas levantou e dançou apaixonadamente, dançou para si mesma, dançou para
celebrar por estar viva, por ter pernas e pés, por conhecer pessoas, por poder sentir,
amar, gozar e viver... Estava inebriada por seu empreendimento, sua existência estava,
pela primeira vez, exatamente como ela gostaria que estivesse, realizando o que sua
alma precisava, e sentia-se feliz por isso.
Sua dança era sensual, seus cabelos negros caíam sobre a fina blusa de malha com a
imagem de uma deusa indiana. Havia tatuagem em seu pescoço e umbigo, apenas um
brinco adornava sua orelha esquerda e, nas mãos, renas cobriam seus dedos.
Vez por outra, a flor de lótus em torno de seu umbigo sorria para os expectadores,
inclusive para Hermes. A serpente do pescoço só se desnudava quando seus cabelos
eram por ela levantados em um dos passos de sua dança. Sua boca era extremamente
vermelha, e o suor escorria pelo rosto. Seus pés estavam desnudos e tocavam o chão
com habilidade e graça.
Quando terminou, abaixou-se e agradeceu aos presentes por terem lhe dedicado
alguns minutos de suas vidas.
Todos os que se levantavam eram aplaudidos, mesmo que não fizessem nada, e quem
terminasse tinha o direito de convidar outra pessoa para se levantar, porém ninguém era
obrigado a aceitar o convite.
Lua estendeu a mão para Hermes, juntamente com a bebida doce.
Meio sem jeito, ele se levantou e bebeu quase metade do conteúdo do frasco que lhe
fora oferecido.
Cambaleou de um lado para o outro e começou a falar... Falou sobre sua vida, de
como fora até aquele momento e o que estava disposto a fazer. Falou de sua busca
existencial e de sua jornada, que sabia que seria solitária, porém jamais na solidão.
Não falou sobre a doença...
Após sua fala, estendeu a mão para um homem com aparência cigana.
Ficara sabendo que era filho de uma tribo cigana, e que resolveu deixá-la sem motivo
aparente, apenas por querer fazer algo diferente. Foi banido por sua opção, e não se
lamentava, apenas tocava seu instrumento e cantava. Seu nome era Aramis.
Sentaram-se, na madrugada, e foram contemplados com uma das raras aparições das
estrelas no céu da metrópole.
Um cachimbo com maconha, haxixe e uma erva indígena era passado de mão em
mão.
– O que é isso? – indagou Hermes a Aramis, que sentara ao seu lado.
– Chamamos apenas de fumo da busca.
O homem deu uma tragada e passou para Hermes, que o imitou, porém com mais
força do que era necessário.
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Cinco
rês meses se passaram desde a tarde com o pôr do sol no Atlântico Sul. Não
T havia retornado ao hospital, nem à fábrica, tampouco fizera contato com sua
família.
Sentia uma saudade que lhe cortava a alma, mas não queria contagiá-los com seu
momento, muito menos tinha vontade de dizer a eles seus motivos ou como se
equivocara em sua existência.
Vez por outra, ligava de um telefone público e ouvia-os dizer:
– Alô?! – ele se mantinha mudo e a voz insistia.
– Quem fala?! – depois, por não obterem resposta, desligavam.
Era o suficiente para que seu coração se enchesse de ternura e as lágrimas lhe
saltassem aos olhos, porém mantinha-se firme em seu propósito, fiel ao seu
empreendimento.
Havia deixado Lua, a menina-mulher por quem começara a sentir algo diferente,
porém sem nunca ter havido nenhum contato físico entre eles; tampouco percebera
espaço para que a relação de ambos pudesse se transformar em algo mais. A menina-
mulher cruzara seu caminho para lhe servir de guia, um guia enviado pelo universo com
o intuito de conduzi-lo para dentro de si.
Sua beleza física, vez por outra, era desconcertante. No entanto, jamais houvera
algum sinal, a não ser de um ser humano solidário para com o outro.
Dividiram suas angústias e temores, sorriram diversas vezes juntos e ele acabou por
morar ao relento, ou melhor, como dizia Lua, sob o teto do universo por semanas...
Agora estava sentado em cima de uma falésia, observava o mar e, como sempre,
imaginava o que havia acolá. A praia lá embaixo era conhecida como praia do amor...
Certamente, inúmeros casais, apaixonados ou não, a utilizavam como testemunha de seu
sexo rápido e muitas vezes apenas corpóreo, todavia muitos não experimentaram o amor
verdadeiro. No entanto, escolhiam-na como ponto de partida para o início de um
relacionamento que terminaria meses depois, mas isso não tirava a magia das falésias,
muito menos a magnificência do momento.
Parou nesse lugar por acidente. Veio por uma rota pouco conhecida e acabou por
cruzar metade do país rumo ao Nordeste, onde o calor tropical se fazia presente todos os
dias do ano, e o vento suspirava existências belas e, muitas vezes, nem tanto.
Estava muito próximo do outro lado do mundo e especulava o que se passava na
costa africana. Sentia a energia do vento que varria o grande deserto do Saara e cruzava
todo o Atlântico até beijar a costa do Brasil.
Aprendera que muitas vezes estávamos cercados de pessoas do chamado mundo
moderno, de seu circuito cultural, e, mesmo assim, estávamos sozinhos. Descobrira que
a pior solidão que existe é a solidão acompanhada.
Pessoas que não nos entendem por não entendermos a nós mesmos. Pessoas que
supervalorizamos por não sabermos quem somos e que acabam nos magoando
muitíssimo, e ainda dizem que é para o nosso próprio bem.
Descobrira em si a capacidade de escutar seu interior e a beleza desse diálogo!
Nunca se escutara verdadeiramente, estava anestesiado pelos compromissos sociais,
escravo de seu e-mail, celular e das notícias transmitidas por telejornais, que serviam a
interesses tão obscuros que seria impossível rastrear.
Estava distante de tudo e todos, porém, pela primeira vez na existência, muito
próximo de si mesmo. Estava acampado, tal como escrevera em sua lista.
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Não podia responsabilizar ninguém por sua jornada, tampouco no que ela culminaria.
Nunca mais tomou um comprimido; nunca mais ligou seu telefone; não voltou à fábrica
para acertar suas contas nem para a vaga exclusiva próxima do prédio principal.
Há, na existência, um momento em que todo ser deve ouvir sua alma e esquecer a
razão, pois a razão morrerá com o corpo, porém a energia cósmica que chamamos de
alma não.
Estava, pela primeira vez, experimentando o que era morar sozinho, viver sozinho,
porém nunca solitário.
Comia na hora em que tinha fome, dormia quando sentia vontade e conhecia pessoas
de quem não esperava nada, e a recíproca também era verdadeira. A partir desse ponto,
eliminou sua capacidade de magoar, pois não estava vivendo de acordo com a
expectativa alheia, mas sim sob as ordens de sua alma.
Deixou de ser provedor pela primeira vez em sua vida e dispunha de tempo e poucos
recursos materiais, porém sentia-se um milionário, pois fazia o que queria, na hora em
que tinha vontade.
Os raios dourados do Sol banhavam as falésias em um matiz vermelho-alaranjado,
criando um aspecto mágico.
Aprendeu com Aramis a tocar algumas canções, e adquiriu um violão em uma casa
de produtos usados.
Sentado, podia apreciar o azul inebriante do Atlântico. Exceto seus filhos, não sentia
falta de nada.
Seu ser clamava por seguir em frente...
As dores às vezes o incomodavam, mas passavam sozinhas, pois ele se refugiava
dentro de si e lá encontrava um lugar onde era só paz.
Os acordes soavam mal, porém aos seus ouvidos eram como harpas angelicais.
Começou a escrever suas canções em um caderno e também fazia um registro fiel de
suas jornadas internas, de tudo o que via, sentia e ouvia. Não tinha muita certeza do
motivo, mas algo lhe dizia que era necessário registrar tudo, e assim o fazia.
Pelas contas do médico, faltavam apenas dois terços de seu tempo de vida. Em seis
meses, deixaria a Terra e tudo o que nela havia.
Suas propriedades, suas opiniões, certezas e diplomas. Aqui estaria todo seu orgulho,
toda sua ira, bem como sua apatia. Isso não lhe causava medo, apenas receio de não
conseguir cumprir sua lista.
―Eternidade‖, sua cadela, latiu a distância e correu em sua direção.
Passou em uma pequena cidade do interior do país e lá conheceu dona Igreja. Nunca
soubera de ninguém com esse nome, no entanto, esse era o nome da senhora que
permitiu que Hermes estacionasse em seu quintal e dormisse no carro.
Percebeu que o homem tinha muita sensibilidade com os animais. Ela criara mais de
1.600 filhotes em vinte anos de atividade, e sabia que cachorros escolhem seus donos,
não importando quem tivesse pagado por eles. E, ao ver como a pequena cadela mestiça
se afeiçoou ao desconhecido, ficou sensibilizada e, quando ele ia partir, ofereceu-lhe um
café com broa e lhe deu o animal de presente.
Tinha um ano de idade e se acostumaria ao estilo de vida de Hermes. Quando ele
partiu do pequeno vilarejo, às margens da estrada, tinha uma companheira de viagem.
Seu nome era curioso, pois parecia encaixar com o momento em que vivia.
– Eternidade! – gritou Hermes.
A cadela veio em sua direção e lambeu suas mãos, seu rosto e, por fim, deitou-se aos
seus pés.
Em breve, seguiria rumo ao Norte, conforme estava escrito em sua lista.
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Celine, no início, desdenhara da atitude de Hermes. Imaginou que, como sempre, ele
estaria angustiado e refugiado na praia. Estranhou o fato de todas as roupas sumirem do
armário. Quando venceram as contas do mês, verificou que sua conta bancária recebera
um depósito, e que este depósito era fruto de parte das economias de Hermes. A
indiferença deu lugar ao nervosismo, que desencadeou em irritação para com todos, e,
após um mês do sumiço de Hermes, desabou.
Os membros da família questionaram o que se passava. Alguns especulavam que era
provavelmente outra mulher, outros que poderia ser um vício escondido. Acusaram-no
de irresponsável, insensível e até de negligenciar os filhos.
Seus pais recusaram-se a falar sobre a atitude do filho, e resignaram-se a um único
comentário, que tinha em seu cerne uma desculpa social disfarçada de mea-culpa:
―Onde foi que erramos?‖
Passaram dias, semanas e meses. Foram à polícia, que registrou a queixa de sumiço,
mas chegaram rapidamente à conclusão que o homem decidira sumir. Então, pararam de
procurá-lo e disseram à família que qualquer novidade avisariam.
Vez por outra, no silêncio da noite, Celine chorava sozinha. Não imaginava sua vida
sem a presença de Hermes, porém, lá no fundo, sabia que não era amor, mas sim
costume, aquele lugar a que chegamos no relacionamento, que, apesar de não
gostarmos, não sabemos como sair.
Nada mudou na rotina da família. Quando os filhos questionavam onde o pai estava,
a resposta era sempre a mesma: ―Viajando‖.
A fábrica entrara em contato, pois venceram as férias e a licença-prêmio. Hermes não
retornou para a vaga exclusiva, tampouco para o excelente cargo de diretor. Não sabiam
eles que Hermes renunciou ao emprego em prol de um projeto existencial. Contudo,
nada disso importava, apenas a capacidade de manter a produção era o que contava,
Ernesto sentia-se traído e disse isso a todos na fábrica; insistia na possibilidade de
Hermes estar trabalhando secretamente para um possível concorrente.
Seu cargo foi colocado à disposição, e nada de muito grave aconteceu.
Precisamos perceber que o mundo anda sem nossa presença, no entanto, nossa
existência não.
Para que nosso tempo por aqui seja preenchido de vida, precisamos estar presentes, e
isso, muitas vezes, significa fazer o que faz sentido para nós. Não podemos explicar,
não podemos falar tampouco pedir opinião a outrem.
Devemos perguntar à nossa alma e escutar o que ela tem a dizer, e, quando ela falar,
devemos segui-la sem hesitar.
Se estamos procurando emoção, adrenalina, notoriedade, status, poder ou
reconhecimento, é porque há uma enorme insatisfação dentro de nosso ser. Quando
conseguirmos isso, rapidamente nos ―psicoadaptaremos‖ e precisaremos de mais. É
necessário perceber que não preencheremos esse vazio imitando algum modismo ou
seguindo alguém, seja um ser humano ou uma instituição. Só nos completaremos
quando fizermos aquilo de que nossas almas necessitam, quando dedicarmos tempo
para cumprir nossa parte com o universo e devolver, em forma de dividendos, para a
humanidade, todo o investimento sagrado que foi feito em nós.
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Quando ouvimos e seguimos essa voz, não só preencheremos nosso coração como
teremos o reconhecimento e a admiração de todos. Daí ficará fácil fluir para nossa vida
o equilíbrio amoroso, material e espiritual pelo qual tanto ansiamos.
Hermes estava seguindo esse chamado, mesmo que ninguém entendesse isso.
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Seis
onheceu Miguel, um espanhol que, após viajar o mundo comprando tapetes
Estava no estado de vigília, sua mente ainda não adormecera por completo.
Eternidade, sua cadela, latia ao fundo. Na praia alguns pescadores falavam
animadamente sobre o dia no mar...
Podia ouvi-los e entender absolutamente tudo o que diziam.
A sensação agradável de começar a entrar no sono invadia seu corpo.
De repente, sentiu suas mãos começar a suar e sua testa começou a escorrer. Tentou
mover-se e não conseguiu, o ar parecia lhe faltar nos pulmões, seus olhos abertos
recusavam-se a girar dentro de suas órbitas. Percebeu que havia perdido a autonomia do
corpo, e sua mente o levou rapidamente para o inevitável.
Estou morrendo, pensou, morrerei aqui sem ter terminado minha lista, porém, ao
menos tentei. Não verei mais meus filhos, mas o amor que trago dentro de mim me
seguirá seja aonde for...
Voltou-se para o momento presente e continuou a ouvir as gargalhadas do lado de
fora. Algo estava estranhamente errado, não dominava mais o corpo, porém, sua mente
e seus sentidos mantinham-se em perfeito funcionamento.
Começou a chorar silenciosamente, não por medo, mas por perceber a finitude da
existência, rápida e imutável.
Tentou reunir suas forças, todo o seu ser estava direcionado para conseguir ao menos
gritar. Tudo em vão. Conseguiu abrir a boca, mas o som saía para dentro. Sua saliva
começou a escorrer pelo queixo e não podia limpar; seus ouvidos perderam a
capacidade de ouvir os ruídos e as vozes em primeiro plano. Lembrou-se que a sensação
era como se estivessem cheios de água. O suor agora encharcara todo seu corpo e o
lençol com que se cobria.
Estava certo de que morreria ali.
Virou-se em um esforço sobre-humano. A voz ainda não saía. Seu corpo agora estava
metade na cama e metade fora dela. Estranhou o fato de algo dentro dele estar em
perfeita ordem, enquanto seu corpo sofria alterações nunca antes experimentadas.
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Talvez fosse mesmo verdade, especulou, que o corpo seja apenas um veículo, e não o
condutor em si.
Naquele momento sentiu calafrios que lhe percorriam todo o ser. Suava, porém
sentia frio, como se estivesse com 40 graus de febre.
Sentiu uma ―presença‖, e seus olhos, nesse momento, vislumbraram essa ―presença‖.
Ela cruzou a porta e tinha a forma de um ser humano de estatura baixa. Em seguida,
mais dois de igual tamanho e aparência adentraram o pequeno cômodo.
Queria desesperadamente gritar, porém o grito saía para dentro.
A primeira ―presença‖ o olhou e disse aos outros dois que o acompanhavam:
– Tragam-no!
Sua voz era normal, mas imperativa. A mente de Hermes girava em torno das
inúmeras possibilidades, mas tinha certeza de que não estava dormindo, nem sob o
efeito do vinho branco barato de que tanto gostava.
Estava corpo presente, alma presente e mente presente, apenas não conseguia
―dirigir‖ seu corpo como sempre fizera.
A ―presença‖ o olhava diretamente nos olhos e um leve sorriso estava desenhado em
seus lábios.
Lá fora, os pescadores continuavam conversando, Eternidade latindo, podia ver as
luzes amarelas que iluminavam seu quarto e o lado de fora de sua janela.
As outras duas ―presenças‖ obedeceram à solicitação.
Aproximaram-se da cama. Hermes queria sair correndo, mas desistiu de lutar, pois
não dominava mais o lado físico de seu corpo, apenas os sentidos, a mente e a alma
estavam em atividade.
Colocaram as mãos sobre o pulso do homem deitado e disseram calmamente:
– Venha.
Hermes, então, levantou-se e caminhou até a janela, onde a primeira ―presença‖ o
aguardava. O calafrio, assim como a sensação horrível de não dominar o corpo, haviam
passado.
Nesse momento, a primeira ―presença‖ disse:
– Vamos?
Sem entender, Hermes virou-se para os dois que o tiraram da cama e viu-se deitado
exatamente como estivera todo o tempo.
Estava atônito e sua mente girou... Pensou em como poderia ter mente, se seu corpo
estava deitado? Como poderia estar de pé, se o corpo não se movera nem um
centímetro?
Apesar de atônito, não tinha nenhuma sensação desagradável. Virou-se para a
primeira ―presença‖ e perguntou:
– Eu morri?
Sorrindo, a presença respondeu:
– Você parece um morto? Venha comigo, pois quero lhe mostrar algo.
Hermes simplesmente obedeceu. A ―presença‖ pegou-o pela mão e ambos saíram
pela janela do quarto. Do lado de fora, Hermes podia ver e reconhecer as pessoas que
conversavam, assim como sua cadela, que brincava com algumas crianças na beira da
praia. A lua era cheia e o céu estava coberto de estrelas... Podia ver a vila de pescadores
ficando pequena embaixo de seus pés. Conversava com a ―presença‖, que parecia
comandar toda a experiência que estava vivenciando, porém se deu conta de que falava
e o escutava dentro de sua mente, e não com a boca e os ouvidos.
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Sete
O
homem não tinha um dente na boca, sua pele era castigada pelo sol, o que
lhe dava a aparência de bem mais velho do que era, de fato. Seu nome de
batismo era Francesco, uma homenagem de sua mãe ao santo homônimo,
porém todos o conheciam como ―polvo‖, alusão ao animal marinho de vários
tentáculos. Polvo nunca caíra de uma embarcação desde criança, começara a pescar com
seu pai, que morreu vítima de uma doença descompressiva. No entanto, todos
afirmavam que fora viver com Iemanjá, a entidade rainha dos mares...
E quando o pai partiu derradeiramente, Polvo assumiu seu lugar, como provedor da
mãe e de seus dez irmãos. Agora, aos 50 anos, continuava na atividade, mais por gostar
que por precisar verdadeiramente.
Equilibrava-se em cima de uma embarcação como as pessoas comuns caminham em
uma calçada, conhecia os sinais do mar... Orientava-se pelo vento, nuvens e marcas que
fazia entre um ponto na terra e outro no oceano. Jamais se perdera, apesar de passar dias
e dias sem voltar ao continente.
Polvo estava no comando da embarcação, e Hermes começara a pensar que talvez
fosse uma loucura levar seu plano adiante.
Os mergulhadores de lagosta estavam a postos. Deixaram a atividade da pesca em
rede para viver do mergulho. Quando o crustáceo começou a ficar escasso, migraram
para o mergulho recreativo, utilizando toda a experiência adquirida no ofício com o
conhecimento teórico das aulas de mergulho autônomo.
No catamarã que Polvo comandava estavam meia dúzia de homens, entre pescadores
e mergulhadores profissionais e Hermes, que nunca havia utilizado sequer uma máscara
de mergulho e agora se encontrava a dezenas de milhas do continente a bordo de uma
embarcação com estranhos e diante de uma tempestade.
As ondas ―quebravam‖ em cima do barco, fazendo-o dançar um balé débil em meio
ao oceano. Os raios cortavam o céu e os trovões faziam com que tudo tremesse. Os
homens riam e tentavam segurar as poucas peças que estavam soltas no convés da
embarcação.
Polvo mantinha-se firme em sua posição, alheio a todo o estardalhaço de água e, vez
por outra, de homens.
Hermes segurava-se assustado. A chuva açoitava seu rosto, o mar castigava seu
corpo da cabeça aos pés. Começava a tremer de frio. A náusea subiu pela garganta tão
rápido que nem sequer teve tempo de segurar, e vomitou por toda a embarcação, mesmo
estando deitado no chão.
Os homens do mar sorriam demonstrando claramente seus temores. Não haviam se
preparado para uma tempestade de tamanha dimensão.
De vez em quando, entre uma onda e outra, avistava-se um paquete (embarcação de
uso cotidiano das pessoas da região), que não passava de uma prancha feita de madeira
e isopor. Polvo fazia sinais com as mãos para o homem que comandava o paquete, e ele
parecia entender tudo o que lhe era transmitido.
Alguns haviam caído no mar e o paquete tentava resgatá-los.
A tempestade aumentara sua força, e agora ninguém, a não ser Polvo, mantinha-se de
pé. Gritava freneticamente para segurarem Hermes, porém o grito chegou tarde demais.
A força da onda de cor roxa e branca arrastou-o para fora da embarcação sem que ele se
desse conta do que estava acontecendo.
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Além do medo de nossa mente, existe um enorme poder escondido. Além do medo,
existe nossa capacidade de realização, algo reservado para os que têm coragem de se
entregar às experiências da existência sem restrições e julgamentos.
Há, por detrás do medo, o poder de moldar o universo ao nosso redor da forma que
quisermos. No entanto, precisamos sair de onde estamos e caminhar adiante...
Aqui estamos para caminhar e observar. Hermes não vivera sua existência assim,
porém estava disposto a terminá-la dessa forma. Tudo estava perfeito. Tudo era
maravilhosamente perfeito. Sentiu que não havia o que mudar.
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Yuri havia deixado seu país, no Oriente Médio, quando jovem. Filho de mãe e pai
soviéticos, passou toda a infância mudando de pátria por causa do trabalho dos pais.
Quando alcançou a maioridade, o império soviético entrou em decadência. Conheceu
diversos países ao leste da Europa e no próprio Oriente Médio. Apesar da formação
militar e dos sonhos de seu pai depositados sobre ele, abandonou a possibilidade de uma
carreira no governo russo imigrando para a América.
De início, foi para os Estados Unidos e fixou-se na Flórida. Sonhava em trabalhar
com mergulho em águas quentes, longe de interesses políticos. Após alguns anos, não
habituado com o modo de vida de uma das maiores economias do mundo, mudou-se
para o sul do continente. Andou por Cuba, México, República Dominicana e uns dez
anos na Amazônia peruana e brasileira. Lá, tornou-se um profundo conhecedor das
tradições indígenas, assim como as astecas, maias e incas.
Aprendera a respeitar os ―sinais‖, mesmo quando não podem ser explicados.
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Conheceu a dor da perda quando sua esposa índia e sua filha foram assassinadas por
garimpeiros na fronteira Brasil–Peru.
Passou um tempo amaldiçoando a vida e tudo o que nela havia, e depois aprendeu a
respeitar e a aceitar o imutável, pois somente assim transcendemos a dor e caminhamos
em frente.
Não gostava muito de pessoas, porém sabia respeitar alguém que era alvo do
mistério.
Yuri era um peregrino na jornada de seu próprio ser.
Quando todos caíram na água, fez questão de ser o guia de Hermes.
O mar era calmo... O azul ficava cada vez mais transparente à medida que ganhavam
profundidade...
Hermes sonhara com isso por toda a vida... Acabara de sobreviver e estava
colocando esta segunda chance em risco novamente. Sua mente o traía, no entanto, seu
ser lhe dizia: De que adianta ter tempo existencial, se não colocarmos vida nesse
tempo? De que adianta viver cem anos se formos prisioneiros do medo?
Ele sorriu dentro da máscara e Yuri fez sinal de o.k. para ele.
Seus olhos vislumbraram um universo de cores, onde famílias inteiras de arraias e
golfinhos brincavam, cardumes de peixes decorativos viviam próximos do coral. O
naufrágio abaixo estava intacto havia centenas de anos.
Dezenas de vidas certamente foram ceifadas no acidente, porém nem por isso o
universo desperdiçou energia. Dessa tragédia secular surgiu um universo de cores e
seres alheios ao mundo exterior.
Seus olhos encheram-se de lágrimas, que se misturavam com a água que insistia em
inundar a máscara.
Estava a trinta metros de profundidade, em algum lugar do Atlântico Sul e
sobrevivera a algo inexplicável.
Os pequenos peixes acompanhavam o tubarão lixa que, apesar de grande, não
poderia atentar contra a vida de ninguém, e as tartarugas marinhas olhavam os seres e
suas bolhas de ar com a mesma curiosidade com que eram observadas.
Yuri, vez por outra, puxava Hermes pelo colete, a fim de mantê-lo próximo de si.
Finalizaram o primeiro mergulho e depois subiram para a embarcação.
Após alguns minutos de descanso, voltaram novamente...
No fim do dia, retornando ao continente, Hermes, mergulhado em suas reflexões e
experiências, chorou.
O pôr do sol dourado beijava-lhe os cabelos grisalhos e a barba por fazer. O homem
silencioso entregou-lhe um amuleto amarrado em um couro.
– A todos os que são usados pelo mistério... – disse.
Hermes não respondeu nada, continuou imerso em seu ser e maravilhado com a
beleza assustadora que é viver e ter consciência do que isso significa.
Um breve momento, sem tempo e espaço, marcado por experiências que tentamos
ignobilmente controlar, no entanto, apenas quando abrimos mão da tentativa de controle
e aceitamos o universo como foi concebido é que descobrimos a magia de existir.
Relatara sua experiência a Miguel, que sorriu e a comparou a uma droga
alucinógena.
Abriu uma garrafa de vinho e compartilhou histórias de uma vida de viajante.
Lembrou-se de ter dormido em Pequim, de favor, na casa de um guarda noturno; de ter
amado a mulher de um alto executivo que, presa em seu status, não se livrou do
casamento sem amor; e que foi preso pela polícia iraniana ao tentar sair do país com
uma enorme carga de tapetes, e só foi solto por saber tocar violão.
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Ao ouvir o relato de Hermes, tinha a certeza de que este não mais pararia em sua
jornada...
A mulher que adentrara o ambiente era negra, alta e com sorriso de criança. Seus
olhos eram inteligentes, porém traziam a marca de quem já tinha visto e ouvido muito
mais que sua pouca idade revelava.
– Ah, esta é minha amiga, uma irmã – disse Miguel, enquanto terminava a taça de
vinho.
– Marie – disse, estendendo a mão para Hermes, que lhe retribuiu o cumprimento
meio sem graça, devido à aparência da moça.
Começara a perceber a estupidez de ver uma mulher apenas por sua beleza física.
Ficamos todos cegos pela aparência, e com isso perdemos a possibilidade de enxergar a
magia que habita o ser feminino.
A força do mistério é infinitamente maior nas mulheres por serem elas portais que
ligam esta existência ao universo criador.
O poder realizador é infinitamente mais pleno nos seres femininos, pelo fato de
vivenciarem uma experiência diretamente ligada à criatividade. A arte e a magia de
gerar uma vida é pura criatividade. Não existe um único ser igual a outro em nenhum
dos universos, no entanto, tentamos, de forma ignóbil, torná-los todos iguais. Rotulamos
cada novo empreendimento do universo, seja com castas sociais ou com uma educação
velada que tem por objetivo assassinar toda a diferença e a criatividade que o ser tem,
em prol de alguns míseros elogios dos que nos cercam.
– Marie e eu nos conhecemos desde sempre, e sou apaixonado por ela desde então.
No entanto, ela não sente o mesmo por mim, não é Marie? – disse o espanhol em tom de
ironia, sorrindo.
– Amo você, Miguel. Isso vale muito mais que uma paixão, amo você como ser
humano, amigo e irmão.
– Sei... Preferiria como homem, amante e ladrão! – ainda rindo, completou Miguel.
– E você, Hermes, ama alguém? – perguntou a moça.
A pergunta foi inesperada. Hermes sentia-se constrangido em falar de sentimentos.
– Eu amo meus filhos. O amor por uma mulher estou por conhecer...
– Mas você foi ou é casado? – perguntou.
– Sim...
Miguel interrompeu:
– O que o casamento tem a ver com amor ultimamente? Nada! – respondeu Miguel à
própria pergunta.
Marie serviu-se de uma taça de vinho, antes de insistir:
– E então, Hermes?
– Tenho de concordar com o Miguel. Há tempos, o ato de celebrar uma união entre
duas pessoas tornou-se mais um evento social que uma aliança entre almas. Há muito
tempo, as pessoas deixaram de se unir por amor e começaram a fazê-lo por interesse ou
medo.
– Medo? – perguntou Marie.
– Medo da solidão, da velhice, de não ser convidado para reuniões sociais...
– Medo de não encontrar o verdadeiro amor! – reafirmou Miguel.
– Creio eu, por experiência própria, que nunca pensamos a respeito do amor como
um objetivo existencial. Pensamos em um namoro, noivado e casamento. Pensamos e
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A Jornada Alquímica Nigredo
planejamos tudo há tanto tempo que não aguardamos o momento acontecer. Insistimos
para que seja na hora e quando queremos e podemos.
– Estamos, então, abrindo mão de tudo em prol de algo que conseguimos mensurar?
– perguntou Marie.
– Não sei se fazemos isso conscientemente ou não, mas o fato é que há muito pouco
amor no casamento e afins. As pessoas deixaram de se relacionar – concluiu Miguel,
com uma fisionomia triste perante sua própria afirmação.
– Entendo... – disse Marie, e continuou:
– Vocês estão dizendo que as pessoas estão juntas apenas por interesse?
– Não apenas material, mas também emocional – era Miguel quem afirmara.
– Como pode isso?
Hermes tomou para si a deixa do espanhol.
– Às vezes, Marie, buscamos ser aceitos e, para sermos aceitos por todos, família,
amigos e sociedade, precisamos definir nosso comportamento de acordo com o que se
espera de nós. Nessa equação, começamos a fazer o que é dito ―certo‖, ―direito‖ e
―correto‖. Muitas vezes, estamos tão inseguros de nossas decisões que deixamos que o
entorno decida por nós. Isso gera infelicidade interna, porém uma profunda aceitação
social.
– Abrimos mão de nossa existência por causa de uma porra de sociedade que nos
aponta os erros, nos reconhece por motivos equivocados e nos substitui tão logo aparece
algo ou alguém novo que possa ser moldado. Foda-se essa sociedade! – era Miguel
vociferando nitidamente contrariado.
– Vocês estão tão descrentes assim de tudo? – perguntou Marie testando-os.
– Eu, Hermes, não! Nunca estive tão crente em toda minha existência. O fato é que
agora vejo meus equívocos, e minha atenção está voltada para dentro e para o mistério.
Isso me fez perceber que há muito mentia para mim e para os que eu amava e imaginava
amar. Sinto-me, agora, mais próximo do que chamamos de criador, e nesse estado
acredito estar mais aberto ao amor.
– São palavras ousadas. Por que afirmam que as pessoas não se relacionam? –
perguntou Marie aos dois homens sentados em uma mesa rústica à sua frente.
– Pelo fato de nos relacionarmos quase que inevitavelmente com o que as pessoas
representam, e não com o que elas são – disse Hermes.
– Gostamos de ter um marido executivo, uma mulher empresária, uma filha médica,
e um filho engenheiro. Quase todas as mães imaginam que as filhas podem ser uma
apresentadora de TV, mesmo que isso não as faça felizes. Quase todos os pais planejam
o futuro de seus filhos sem levar em conta o novo ―empreendimento‖ que o universo
trouxe ao mundo, algo único e inédito. Eles querem uma réplica de si mesmos com um
pouco mais de recursos financeiros e um pouco mais de educação. Buscamos, todos,
viver por intermédio de nossos filhos, e isso não passa de projeção de nosso ego sobre
os mesmos.
– Quantos médicos, empresários e advogados não sonharam, na infância, em ser
carpinteiros, artistas plásticos ou criadores de cavalos? – inquiriu Hermes, dando
continuidade ao argumento de Miguel. – E quantos não choraram sozinhos, sofreram
sozinhos e se magoaram sozinhos por não conseguirem a admiração de quem os criou?
– Vivemos uma era de falta de relacionamentos humanos? É isso que vocês estão
afirmando? – perguntou Marie.
– Sim! – afirmou Miguel.
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A Jornada Alquímica Nigredo
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A Jornada Alquímica Nigredo
O céu estava coberto de estrelas que cintilavam longe e lhes serviam como
testemunhas caladas, mas nem por isso mudas. O vento morno soprava a areia da aldeia
de pescadores. O silêncio cortante da noite era quebrado pelas folhas dos coqueiros que
bailavam à mercê do vento.
Hermes bebeu todo o conteúdo da taça acompanhado por Miguel e Marie e, em
seguida, caminhou em direção à rede amarrada em baixo dos coqueiros e se deitou.
Pensava em sua existência, nas poderosas mandíbulas dos tubarões. Levou a mão ao
peito e encontrou o amuleto que havia recebido de Yuri, apertou-o estranhamente contra
o coração. Investigava em sua mente o curioso ser que era Miguel, e suas reflexões o
levaram aos olhos doces, grandes e meigos de Marie. Começava a mergulhar no sono, e
era agradável fazê-lo com a imagem do rosto da mulher e seus inteligentes argumentos.
Acabou por adormecer com essa sensação...
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A Jornada Alquímica Nigredo
Oito
O
Sol brilhava no cais do porto da cidade de Argel, capital da Argélia.
O vento quente do interior do país chegava à beira do mar Mediterrâneo e
seguia objetivamente rumo à Europa. Alguns poetas escreveram grandes
temas sobre a magia destes ventos.
No sul da França, Espanha e até mesmo em Roma, esse vento chegava, muitas vezes,
cansado de sua peregrinação e decidia ali repousar. Quando isso acontecia, era motivo
de irritabilidade nos moradores locais, pois seus Mercedes e BMW ficavam cobertos da
areia do deserto do Saara, assim como suas embarcações no rico porto do Principado de
Mônaco.
A menina-moça vislumbrava sua chegada ao continente europeu. As ruas de Paris e
suas sofisticadas maisons, a famosa torre, as vielas do sul da França e os cassinos de
Mônaco. Sonhava com as casas noturnas de Barcelona e o cenário romântico de
Veneza. Ouvira falar de um baile de máscaras na famosa cidade que se chamava ―A
Noite das Virgens e dos Vampiros‖. O famoso personagem enchia sua mente de
possibilidades amorosas e amores sem fim.
Conhecia e bem a cidade de Casablanca, no Marrocos, porém nunca entendeu por
que Hollywood a escolhera como cenário do filme. Sempre a considerou sem graça
nenhuma. No entanto, as cidades europeias a fascinavam, e muito.
Monique Marie era filha de um imediato da marinha mercante francesa com uma
professora argeliana.
Seus pais se apaixonaram e viveram um romance proibido durante anos... Ela se
acostumara a ver seu pai chegando e partindo na mesma proporção das lágrimas de sua
mãe.
Jean Claude começou sua carreira no exército e a finalizou na marinha mercante.
Gostava de viajar de país em país, mesmo, sem muitas vezes, poder andar pelos lugares.
Apaixonara-se pela vida no mar que, apesar de dura e rústica, lhe dava enorme prazer.
Sonhava com o dia em que poderia viver junto de Hersé, sua amada de pele negra.
Aos 16 anos, Monique falava fluentemente a língua oficial do seu país, o árabe e
também o francês e o inglês e começava a se resolver no espanhol. Seus dias dividiam-
se entre a escola de línguas, o ensino médio e seus sonhos à beira do cais.
Jean Claude tinha 50 anos e sua mãe 32. A diferença de idade entre eles fez com que
surgisse, desde o início do namoro, um misto de admiração, paixão e devoção de
ambos. Havia se casado com Hersé e ansiava pela possibilidade de levá-la para a
França. Descobrira uma pequena cidade ao sul do país, cuja data de fundação era em
torno do ano 1000 da era cristã. Cucuron não abrigava mais de dois mil habitantes e
ficava próxima de Nice, o que lhe permitiria ir e vir de forma rápida e segura.
Monique Marie já espalhara a notícia de que mudaria para Europa, e suas amigas
mais próximas, bem como seu primeiro amor, ficaram felizes por ela e triste por eles...
Fizeram, ela e Heitor, juras de amor um ao outro, gravaram seus nomes no banquinho
do porto e na árvore que escolheram para testemunhar o primeiro beijo.
Hersé daria aulas na escola de Cucuron e Monique seguiria para universidade, se
possível em Paris. Sonhara com aquilo toda sua pequena existência... E Hersé, sua mãe,
tinha a certeza de que nascera para viver esse sonho.
Mudaram-se para a França três meses depois, o mês era junho, e o calor parisiense
fazia com que Monique suasse muito. Sua pele negra, percebeu logo, chamava muito a
atenção dos rapazes e homens pelas ruas e cafés da cidade.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Jean Claude aportava pela centésima vez na cidade sul-americana de Buenos Aires.
Conhecia detalhadamente desde as finas ruas dos bairros de Puerto Madero e La
Recoleta até os inferninhos de La Boca. Bebera tantas vezes por lá que se sentia em
casa.
Tivera uma furtiva paixão com uma dançarina de tango, que ganhava a vida
dançando de dia para os turistas e à noite acompanhando-os, nem sempre por prazer,
mas pelo dinheiro que lhe pagavam.
Alejandra o convidara-o para que a visse uma última vez, pois o relacionamento
havia terminado sem mesmo ter começado.
Jean Claude aceitou, gostava de sua presença, mesmo sem lhe interessar os carinhos.
Alejandra sempre fora atenciosa e alegre, bebiam vinho frisante, tinto e acabavam
sempre no conhaque.
Esteban era um homem de aparência aterradora, gostava de amedrontar as pessoas
com sua forma rude de ser. Nunca conseguiu superar seus medos de criança. Foi criado
em um orfanato e, aos 15 anos, fugiu para nunca mais voltar. Viveu nas ruas de Buenos
Aires se virando como podia, ora praticando pequenos furtos, ora fazendo favores para a
máfia local. Quando alcançou maioridade, formou-se em uma penitenciária da
província.
Cometeu seu primeiro assassinato para pagar uma dívida de jogo, e descobriu o
prazer de imprimir o medo nas pessoas. Quando saiu da prisão, resolveu entrar para a
polícia.
O favor foi prestado a um promotor que era amigo de um dos chefões do crime local.
Com isso, Esteban conseguiu entrar para La Policia, na capital da Argentina.
Alejandra fora sua amante por muito tempo, depois conheceu o ―Francês‖ por acaso
e, apesar de trabalhar na noite, resolveu que só se entregaria verdadeiramente como
mulher a Jean Claude. Conheceu a paixão e, como toda paixão, egoísta o suficiente para
compreender que não dominamos nossos sentimentos, mas somos tomados por eles.
Jean Claude viera à cidade apenas para descarregar o navio. Ansiava por voltar à
Paris e encontrar sua Hersé e Monique. Deixaria, em breve, aquele trabalho para se
dedicar exclusivamente às duas.
O bar estava cheio. O bairro Recoleta abrigava um dos cemitérios mais famosos do
mundo, assim como bares e pessoas de todas as nacionalidades. Entraram no café Saara,
e Jean Claude sorriu com o nome.
Os sinais estão em todas as partes, porém não sabemos lê-los, pensava ele.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Beberam tequila para comemorar os velhos tempos. Alejandra era uma mulher
bonita, nunca tivera filhos e suas curvas pareciam perfeitas. Seus olhos verdes
denunciavam muito mais ambição que amor.
A música alta e o entra e sai de jovens anunciavam a hora de ir embora, porém
Alejandra insistira em mais uma dose, e mais outra, o que culminou no esvaziamento de
uma garrafa inteira da famosa tequila José Cuervo.
Às 3 da manhã Alejandra e Jean Claude riam alto e cambaleavam em busca de um
táxi nas ruas do charmoso bairro.
Uma sirene alta servia de trilha sonora para o casal.
Jean Claude só pensava em voltar ao hotel, pois seu navio zarparia na manhã
seguinte e, em alguns dias, estaria nos braços de sua alma gêmea. Seus pensamentos lhe
davam prazer.
– Alejandra, preciso deitar! – disse sorrindo.
– Conseguiremos um táxi – respondeu.
A viatura policial parou em frente ao casal. Lá dentro, um homem com barba
malfeita fumava. Alejandra se afastou, dizendo:
– Você?
Jean Claude olhou.
– Entre no carro – ordenou o homem.
– Por quê? – inquiriu Jean Claude, sem compreender.
O questionamento foi respondido com um soco no estômago. A dor penetrou suas
entranhas e disparou a adrenalina, o que lhe dera uma pequena lucidez.
Dois outros homens jogaram-no na parte de trás do carro, que sumiu em direção à
Avenida Nove de Julio.
Alejandra ficou imóvel, tirou da bolsa um cigarro e fumou-o demoradamente. Se não
poderia viver a plenitude de sua paixão, tiraria o máximo de lucro do objeto da mesma.
Sabia como utilizar Esteban para seu propósito. Descobrira que homens violentos ou
detentores de poder são fáceis de ser manipulados, pois são movidos pelo medo
inconsciente e pela violência.
Quatro semanas se passaram desde a última notícia de Jean Claude. Hersé estava
acostumada a esses grandes sumiços, pois vivia com um marinheiro.
Quando recebeu o telegrama informando que haviam encontrado o corpo de Jean
Claude dentro do Rio de La Plata, na capital argentina, suas pernas falharam, e foi
Monique Marie quem socorreu a mãe.
Todas as economias de Jean Claude foram sacadas na Argentina com um cartão
eletrônico na filial sul-americana do banco.
Hersé cuidara de Monique Marie com devoção até sua morte, dois anos depois. Foi
um único golpe com a faca de cozinha que cortou sua garganta de orelha a orelha, após
esvaziar uma garrafa de vinho sozinha no pequeno apartamento. Não deixou nenhum
bilhete, apenas escreveu na geladeira com uma caneta piloto: ―Cansei, filha, me
perdoe!‖
Monique Marie não parou de ir à escola, não deixou de seguir seus planos iniciais.
Sofreu as duas maiores perdas de sua vida em silêncio.
Não tinha religião, pois, depois disso, renunciou aos dogmas fossem eles quais
fossem.
Formou-se aos 21 anos e entrou para uma ONG que tinha por objetivo estudar a
cultura dos povos e registrá-la de um ponto de vista simplesmente observador. Não
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A Jornada Alquímica Nigredo
criticavam nem faziam juízo dessa ou daquela forma de viver, apenas as registravam e
armazenavam para futuras gerações.
Viveu em alguns países europeus e no Japão, e depois escolheu a América do Sul
como lar.
Miguel a conhecia desde os primeiros shows em que trabalhou.
Monique dedicou-se não a relacionamentos, mas a empreender sua alma. Descobrira
que abrigava uma dor tão profunda em seu ser que não podia dividir sua vida com outro
alguém até que a tivesse transcendido.
Sabia que cobramos nossas dores das pessoas com quem decidimos viver. Sabia que,
invariavelmente, quando não nos entendemos, acabamos por ver no outro todos os
nossos males.
Estava disposta a empreender o amor, mas primeiro o amor por si e depois para com
os outros.
Descobrira, graças ao seu trabalho, que muitas pessoas se intitulam humanas por sua
capacidade de renúncia. No entanto, essa renúncia, na maioria das vezes, disfarçava um
enorme medo de viver a própria vida. Então, elas se escondiam por trás das bandeiras
que defendiam.
Seu único propósito na vida era descobrir o que ou quem ela era, e para isso não
media esforços, fossem eles intelectuais, espirituais ou braçais.
Monique Marie acabara de descobrir algo em alguém que ainda não observara em
toda sua carreira de antropóloga.
Seus livros, agora lidos em diversas partes do mundo, demonstravam claramente que
toda a espécie humana estava equivocada na forma de se relacionar com os outros e
principalmente consigo mesma.
A brisa fraca elevava a pipa às alturas. Hermes corria com os pés no chão e
Eternidade corria atrás.
As crianças, filhas de pescadores, gritavam em coro.
– Sobe, sobe, sobe!!!
E, de repente, a pipa em formato de pássaro ganhou as alturas.
O cheiro de peixe fresco invadia as narinas de Hermes. Algumas meninas-moças
observavam o homem brincando com as crianças e não viam distinção entre ele e os
meninos. O frescor das coisas simples da vida estava estampado em sua fisionomia.
O cabelo grisalho e o espelho lhe lembravam quantos invernos havia presenciado. No
entanto, sua alma, nesse momento, regozijava-se com pequenos grandes prazeres.
O mar começou a beijar seus pés; a maré estava enchendo.
Marie o observava secretamente e não pôde deixar de sorrir quando Hermes entregou
a linha da pipa a um menino de uns nove anos. Este, rapidamente, conseguiu empiná-la
e descarregar toda a linha enrolada em uma lata. Hermes pediu a pipa de volta e o
menino correu. Hermes correu atrás, porém o moleque era muito mais rápido que o
homem. Correram por uns quinhentos metros, e Hermes parou descansando as mãos em
cima dos joelhos. E o menino gritava:
– Vem me pegar...
Quando Hermes o olhava, ele dava uma corridinha.
– Vem me pegar, agora eu devolvo pode vir, tó – disse o menino, estendendo a mão e
a linha. Hermes caminhou até ele e, ao se aproximar, o menino desencadeou outra
correria.
Hermes partiu em sua direção com Eternidade atrás. Marie resolveu entrar na
brincadeira e emparelhou-se com Hermes, sentindo a areia molhada nos pés descalços.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Sem parar de correr, ele a olhou e sorriu. Ela sorriu de volta. Os outros moleques
resolveram ajudá-los a pegar o amigo e a pipa. Corriam em direção ao mesmo também
as meninas-moças, que paqueravam discretamente o homem que tinha idade para ser pai
ou avô delas. Passaram por vários pescadores, que, ao verem a cena, disseram:
– Vamos lá, vamos pegar esse moleque!
E juntaram-se ao grupo. No fim, eram mais de 30 pessoas correndo atrás do menino
com a pipa, que sorria tão alto que sobrepunha o barulho do mar. Depois de correrem
por vários minutos atrás do garoto, todos pararam.
O menino sorria a uma distância segura para que ninguém se aproximasse, dançava e
ria, enquanto todos continuavam ali parados, ofegantes pela perseguição.
– Ô gente, ninguém pega esse menino, não é?! – disse um pescador.
Enquanto o menino dançava, Miguel, que observava tudo junto da mãe do garoto,
veio andando por detrás dele e, quando todos começaram a rir, o menino não entendeu
nada. Ao olhar para trás, percebeu que não havia como escapar da mãe. Foi agarrado e
todos chegaram perto dele.
Hermes, sorrindo e ofegante, perguntou:
– Ô menino, onde aprendeu a correr assim?
– Foi com meu pai. Antes de ele ir morar no mar, brincávamos aqui assim...
Hermes resolveu dar a pipa ao garoto.
– Você fez por merecer. Fique, é sua.
– Se é minha, vamos soltá-la – disse o menino.
– Soltá-la, como assim? – indagou Hermes.
– Ela é um pássaro, né? Então, vamos dar toda a linha e soltá-la – concluiu.
Assim, o menino foi dando linha... dando linha e, quando acabou, arrebentou-a e
pediu a todos que colocassem a mão em cima da dele. Já de tardinha e todos fizeram o
que ele pediu. Nesse momento, a mão de Marie pairou sobre a de Hermes, seus olhos se
encontraram e, entre lágrimas e sorrisos, soltaram a linha. Todos gritaram ao ver a pipa
ir ganhando altitude com o vento até sumir no horizonte dentro do oceano azulado.
O grupo estava nitidamente comovido com o gesto do menino.
Voltaram em silêncio e, sem se darem conta, estavam de mãos dadas Marie e
Hermes. Não disseram nem fizeram nada, apenas seguraram a mão um do outro. Uma
pequena, porém sólida, aliança entre dois seres que peregrinavam em busca de si
mesmos pela existência humana iniciava-se.
O tempo havia realmente passado rápido. Hermes tinha a ligeira impressão de que já
vivera outra vida, uma vida na qual era um provedor de família e não um pai, um
homem da sociedade que garantia o sustento de sua mulher, pagava seus impostos e era
candidato a uma vaga exclusiva no pátio da fábrica. Uma vida na qual a opinião dos
outros a seu respeito contava mais do que sua própria. Uma vida repleta de elogios
sociais, porém sem nenhuma qualidade humana.
Viveu uma vida completamente diferente da que nasceu para viver...
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A Jornada Alquímica Nigredo
Nove
stava na frente da atendente da empresa aérea. A moça não aparentava mais de
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A Jornada Alquímica Nigredo
As pessoas vinham de todos os lugares só para ouvir suas histórias. Um dia, sentou
em sua cadeira de engraxate um grande editor e ouviu-o narrar o caso de um menino
sobrevivente de uma ditadura. Ao terminar, o homem entregou-lhe um cartão e pediu
que escrevesse o que contava. Disse que existia um mundo de oportunidades para ele e
que as pessoas esperavam para ler histórias como aquelas.
Com um sorriso perfeitamente amarelo, David respondeu:
– Não nasci para escrever, nasci para contar histórias.
– Mas você ganhará muito dinheiro.
– Não preciso de muito dinheiro.
– Mas você ficará famoso.
– Não gosto da fama.
– Terá mulheres lindas.
– Já estou com uma, que é linda para mim.
– Pelo amor de Deus, homem, você é um engraxate!
Ele olhou para o editor impecavelmente bem vestido à sua frente e disse:
– Não, sou um contador de histórias, engraxo sapatos porque gosto. Aqui estou
vivendo plenamente, encontrei meu plano existencial e o estou seguindo.
– Engraxando?
– Não, narrando.
O homem fez menção de pagá-lo, mas David não aceitou.
Irado, o executivo deu-lhe as costas, certo de que encontrara um grande talento, mas
infelizmente louco.
Monique Marie lhe dizia tudo, conhecia tudo e foi mais que uma guia. Ao voltarem
para o hotel, Hermes se apoiava nela e ria absurdamente alto. Entraram no elevador e
desceram no décimo andar, onde podiam ver o grande museu Metropolitan encravado
junto ao Central Park.
Marie se aproximou de Hermes e, com as mãos meigas, trouxe sua cabeça para junto
de seus seios. Hermes recostou e ouviu o coração da mulher batendo em ritmo lento e
contínuo...
Seus cabelos eram afagados por Marie, que gentilmente levantou sua cabeça. Seus
olhos se encontraram e dentro de Hermes havia a sensação de que não era a primeira
vez que estava tão junto de Marie. Seus lábios se tocaram quase que por mágica, e
ficaram abraçados de frente à janela enquanto sentiam o hálito um do outro.
Seus corpos se conheciam, não havia receios, não havia introspecção, não havia nada
afora aquele momento.
O rosto negro de Marie brilhou ao sorrir na luz do abajur. Hermes estava de corpo e
alma presentes com aquela mulher.
Suas almas se conheciam, e o sexo foi sem censura, sem podas, sem nenhuma
fronteira.
Dentro de sua alma, Hermes se deparou com que veio a chamar, dali para a frente, de
a ―Deusa Criadora do Universo‖. Nunca, em sua vida, tivera um orgasmo daquela
forma. Nunca, em sua vida, tivera um orgasmo verdadeiramente. Seu corpo cumpria a
necessidade fisiológica de gozar, mas era algo puro e simplesmente físico. O que
experimentou junto da alma de Marie, por intermédio de seu corpo, foi divino, algo que
magos e alquimistas, homens sábios e santos buscaram por milênios e lhe fora
concedido por outro ser humano, porém, graças à alma e não aos corpos de ambos.
Marie passara toda a noite dentro de Hermes e sentia em si mesma o toque divino
que tanto procurava. Não havia espaço entre eles, não havia compromissos sociais, não
havia questionamentos, quem lhes falava eram suas almas.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Passaram-se seis meses desde que tivera a notícia de seu médico. Deixara a
metrópole em que vivia e toda uma vida até aquele momento para empreender a
primeira e, provavelmente, última jornada em sua existência.
Não sentira nenhum grande mal-estar, tampouco desconfortos em razão de seu
prognóstico. No entanto, perguntava-se o que viria adiante.
Havia realizado coisas e vivenciado experiências que se eternizariam em sua alma.
Fizera amigos verdadeiros. Correra tantos riscos que mais lhe parecia um sonho, e não
sua vida atual.
Descobrira que há mais forças regendo a vida do que podemos imaginar. Percebera
que o equívoco humano em tentar controlar tudo não só é uma patologia da mente como
uma completa insensatez. Perdemos tanto tempo controlando a vida e os outros que nos
esquecemos de vivê-la verdadeiramente.
Pensou, com nostalgia, que poderia ter tido acesso a essa sabedoria mais jovem, pois
poderia, com isso, ter aproveitado o tempo que lhe foi dado pelo mistério, nesta
existência, de forma diferente. Chegou à conclusão que não poderia jamais atingir tal
sabedoria, pois estava cego por seu ego, pelos elogios de pessoas importantes para ele e
nem tão importantes assim.
Sabia que as coisas estavam acontecendo na hora e no momento certo, e tinha a
convicção de que, baseado em quem era quando jovem, se soubesse que seus dias
estavam findando nesta dimensão, não se abriria para a sabedoria universal, e sim se
renderia à revolta, raiva e ao ódio por tudo e todos.
Sabia que a pretensa imortalidade que nossos cargos, dinheiro e posição nos dão é
exatamente isso, uma pretensão, e não há nada de verdadeiro nesse sentimento.
Não podemos adquirir imortalidade pelo status social. A única coisa que
conseguimos é a ilusão egoica de que somos mais ou menos importantes que nossos
semelhantes, e nada mais.
Hermes Arauto havia crescido por dentro, havia percebido que não é pelo fato de
nunca ter atentado para a magia que cerca a todos na juventude, que não poderia fazer
isso na maturidade, nem que fosse um pequeno lampejo existencial na incomensurável
roda da vida.
A viagem aos vinhedos da Califórnia chegara ao fim, conhecera tantos sabores de
uvas que era difícil optar por uma.
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Sabia que, apesar de ser tachado como uma pessoa pouco esclarecida na arte da
enologia, dos olhares tortos dos grandes degustadores e dos sorrisos de Marie, que
gostava, mesmo, era de vinho branco barato.
Enquanto Marie resolvia o despacho das bagagens, Hermes observava o vai e vem de
pessoas dentro do enorme aeroporto de Los Angeles. Pessoas com uma vida como a
sua, que lhe davam a impressão de estar tão perdidas quanto ele. Pessoas que, presas ao
medo, levavam a vida baseadas em certezas externas, em partidos políticos,
denominações religiosas ou ideologias radicais, fossem elas empresariais ou sociais.
Via-se nas pessoas, tinha dentro de si a sensação de que estivera dormindo um
profundo sono durante toda sua existência e agora, que se aproximava do fim, acordara.
Marie o tirou de seus pensamentos e trouxe-lhe de volta ao momento.
– Pronto. Tudo resolvido – disse sorrindo.
– Que ótimo.
– Você tem certeza de que tudo bem para você?
– Tenho sim, Marie.
– Mas você me disse que Budapeste era um dos lugares que gostaria de conhecer...
– Sim, é verdade, mas creio que planos existem para ser mudados de última hora.
Minha opção é voltarmos. Gostaria muito de ir à Hungria, porém prefiro, neste
momento, voltar com você...
– Por causa dos feriados?
– Não verdadeiramente. Creio que não preciso mais de feriados para beber ou comer,
tampouco para presentear alguém que amo. Descobri que essas pequenas compensações
servem muito mais para aumentar o faturamento das empresas que para celebrar algo
especial – concluiu Hermes.
– Sempre abdiquei dessas datas, não por não gostar, mas por terem uma conotação
unicamente comercial.
– Pois é, mas esta besta aqui – disse rindo – precisou viver 54 anos para compreender
que, quando amamos alguém, podemos e devemos presentear esse alguém não em uma
única data estabelecida sei lá por quem, mas no momento em que nosso coração quiser.
– Voltar, então, é seu desejo?
– Verdadeiramente sim.
Enquanto o avião se afastava da cidade dos anjos, sede da indústria da ilusão,
Hermes fechou seus olhos e segurou a mão direita de Marie, sentindo uma ligeira e
agradável pressão na barriga e na cabeça. Essa sensação dava-lhe a única certeza de
estar voando realmente. Marie compreendeu e silenciou, enquanto todas as luzes do jato
eram apagadas e o mesmo ganhava os céus rumo ao sul do continente americano.
Estavam de mãos, corações e almas dadas um ao outro. Estavam verdadeiramente
juntos sem rótulo, cobrança ou pacto social.
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Dez
ezembro tornava as ruas e os shopping centers das cidades absolutamente
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A fábrica ainda não atingira seus objetivos e, por isso, existiam turnos extras nos
feriados. Nestor engordara um pouco mais e continuava a comer freneticamente, de
forma inconsciente, chocolates, doces, pipocas e biscoitos, que mantinha embaixo da
mesa, assim como a garrafa de uísque.
Seus filhos não o viam, e seus relacionamentos com outros seres humanos eram em
prol, única e exclusivamente, de seu trabalho.
Tudo mudou e nada mudou... A existência humana muda quando decidimos
empreender uma vida em seu alicerce, e isso significa sair de onde estamos e seguir
para onde desconhecemos...
A mudança acontece por dentro e se reflete externamente. Nada muda se não
mudarmos nossa forma de ver o externo e a nós mesmos. É sempre mais simples
quando algo muda por nós a nossa existência, no entanto, não há nada de nobre nisso, e,
sim, a apatia que cobre todos, em todos os lugares. E Celine e os ―seres sociais‖ que
habitaram a vida de Hermes por anos a fio não eram exceções.
Na noite de 24 de dezembro de 2007, não houve nada de novo na casa de sua família.
Beberam, comeram, trocaram votos de Feliz Natal, mesmo sem terem consciência
individual do que isso significava, e, por fim, trocaram presentes.
Lá pelas 2 horas da madrugada, alguém tocou no nome de Hermes e fez-se silêncio
na sala. O constrangimento só foi quebrado quando o pai de Hermes fez um comentário
tipicamente do ser humano que não sabe o quer dizer:
– Parece que amanhã vai chover...
Nesse momento, um relâmpago, acompanhado de um trovão, cruzou o céu da
metrópole. As crianças foram dormir, os adolescentes foram para seus iPods e
computadores de última geração teclar nas ferramentas de comunicação da internet, e os
adultos e velhos resignaram-se a beber até o sono silenciar suas bocas e mentes.
Hermes optou por fazer algo impensável, passou a noite absolutamente sozinho...
Estava hospedado em um pequeno hotel nas montanhas, e apenas o segurança e ele
habitavam o local.
Abriu uma garrafa de vinho branco, mais gelado que a temperatura apropriada para o
mesmo, porém não se importava mais com o ―como‖ ou o ―correto‖ dito por algum ser
―endeusado‖ por outras pessoas.
Beberiam o vinho muito gelado e ponto final.
Começou imaginando como seria passar uma noite de Natal sozinho, por opção
própria.
À meia-noite do dia 25 de dezembro de 2007, Hermes ajoelhou-se sozinho dentro do
pequeno quarto de hotel e fez uma oração...
69
A Jornada Alquímica Nigredo
Levantou-se, e seus olhos estavam vermelhos das lágrimas que lhe escorreram pela
face. Não mais mentia para si mesmo, e isso era uma verdade absoluta em sua alma.
Lavou o rosto, serviu uma taça de vinho para si mesmo e pegou uma cerveja gelada
no frigobar. Desceu até a recepção do hotel, onde um rapaz com pouco mais de 25 anos
estava sozinho, cabisbaixo, ouvindo bem baixinho um rádio de pilhas. Ao vê-lo, o rapaz
prontamente se refez. Hermes sorriu em sua direção, dizendo:
– Feliz Natal!
E estendeu-lhe a cerveja. O rosto do rapaz se iluminou em um sorriso branco, de
dentes absolutamente certos, e lhe respondeu:
– Feliz Natal!
Bateram a lata de cerveja na taça de vinho e beberam juntos. Eram estranhos, porém
sentiram-se mais próximos do que no seio de suas famílias.
Podiam ouvir as pessoas trocando presentes e falando alto acolá. Sorriram um para o
outro e terminaram suas bebidas. Hermes voltou para seu quarto e o rapaz para seu
rádio.
Antes de dormir, sentou ao computador à sua frente e digitou o endereço de e-mail
de seus filhos.
Ali expressou o que sua alma sentia por eles. Não justificou nem acusou, apenas
deixou fluir o amor que o invadia.
Decidiram, ele e Marie, que se encontrariam no dia 5 de janeiro de 2008 na cidade do
Rio de Janeiro.
Marie voou até o hotel de Miguel, que preparara uma noite de réveillon para seus
hóspedes, pessoas que poderiam estar em qualquer lugar do planeta a bordo de navios
ou em grandes hotéis de luxo, pessoas que, de tanto viverem na superficialidade da
sociedade, pagavam para presenciar um pouco de calor humano. Pagavam pequenas
fortunas para poderem trabalhar cozinhando, limpando ou servindo.
Havia uma herdeira de um trono nórdico, um filho de um ditador de um país
africano, um empresário dono de uma das maiores minas de ouro a céu aberto do
planeta e um casal de atores mundialmente conhecidos, entre outros não tão famosos,
porém igualmente ricos, todos limpando, cozinhado e servindo.
70
A Jornada Alquímica Nigredo
Miguel pensara que sua ideia era absolutamente louca, e era. Entretanto, para sairmos
da mesmice de nossas existências e enchermos a mesma de vida, precisamos acreditar
em nossas loucuras e empreendermos nossa própria vida.
Quando Miguel procurou investidores e lhes contou a ideia, disseram que era louco.
Resolveu procurar os bancos que apostavam no futuro, e todos foram categóricos: o
negócio já nascera falido, era tão absurdo... Quem pagaria fortunas para ser um
serviçal?
Resolveu, então, procurar alguns amigos abastados, que, apesar de gostarem
verdadeiramente de Miguel, não sentiram segurança em investir dinheiro na ideia do
espanhol.
Cansado de receber nãos, Miguel lançou mão de todas suas economias, enfrentou
uma dívida de anos e empreendeu sua ―loucura‖. Tivera de aprender os costumes de um
país em desenvolvimento, uma língua estrangeira e lidar com as limitações burocráticas
da América do Sul. Em contrapartida, encontrou pessoas dispostas a ajudá-lo a erguer
seu empreendimento, mesmo sem dispor de recursos para pagar-lhes como mereciam.
Descobriu o valor de dividir um sonho com alguém, e encontrou dentro de sua alma a
força necessária para continuar lutando por sua ideia até vê-la realizada.
Agora podia dispor de alguns milhares de dinheiro para comprar ou gastar com o que
quisesse. Diversos bancos ofereceram-lhe empréstimos ou linhas de créditos, e seus
amigos já o haviam procurado uma dúzia de vezes a fim de convencê-lo a abrir filiais
em outros países.
Miguel mantinha-se firme em seu propósito.
Sorria sinceramente para as propostas que lhe faziam.
Dispunha de recursos que poderiam mantê-lo em qualquer país do mundo, vivendo
confortavelmente. Ele se recusara a ter seu próprio avião, pois chegara à conclusão que
não queria mais ir a lugar algum. O Nordeste brasileiro lhe bastava, suas caboclas, sua
cultura e seus amigos, que não falavam nenhum idioma estrangeiro, a maioria não sabia
sequer ler o português, língua oficial do Brasil. No entanto, sua alma lhe dizia que
encontrara seu lugar no universo.
Marie era a única amiga estrangeira que o frequentava, e ele era feliz por isso.
Conhecera príncipes, grandes astros do mundo da música pop mundial, atores e
diretores de grandes estúdios, empresários, banqueiros e até mesmo um sheik. No
entanto, nenhum deles era tão feliz quanto ele naquele vilarejo escondido do mundo,
empreendendo sua louca ideia e enchendo sua existência de vida. Miguel era o que
todos anseiam: feliz. Não por ter chegado a um determinado ponto, mas por apreciar a
jornada até onde tinha chegado e, principalmente, aonde a roda inevitável do mistério o
levaria.
A chegada de um novo ano de existência era celebrada pelos que viviam sob o teto
de estrelas de forma peculiar. Lua e sua tribo decidiram assistir o que políticos, famosos
e anônimos sonhavam em ver um dia quando tivessem tempo: a mundialmente famosa
queima de fogos na praia de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro. A praia
abarrotada de pessoas de diversas partes do planeta acolhia todos, ricos ou pobres,
brancos, negros, amarelos e índios da mesma forma.
Um grande palco foi montado nas areias da praia, e a orla foi fechada a fim de
possibilitar a todos um grande espetáculo. A cidade, também famosa por seu alto índice
de criminalidade, nesse dia estava em paz. Havia um pacto silencioso entre a sociedade
e os ditos ―marginalizados‖ para que tudo fosse apenas harmonia.
71
A Jornada Alquímica Nigredo
Lua conseguiu um lugar na areia para que, ali, ela e sua tribo pudessem expor seus
trabalhos. O ―Compra meu Trampo‖ ficou especialmente feliz, pois sempre sonhou em
expor naquele lugar.
Lua queria tecer oferendas à Deusa e à sua forma de ver e crer no mistério da
criação. Sua irmã já havia preparado um grande buquê de rosas brancas para Iemanjá,
pois acreditava na entidade como senhora dos mares e de sua vida. Juntamente com ela,
milhares de pessoas, cada uma com sua fé, cada uma com seus medos e cada uma com
seus motivos, estavam à beira do mar para as oferendas.
Da sacada de uma das suítes mais luxuosas e caras do Copacabana Palace, um
homem impecavelmente bem vestido tomava uma taça de champanhe, enquanto
observava os milhares de pessoas na orla.
A mulher que o acompanhava era sofisticada e muito bem-educada, porém não
dispunha de nenhuma sensibilidade humana ou feminina. Seus comentários, assim
como a forma de se relacionar com os homens de sua vida, sempre foram voltados à
competição. Competia na intelectualidade, nas finanças, nos conhecimentos gerais e,
por fim, na forma de se vestir e de fazer amor.
Caroline tentara a sorte no concorrido mundo das modelos. Tivera algum sucesso
entre os 17 e 23 anos, mas, após essa idade, fora preterida em detrimento de outras
moças mais jovens, às vezes nem tão bonitas fisicamente, mas com uma personalidade
mais carismática, o que acabava por agradar aos responsáveis pelo casting das grandes
agências.
A forma de Caroline de lidar com sua fama e com as pessoas ao seu redor acabou por
isolá-la em uma ilha de solidão e veneração por si mesma. Após inúmeras tentativas
frustradas de continuar a carreira, conhecera John, um executivo de uma grande editora
que andava a todo o momento atrás de novos talentos.
Havia tempos que John Bonaventura não descobria um grande talento. Conhecera
um homem na estação de trem em Nova York que tinha a certeza de seria um grande
sucesso editorial, porém o homem era louco e não se interessava por nada que John
podia lhe oferecer. Viera à América do Sul e passara por Buenos Aires, Montevidéu e
Santiago, no Chile.
Até o momento, John não encontrara nenhum grande talento. Descobrira, no interior
do Chile, uma aldeia indígena onde um homem sábio vivia aos pés de um vulcão
supostamente adormecido. Ele sabia o que dizer e como tocar a alma humana. No
entanto, esse índio não estava disposto a trocar sua casa, aos pés da montanha, onde,
segundo suas crenças, moravam deuses sagrados, por um contrato para relatar as
histórias que dizia sequer serem dele.
– As histórias nascem dentro do universo e navegam para fora dele em nossa direção
– afirmou-lhe o índio.
Voltara mais uma vez frustrado, e o último país que visitaria nessa sua busca seria o
Brasil.
Caroline trajava um vestido vermelho de um famoso costureiro. Orgulhava-se de não
se ―misturar‖ com as pessoas, sentia-se alguém especial, alguém escolhido para brilhar
sobre os mortais. Ela tinha germefobia e uma insatisfação que não lhe permitia parar e
apreciar lugar algum. Alguma coisa dentro dela precisava estar em movimento
constante. Algo em Caroline não estava se expressando como ansiava, e sua ignorância
a respeito de si mesma apenas agravava seu quadro.
Brigara com todas as pessoas que lhe queriam bem e também com as que não
queriam. Tinha a convicção de que era a melhor em tudo o que fazia, não importando
quem avaliasse seu desempenho.
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A Jornada Alquímica Nigredo
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A Jornada Alquímica Nigredo
O anfitrião da noite anunciava a todos que o jantar seria servido antes da queima de
fogos na praia, seguido de uma banda que animaria os hóspedes.
O garçom serviu-lhes mais duas taças e ambos caminharam em direção a um grupo
de pessoas para se apresentarem e trocarem informações fúteis e inúteis para ambos. No
entanto, isso não fazia a menor diferença.
Do lado de fora, Lua argumentava com um guarda que tentava proibi-los de expor na
areia seus trabalhos.
– Não pode, moça!
– Vamos expor – afirmara com convicção.
– É proibido.
– Quem proibiu?
– A prefeitura, o governo, sei lá... Mas tenho ordens de não permitir que se venda
nada na areia.
Lua olhou para o jovem de olhos verdes e pele branca, que trazia a ideologia de
servir a uma instituição estampada na face.
– Olhe ao redor...
O homem hesitou.
– Por favor, olhe – insistiu Lua.
Ele o fez. Havia carrinhos de cachorro-quente, caipirinhas, bandeirinhas, pessoas
vendendo fogos de artifícios, pôsteres da cidade, pipoca, cata-vento, cangas de praia,
camisas com a bandeira brasileira, assim como toalhas com a mesma imagem. Um
garoto passou e ofereceu para o próprio guarda um maço de velas.
– É para Iemanjá, o senhor não quer acender uma vela?
O guarda sacudiu a cabeça negativamente e voltou-se para Lua.
– E então, entendeu o que estou tentando te dizer?
Sem argumento, o rapaz refletiu...
– Moço, sei que você é um bom guarda, mas às vezes precisamos questionar as
ordens...
Em poucos minutos, o rapaz chegou à conclusão que de duas uma, ou as ordens não
faziam realmente sentido ou quem as deu era verdadeiramente uma besta, e não um ser
humano. Sorriu para ela e disse:
– Está certo, moça, tenho de dar o braço a torcer. Vocês podem ficar – disse e virou
as costas.
Lua o chamou de volta e amarrou em seu pulso esquerdo uma pequena pulseira de
pano.
– Fui eu que teci, vai te trazer boa sorte – deu um beijo inocente no rosto do rapaz e
concluiu: – Feliz ano novo para você!
Os fogos começaram a estourar na linha do horizonte. Dentro do mar, as cores
misturavam-se com a neblina que subia da água salgada, formando uma imagem surreal
para os que viam da praia.
A tribo de Lua, sua irmã, Aramis, o ―Compra meu Trampo‖ e todos os demais
estavam de pé na areia com cerca de um milhão e meio de pessoas. Alguns dançavam,
outros oravam, outros bebiam e alguns choravam...
A cascata montada em cima do grande hotel na ponta da praia do Leme jorrou
construção abaixo. A imagem era vista por milhões de pessoas de todo o mundo pela
televisão e internet. Os hotéis todos cheios, os navios ancorados no mar de fora também
celebravam a chegada de um novo ano.
Lua desenhara no chão um símbolo de magia e dançava uma música que só ela
ouvia. Alguns turistas paravam e fotografavam-na, fosse pela dança ou por suas pernas
74
A Jornada Alquímica Nigredo
que estavam à mostra. Lua dançou até que a música dentro de sua cabeça parasse e o
espetáculo da cascata chegasse ao fim.
Quando parou, o grupo que a observava aplaudiu. Algumas mulheres desdenharam
por perceberem nitidamente seus acompanhantes seduzidos pela dança de Lua. Outras,
mais sensíveis, a admiraram por verem nela não a intenção de seduzir alguém, mas sim
a de agradecimento por uma força maior que a que podemos ver ou perceber.
Dentro do magnífico hotel, o jantar havia terminado. Alguns homens e mulheres já se
encontravam completamente embriagados, e outros continuavam tentando até conseguir
atingir esse fim.
Algumas meninas de programa davam ―plantão‖ no salão de dança para ver se
podiam vender seus préstimos por um punhado de dólares.
Caroline estava entediada. Limpara diversas vezes as mãos, pois cumprimentara
outras pessoas, da mesma forma que, para não ser deselegante com um grande agente
presente na festa, bebericou em seu copo e permitiu que o homem fizesse o mesmo na
hora dos cumprimentos de ano novo. Em seguida, saiu discretamente e subiu ao
apartamento para escovar e lavar várias vezes a boca.
Seu tédio ainda não conseguira ser aniquilado pelo álcool, e as pílulas
antidepressivas precisariam entrar em ação. Jogou duas dentro da boca e virou uma taça
inteira de champanhe.
John fizera o mesmo, porém sem pílulas.
Resolveram, de súbito, sair do hotel e caminhar no meio da multidão. Os seguranças
tentaram dissuadi-los, porém estavam decididos.
Pisaram no asfalto da famosa Avenida Atlântica e rapidamente sumiram no meio da
multidão. Caminhavam em direção ao bairro do Leme, ao hotel que abrigara a cascata e
ao símbolo mágico de Lua.
O vestido de Caroline, que se arrastava no chão, assim como o smoking branco de
John, dava a impressão de serem os únicos peixes fora d’água na noite tropical de
Copacabana.
Uma mulata de curvas perfeitas se aproximou do casal.
– Procurando diversão?
Nenhum dos dois falava o português. Sabiam se fazer entender, mas a pronúncia
mais parecia um dialeto que o idioma em si, porém compreenderam perfeitamente o que
a mulata lhes oferecia.
Apressaram o passo. Caroline começara a sentir o efeito do antidepressivo em seu
corpo. Continuava a ser a mesma pessoa infeliz que era, no entanto, o remédio, assim
como todas as drogas, não nos transforma em seres poderosos, apenas permite que o
que pretendemos ser seja aflorado. E, no caso de Caroline, era ser a mulher mais bonita,
famosa e superior do mundo.
Começava a dar risadinhas de desdém a todos, e gostava disso.
John relaxara, tinha aberto a camisa e caminhava com Caroline em meio às
manifestações religiosas de todos os credos na areia.
O calor do mês de janeiro, mesmo de madrugada, faziam-nos suar muito, e isso era
agradável para ambos.
De frente a um dos panos estendidos na areia, o homem com sorriso largo era
Aramis, o cigano, que olhou a mulher de cima a baixo. Um bonito corpo e rosto,
pensou, porém, poderia haver uma alma por detrás.
– Compra meu Trampo! – disse o companheiro de Aramis a eles.
– We don’t speak portuguese.
– O quê?
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A Jornada Alquímica Nigredo
Ele estendeu a mão e ficou com a mesma no ar. Lua deu-lhe as costas e voltou para o
pano em que estava sua irmã e sua sobrinha.
Uma multidão passou, nesse momento, tocando vários instrumentos musicais, de
onde saíam notas de uma canção antiga que falava de amores perdidos e outros
escondidos. Dizia o refrão: ―Nada como uma manhã após uma noite‖.
E todos estouraram em coro:
– É ano novo!!!
A multidão arrastou John e Caroline, que, mesmo sem entenderem o que dizia a
canção, foram contagiados pela alegria das pessoas. Alguém estendeu-lhes uma garrafa
de aguardente, e John a virou na boca. Caroline esquecera, graças aos seus remédios e
ao álcool que consumira, sua germofobia e acompanhou John. Sumiram no meio da
multidão, porém, entre as pessoas podiam ver Lua observando-os. John virou-se e
deparou com o olhar penetrante da mulher, entrecortado pelos corpos que dançavam no
asfalto, agora molhado, da grande avenida.
Celine comprara um pacote turístico para ela e os filhos em um desses hotéis que
prometem diversão garantida e fórmulas prontas para toda a família. Comeram,
beberam e a música que soava não lhe tocava a alma. Seus filhos foram dormir, sua
companhia eram seus pensamentos e uma garrafa de vodca pela metade.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Questionava-se onde errou, em que esquina da existência deixou sua vida e seguiu
sem a mesma para o lugar em que se encontrava agora.
Onde estavam seus amigos? Onde estava a jovem moça que sorria de tudo e de
todos? Onde fora parar o significado de existir e gostar disso?
Sempre teve tudo sob controle, sempre vigiou para que nada nem ninguém escapasse
de seus olhos e de sua vontade. Agora, porém, a vida, por intermédio de Hermes e sua
atitude, pregava-lhe uma peça. Talvez especulava para si mesma uma tragicomédia.
Esqueceu, Celine, de ver que ninguém pode fazer a alma humana feliz. As pessoas
podem nos trazer alegrias ou tristezas, mas nunca felicidade e dor eternas. Esqueceu que
não podemos manter nada sob controle, pois nada está nas mãos de seres como nós, e
sim nas mãos do universo. Nunca pensou que ao invés de se dedicar a controlar e vigiar
a existência alheia, fosse de seus filhos, marido ou amigos, sábio seria dedicar-se a
descobrir os motivos verdadeiros de sua alma.
Nunca refletiu que poderia não mais ter seus filhos por perto, pois as pessoas seguem
seus próprios caminhos e muitas vezes vão para longe de nós, não por crueldade ou
desamor, mas por ser esta a vida que suas almas anseiam ter.
Outras vezes, as pessoas deixam esta existência, não por quererem ou não, mas por
ser assim que a magia da vida se manifesta.
Nunca sequer pensou verdadeiramente que poderia morrer e nunca ter realizado o
que sua alma viera realizar.
Celine nunca pensou sobre a própria existência. Por não pensar e não ter a coragem
de enchê-la de vida, não vivenciava o presente momento. Não podia julgar ninguém,
não podia culpar ninguém, tampouco poderia voltar trinta anos no tempo e fazer
escolhas diferentes.
Se dirigisse sua inteligência para seu ser interior, perceberia que as mudanças
acontecem a partir do momento em que estamos e onde nos encontramos, e não
voltando no tempo.
Perceberia, se voltasse a atenção para sua alma, que poderia começar a viver a partir
daquele ponto, que era esta a forma que o universo encontrou para ela realizar os
anseios de sua alma, e que isso não era uma maldição. Contudo, a mente de Celine não
lhe dava tréguas, e a única forma que agora, sozinha, encontrara para se consolar, era
entorpecer-se de mágoas, ressentimentos e álcool.
77
A Jornada Alquímica Nigredo
Onze
H
ermes não comemorou a chegada de um novo ano. Para ele, o novo seria a
partir de sua data-limite. Sua noite de réveillon seria a partir do dia 3 de março
de 2008. Se cruzasse essa fronteira, teria motivos para celebrar um ano novo,
antes não.
Especulava, também, a euforia das pessoas em torno da data. Viviam o ano inteiro
sem objetivarem seus planos, passavam 364 dias maldizendo a sorte, o trabalho, o
governo e, por fim, a vida. Não buscavam mudar nada, não se esforçavam para sair do
lugar onde se encontravam e queriam que suas vidas mudassem. Quando se aproximava
o fim do ano, as pessoas começavam a ficar eufóricas, gastavam o que tinham e o que
não tinham com roupas brancas, viagens sem sentido de dois ou três dias para pularem
sete ondas à beira-mar, guardarem os caroços de uva na carteira para trazer prosperidade
e faziam oferendas para encontrar o amor da vida.
Trocavam votos de felicidades e de boas novas, porém se esqueciam de fazer sua
parte. Não buscavam uma nova colocação, não empreendiam uma ideia que martelava
em suas cabeças nem se aproximavam de outro ser humano despidos de expectativas e
conceitos preconcebidos. Sonhavam com mudanças, porém não mudavam seu ser e suas
atitudes.
Cansara de ver moças investindo horas e horas de suas existências para escolher o
vestido perfeito, fazer o cabelo e maquiar seus rostos. Perdera a conta dos amigos que
compravam um novo carro, um terno de grife, uma caneta da moda ou um relógio de
ouro para ―investirem‖ em si mesmos no ano que estava por vir.
As moças criavam tantas expectativas por uma única data, por uma única noite, que
voltavam cabisbaixas das festas. Não olharam ao redor para enxergar os seres humanos
de carne e osso que estavam lhes dedicando atenção, mesmo que a atenção fosse um
olhar tímido de um rapaz que, muitas vezes, não se parecia com um príncipe de contos
de fadas por fora, mas poderia ser um herói por dentro. Buscavam encontrar o ser que
idealizaram em suas cabeças e, por isso mesmo, voltavam mais tristes que antes.
Os homens, com a mente fechada para as mulheres, sorrisos nos lábios e frescor no
olhar, sonhavam em apenas chamar a atenção dos amigos desfilando com algum ideal
de beleza fabricado por um programa de computador e negavam atenção para essas
divindades que são os seres femininos, em detrimento do que poderiam encontrar graças
aos seus novos carros, roupas, canetas, relógios e artificialidades em geral.
Hermes reconhecia isso nos outros por ser, ele mesmo, vítima de seu ego e portador
desse comportamento por anos a fio...
Na noite de 31 de dezembro de 2007, Hermes jantou, bebeu seu agradável vinho
branco de qualidade duvidosa, porém que amava, e deitou-se.
Sua mente navegou para a terra dos sonhos, mergulhou profundamente em seu ser
inconsciente e deparou com o que veio a chamar posteriormente de ―re-nascimento
existencial‖.
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O homem estranho iniciara uma resposta. Hermes pediu, então, para consultar seu
computador, o que lhe foi permitido.
Abriu-o, digitou algo e uma enorme tela se abriu à sua frente. No entanto, essa tela
refletia sua alma e o universo que nela havia.
Nessa tela estavam representados diversos departamentos que faziam parte de sua
existência humana. Havia vários labirintos com seres multicoloridos vivendo neles.
Observara, também, seres aprisionados dentro desses labirintos.
Esther, sua filha, pediu-lhe para que não soltasse esses seres. Dizia para ele soltar
apenas o Devainhuno.
Hermes, então, digitou novamente algo em sua tela existencial e tudo se tornou o
universo. Via-se só em meio a bilhões de mundos e estrelas, assim como seres de todos
os micro e macrouniversos.
Um grande pássaro desenhado com lápis de fogo de cor vermelha e dourada abriu
suas enormes asas e voou nesse infinito universo. Atrás dele, um pequeno Deus
mitológico surgiu da mesma forma que a grande fênix. O Deus, que Hermes veio a
saber muito depois, era Mercúrio, o senhor dos caminhos...
Coincidência ou não, era homônimo de Hermes.
Virou-se para ele e o encarou dizendo:
– Sou um grande transformador de existências! – e sorriu.
Na mão direita, trazia uma lança alada desenhada com a mesma cor da fênix. Disse
algumas palavras em um idioma arcaico, que Hermes não dominava. Atirou a lança no
grande pássaro e o capturou. A ave permitiu ao Deus que subisse em seu dorso.
Mercúrio, então, tirou um pequeno pedaço de papel muito branco com pautas e prendeu
nas asas do pássaro, e a ave ganhou as alturas do universo.
O Deus sorriu para Hermes e disse:
– O segredo do ser Hermes está em renascer!
E sumiu em meio às estrelas...
Hermes despertou do sonho com a mesma certeza que teve de ser visitado pelas
―presenças‖ meses atrás. Não sabia o que significava, porém percebia que estava
fazendo parte de algo maior que ele próprio e que não entendia o porquê. No entanto,
aprendera nessa nova vida que muitas vezes não precisamos entender algo para absorvê-
lo com nossas almas, aceitando, com isso, que os motivos e porquês nos serão revelados
no caminho, e não no início da jornada.
Acordou, abriu a janela e o Sol de janeiro iluminava a floresta da mata atlântica. Era
verão e sentia que algo mudara dentro de si. Por sentir isso, falou em voz alta sozinho:
– Feliz novo ano!
Monique Marie reservara um quarto num pequeno hotel no bairro de Santa Teresa.
Havia casarões antigos, artistas plásticos com seus ateliês abertos e um vasto acervo
cultural na cidade do Rio de Janeiro. Hermes desembarcou no Aeroporto Santos
Dumont, e o sorriso de Marie estava a lhe esperar.
Refrescava sua alma, trazia-lhe paz interior, e seus olhos de menina acendia o
masculino que vivia dentro de Hermes. Estava, admitiu para si mesmo, apaixonado pela
alma de Marie.
– Bem-vindo à cidade do Cristo! – disse ela ainda sorrindo.
Ele a abraçou e a beijo em meio à multidão que desembarcava na cidade. Não tinha
mais receio de demonstrar seus sentimentos, não se importava mais com a opinião dos
outros, tampouco com o modelo de relação que estavam vivendo. Para Hermes, assim
como para Marie, bastava viver o que estavam sentindo.
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Hermes sorriu, e seu sorriso tornou-se um grunhido de agonia. Algo queimava suas
entranhas, suas pernas não lhe obedeciam, seus olhos escureceram e seu corpo desabou
no deque da piscina do famoso hotel.
Havia dezenas de médicos especialistas no Brasil e especificamente no Rio, no
entanto, Hermes recusava-se a visitar qualquer um deles.
Recebeu atendimento do médico de plantão no hotel, que aconselhou Monique ir a
um pronto-socorro ou um hospital especializado.
Hermes recusou.
A febre fazia seu corpo sacudir como um bambu verde embalado pelo vento. Seu
corpo transpirava e a dor invadia seu ser. Seus músculos pareciam pegar fogo, no
entanto, Hermes aguentava e se recusava ir a qualquer médico. Marie sugeriu, depois
implorou e, por fim, o obrigou.
O médico calvo tinha cerca de 70 anos. Já deveria ter se aposentado, no entanto, não
o fizera.
Voltou da sala de exames com alguns papéis na mão. Hermes já passara por aquilo e
sabia o que lhe diria.
– Rapaz, não posso precisar ao certo o que é, mas esse mal está certamente ligado à
doenças de verão.Vocês não são daqui, certo?
Ambos acenaram com a cabeça.
– Então é isso. Aqui no Rio de Janeiro é comum, muito calor, muita gente. Vou
receitar algo que o deixará mais disposto.
Hermes não estava entendendo nada. Ou o médico era péssimo, ou não queria lhe dar
a notícia que ele mesmo já sabia. Fosse como fosse, só concordara em ir até lá para
acalmar Marie, e não via a hora de sair do consultório e nunca mais voltar.
Em retorno ao hotel, seus olhares eram interrogativos.
– Você está se sentindo melhor? – perguntou Marie com a preocupação inerente às
mulheres.
– Sim, muito melhor, a febre e o mal estar sumiram – concluiu Hermes.
– Será que aquele médico era médico mesmo? – perguntou Marie.
– Por quê?
– Sei lá, como pôde dizer que não é nada.
– Talvez, Marie, é porque seja tudo! – disse em tom de ironia.
A mulher o olhou com apreensão. Sabia do seu quadro clínico. Tocaram no assunto
apenas uma única vez, pois Hermes detestava o fato de mentir para ela. Acreditava,
nessa sua nova vida, que as pessoas deveriam ter opções, escolhas, se querem ou não
estar ao lado de alguém, e isso só é possível com a verdade.
Agora, Marie indagava-se como o médico podia dizer que a indisposição era mal de
verão! Apesar de não aceitar o prognóstico do profissional, Hermes estava visivelmente
bem. Depois, pensaria em sensibilizá-lo para procurar um especialista.
Marie era uma pessoa de percepção aguçada, que respeitava as decisões alheias, no
entanto, ainda era mulher e, como tal, muito precavida com o bem-estar físico dos que
amava.
Hermes sorriu e entrou no banho, enquanto Monique sentou-se na sacada do hotel e
deixou seu pensamento fluir... Aprendera a acessar a intuição por meio da libertação do
pensamento.
Algo lhe dizia que existia mais mistério entre ela e esse homem do que poderia
explicar. Esse mesmo algo dizia-lhe para não tentar conduzir suas vidas, deixar que os
acontecimentos se desenrolassem conforme os desígnios do mistério que nos cerca. A
vida flui pela inobservância das regras óbvias que criamos para acalentar mais nossa
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mente do que nossa alma. A voz interna lhe dizia que tudo era um empreendimento
universal e cabia-lhe aceitar isso ou não, porém jamais interferir.
Hermes voltou da ducha revigorado. Falava alto e esfregava a cabeça com
sofreguidão.
O fim de tarde quente na praia de Copacabana era um convite para um passeio, e
desceram despretensiosamente.
Marie olhava de canto de olho para Hermes, a fim de se certificar que estava bem.
Tivera o incidente havia uma semana. O gerente do hotel ofereceu-lhes quinze dias de
estadia gratuita após a recuperação de Hermes, não queria arcar com a possível
consequência de um mal-entendido ou até mesmo uma ação judicial por parte dos
hóspedes. Hermes caíra dentro do hotel e batera a cabeça. Não houve nenhuma menção
por parte de Monique ou Hermes em relação a isso, no entanto, o gerente preferiu se
adiantar a enfrentar algum tipo de problema futuro. Dessa forma, o que seria uma ou
duas noites tornou-se uma pequena temporada.
No artístico calçadão, havia meninas-moças que deslizavam seus corpos sobre a areia
chamando a atenção dos rapazes; mulheres atraentes que bebericavam caipirinhas nos
quiosques à beira-mar; e senhoras aposentadas que faziam da praia seu parque de
diversões.
Caminharam por mais de 40 minutos sem dizer uma palavra, absortos em seus
pensamentos. Vez por outra, Hermes olhava para Marie com ternura e encontrava
aquele olharzinho de canto de olho, guardando-o. Percebeu o que se passava dentro dela
e disse:
– Tenha medo não, estou bem.
– Mesmo? – perguntou apreensiva.
– Mesmo.
Sorriram, pegaram a mão um do outro e seguiram em direção ao grande Forte de
Copacabana.
Monique Marie fez questão de tirar uma foto com os belíssimos castelos de areia que
artistas locais fazem junto ao calçadão.
Aproximaram-se de um aglomerado de pessoas. Um cheiro de almíscar pairava no
ar. Uma música que Hermes conhecia era entoada e algumas pessoas começavam a
acompanhar o ritmo com as palmas das mãos. Foram abrindo caminho por entre as
pessoas até que pudessem ver o que estava atraindo a atenção de todos.
Hermes teve um nó na garganta antes de abrir um sorriso com os olhos marejados
d’água.
Aramis tocava avidamente seu instrumento, enquanto Lua dançava segurando um
pandeiro. O corpo da jovem mulher parecia conhecer os acordes antes mesmo de serem
tocados. O instrumento em suas mãos parecia extensão de seus braços, tamanha era a
graciosidade de seus movimentos. Na cintura, um fio cheio de conchas, pequenas
estrelas de cristal e pedrinhas marinhas adornavam-na com perfeição. Seus olhos
estavam fechados e seu corpo emanava uma energia que contagiava a todos. Uma
pequena fogueira bruxuleava suas labaredas no corpo da moça e nos rostos dos
presentes.
Lua escorria suor por todo o corpo. Estava orando para sua crença, e apenas Hermes,
na multidão, sabia disso. Abriu os olhos após os aplausos e as pessoas jogavam dinheiro
na areia, porém, fora de seu desenho mágico no chão, que só ela sabia o que significava,
o ―Compra meu Trampo‖, seu amigo, recolhia as notas em moedas estrangeiras e as
guardava rapidamente. Lua fixou os olhos em Hermes, que foi em sua direção.
82
A Jornada Alquímica Nigredo
Muitos dos homens que ali estavam o invejaram por isso, porém não sabiam que o
que ele nutria por Lua já transcendera há tempos o homem e mulher.
Abraçava uma amiga de caminhada que ousou, por amor à alma humana, mostrar-lhe
parte de si mesmo.
– Lua! – disse abraçando-a e erguendo-a no ar. Beijou sua face e seus lábios com a
ternura de um irmão.
– Hermes, o homem com nome de um Deus! – disse em voz alta.
Marie se aproximou com sorriso no olhar. Elas se comunicaram sem precisar serem
apresentadas e perceberam que ambas estavam a serviço de algo maior que elas
mesmas. Ambas estavam na jornada de suas almas e sabiam o que era a dor e a alegria
desta existência.
Havia algo entre as duas mulheres que as faziam parecer da mesma família. Hermes
notara e não conseguia explicar. Não eram nada parecidas fisicamente, no entanto,
davam-lhe a impressão de terem saído do mesmo ventre celestial.
Sem conseguir explicar o que via, apenas disse, visivelmente feliz:
– Marie, esta é Lua. Lua, esta é Marie.
Falaram sobre suas viagens, as descobertas dentro de suas almas e o encontro entre
ele e Marie.
Lua contara-lhe sobre sua divindade e a forma que ela encontrou de cultuar Deus,
mas não um Deus entronado pelos homens e mitificado pelas religiões, não um Deus
que punia os maus e era benevolente com os bonzinhos. Disse que procurara em todos
os cantos da ciência, nas religiões mais conhecidas da Terra e só encontrou
discriminação, opressão e ignorância a respeito do ser humano.
Lua afirmara que sentia dentro de sua alma algo tão sagrado que não podia fazer
outra coisa nesta existência a não ser segui-lo. Após perceber a discriminação e a falta
de amor que pairava sobre as religiões do mundo, resolvera ―caminhar‖ dentro de si.
Vivera um tempo com os índios no alto Amazonas, depois fora para o Peru, de lá
seguiu para o México e passou um período com a nação indígena dos Cheyennes, nos
Estados Unidos.
Munida de uma força de vontade que ela mesma desconhecia, seguiu em sua
peregrinação rumo à Europa e teve contato com pessoas que cultuavam a chamada
Deusa. Conhecera Lara, uma sacerdotisa de algo que devia ser mantido em segredo,
disse-lhe a bela mulher de cabelos vermelhos. Adentraram várias vezes as florestas no
norte da França e, posteriormente, nas terras altas da Escócia.
Após sua iniciação nos conhecimentos do mistério, Lua passara mais de cinco anos
em sua jornada interior. E um dia, após terem dançado à beira de uma grande fogueira
em noite de Lua cheia e feito seus ritos de agradecimentos, Lara lhe disse:
– Você agora deve seguir seu próprio caminho.
Veneravam a existência única bem como todos os seres vivos. E, na forma como
entendiam esse tempo de consciência, que chamamos de vida, cada ser vivente deve
seguir seu próprio caminho, e não seguir os demais, não ser domado por uma doutrina,
seja ela qual for, mas expressar o que de único existe dentro de si para que, com isso,
possa ajudar o universo em sua criação.
Lua, apesar de afeiçoada a Lara e aos que lhe serviram de guia nesta jornada, partiu.
Sua alma a trouxe novamente ao Brasil, e escolhera viver como os nômades da
Antiguidade.
Acreditava no amor como um estado a ser atingido por todo ser vivo, estado esse que
é de onde tudo e todos saíram, passando pela existência a fim de aprenderem
conscientemente o caminho de volta.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Para Lua não havia o amor entre pessoas de sexo oposto, entre mãe e filho, amigos
ou parentes. Para Lua havia apenas o amor, fosse por quem fosse. Não existia
discriminação, certo ou errado. No ―estado amor‖ havia apenas compreensão, aceitação
e plenitude de alma.
Lua era formada em filosofia e teologia, porém jamais trabalhou nas áreas.
Estudara com afinco para aprimorar seu intelecto, porém descobrira que sabedoria só
poderia ser adquirida pela alma, e não da mente. Tinha consciência de que a aplicação
de qualquer conhecimento é feita durante a jornada nesta existência, e não dentro das
salas, escritórios ou templos de concreto.
Lua era uma nômade pelo mundo, porém uma aventureira dentro de sua alma.
Aprendera a ler os sinais, sabia ler o alfabeto da linguagem interior e isso era poder.
Mas, como todo poder, só deveria ser usado em beneficio do todo, nunca em um
movimento egoísta, autobeneficiando-se em detrimento dos demais.
Lua era uma sacerdotisa, porém não venerava uma religião, e sim o Deus sagrado
que vivia dentro de seu ser.
– Conte-me tudo, não omita nada! – disse sorrindo para Hermes.
Ele relatou suas andanças e descobertas, e a bela mulher à sua frente, vez por outra,
dizia algumas palavras em um idioma muito antigo, que apenas ela entendia. Era um
ritual de agradecimento por ver outro ser humano descobrir sua própria alma.
Marie também narrou suas aventuras bem como a descoberta de seu plano
existencial.
A praia, a essa altura, estava quase deserta. As pessoas tinham voltado para seus
hotéis e apartamentos.
As pessoas da pequena tribo de Lua estavam deitadas, alguns dormindo outros
admirando o céu estrelado.
Aramis, ainda sentado, dedilhava uma antiga canção cigana em seu instrumento.
Marie virou-se para Lua e disse:
– Vamos continuar a conversa em nosso hotel?
Lua aceitou. Atravessaram a Avenida Atlântica e entraram no hotel. Pediram uma
garrafa de vinho espanhol e ―caminharam‖ noite adentro.
Lua lhes falava da magia, do poder que está ―escondido‖ dentro do ser humano e
sobre o fato de nenhuma religião divulgar isso para ter o controle de seus fiéis.
– Criaram o certo e o errado, dividiram as pessoas entre boas e más. Utilizaram-se de
critérios pouco nobres para classificar quem entra no reino de Deus ou não.
– Esqueceram-se, com isso, do amor! – disse Marie.
– Exatamente!
– Vocês não acham que isso foi feito por ignorância? – perguntou Hermes.
– Não creio – disse Lua. – Acho provável que foi por poder sobre os demais.
– Você acredita que ―eles‖, todos os que se intitulam doutrinadores, sabem o
caminho e o omitem? – continuou Hermes.
– Não, penso que estão com a mente tão fechada por seus egos que apenas aceitam o
que está escrito em uma folha de papel, redigida sabe-se lá por quem, sem questionar.
– Questionar custa muito à existência.
– Exatamente, Marie. É infinitamente mais fácil seguir sem questionar.
– Já perceberam que pessoas que questionam, ou são absorvidas pelo sistema ou são
excluídas dele? – inquiriu Marie.
– Eu... – disse Hermes com sinceridade – nunca questionei nada até meses atrás.
Seguia a manada e era feliz, quer dizer, pensava ser feliz com isso.
– Negligenciava tudo o que era importante para você? – perguntou Lua.
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Eu não sabia o que era importante para mim... – disse olhando para Marie.
– Em algum momento de nossa vida somos todos seguidores, bestas que andam sem
questionar ou que se isolam dentro do repetitivo conhecimento que os templos de ensino
vendem a todos – finalizou a inteligente argeliana.
– Eu acreditava que estava fazendo o certo, o correto, e que a vida era assim mesmo.
– Certo e correto para quem? – era Lua quem falava. – Provavelmente você era
muito bem quisto pelo seu entorno, mas sua alma chorava lágrimas de sangue...
Ele acenou afirmativamente com a cabeça.
– Eu também já passei por isso.
– E eu também – disse Marie.
– Podemos estar todos tão equivocados assim? – perguntou sinceramente Hermes.
– Sim... Podemos – disse Lua e continuou. – Nosso equívoco é quando matamos o
novo que nasce em nossas crianças, acreditando que estamos fazendo o melhor para
elas, criamos sonhos, expectativas que suas almas não têm como objetivo existencial
cumprir.
– Moldamos tudo e todos, criamos rótulos, pois coisas e pessoas sem rótulos
provocam ondulações no lago da sociedade – concluiu Marie.
– A necessidade social de sermos aceitos, mesmo que por pessoas que não se
importam verdadeiramente conosco, nos faz sacrificar nossos dons de realização,
abdicar de nosso poder interno e buscar o sagrado externamente.
Lua terminou de falar e esvaziou a taça. Marie fez sinal para que o rapaz do bar
trouxesse outra garrafa.
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A Jornada Alquímica Nigredo
demais seres que habitavam o planeta. Tinha a convicção de que tudo estava sob seu
controle, e o que não estivesse não valia a pena dar atenção, pois provavelmente não era
nada importante ou admirável.
Lidava havia anos com escritores que mais lhe pareciam loucos do que homens e
mulheres que rendiam para si e para a empresa em que trabalhava milhões e milhões de
dinheiro.
Especulava se os mesmos sabiam curtir a vida como ele. No entanto, sempre que
conversava um pouco mais com alguns deles, eles lhe pareciam completos, emanavam
uma energia de equilíbrio.
Se John observasse melhor as pessoas, veria que não apenas os escritores emanam
essa aura, mas todos os que seguem suas almas. Perceberia no chef de cozinha no
exercício da profissão, na professora que ama o que faz e planta uma nova semente
dentro de cada criança, na de um bailarino que ―voa‖ nos palcos, não obstante as dores
de seus pés de tanto ensaiar, e em um médico, ao evitar a morte de um corpo.
Todos os que ousarem seguir suas almas e atravessarem os desertos que isso implica
acessarão o poder de mudar suas existências, passarão de seres repetidores para seres
criadores.
Cada ser humano que se atrever a realizar esta jornada, talvez não terá tantos elogios
dos que o cercam por interesse, no entanto, comungará com o sagrado que habita toda
forma de vida existente.
Lua ria alto e Marie a acompanhava. O relógio, na recepção do hotel, marcava 4h30
da madrugada. Lua levantou-se para ir embora.
Hermes disse para ela ficar, e Marie concordou. Lua aceitou o convite, estava
cansada e já bebera mais do que de costume. Assim sendo, subiram os três até a suíte do
casal.
Hermes desmontou no sofá, e Monique Marie e Lua dividiram a cama.
O vinho fizera efeito, e foram levados, tão logo se deitaram, para o mundo dos
sonhos, o mundo da infinitude do inconsciente, onde invariavelmente encontramos
quem somos e os porquês de nossa alma.
A luz entrava furtivamente pela janela entreaberta. Lá fora, algumas buzinas
deixavam claro que estavam em uma cidade grande. No entanto, o barulho de ondas
ferozes quebrando na areia também anunciava a presença do divino, da criação, da força
estonteante da natureza.
Hermes e Lua dormiam, enquanto Monique ouvia a respiração de ambos. Tinha a
certeza de que encontrara pessoas como ela, e que não fora por acaso. Estava certa,
também, de que suas vidas se cruzaram por um motivo maior do que podiam ver.
Mergulhada nesses pensamentos, adormeceu.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Doze
L
ua os convidou para acompanhá-la em uma visita pouco ortodoxa. Viera ao Rio
de Janeiro após uma revelação de sua alma. Precisava encontrar Malaki, um
homem que vivia em retiro havia anos, e que fora iniciado no estudo do
mistério há tanto tempo que era impossível precisar. Ele ousou seguir o chamado de sua
alma e abdicou do convívio social em detrimento de seu ser e de seu plano existencial.
– Convido vocês a virem comigo ver alguém que há muito preciso encontrar – disse
Lua, por telefone, a Hermes.
– E esta pessoa, quem é? – perguntou Hermes por entre os chiados da ligação.
– Alguém que está no meu plano existencial.
– Sei...
– Hermes, venha comigo e traga Marie, creio que será importante para todos.
– Certo. E quando?
– Passo pelo hotel de vocês em uma hora, partiremos após o meio-dia.
Passaram-se alguns dias desde a noite em que Lua dormira no hotel.
Hermes insistira para que a mulher, amiga e guia ficasse com eles. Poderiam trocar
de suíte, o hotel dispunha de acomodações com várias camas. Lua, porém, fora
categórica ao afirmar que se sentia melhor dormindo debaixo do céu de estrelas do que
debaixo do concreto. Gostava de apreciar o céu tarde da noite até adormecer.
Marie concordou, desde que viesse tomar café todas as manhãs com eles. Queria
saber mais a respeito de Lua, sentia que tinha muito a aprender com a jovem e sábia
mulher.
John, algumas vezes, trocara algumas palavras com Marie e Hermes nas
dependências do hotel. Perguntara quem era a moça que os acompanhava, pois seu rosto
lhe era familiar.
Foi Hermes quem respondeu:
– Uma peregrina pela existência humana e, para mim, muito mais que uma amiga.
– Um tanto atraente esta peregrina – disse John com ar sarcástico.
Mas o olhar lançado por Marie o fez parar por ali mesmo.
Hermes o convidou para vê-la dançar qualquer dia na praia.
Ficou combinado, então, que antes de irem embora, sairiam juntos para ver Lua e sua
dança.
Lua fora pontual, uma hora após o telefonema estava na porta do hotel.
Saíram com um carro alugado, dirigido por Hermes, em direção a uma velha serra
que circundava a cidade do Rio de Janeiro.
Hermes dirigiu por cerca de duas horas e chegou a um lugar chamado Raiz da Serra.
– Recebeu esse nome exatamente por terminar ali a urbanidade da cidade e começar
o habitat das forças da Deusa – disse Lua aos amigos notando o olhar interrogativo de
ambos.
A serra fora aberta havia séculos, quando Dom Pedro e sua família construíram a
residência imperial na cidade que levaria seu nome.
Petrópolis estava encravada em meio às pedras e montanhas. O verde da cidade em
contraste com as belas construções imperiais era o ambiente quase perfeito para a então
família imperial da época. Seu verde recriava o clima que lembrava Lisboa no verão e
Sintra no outono.
A estrada fora abandonada havia muitos e muitos anos, apenas alguns poucos e
antigos operários de uma fábrica viviam em sua margem, e nada mais.
A serra continha árvores seculares e pedras milenares.
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Malaki, o homem que vamos visitar, recebeu, por intermédio de uma antiga
sacerdotisa, a mensagem de que deveria se retirar do convívio com os demais e se
refugiar aqui.
Lua falava com profundo respeito sobre o homem.
– E como você o conheceu?
– Não o conheço, Hermes.
– E podemos chegar assim?
– Ele sabe da minha vinda.
– Hã... – disse Hermes, sabendo que Lua não responderia, ao menos de imediato, a
suas indagações.
Monique estava maravilhada com a exuberância da natureza. Havia árvores que as
copas não se podiam avistar, pássaros exóticos e comuns em revoadas de um lado para
o outro.Vez por outra, um bando de micos se pendurava nos cipós enormes das árvores
e atiravam frutas silvestres nos três.
Caminhavam a pé, seguindo uma velha estrada de ferro desativada no meio do século
XX. Flores do campo cobriam todo o trilho, formando um enorme jardim multicolorido
e repleto de borboletas.
Após três horas de caminhada, resolveram descansar. Marie se jogou no canteiro de
flores do campo, que subiu rumo às copas das árvores. Era um lugar de concentração
para dezenas de espécies de borboletas, azuis, roxas, vermelhas, brancas, amarelas,
grandes, pequenas e minúsculas.
Os olhos de Lua ficaram paralisados, e disse em voz baixa:
– Fiquem bem quietos e ouçam o som da natureza, é uma música... Deitem no chão.
Os amigos o fizeram e, em alguns minutos, estavam todos cobertos de borboletas.
Marie chorava de emoção, enquanto Hermes sorria discretamente, pois havia borboletas
até em seus lábios. Ficaram ali por algum tempo até que as lindas criaturinhas
erguessem um voo único, deixando-os todos à mostra novamente.
– Vocês ouviram? – perguntou Lua.
Hermes e Marie se olharam e balançaram a cabeça negativamente.
– Que pena, ela estava cantando.
– Quem estava cantando, Lua?
Perguntou Hermes, pois Marie, apesar de não ouvir, sabia.
– A natureza, Hermes. A natureza estava entoando um som, por isso todas as
borboletas se reuniram aqui, para ouvir, e não para pousar em nós – sorriu e concluiu. –
Vamos indo que ainda falta bastante.
Hermes nunca visitara uma floresta como aquela. Nada era desconectado, nada tinha
sido mexido pelo homem. Questionara como era possível, devido à presença humana
tão próxima, porém sabia a resposta. Aceitasse ele ou não, o fato era que a mata tinha
algo diferente, uma energia protetora pairava sobre a mesma. Marie sentia o mesmo,
porém não necessitava fazer tantas perguntas quanto Hermes, para ela bastava sentir.
– Você crê que o tal Malaki se zangará com nossa presença? – perguntou Hermes.
– Ele me pediu para trazê-los.
– Você não o conhece, mas ele pediu para que você nos trouxesse?
– Exato. Você sabe muito bem como isso funciona, Hermes, não sabe? – Lua
afirmou com segurança.
Hermes sabia perfeitamente como acontecia, já experimentara algo parecido com as
―presenças‖ que o visitaram.
Experimentara tantas demonstrações do que está por trás de tudo o que podemos ver
que poderia escrever anos a fio sobre isso e não conseguiria explicar. Sabia
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A Jornada Alquímica Nigredo
perfeitamente que há o que se pode explicar e o que não se deve explicar, mas sim
vivenciar. Há o que deve ser compreendido com a mente humana e o que deve ser
sentido pela mente supra-humana, o que somente nossas almas têm a capacidade de
compreender.
Chegaram a um ponto dentro da mata de onde se podia avistar a cidade do Rio de
Janeiro a quilômetros de distância. Nessa altura podiam contemplar todas as copas das
árvores se misturando em matizes de verde indescritíveis.
Olharam um para o outro e perguntaram à Lua.
– Você tem um mapa ou coisa parecida?
– Não – foi a resposta com um sorriso nos lábios.
– Você sabe aonde estamos indo? – perguntou Hermes.
Ela balançou a cabeça afirmativamente pegando algumas pedras e mantendo-as na
mão. Após dizer algumas palavras na língua morta que Hermes tanto gostaria de saber
qual era e o que significava, um gavião pousou em seu ombro e depois voou.
Lua virou para os amigos e disse:
– Ele sabe que estamos aqui, é só seguir em frente.
O barulho ensurdecedor da cachoeira era melodia dentro da mata. Animais de todas
as espécies habitavam o local.
A queda-d’água formava uma figura que ora parecia o rosto de uma mulher, ora de
uma quimera.
Um calafrio percorreu o corpo de Hermes quando viu a figura formada na queda-
d’água. Os seus olhos inteligentes de Marie cerraram-se por um minuto em respeito ao
que via. Lua cantava na tal língua antiga uma canção que soava tranquila aos ouvidos de
Hermes.
Após alguns minutos, um pequeno menino trajando apenas a parte inferior e descalço
apareceu.
Lua dirigiu-se ao menino como a um antigo conhecido.
– Você pode nos levar até ele?
O menininho sorriu afirmando que sim.
– Vamos segui-lo! – disse Lua.
Adentraram, então, por uma pequena trilha escorregadia à beira da enorme cachoeira.
À direita havia dezenas de árvores e escritos rupestres nas pedras.
Desceram uma enorme árvore por um cipó e caminharam por mais 30 minutos até
chegarem ao que Marie posteriormente chamou de ―pequeno céu na terra‖, uma clareira
aberta naturalmente dentro da mata, algo que fora arquitetado pela própria natureza,
como à espera de alguém.
Um pequi, árvore centenária, abrigava uma construção natural, dando-lhe um aspecto
mágico. Fora detalhadamente desenhada por alguém, pensava Hermes.
Marie já havia visto algo parecido nas florestas africanas em sua primeira infância.
Seus pais não participavam das crenças do povo da África, no entanto, os nativos
chamavam tais formações em grandes árvores de ―A morada dos Deuses‖, e seus rituais
eram sempre realizados aos pés dessas grandes obras arquitetônicas da natureza.
– Foi, realmente, projetada e realizada por alguém, Hermes, porém não foi por mim.
A voz saiu por de trás do grupo. Hermes assustou-se, pois a afirmação estava apenas
dentro de sua cabeça.
O homem tinha o cabelo comprido amarrado em uma longa trança, seu rosto tinha o
aspecto de uma pessoa com menos de 40 anos, mas sabiam todos ali presentes que sua
idade cronológica era mais que o dobro de sua aparência. Seu corpo era ereto, seus
olhos eram vivos e atentos até mesmo aos pequenos detalhes, como uma folha no chão
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A Jornada Alquímica Nigredo
sendo carregada por uma minúscula formiga. Sua voz era carregada de ternura, suas
mãos, vez ou outra, faziam movimentos desenhando símbolos no ar.
Marie observou que eram mãos muito bem desenhadas. Ele vestia uma túnica de cor
escura e sua pele era alva.
– Bem-vindos ao centro de minha existência. Há muito esperava por você, Lua.
– É uma experiência e uma honra existencial conhecê-lo, grande guia – disse Lua
baixando-se em sinal de reverência.
O homem foi até ela e a levantou, dizendo:
– Não há um grande guia, filha... Não há um ser humano que mereça reverência,
apenas a mãe e o sagrado merecem tal ato. Há muito também anseio por conhecê-la,
Lua.
Trocaram algumas palavras em outro antigo idioma e Malaki foi cumprimentar os
acompanhantes de Lua.
Olhou profundamente para Marie e depois disse:
– Tudo isso, pequena guerreira africana, é passageiro. Tudo o que você viveu é por
um motivo maior e, não fosse por isso, não estaríamos nos conhecendo. Sei que
aprenderei muito com sua alma.
Disse uma frase em mais um idioma morto, só que desta vez Marie ficou surpresa
por entender.
Aproximou-se de Hermes e tocou sua face. Olhou dentro de seus olhos, afastando o
cabelo de sua testa, dizendo em outro idioma que remontava à era do império egípcio.
– Mesmo que esta carne morra e que sua mente se desligue, o mais importante é ter
renascido. Sua consciência o seguirá para onde quer que você vá, rapaz, e em que forma
você estiver existindo. A única coisa que nos mortifica é a não consciência de quem
somos e de nosso plano em cada existência, nada mais há para lhe ser dito – concluiu
Malaki.
Sorriu e Hermes surpreendeu-se ao responder na língua morta dos egípcios.
– Tenho buscado caminhar dentro deste plano desde que me despertei do meu
sonambulismo. Tenho tentado segui-lo a fim de cumprir minha parte com o universo.
Não sei ao certo se tenho conseguido, mas tenho tentado.
– Segues tua alma agora? – perguntou o sábio.
– Sim, Malaki.
– Então descanse, há tempo para tudo embaixo das estrelas.
Virou-se para Lua, após as apresentações, e disse:
– Venham para dentro, temos muito o que fazer.
Os visitantes se olharam. Tinham a verdadeira impressão de que se conheciam.
Todos tinham certeza de que não havia espaço para omissões neste encontro. Malaki, o
sábio, sabia como se comunicar com suas almas, e suas almas, misteriosamente, se
comunicavam com ele sem nenhum esforço mental. Estavam sob o domínio do sagrado,
que tudo e todos integra.
Malaki nascera no fim do século XIX. Presenciara as maravilhas do século XX,
como o automóvel, o telefone e o surgimento da televisão, porém fora testemunha e
participara diretamente das duas primeiras guerras mundiais, uma como soldado e outra
como oficial.
Fundara uma pequena empresa na Bélgica, sua terra natal, que fornecia suprimentos
para o exército dos aliados. Após a queda de Hitler, aceitou o convite de um amigo do
exército americano e entrou para uma sociedade de algo chamado ―computadores‖.
Durante mais de uma década, Malaki crescera sua empresa na Europa, tornou-se
fornecedor das forças armadas de diversos países, incluindo França, Itália e Inglaterra.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Não foi difícil conseguir um contrato com o governo americano para fornecer,
primeiramente, para as bases americanas na Europa e, posteriormente, dentro dos
Estados Unidos.
Com os ganhos desses empreendimentos, Malaki pôde investir em pesquisas de
novas tecnologias e, quando o primeiro computador pessoal foi lançado, a MK
Computers era uma das empresas com maior número de patentes no segmento dentro e
fora do território americano.
Começou a comprar terras no Norte do Brasil nos anos 70 e não parou mais.
Um dia, frente ao seu poderoso império, todas as vendas lhe foram tiradas dos olhos.
Encontrara, por acaso, um ex-combatente belga que servira com ele. O homem a quem
devia sua vida andava pelas ruas de Paris levando uma mensagem a quem quisesse
ouvir. O governo deu-lhe uma pensão por insanidade mental, algo muito comum aos
que se dedicam ao oficio de tirar vidas, seja em nome de uma bandeira, ideologia ou
crença. Contudo, ao ouvir as palavras do belga, percebera que algo estava errado com
sua existência.
Jantara em palácios e em trincheiras, conhecia o cheiro da realeza, porém lhe era
muito próximo o da pobreza. Testemunhara milagres, mas também presenciara a morte,
inclusive por suas próprias mãos.
Dera conselhos a não menos que uma dezena de presidentes de vários países, e algo
dentro de si queria mais. Estava com 69 anos quando se deparou com o ex-combatente,
que lhe disse uma única frase:
– Malaki, você não veio aqui para isso. Você veio aqui para ajudar o universo a
iluminar, e não a escurecer, a vida humana.
O homem terminou a frase, cruzou uma avenida da capital francesa, e foi atropelado
por um caminhão. Cinco minutos depois, morreu o ser que há anos lhe salvara a vida.
Malaki, não tinha mulher nem filhos, dedicara sua vida à ―família‖ que conhecia:
suas empresas.
Dispunha de todos os recursos que um ser humano poderia almejar, no entanto, não
dispunha de sua existência. Não havia conseguido colocar vida dentro do seu tempo de
consciência, era um ser sem um propósito.
O que se sucedeu após o acontecido ninguém soube ao certo, havia apenas vestígios
de quem fora Malaki.
Fora diagnosticado com uma doença rara que destruía todas as doenças que por
ventura invadissem seu corpo e, não havendo doença alguma, o excesso de defesa
atacava os órgãos sadios. Em seis meses, até os médicos que cuidavam de chefes de
estado o haviam desenganado.
Recebera, em sua mansão, uma carta endereçada pelo amigo belga no dia do
reencontro e também de sua morte.
Na carta havia apenas uma instrução:
―Procure a mulher que vive na beira do rio, lá você encontrará as respostas para sua
existência.‖
Gastou uma fortuna tentando descobrir onde era o tal rio e onde morava a mulher.
Como não obteve sucesso, e com o agravamento de sua doença, vendeu todas suas
ações e empresas, decidido a realizar a primeira viagem por prazer na vida. Já que
morreria, não gostaria de deixar o mundo sem ter feito algo por puro prazer.
Malaki não era um homem de grandes estudos, mas sim um guerreiro. Venceu duas
guerras, se é que alguém vence quando se trata de guerra e tornou-se um homem
92
A Jornada Alquímica Nigredo
milionário graças à sua garra e sua força interior. Agora, porém, perguntava onde estava
essa mesma força que o trouxera até aquele ponto em sua existência. Perguntava-se
onde fora parar o homem que ele tinha sido até então.
As dores no corpo o faziam gemer durante noites a fio. Certa vez, clamou
profundamente pela morte, por causa do sofrimento que droga alguma conseguia aliviar.
Lembrou-se de que fora baleado mais de duas vezes durante as guerras, porém nada
jamais o fizera sofrer tanto como seu próprio corpo.
Estava sentado na grande embarcação que cruzava o Rio Negro, rumo ao Amazonas.
Um índio, que trabalhava como garçom, disse-lhe em sua língua natal, porém Malaki o
entendeu sem saber como.
– Quem você procura está nas margens do rio.
A cabeça do soldado, que se tornou empreendedor e agora estava morrendo, virou
sem entender direito o que se passava. Tinha a sensação de estar drogado, porém era
algo diferente.
Na margem do grande Rio Negro, uma mulher indígena de apenas um metro de
altura lhe acenou com a mão. Ele pediu para descer do grande navio, e fora atendido
somente por ser quem era, pois caso contrário nem sequer seria ouvido pelo capitão da
embarcação.
Aproximou-se da índia, que lhe falou na mesma língua que o garçom. Malaki, ainda
sem entender como, podia compreendê-la.
– Você passará sete luas cheias aqui, depois deve seguir para onde o homem Cristo
abre os braços e nunca descansa.
Sete luas cheias se passaram. Malaki já não tinha certeza se estava vivo ou morto, se
estava drogado ou lúcido, se estava sonhando ou acordado. As dores pelo corpo haviam
aumentado, porém seu espírito estava em outro lugar.
A grande fogueira no meio da mata amazônica era aterrorizante para Malaki. A tribo
guerreira falava em uma língua estranha, e apenas a mulher se comunicava com ele.
Bebera várias poções, e a mulher lhe perguntava:
– Você está pronto para deparar com seu maior medo? Até transcendê-lo, você será
apenas uma cabeça que pensa que pensa, e pensa que vive, porém não faz nenhuma
dessas duas coisas verdadeiramente.
O homem queria responder, mas faltava-lhe força. Sabia que o fim estava próximo.
Estava sentado embaixo de uma árvore mais antiga que a própria humanidade, seus
frutos caíam ao seu redor e o rio fazia um estranho barulho.
A mulher sentou-se a seu lado e continuou falando.
– Você veio a este mundo para lutar outra guerra. Você está fora de seu plano
existencial, por isso está morrendo.
– Mas o que eu tenho de fazer? – foram as únicas palavras de Malaki.
– Você precisa morrer e renascer.
– Estou morrendo... – pensou em meio às dores que lhe faziam ranger os dentes.
– Se não vivemos nosso plano existencial, se não cumprimos nossa parte com o
universo, o espírito mata o corpo para tentar outra vez.
Não entendia o que a velha índia lhe dizia... Se tivesse de morrer, que fosse rápido,
assim a dor passaria.
– A dor física pode passar com a morte do corpo, porém a da alma seguirá com você.
– Quero que pare a dor! – conseguiu dizer.
A índia colocou um líquido amargo como fel em sua boca e, em seguida, tirou uma
serpente de uma bolsa rústica feita de couro. O animal brilhava à luz da fogueira.
93
A Jornada Alquímica Nigredo
Malaki o olhou, e seus olhos congelaram de medo. A serpente o encarava sem mexer
um músculo de seu sinuoso corpo.
O homem tentou, instintivamente, se arrastar, e a poderosa mão de um guerreiro
indígena o segurou embaixo da árvore da vida. A serpente deslizou sobre seu colo, ficou
em pé na sua frente e picou-lhe no pescoço, na mão direita e no peito. Em seguida,
fitou-o demoradamente e, enquanto o líquido percorria suas veias, voltou para a bolsa
da anciã indígena.
O veneno bombardeou suas têmporas, o ar faltou nos pulmões e Malaki perdeu a
consciência...
94
A Jornada Alquímica Nigredo
– A experiência do éter, de voar sem corpo, de ver as coisas como foram criadas, e
não como fomos educados a vê-las.
O menino intrigava Hermes, e ele perguntou:
– Por exemplo?
– Qual é a cor desta árvore? – perguntou o pequeno aprendiz do mistério.
– Verde, óbvio! Há alguns matizes de mel e...
O menino ria e brincava com um mico-leão-dourado que pulava de ombro em
ombro.
– Deixe de ser bobo, venha cá que vou lhe mostrar.
Hermes obedeceu, e o menino subiu em uma pedra para poder ficar na altura dos
olhos do homem.
– Feche os olhos por um instante.
Hermes o fez, e a criança colocou a mão sobre a testa do homem e disse algumas
palavras no arcaico idioma.
– Pode abrir!
Ao fazê-lo, Hermes podia ver a árvore e toda a vegetação ao seu redor, no entanto,
eram apenas suas formas que via. As cores tinham desaparecido, as árvores estavam ali,
o menino, até o miquinho, mas não havia cor alguma. Vislumbrava apenas os traços
como em um esboço artístico.
– O quê?
– Agora quer vê-las como sua alma vê?
Hermes acenou afirmativamente, e o menino colocou novamente a mão sobre sua
cabeça, retirando-a em seguida.
– Pode abrir – disse o sabiozinho.
Hermes não conseguia enxergar nitidamente, mas aos poucos as imagens foram se
formando. Tudo era dourado, tudo era cor de chamas ardentes, as folhas, a árvore, o
menino e até o macaquinho era uma chamazinha pulando de um lado para o outro nas
costas do menino.
– Lindo!
Foi a única palavra antes de as lágrimas jorrarem em seu rosto. Olhou para suas mãos
e eram chamas douradas.
O menininho ria alto, subiu na pedra e colocou a mão na cabeça do homem
novamente, dizendo:
– Vamos indo, senão atrasamos os preparativos.
Hermes não podia andar, estava maravilhado demais com o que vira. Havia
presenciado algo mágico por trás do que ele enxergava com seus olhos meramente
humanos.
O menino já estava recolhendo as ervas e falando com os bichos ao seu redor,
enquanto Hermes não conseguia pronunciar ainda uma única palavra, a não ser o
adjetivo ―lindo‖!
– Como pode isso?
– Liga não, isso foi só para você ver que nada é o que parece quando olhamos com os
olhos da alma.
– E como você sabe dessas coisas?
O menino sorriu e disse:
– Ora, todo mundo aqui sabe dessas coisas!
Quando acordou, Malaki estava dentro de uma grande oca, seu corpo estava
dolorido, mas a dor passara por completo.
95
A Jornada Alquímica Nigredo
Duas semanas depois, Malaki chegou ao Rio de Janeiro e fora recebido por Ramona,
a mulher de traços egípcios tinha a fisionomia forte, séria e compenetrada, Não disse
uma palavra durante todo o trajeto.
Chegara às portas da grande floresta, fizera uma oração no mesmo idioma que a índia
do Amazonas, e adentraram-na.
Durante sete anos, Malaki fora iniciado e aprimorado nas artes secretas do mistério.
A única coisa que lhe foi dita durante todo o período foi para respeitar a primeira grande
regra: Não usar o poder em benefício próprio.
Seria a primeira vez, em séculos, que um homem teria acesso aos segredos do
mistério. Ramona estranhara, a princípio, quando recebera a mensagem de sua alma
dizendo quem assumiria seu lugar como guardiã dos mistérios e da floresta. Ao realizar
um ritual para a confirmação da mensagem, o mistério lhe falou novamente sem deixar
dúvidas.
Um ser do sexo masculino estava sendo preparado por uma sacerdotisa que vivia à
beira das águas ancestrais do Amazonas, e quando ele chegasse, Ramona deveria
transmitir-lhe todo o conhecimento do mistério, assim como sua antecessora o fizera,
alinhada com a vontade do universo. Ramona obedeceu e, quando terminou, sete anos
depois, o homem ganhara sua confiança e simpatia.
Depois disso, em uma noite sem Lua, mas com grandes acontecimentos astrais,
Ramona deitou-se na raiz da árvore que lhe servira de morada por quase um século e
partiu... Devolvendo o corpo para a terra exatamente como lhe fora dito.
Desde então, Malaki se dedicara com afinco ao estudo do mistério e à prática do
mesmo. Descobrira que a morte nada mais é que um renascimento, porém para termos
acesso a esse renascimento, precisamos ampliar nossa consciência a ponto de expandi-la
e fundi-la com a do próprio mistério.
Foram-lhe revelados os três primeiros estágios para aprender a controlar o relógio
existencial e, com isso, decidir quanto tempo desejaria viver neste universo humano
sem a mortificação e o envelhecimento do corpo.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Descobrira que, através da alma, acessando sua sabedoria, podemos falar qualquer
idioma em qualquer lugar com qualquer ser vivo, seja animal, mineral ou vegetal.
Tivera longos ensinamentos sobre a história do planeta com rochas e seres que vivem
aqui por mais tempo que os humanos e, por fim, começara a receber a visita das
―presenças‖ que lhe diziam o que fazer, quando sua alma estava em conflito com sua
mente ainda humana.
Os ensinamentos do mistério não pertenciam a ninguém, e pertenciam a todos ao
mesmo tempo.
Teve acesso aos grandes livros do mistério e estudou-ou, livros escritos desde o
início das antigas civilizações humanas e que nunca tinham sido divulgados a ninguém
que não os iniciados. Mesmo os já caminhantes na jornada da alma deveriam ter acesso,
paulatinamente, a esses conhecimentos, pois, caso contrário, poderiam ser confundidos
pelo ―devorador de almas‖, o que a psicologia humana chama de ego.
O ego cega nossa visão do mistério, nos torna preconceituosos e faz a mente humana
sentir-se superior. Quando isso acontece, o poder do mistério volta-se invariavelmente
contra o ser que quis se beneficiar exclusivamente do mesmo e experimenta-se o que
chamamos de morte.
Malaki estava se preparando para passar adiante o que lhe foi dado, mas que não lhe
pertencia. Preparava-se para deixar o corpo e renascer rumo a uma nova experiência
dentro do mistério.
As estrelas já haviam caminhado no céu até cederem lugar a outras. Lua despertara
silenciosamente e fizera suas orações. Malaki surgiu em sua frente e fez um sinal com a
cabeça para que ela o seguisse, e Lua o atendeu.
Caminharam silenciosamente dentro da pequena trilha na floresta, subiram um
grande aclive onde nascia o rio, que formava depois de um longo percurso, a cachoeira
da quimera. Atingiram o cume às 5 da manhã. Nesse horário, segundo a tradição do
mistério que Lua e Malaki serviam, forças opostas se encontravam. Luzes e sombras
estabeleciam, nesse momento, o pacto da eternidade, o que os orientais chamam de yin e
yang, os dois lados da alma universal em perfeita harmonia, em comunhão com o todo
para um propósito maior.
Malaki falava no idioma antigo que todos os iniciados conheciam, e Lua não era uma
exceção.
– O que vemos aqui, Lua, é a perfeita comunhão, onde o poder reinante, a noite, cede
espaço para o próximo, o dia, que reinará até o momento em que noite assumir
novamente. Se houvesse um ego universal, ele impediria a plenitude do mistério, pois
não cederia espaço ao novo.
– É necessário, grande sábio, ceder espaço? Sempre?
– Mais que ceder espaço, Lua, é preciso compreender que no universo não existe
uma única força dominante, não existe um reino nos moldes humanos. Um dos
principais segredos é o fato de o mistério ser o senhor e também o servo de si mesmo,
porém sempre com um objetivo maior que apenas impor ou reinar sua vontade.
– E qual seria?
– Evolução, Lua.
– Precisamos continuar na jornada até a evolução completa?
– Não existe um fim para evolução, a evolução é seu próprio fim. Observe –
continuou Malaki – como há uma força única que se divide entre as sombras e a luz.
Não há diferença entre uma e outra, apenas formas de existir diferentes, mas nem por
isso sujeitas à forma humana de ver as coisas.
– Você quer dizer o ―bem‖ e o ―mal‖? – indagou Lua.
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Sim, filha. Esse conceito nos distancia da essência natural das coisas.
– Onde tudo nasce?
– Não, mas onde tudo é.
Malaki puxou-a para mais perto de si e desenhou no chão um símbolo que
significava a quaternidade criadora. Ajoelhou-se e, com as mãos moldando símbolos no
ar, cerrou os olhos.
Lua o seguiu e cerrou também os olhos, e sua alma começou a vislumbrar o que
chamou de o início de tudo.
Havia uma grande força representada pelas sombras, porém sem nenhuma
possibilidade de manifestação. Havia ainda outra grande massa de puro potencial sem
cor alguma, apenas uma grande luz e seres que habitavam ambas as forças, contudo, que
não existiam em lugar algum, apenas eram.
As forças aproximaram-se atendendo a uma voz interior que impera por trás de todas
as coisas: a voz do criador, que é tudo, mas que também é nada.
Os potenciais em contato um com o outro, e por serem uma forma de energia, se
reconheceram através do seu oposto. Assim, as sombras e os seres que nela habitavam
tiveram consciência de quem eram e a luz com os seus seres, idem.
– O potencial das sombras e a força da luz não estão desconectados! - dizia Malaki
durante a experiência mística. – Só podemos atingir nossa plenitude quando abdicarmos
da separação das sombras e da luz – concluiu.
Lua ousou a primeira pergunta em sua mente-consciência:
– E por que insistimos em separar? Por que não aceitamos toda nossa plenitude?
– Pelo fato de todos se renderem às chamadas leis da sociedade humana. Por
olharem para fora, e não para dentro – a voz da consciência suprema lhe respondia e
continuou. – A ignorância sobre si mesmo fez com que mundos como o seu tomassem
este caminho. O mistério não pode ser encontrado e desvendado dentro de templos ou
por intermédio de sacerdotes. O mistério precisa ser descoberto dentro de cada ser
vivo, é lá que está o sagrado, e não do lado de fora – concluiu.
Malaki continuava a seu lado, sabia que mais importantes que as respostas são as
perguntas. Lua estava no caminho que sua alma lhe dizia para seguir. Malaki sorriu e a
experiência continuou.
– Nada existe separadamente, o bem e o mal foi uma forma de dividir a alma
humana. Há apenas o potencial, nada pode ser dividido, pois divisão significa
segregação, e não podemos segregar quem somos, podemos apenas transcender quem
somos, transformar, e isso só é possível através da evolução, e evolução passa primeiro
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A Jornada Alquímica Nigredo
pela aceitação. Não há ser vivente sem o instinto assassino, assim como não há
nenhuma forma de vida que não tenha o estado de amor dentro de si, e amor é vida.
Contudo, por não terem conhecimento de quem são, invariavelmente se rendem a um
dos lados, pois dentro da ignorância humana, escolher uma das margens do rio é mais
seguro.
– Qual o caminho? – ousou Lua.
– Ter consciência de quem se é, trazer para esta consciência tanto o lado da luz
como o lado das sombras e, juntas, essas vertentes da alma, que tudo habita, poderão
construir maravilhas, e não mais terão conflitos por motivos fugazes, como religião,
política e ideologia. O que se busca na forma humana é impor um lado ao outro, e isso
desequilibra o pêndulo da vida.
Estavam em puro estado de consciência. Malaki e Lua sentiam, porém, que não
estavam em seus corpos físicos, estavam bebendo na fonte infinita da sabedoria,
estavam comungando com a inteligência universal.
Malaki agradeceu as revelações e voltou ao estado original do ritual.
A jovem mulher estava exausta. O sábio, então, tirou alguns minerais do bolso,
encheu uma cumbuca com a água que jorrava de uma pequena e transparente nascente,
misturou-os e colocou as mãos sobre Lua, que bebeu toda a poção.
Aos poucos, suas forças foram voltando. O Sol já banhava as grandes copas das
árvores que compunham a floresta, a pequena fonte corria em um riacho e caía dentro
de uma grande fenda nas rochas. Era possível ver as marcas dos milênios incrustadas
nas mesmas.
Malaki pegou-a pela mão e a levou até a beirada do penhasco, onde a água sumia.
– Aqui você verá como a sabedoria universal trabalha.
Lua estava se sentindo repleta de energia novamente.
Ao chegar à beira do enorme penhasco, vislumbrou um lago de águas cristalinas e
absolutamente tranquilas. Nada se movia dentro ou fora dele. Sua transparência era
tamanha que traía seus olhos, pois podia avistar em seu leito uma pequena cidade antiga
onde nada fora destruído. As cores, as vielas e as pequenas construções repousavam
serenamente. Por não ter certeza do que via, perguntou:
– Mas para onde foi a água?
Malaki sorriu e jogou no lago uma pequena pepita de ouro em estado bruto que trazia
consigo. Ao mergulhar no mesmo, a pepita provocou ondas e Lua pôde confirmar o que
realmente estava vendo.
O lago possuía uma transparência celestial, todo o seu leito fora uma antiga
civilização de estudiosos do mistério. A pequena fonte de água, que era apenas uma
biquinha, jorrava desde o início dos tempos para dentro da grande fenda na rocha e
conservara, de forma inexplicável para a mente humana, tudo perfeitamente intacto.
Não fosse o pequeno elemento que Malaki jogou no lago, Lua acreditaria estar diante
de uma cidade antiga, porém nunca à beira de um lago.
– Tudo, Lua, flui dessa forma dentro do mistério. O que não damos crédito pode ser a
grande fonte criadora de tudo o que há, como o pequeno veio de água que surge nas
profundezas da mãe Terra e jorra para dentro da grande fenda, formando o lago das
revelações. A este lugar – continuou – só deve vir quem o mistério lhe revelar, jamais
os não indicados, pois tudo o que há na grande floresta provém desta fonte. Suas
dúvidas aqui poderão ser dirimidas, no entanto, só o faça quando tiver uma revelação.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Treze
iguel ficara com ―Eternidade‖, a cadela de Hermes, enquanto o amigo
101
A Jornada Alquímica Nigredo
– Pode, eu não corro, mas creio que ela vai gostar – respondeu.
A menina disparou em direção ao mar e Eternidade a seguiu.
Miguel nunca conhecera o que todos chamavam de amor. Tivera algumas paixões,
porém nunca entrara nesse estado de divindade.
Viajou por muitos lugares, leu os grandes livros da civilização humana, e podia
conversar com qualquer um sobre qualquer assunto. Sua capacidade analítica,
proveniente de uma mente cartesiana, o fazia chegar a conclusões lógicas mais rápido
que a maioria das pessoas. Era um homem culto, um curioso sobre quase todos os
assuntos, no entanto, um ignorante em se tratando de sentimentos.
Conhecia e respeitava a força que Marie chamava de ―espírito empreendedor‖,
porém apenas para realizações práticas, no movimento em direção a sua alma e seus
sentimentos nunca o experimentara.
Certa vez, admitiu para Marie que era egoísta demais para ceder espaço para o amor.
Ouvia dizer que o amor não prioriza o ser que ama, mas o ser amado. Alguns poetas
escreveram e muito sobre o ―tal‖ amor, pensava, porém Miguel era cético e não podia
compreender um sentimento que só segue em direção ao outro, sem nunca priorizar o
ser que o sente. Tentava utilizar sua excepcional inteligência lógica para compreender o
mundo dos sentimentos, buscava, dentro de sua racionalidade, classificar um ―estado de
ser‖ como um sentimento.
Sentia-se capaz, potencialmente, de amar alguém, porém sua mente invariavelmente
interferia em razão das inúmeras possibilidades de vivências às quais teria de renunciar
em virtude do amor. Sendo assim, o homem o desejava, mas ainda não o experimentara
verdadeiramente.
John Bonaventura voltara algumas vezes, nos últimos dias, ao lugar onde a mulher
dançara em torno de uma fogueira e ao som da estranha música de Aramis, porém sem
sucesso.
Caroline já gastara uma pequena fortuna nas lojas e joalherias do hotel e de toda a
cidade do Rio de Janeiro. Suas inquietações e descontentamentos para consigo mesma
não lhe permitiam perceber as belezas naturais e artificiais da cidade. Navegava seu ser
entre a euforia e a apatia.
John, apesar de muitas vezes não suportar Caroline, cedia aos seus caprichos em
razão de sua aparência física.
O casal lançara-se em diversos passeios, porém nada os preenchia.
Quando Caroline, dopada por seus antidepressivos, desmaiava na cama do hotel,
John saía para longas e solitárias caminhadas. Começava a questionar até onde poderia
ir com sua existência. Cogitava um dia escrever um livro de memórias sobre suas
relações com o mundo editorial e os escritores. Gostaria de amar o que fazia, mas algo
dentro de si lhe dizia que não, e assim era seduzido pelo glamour e pelo poder efêmero
que sua posição lhe dava, nada além disso.
Fitara o músico de rua tocando seu instrumento com tamanho prazer que chegava a
incomodá-lo.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Curiosamente, um ser humano infeliz como John torna-se muito incomodado com as
opções alheias, e se essas opções geram prazer e plenitude em quem as faz, pior.
Algo ainda nas sombras dentro desse ser começa a se debater; precisa se afastar da
pessoa que está plena ou buscar uma forma de menosprezá-la, pois quando agimos
assim com alguém, tendo consciência disso ou não, somos acometidos de uma ligeira
sensação de que estamos certos em nossa forma de conduzir nossa existência. Em poder
dessa devastadora atitude, saímos pelo mundo magoando pessoas e criticando qualquer
trabalho que não o nosso, e isso acaba por nos resumir à insignificância de nosso ser.
John, muitas vezes, tinha essa atitude. Incomodava-o profundamente alguém feliz
com opções simples como a de Aramis. No entanto, sua curiosidade em saber quem era
a mulher que dançava e vivia ao relento, mas que também bebia vinho dentro do famoso
cinco estrelas em que estava hospedado, era maior que o incômodo de seu ser.
John, então, continuava indo até o pequeno grupo e o observava por algum tempo.
Ao fim da canção e sem a dança de Lua, jogava no pano estendido na areia uma nota de
dez ou vinte dólares e ia embora sem dizer coisa alguma a ninguém. Intrigado com seus
pensamentos, acendia um cigarro e caminhava de volta à suíte do hotel, onde Caroline
estava ―desmaiada‖ sob o efeito dos remédios, deitava-se e dormia... No dia seguinte,
recomeçava tudo novamente.
Aos pés da grande árvore, estavam reunidos todos os que buscavam descobrir seus
planos existenciais, e assim despertarem seus espíritos para um motivo maior que o de
sobreviver.
A cada sete anos um desses rituais era realizado. Pessoas que foram ―chamadas‖ pelo
mistério chegavam, não conhecendo fisicamente uns aos outros, porém com um
profundo conhecimento dos seres ali presentes.
Nada era dito nem explicado, entretanto havia uma linguagem supra-humana que
falava para todos que se predispunham a empreender suas existências e enchê-las de
vida.
Malaki estava sentado em uma pedra, e os demais ao seu redor. Lua estava em vigília
espiritual dentro de uma grande gruta havia três dias e três noites. Fariam, agora, o ritual
de aceitação da mulher como uma pesquisadora e estudiosa do mistério.
Os demais estavam presentes por serem iniciados pela força desse mesmo mistério.
– O mistério se faz presente em todos – começou Malaki –, e quando nosso espírito
está pronto, indiferentemente de nossos credos, raças ou ideologias, ele nos fala.
Começa como uma pequena inquietação, um ligeiro desconforto na forma como
estamos vivendo, com o que estamos fazendo e, principalmente, em como vemos o
mundo à nossa volta. A voz, alheia à nossa vontade, ―grita‖ literalmente dentro de nós,
quando não a ouvimos. Tudo o que conhecemos por vida prática começa a se
embaralhar. Os caminhos não são mais tão agradáveis como eram, nosso espírito não se
contenta mais com a mediocridade que se tornou nossa existência e começa a se mover
em direção ao grande empreendimento que todos somos perante o universo. Quando
isso acontece, tudo parece ruir, nossos relacionamentos, carreiras e crenças. Esta é a
hora de o velho ser ir embora, de a velha forma de pensar, ser e agir deixar de existir!
Tudo o que fazemos até termos consciência de quem somos, verdadeiramente, não é
realizado por nós, mas por algo que foi colocado dentro de nossa mente pelo entorno.
Não é nada fácil o surgimento novo surja, porém, aos que ousarem seguir o chamado do
mistério, grandes realizações estarão à sua espera – concluiu.
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A Jornada Alquímica Nigredo
O mistério, como explicou Malaki depois, está dentro do ser humano, e não em
algum lugar no espaço. No espaço estão os elementos que nos servem de sinais para
acessarmos o sagrado que habita a alma de tudo o que existe.
O ritual seguiu revelando por intermédio da alma de cada ser humano presente seu
plano existencial, deixando à luz da consciência o caminho a seguir, a jornada que nos
propicia enchermos a existência de vida!
Os primeiros raios de sol cortaram a escuridão da madrugada anunciando um novo
dia, a mãe noite começara a ceder lugar ao pai dia, tal qual Malaki afirmara.
Dentro de cada ser humano presente a chama da vida se acendera de forma única em
suas existências, o poder criador falara aos seus corações e lhes revelara seus segredos
mais sagrados.
Aos poucos, todos se levantaram e, sem dizer uma única palavra, adentraram a
floresta e seguiram rumo a suas vidas e seus planos existenciais. Em sete anos voltariam
a se reunir para compartilharem suas percepções e descobertas com o grande sábio.
A magia do ritual se repetia da mesma forma desde o início dos tempos. Ninguém, ao
certo, podia precisar quando começou, mas sabia-se que fora há milênios na região que
chamamos hoje de África e Europa.
Malaki caminhou até Marie e perguntou:
– Tiveste revelado o que vieste procurar, filha?
Ela assentiu com a cabeça.
– Então sabes como encontrá-lo?
– Sim, mas temo não ter força o suficiente.
– Tudo está preparado no plano astral, faça apenas sua parte e deixe que o sagrado
faça a dele.
Deu-lhe um beijo na face e foi em direção a Hermes.
– Nada aqui é definitivo. A existência é um meio, e não um fim em si mesma. Você
percebeu isso?
– Creio que sim, Malaki, porém... – Hermes não terminou a frase.
– Tudo pode ser mudado, tudo pode ser refeito, entretanto, devemos perguntar se
estamos fazendo o que queremos ou o que precisamos.
Olhou para ele e perguntou:
– O que você está fazendo, Hermes?
– Estou fazendo, grande sábio, o que preciso.
– Então venha comigo – ordenou Malaki.
Hermes olhou para Marie, Abdias, que lhe sorria resplandecentemente, e Lua, que
lhe passava confiança apenas com o olhar.
O Homem seguiu o sábio até a gruta onde Lua estivera por três dias e três noites. Em
seu interior, sinais sagrados estavam gravados nas paredes das rochas.
Barulhos de águas jorrando penetravam os ouvidos de Hermes e causavam-lhe
curiosidade e receio.
Malaki olhou para ele na escuridão da caverna e disse:
– Não tema, devemos temer apenas a nossa ignorância acerca de nós mesmos e nada
mais.
No fundo da caverna uma chama dourada iluminava tudo. As sombras se dobravam
na brandura permanente da luz. Havia um pacto de conhecimento entre ambas, tal qual
se faz necessário na alma humana.
Hermes estava no que Malaki chamou de ―útero‖ da mãe Terra.
Iniciados e sábios adentraram o lugar por séculos. Apenas os que estão em busca de
si mesmos tiveram essa oportunidade.
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Tudo o que você ver, ouvir e sentir é seu. Tudo o que perceber é para o bem maior,
use-o para o que precisar, e leve consigo apenas o que puder ajudar os outros, assim
como você está sendo ajudado neste momento.
– Mas...
– O silêncio precede a mensagem, há tempo de perguntar e tempo de ouvir. Deixe
suas indagações para sua alma, foque em seu coração e siga a voz que lhe falará à alma.
Hermes podia reconhecer nas paredes da grande gruta sinais do mistério.
– Este é o alfabeto dos alquimistas, não tente decifrá-lo com a mente, é impossível.
Apenas sua alma tem esse poder.
Malaki tirou de sua pequena bolsa elementos alquímicos e os jogou em um enorme
recipiente de cobre que estava sobre o fogo. As labaredas aumentaram e o recipiente
inflamou.
– |Fique aqui, no momento oportuno eu estarei ao seu lado – disse virando as costas e
saindo da enorme gruta.
Lá fora, Marie e Lua o aguardavam, seu semblante era de paz.
Marie aventurou-se:
– E Hermes?
Sorrindo, por perceber que era o coração da mulher que lhe falava, tranquilizou-a.
– Cada um veio por um motivo, ele está em busca do seu.
Lua pegou na mão de Marie e esta foi invadida por uma serena calma.
Abdias veio ao encontro do homem, que lhe sorriu.
– Vamos comer?
– Sim, vamos comer, pequeno sábio!
As árvores balançavam ao tom do balé do vento que as acariciavam, tal qual uma
moça e seu primeiro amor.
O Sol, agora alto, dourava tudo o que tocava. Uma grande mesa de frutas e pães fora
delicadamente preparada pela mãe do menino, não mais presente. Malaki, a criança e as
duas mulheres se sentaram e desfrutaram da refeição, enquanto a floresta enchia-os com
seus maravilhosos e indecifráveis sons...
106
A Jornada Alquímica Nigredo
Quatorze
J ohn resolvera levar Caroline para passear pela orla. O Sol na cidade do Rio de
Janeiro tornava sua majestosa paisagem algo deslumbrante aos olhos humanos.
Pessoas de todas as partes do mundo deliciavam-se com a visão.
Caroline, no entanto, olhava, mas não enxergava; ouvia, mas não escutava. Seu ser
estava por demais contagiado com tudo o que nos cerca; sua mente se identificava tanto
com o externo que perdera quase que por completo o contato com sua alma. A pouca
intimidade que havia entre Caroline e seu ser fora ofuscada pelos antidepressivos, que
faziam as ações dos laboratórios que os produziam subir para a estratosfera, e o ser
humano, escravizado pelos mesmos, descer ao mais obscuro inferno.
De frente ao mar da praia de Ipanema, Caroline, ao ver as pessoas sorrindo e
brincando, vociferou com John, como se punhais lhe perfurassem o corpo.
– Não sei o que você vê neste país em desenvolvimento, pessoas com pouca cultura,
de pele escura e que sorriem como retardados para todos. Jamais, em minha vida,
presenciei tamanha estupidez em um só lugar!
– Vejo, Caroline, que você não está se divertindo nem um pouco, não é?
– Não! Prefiro as lojas da 5ª Avenida, em Nova York, a esse bando de ignorantes à
beira-mar. E o tal ritmo samba? Ridículo! – concluiu.
– Podemos voltar ao hotel.
– Podemos ir a um shopping, pois preciso de uma sandália. Não tenho o que usar
hoje à noite!
– Pensei que você já tivesse comprado tudo o que precisava nestes últimos dias.
– Uma mulher como eu, John, nunca compra tudo o que precisa ou você acha mesmo
que repetirei um sapato ou vestido?
John fez sinal para um táxi, que seguiu em direção ao bairro de São Conrado. Lá, um
templo de consumo aguardava Caroline.
John estava à procura de seu novo autor, precisava encontrar um novo sucesso
editorial ou sua vida de luxo acabaria. Empenhava-se nisso e começava a recear a
possibilidade de não encontrar.
Caroline mantinha-se presa em seu mundo e John em seu objetivo, no entanto, algo
em seu ser sempre voltava à mulher que dançava à beira do mar...
Eternidade voltara com a língua para fora e Atenas atrás. Ambas estavam exaustas. A
única palavra pronunciada por Atenas a Miguel fora:
– Água, por favor!
Seu sorriso branco, seu rosto suado e sua alegria juvenil emanavam a energia vital
que muitos buscam em academias, centros de beleza e consultórios de cirurgiões
plásticos.
Atenas bebeu toda a água sem tomar fôlego, enquanto Eternidade fazia o mesmo em
uma bacia improvisada por Miguel. Pelo canto da boca da moça escorriam pequenas
gotículas de água, que molhavam sua blusa, deixando os seios lindamente formados
delineados.
Miguel sentiu a boca seca, sensação que acomete os homens quando inebriados pela
força feminina a sua frente. Atenas terminou e estendeu-lhe o copo, dizendo:
– Mais um pouco, por favor!
Seu sorriso parecia que fora desenhando para sempre em seu rosto moreno, pois não
deixava um só minuto sua face. Miguel encheu-lhe o copo e, quando percebeu, o
mesmo transbordava.
107
A Jornada Alquímica Nigredo
Um menino sentado no canto de uma sala cruzava os bracinhos em torno das pernas
e encolhia-se de receio. Seus cabelos desalinhados e seus olhos vermelhos de chorar
refletiam o completo abandono de si mesmo. Um homem sisudo adentrou o local, seu
sorriso era sarcástico e seu hálito podre. Seres de aparência estranha acompanhavam o
homem de voz empastada e pesada.
Uma voz vinda dos confins do universo gritava seu nome:
– Hermes... Hermes...
O menininho levantou os olhos e foi arrastado pela poderosa mão do homem. A
horda de seres demoníacos que habitavam as sombras sorriu e zombou do menininho,
enquanto o homem o arrastava sem nenhum cuidado.
– Você ousou sair de nossos domínios? Você, um ser insignificante que depende de
nós para lhe dizer quem é? Como ousa dar as costas para nós depois de tudo o que
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A Jornada Alquímica Nigredo
fizemos por você? Como tenta se livrar de nossas intenções como se você fosse alguém
que pode existir sem nós? Suplício é o que você terá se tentar se afastar... Quem lhe dirá
quem é você, se não nós? Quem se importará com você, se não nós? Quem estará ao seu
lado, se não nós?
Os seres que acompanhavam o homem respondiam em coro, enquanto o corpo de
Hermes, nesta existência terrestre, tremia e sacudia-se todo.
– Ninguém... Ninguém liga para você, você não é nada sem nós...
As gargalhadas ecoavam pelo universo da mente de Hermes e se refletiam nos
escombros de sua personalidade, enquanto o desfiladeiro de sua alma ouvia ao longe o
desdém desses seres por quem Hermes era aprisionado.
O menino, que representava sua imagem, tentava inutilmente se soltar, e o homem
agora um pouco mais na luz, podia ser visto por ele. Ostentava honras e medalhas,
figuras de elogios e diplomas de reconhecimento pairavam sobre sua cabeça.
Hermes caiu de joelhos, pois as forças lhe faltaram nas pernas. Seus olhos estavam
vidrados no fogo à sua frente, que crescera em proporções sobre-humanas. Seus braços
não paravam de mexer o grande recipiente, conforme instruído por Malaki. Dentro de
seu ser, o menino agarrava-se às pernas do enorme homem, que continuava:
– Quem lhe possibilitou ser quem você é? Quem fez de você um ser admirável?
Quem lhe cobriu de importâncias?
A horda repetia, novamente, em coro:
– Nós... Fomos nós que fizemos tudo por você!
– E você quer nos deixar? Dores e prantos à sua ingratidão. Seus dias serão de
anonimato, ninguém jamais vai olhar para você, ninguém jamais vai admirá-lo e nada
em que você colocar as mãos será digno de um elogio, criatura insignificante!
O menininho chorava, enquanto o interior de Hermes se despedaçava...
Uma figura feminina saiu das costas do homem de aparência aterradora e gritou com
uma voz fanha:
– Não foi para isso que o criamos. Você é nosso! Faça o que queremos ou não fará
nada.
Hermes, que, de joelhos, tentava resistir às revelações, abdicou do controle, pois teve
a consciência, nesse momento, de que não controlava nada. Rendeu-se ao inevitável.
Morreria dentro da caverna, deixaria a existência, não havia dúvidas. No entanto, faria
isso por vontade própria, e não por imposição. Aceitaria sua jornada.
Deixou a consciência livre da mente e algo mantinha suas mãos no instrumento, que
lhe possibilitava contato com o mundo físico. Dentro de sua alma, no lugar do não
lugar, travava sua grande e talvez última batalha.
– Quem lhe deu o que você chama de filhos e todos os elogios que os mesmos tecem
a você? – perguntou o ser feminino.
– Nós! – respondeu a legião em coro, agora também se juntando ao homem que o
segurava.
– Ingrato! Ingrato! Ingrato! – diziam todos.
Chegaram a uma enorme sala que Hermes, na consciência do menininho,
reconheceu. Era a fábrica em que trabalhou por anos a fio. Ao lado estava o salão de
festas das sociedades fechadas que participou durante toda a vida!
– Aqui, você nos elegeu senhores de seu destino.
O salão foi se enchendo de pessoas que surgiam sorrateiramente do fundo do
ambiente, das sombras do galpão da fábrica, e vinham todos ficar de pé em sua
presença, enquanto ele, o Hermes menino, estava no centro.
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A Jornada Alquímica Nigredo
Eram rostos conhecidos, sua ex-mulher, seus amigos superficiais, seus superiores e
até o diretor da escola de seus filhos.
O menino levantou os olhos e a cabeça para olhá-los de frente, e uma mão pesada
feriu-lhe a face.
– Jamais levante a cabeça ou os olhos para mim! Jamais ouse encarar-me ou a
qualquer um de nós, de outra forma você perecerá com agonias infinitas. Sozinho e
esquecido terminará seus míseros dias nesta existência solitária. Hermes, ninguém ama
você, apenas nós nos importamos verdadeiramente contigo!
O menininho começou a chorar e, no fundo das sombras de seu ser, sua mãe
apareceu com os braços abertos, dizendo:
– Venha para a mamãe. Venha que nós, eu e seu pai, protegeremos você de todos os
males.
Neste momento, o ar faltou ao corpo do homem Hermes, que desfalecia dentro da
caverna. A figura paterna apareceu ao lado da materna, a horda de seres da escuridão
engrossava a multidão dentro dos ambientes conhecidos por Hermes e que formavam
sua existência, preenchiam sua mente ofuscando sua consciência verdadeira.
Seus sorrisos maliciosos e cruéis deixavam claras suas intenções. O menino
começou, então, a caminhar de cabecinha baixa, prendendo o choro e deixando as
lágrimas escorrer silenciosamente em direção às figuras materna e paterna. Seu coração
astral gritava dentro de seu peitinho para que ele não continuasse a andar, porém não
mais sabia como resistir, não mais tinha forças para fazê-lo. No meio da caminhada em
direção às profundezas de seu ser, uma pequena entidade brilhante, quase invisível,
aqueceu seu coração, um minúsculo lampejo de consciência, um raio imperceptível de
luz.
O corpo de Hermes, o homem, estava no chão. Seus braços não paravam de mexer o
recipiente, no entanto, as chamas já não mais bruxuleavam como antes. Hermes não
tinha mais autonomia consciente do próprio corpo...
O menininho, sujo e maltrapilho, parou, então, no meio da caminhada. A horda de
seres das sombras começou a insultá-lo e a gritar em sua direção. O pequenino raio de
luz prendia a atenção do menino.
– Verme desprezível, corra para os braços de sua mãe, não ouse olhar em qualquer
outra direção ou acabará sozinho... Não ouse nos desafiar, não ouse...
O pequeno raio de luz se materializou em uma das mãozinhas da criança. Tinha o
formato do Deus Mercúrio, que visitara Hermes, o homem, em uma experiência
passada.
O pequenino Deus sorriu para Hermes e disse, repetindo as palavras de seu primeiro
encontro:
– Devainhuno, Hermes o segredo do ser...
O ser, na palma da mão de Hermes, o menino, começou a crescer, e seu crescimento
passou a iluminar os ambientes fora do tempo e espaço que ali representavam a
existência de Hermes, o homem. Sua luz explodia na face das criaturas que habitavam
as sombras de sua própria alma. A força da luz fazia com que o medo paralisante dentro
do menino começasse a ceder espaço a um sentimento de esperança...
O ser ia crescendo e sua luz iluminava tudo o que tocava. Tudo acontecia em três
tempos simultâneos, e o menininho, agora, já não mais estava com a cabeça baixa.
As vozes gritavam:
– Não levante a cabeça ou te abandonaremos!
A voz do homem que o trouxera à força até o local agora rugia como a de um animal
sem consciência, dizendo:
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Você não vive sem mim... Você não vive sem nós. Você não existe sem o que te
cerca, pois nós somos você!
Hermes, o menino, que decidira erguer os olhos e a cabeça, recebia agora os
incentivos do pequeno Deus, que lhe sorria, e de sobressalto desvencilhou-se do homem
que até então o mantinha preso junto a si.
Percebera que, estranhamente, após tomar a decisão, tivera força para soltar-se do
ser. As trevas de sua alma agora começavam a se iluminar, os pequenos braços
magrinhos e seu rostinho sujo cederam lugar a um estranho e assustador brilho, e as
criaturas experimentaram, pela primeira vez, a sensação de receio em relação ao
menininho.
O Deus Mercúrio começava a crescer em sua frente tomando dimensões sobre-
humanas. A horda que o acompanhava até então e lhe oprimia ganhava formas. Ora era
um ser humano, ora um elogio, ora um ente querido, ora o conceito que esse ser tinha de
Hermes e, por fim, sua posição social.
O homem com voz de animal se apartara por completo de Hermes, o menino, e
espreitava junto com os demais os acontecimentos por vir.
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habitavam abriam-lhe espaço para a passagem. Não paravam de gritar e entoar o coro
para ele recuar, no entanto, perderam considerável poder sobre Hermes.
Adentrara, agora, um ambiente nunca conhecido dentro de si mesmo. O homem que
vociferava estava de costas para a criança. Sua aparência era enorme. O menininho
parou e disse-lhe:
– Olhe para mim! Não tenho mais medo de você!
– Sem mim você não é nada – respondeu, sem se virar, o ser das sombras.
– Então não sou nada...
– Eu...
– Vire-se para mim agora e me encare nos olhos – disse com total segurança.
Conforme falava, seu corpo crescia. À medida que se defrontava, suas forças
voltavam.
A luz que emanava do Deus tornara-se prateada. O ser das sombras, misteriosamente,
começara a perder tamanho diante do crescimento da criança.
– Vire-se, estou lhe dizendo, quero ver você!
– Não! Eu posso matar você, sabia?
– Não me importo em morrer!
– Seu corpo já está morrendo... Você precisa de mim!
– Não, eu preciso apenas de mim mesmo! – disse o menininho que crescia.
– Você morrerá.
– E você morrerá comigo, não tenho mais medo!
O ser, ao ouvir isso, começou a se virar para a criança. Lenta e dolorosamente, as
sombras viam a luz da consciência de Hermes, o homem, enquanto o menino que
habitava sua alma ganhava autonomia.
O ser virou-se por completo, e o menino, ao vê-lo, deu dois passos para trás. A face
que via lhe era conhecida, era a face de alguém que ele mirava todos os dias no espelho.
A face que o menino Hermes olhava era a do homem Hermes.
– Você? – disse o menino, agora não mais com a aparência de uma criança.
– Eu...
– Eu te conheço... você sou eu?
– Sou... – disse com a voz branda o ser.
– Você me aprisionou sozinho aqui?
O ser balançou debilmente a cabeça, dizendo:
– Sim.
– E por quê? Se eu sou você e você sou eu?
– Porque eu queria elogios de todos ao meu redor e tinha medo que, se você
crescesse, ninguém me notasse.
– Mas... quem ou o que, afinal de contas, é você dentro de mim?
– Sou os elogios que você recebeu por aquilo que nunca fui capaz de realizar. Sou a
opinião dos outros a seu respeito, sou os eventos sociais de que você participou mesmo
sem querer, sou tudo aquilo que você detesta, mas a que se sujeita para agradar aos
outros.
– Que outros?
– Todos! Tudo o que projetaram em cima de você e você atendeu. Sua profissão que
detesta, sua esposa que não ama, seus compromissos sociais que privilegiou em
detrimento das coisas que eram verdadeiramente importantes na sua existência. Sou eu
quem vive em seu lugar, e não você!
– E por quê? Porque não podemos coexistir dentro de minha alma, assim como todo
mundo?
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A Jornada Alquímica Nigredo
O corpo de Hermes estava ao lado da grande fogueira, alimentada agora por Malaki,
que esteve presente sem que Hermes tivesse consciência durante toda a experiência de
autodescoberta.
Malaki trazia no rosto um sorriso de plenitude e satisfação. Conhecera, ele também, a
bestialidade da ignorância de não sabermos quem somos e por que existimos. Sofrera as
dores da inconsciência na própria carne e nada lhe doía mais que ver um ser humano
perder-se de si mesmo por causa do seu exterior.
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A Jornada Alquímica Nigredo
O sábio tirou uma de suas poções da pequena bolsa que trazia sempre consigo e
despejou na boca de Hermes. O homem foi gradativamente recobrando a consciência e
a autonomia de seu corpo. Abriu os olhos e o sorriso de Malaki estava a lhe esperar.
Não tinha palavras, porém não podia conter as lágrimas.
Malaki, o sábio, o abraçou com ternura e transmitiu ao coração de Hermes tudo o que
sabia por meio desse pequeno e sagrado gesto, o abraço.
– Eu... – disse entre lágrimas – estou vivo.
Não era, de forma alguma, uma pergunta, mas uma afirmação de quem dançou com
seus demônios, brincou com seus anjos internos e descobriu durante esta jornada que
somos todos um, e um em todos. Voltara sabendo que a alma humana não está no
universo em que habita, mas habita o universo que cria.
Ficou, pela primeira vez de pé, o homem, o menino, o deus, o demônio e o ser
humano que tinha plena consciência de suas limitações e também de seus poderes.
Hermes tornara-se inteiro pela primeira vez na existência.
Ao sair do útero da mãe Terra acompanhado de Malaki, Monique Marie e sua amiga
estavam a esperá-lo. Tal qual Lua, Hermes perdera a noção do tempo, porém três luas e
três sóis se passaram durante sua iluminação.
O sorriso de Marie em sua direção fez seu coração resplandecer. Beijou-lhe os lábios
profundamente e depois abraçou Lua, que, sem dizer uma única palavra, sabia
exatamente o que tinha se passado com o homem à sua frente.
– Vocês partirão agora, certamente não nos veremos nesta existência, não mais.
Apenas eu e Lua ainda temos um próximo encontro, no entanto, quero que saibam o
quanto sou grato ao mistério por ter me trazido vocês.
Monique e Hermes choravam silenciosamente, mas sabiam que Malaki tinha seu
próprio plano existencial a cumprir.
Vieram a ele sem saber bem o motivo e agora partiriam compreendendo com
plenitude de alma o universo que os cercava.
Lua ouvia-o atentamente. Abraçou o sábio, assim como seus amigos o fizeram, e
partiram em silêncio. Sabia que, no momento apropriado, Malaki a chamaria de volta.
O pequeno sábio Abdias os acompanhou até deixarem a floresta. Ao se despedir,
entregou uma pedrinha a cada um deles e disse:
– Para se lembrarem do dia em que nasceram verdadeiramente.
Recebeu um beijo de cada um e sumiu no meio da mata.
Os três seres humanos, renascidos cada um de forma e motivos diferentes, ficaram
parados em um momento de contemplação. A tarde estava no finalzinho... Ganharam a
estrada de volta à urbanidade da metrópole, ao convívio com os outros e de volta, agora,
pela primeira vez às suas existências...
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A Jornada Alquímica Nigredo
Quinze
erminaram o coco e ficaram encostados um no outro até os matizes de laranja e
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A Jornada Alquímica Nigredo
olhos grandes fixaram-se em John. O homem abriu seu sorriso perfeito para a moça, e
fora essa a última visão de Caroline antes de se precipitar no vazio em direção à
poderosa força da natureza que se manifestava dezenas de metros abaixo, na forma de
ondas e pedras.
Seu corpo chocou-se violentamente contra uma das rochas. Caroline ainda pôde ver,
ao longe e por entre lágrimas, John à beira do precipício, assim como as demais pessoas
que ali se encontravam. Algumas toneladas de água recaíram sobre ela, cobrindo seu
rosto e partindo-lhe a elegante espinha em duas partes.
Caroline desaparecera para todo o sempre de sua existência, partira sem descobrir
como enchê-la de vida, como ver o colorido das coisas mais belas que nos cercam.
Caroline não mais existia!
A tribo de nômades urbanos estava em festa. Lua voltara, seu sorriso aquecia-lhes o
coração novamente, bem como sua inteligência afiada e sua sabedoria universal que
instigavam o raciocínio e acalentavam suas almas.
O pentagrama desenhado na areia agora tinha outro significado para Lua, e ela sabia
onde e por que caminhara tanto.
Aramis conhecera várias pessoas, incluindo uma artista plástica que, intrigada com o
homem, acabou seduzida por sua curiosidade. Insistiu em conhecer a tal mulher que
dançava na areia e dormia ao relento e que todos intitulavam como guia. Ao ver Lua,
Magnólia, uma mulher de cinquenta anos, ficou impressionada com a juventude e
sabedoria da moça. Foram apresentadas, e Lua pôde ver em seus olhos a admiração,
assim como a paixão por Aramis. Este, fiel a sua alma, fora claro com a mulher:
– Esta é minha vida. Fique, se quiser, e parta quando tiver vontade, porém não
viverei os sonhos perfeitos da relação dos contos de fadas. A única coisa que interessa a
mim é viver a história de minha própria existência.
A artista compreendeu-o, pois sabia que quando traímos nossa forma de ver e sentir
em detrimento do outro ou do mundo que nos cerca deixamos de ser quem somos.
Quando isso acontece, não mais seremos admirados por aqueles que se aproximaram de
nós, mesmo quando esses seres não identificam por que gostam. Há, nessa ignorância,
uma profunda relação de alma, que, quando deixada de lado para seguir qualquer
modelo preestabelecido, nos transforma em um objeto de aversão, e não de atração.
Toda a tribo de Lua felicitava sua volta, mas algo que emanava da mulher dizia-lhes,
em segredo, que da mesma forma que voltou partiria...
Naquela noite, Hermes, o guerreiro, e Monique Marie, a estudiosa do mistério, agora
em posse de suas revelações existenciais, deliciaram-se dentro dos corpos um do outro.
Foram guerreiros em um campo de batalha, foram crianças em uma brincadeira de
escola, foram deuses se amando... perdendo-se e encontrando-se um dentro do outro.
Perderam a completa noção, por vezes, de que eram dois seres. Abdicaram da
consciência do eu em detrimento do nós. Fizeram sexo e, nesse ato, foram macho e
fêmea sem receios, sem pudores e sem limites. Estiveram em um plano de energias que
somente quem lá esteve consegue descrevê-las, pois não é possível por meio de simples
palavras. Foram amigos e companheiros de jornada, onde o macho, por diversas vezes,
deve acompanhar a fêmea para descobrir, por trás das sensações meramente físicas, o
estado orgástico. Descobriram-se companheiros de diversas caminhadas... em várias
existências que juntos compartilharam e, por fim, fizeram o mais sublime amor,
desfalecendo seus corpos e enchendo suas almas de energia cósmica, a energia que a
tudo e a todos permeia. Exaustos, caíram em sono profundo, não mais namorando seus
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A Jornada Alquímica Nigredo
corpos, não mais baseados em uma relação meramente terrena, mas enamorados
mutuamente de suas almas...
Monique descobrira, por meio de sua revelação existencial, que não se pode
responsabilizar nosso passado pelo que somos e vivemos, mas sim utilizá-lo para
transcender a dor que assola toda alma humana. Descobrira que o ―estado amor‖ não
pode ser congelado em uma única situação, por mais confortável e agradável que ela
seja. Fora lhe revelado um dos maiores segredos da existência humana... o manter-se em
constante mudança apreciando tudo o que se é vivido, experimentando tudo o que lhe é
conveniente e se distanciando do aprisionamento egoico de nossa mente, onde tudo o
que é bom, gostoso e agradável deve ser mantido.
Descobrira que, apesar de seu instinto zeloso e materno, seu ser interior era bem mais
que qualquer zona de conforto; e o que humanamente chamamos de felicidade está em
aceitar a paisagem da viagem humana sobre a Terra, e não em tentar cercá-la e
transformá-la em um parque de visitação coletiva, onde podemos mostrar a todos o que
conseguimos.
Descobrira Marie, em sua viagem interna, que Hermes estava em seu plano
existencial, como acontece com todo ser vivente nesta dimensão. No entanto, não podia
abdicar das demais responsabilidades com sua alma em razão de apenas uma de suas
missões aqui. Descobriu que não seria alguém ou algum relacionamento que lhe daria
plenitude, somente sua alma e o cumprimento de todo o seu plano existencial lhe dariam
tal estado de espírito.
Fora-lhe revelado que ninguém é de ninguém. No entanto, há seres especiais para
cada um dos humanos aqui manifestados. Seres que nos ajudam e vão embora sem
explicação, seres que ajudamos e, invariavelmente, rotulamos de ingratos por não
ficarem, seres que fluem em nossa direção e que nossa mente, por mais que tente, não
consegue definir o motivo. No entanto, expandira sua consciência a ponto de saber que
o porquê não é necessariamente importante, o momento é importante e, se esse
momento durar 24 horas, será a eternidade ao lado desse ser, e caso dure 100 anos, será
como 24 horas.
Marie descobriu que seu principal deserto inconsciente era a busca débil da
perpetuação do que não está em mãos humanas, mas sim no reino da consciência
superior. Monique Marie encontrara-se consigo mesma em sua interiorização.
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A Jornada Alquímica Nigredo
dizer, os nativos daqui, são estranhos, mas ela é linda, não é? Eu sei que é! – afirmou
inebriado pelo vinho.
Miguel sentia seu ser navegando entre a certeza, expectativa e insegurança. Estava
sob o domínio de Afrodite e, pensasse o quanto fosse, conversasse o quanto quisesse
com a cadela de Hermes, ninguém poderia compreender tal reinado, a não ser a
realização do sentimento em si.
O homem que cruzara oceanos, falava diversas línguas e sobrevivera a inúmeras
situações de perigo ao longo de sua vida estava à mercê de algo que não podia
compreender racionalmente, e isso era inconfessável, porém terrivelmente assustador
para Miguel. Desistiu de vez de encher a taça e virou o restante da bebida no gargalo
mesmo. Seus pensamentos estavam rodando devido à embriaguez, o rádio tocava uma
canção originalmente do país basco, e Miguel bailava sozinho na cozinha de seu hotel.
Eternidade latiu e colocou as patas na altura do peito do homem, e este dançava
abraçado com a cadela ensaiando passos para realizá-los com Atenas, a menina-moça
fruto de seus sentimentos. Eternidade lambia seu rosto e sua boca em sinal de carinho,
brincando com o ser que lhe cuidava. Enquanto o acompanhava, era arrastada e
equilibrava-se apenas nas patas traseiras.
Por fim, a música acabou e Miguel virou o restinho do líquido ainda presente no
fundo da garrafa e desmontou no chão da cozinha. Eternidade deitou-se ao seu lado,
lambendo-o repetidamente. O homem a abraçou, dizendo com voz ébria:
– Sabe, Eternidade, só você para me entender... acho mesmo que talvez eu ame essa
chica!
E desmaiou em sua embriaguez de paixão.
John estava sentado com a cabeça entre as mãos em um pequeno banco ao lado do
famoso Forte de Copacabana. Ouvia as frenéticas buzinas da Avenida Atlântica, no
entanto, elas lhe pareciam vir de um lugar muito longínquo... Seus olhos estavam
vermelhos pelas lágrimas que derramara por Caroline. Tentara, inutilmente, correr até a
beira do precipício e mergulhar atrás do corpo da jovem modelo. Tentara chegar até ela,
porém era impossível alcançá-la. As pessoas que estavam no mirante o impediram, com
intuito de não se perder mais uma vida na esperança de salvar outra.
Havia se passado uma semana desde o fatídico acidente, e até aquele momento o
corpo da jovem não fora encontrado. Mergulhadores experientes dedicaram-se às buscas
durante dia e noite, no entanto, todos os esforços foram em vão.
A dor, acompanhada do sentimento de culpa, corroía a alma de John. Pensava que
poderia ter deixado Caroline muito tempo atrás, pois nunca fora verdadeiramente
apaixonado por ela, e refletiu como era ignorante a respeito dos sentimentos e dores
internas da jovem que lhe sorria de forma tão bela. Sentia uma mão apertando seu
pescoço e uma náusea subindo-lhe pela garganta toda vez que pensava em como fora
insensível em relação aos sentimentos dos outros, incluindo neste pensamento, e
principalmente, os de Caroline.
Julgava-se um homem inteligente, no entanto demonstrara o quanto era um completo
analfabeto no que se referia a seres humanos e aos sentimentos que neles brotam!
Refletia em como o sentido de sua vida havia muito se perdera... Não realizara nada
realmente admirável, e nem sequer conseguira admirar o talento dos escritores com
quem trabalhara uma vida. Vivia graças ao talento dessas pessoas, no entanto divertia-se
desdenhando e ridicularizando-os em reuniões fechadas ou em rodas de editores. Tinha
bens materiais, posição social e um currículo de viagens ao redor do mundo que faria
inveja a qualquer grande viajante. No entanto, era apenas um mero turista, jamais se
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interessou por nada que não fosse sua própria pessoa e a cultura de seu país. John não
possuía verdadeiramente uma única amizade, jamais ajudara alguém espontaneamente e
vivia baseado em sua própria filosofia de cada um por si e o criador por todos. Era um
egocêntrico declarado e gostava do rótulo.
John agora chorava sozinho a morte de alguém que nunca amou, mas que em seus
últimos minutos de vida percebera que era um ser humano e que, assim como ele, estava
equivocado em suas escolhas e visão de mundo, mas nem por isso era alguém que não
sofria dores alucinantes em sua alma.
As horas se passaram e o homem permanecia no mesmo estado de dormência
interna. Na última semana, oscilava entre a embriaguez do álcool e a dor que lhe corroía
o ser. Sentado à beira do mar, aonde viera para se divertir, percebeu o quanto
externamente nada muda, apenas o interno se transforma. Era o mesmo mar, a mesma
cidade, a mesma praia, no entanto, não mais era o mesmo homem.
Um menino, vendendo alguns chocolates, aproximou-se de John, que mantinha sua
cabeça baixa, e perguntou:
– Moço, o senhor precisa de ajuda?
A resposta, em um português absolutamente rudimentar, veio de uma voz fraca.
– Eu? Não sei...
– O senhor não sabe se precisa de ajuda?
– Quero voltar ao meu hotel – disse com os olhos vermelhos –, mas estou tão
cansado...
– Se o senhor quiser, posso ajudá-lo.
O menino falava devagar por perceber que se tratava de um estrangeiro.
– A troco de quê? – perguntou John, enxugando os olhos com as costas da mão.
– A troco de nada. O senhor não está perdido? Diga-me qual seu hotel e o ajudo a
chegar lá.
John olhou demoradamente para o menino de pés e mãos sujos. Os olhos grandes e
negros da criança brilhavam em contraste com a iluminação da praia.
– Não, filho... Creio que consigo encontrar o caminho de volta.
– O.k. Então qual seu hotel? – perguntou o menino.
John respondeu com a voz embargada, informando o nome de seu hotel.
– Fica para lá, hein?! – disse o garoto apontando em direção à praia do Leme, e saiu
andando e gritando:
– Chocolate... quem quer comprar chocolate!
John caminhou até o Copacabana Palace, pediu uma garrafa de uísque e cumpriu o
ritual dos últimos dias sozinho dentro da suíte.
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sequer podia imaginar que ela, caso desejasse, poderia ouvir o que pensavam,
principalmente no que lhe dizia respeito.
Aramis e sua companheira estavam presentes, e o ―Compra meu Trampo‖ foi
admitido desde que não tentasse vender nada a ninguém dentro do hotel. Hermes
vislumbrava a si mesmo como um homem com outro corpo, outro ser. Na verdade, se
via, pela primeira vez na existência, tal como fora criado pelo sagrado.
Monique mantinha em sua face o sorriso inteligente, porém algo mudara dentro da
mulher. Algo lhe fora revelado, e esse segredo abrandara todo o turbilhão de confusos
sentimentos que sempre lhe assolaram a alma.
Falavam e festejavam o fato de estarem vivos. Não havia uma data coletiva para a
comemoração, no entanto, champanhe fora pedida e bebida com mais prazer do que em
qualquer festividade. Não havia convites de luxo, roupas de gala ou carros importados
parados à porta, porém a alegria contagiante das pessoas causava como sempre, nesses
casos, um enorme desconforto nos demais hóspedes presos aos padrões e
comportamentos coletivos.
John descera do quarto para entregar o cartão de crédito na recepção. A equipe,
acostumada a lidar com estrangeiros, que, diante do calor dos trópicos repensam suas
vidas e muitas vezes gastam o que não possuem, não obstante o seu sofrimento, exigiu
que ele, por passar a maior parte do tempo embriagado, lhe fornecesse o cartão de
crédito a fim de garantir o pagamento de suas despesas no hotel.
Ele entrou na recepção tentando manter seu usual comportamento. Havia tomado um
banho e meia dúzia de cafés expressos. Dezenas de recados empilhavam-se esperando
que John os lesse. Passou pelo lobby do hotel e vislumbrou meia dúzia de mulheres
lindíssimas, bem como homens bem-vestidos, que sorriam nitidamente sem vontade ou
comiam sem trocar com seus pares uma única palavra. Entregou automaticamente o
cartão de crédito ao recepcionista e apanhou seus recados. Largou-se em um sofá no
próprio lobby e começou a abri-los. Ouvia, tal qual em uma noite que lhe parecia muito
distante, as risadas e conversas altas vindas do grupo que não podia vislumbrar onde
estava. Abriu mais alguns dos recados, que na maioria eram da empresa para a qual
trabalhava, que queriam saber quando levaria os novos talentos que havia prometido.
Ninguém, além do agente de Caroline, telefonara para saber sobre ela.
Sozinho, ao ver que a ligação do agente era para confirmar um trabalho na semana de
moda de Nova York, sentiu seus olhos lacrimejar... Levantou-se e caminhou em direção
à piscina. Ao passar pelo grupo, reconheceu a ―tribo‖ e o homem a quem nas semanas
anteriores jogara alguns dólares na areia. Parou e, de súbito, seus olhos cruzaram os de
Lua. Hermes sorriu, já presenciara o efeito que Lua causava nas figuras masculinas
diversas vezes. Monique, que antipatizara com o homem desde o início, bem como a
irmã de Lua, fitaram John, que começou a se afastar. Hermes, porém, o chamou de
volta.
– Você gostaria de se juntar a nós? – disse em um inglês perfeito e formal.
– Eu?
– Sim, você gostaria de tomar uma taça de champanhe conosco?
Meio sem jeito, mas com a necessidade de conversar com alguém, John aceitou.
– Claro!
Lua não parara de conversar com os demais, no entanto, não tirara os olhos do
homem. Algo atiçava sua curiosidade. Notara que da primeira vez que o vira estava
acompanhado de uma mulher. Não disse nada, mas foi Monique quem o indagou:
– Sozinho?
Ele assentiu com a cabeça e virou a taça com a bebida.
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Lua.
– Só Lua?
– Sim! Lua.
– Que nome é esse?
– O meu.
O garçom não parava de servir a bebida e a conversa mudou de tom. John estava
ébrio e começou, repentinamente, a falar sobre o acontecido. Ficaram todos em silêncio.
Lua pôde identificar, desde o início, aquela dor latente que quem sente tem vontade de
que todos a sintam com intuito de estancar o que lhe corrói a alma. Quanto mais John
bebia, mais falava. Todos silenciaram em respeito à sua dor, e o mal-estar que se
estabelecera no início deu lugar a uma profunda e verdadeira união de solidariedade
para com o estranho. Após terminar, John chorava silenciosamente. Hermes lhe
estendeu mais uma taça e o abraçou em sinal de empatia com sua dor.
Lua não se manifestara, apenas perguntou olhando-o nos olhos:
– Você a amava?
– Eu? Eu nunca soube o que é amor!
A sinceridade do homem à sua frente comoveu Lua, que lhe entregou um pequeno
pedaço de pano aromatizado, dizendo:
– Toda vez que a dor sufocar sua garganta, cheire este pano. Não vai fazer com que
sua dor passe, mas lhe dará força para suportá-la.
Havia, em volta da piscina do hotel, uma iluminação feita apenas com velas. Hermes
e Monique pediram para que fosse estrategicamente preparada para aquela noite.
Aramis, de posse de seu instrumento, começou a entoar uma melancólica melodia, e
Lua deixou seu corpo navegar por entre os acordes. Conforme a melodia crescia, o
corpo de Lua a acompanhava até o ponto em que Aramis e seu instrumento eram quem
acompanhava Lua. Enquanto dançava, a mulher cantava uma canção em uma língua que
ninguém nunca ouvira. A canção adentrava o coração de todos os presentes, mas
especificamente falava com John, que, inebriado pela dor e pelo álcool, deixou as
emoções vir à tona. Chorou e soluçou até que a dor se aplacasse em seu ser. Lua estava
com o corpo junto dos amigos, mas seu ser bailava com as estrelas...
Seu corpo parecia o de uma deusa, e não o de um ser humano. Toda a equipe do
hotel e os demais hóspedes, que agora se juntavam ao grupo, acompanhavam-na com
palmas. Os movimentos eram feitos com os olhos fechados, e Lua só os abriu quando,
em um gesto, seu ser tombou para a frente com as pernas dobradas, em sinal de
reverência ao sagrado. Nesse momento, a peregrina viu não menos que cem pessoas ao
seu redor. John estava se sentindo muito melhor, todos a aplaudiram, e ela veio sentar-
se com os amigos. A noite correu ligeira em seu galope rumo ao nascer de mais um dia,
mais um sol, mais uma existência...
123
A Jornada Alquímica Nigredo
Dezesseis
J ohn fez com sua dor a única coisa que podemos fazer quando acometidos por
algo maior que nós, acomodou-a em sua alma, não a perdeu de vista, no entanto,
seguia em frente.
Ainda não tinham encontrado o corpo de Caroline e, diante da impossibilidade de
fazê-lo, pois não houve recursos que não tivessem sido utilizados nas buscas, as
autoridades brasileiras autorizaram John a deixar o país.
John fora chamado à sede de sua empresa, nos Estados Unidos, porém, em razão do
acontecido, decidiram lhe dar mais algumas semanas livres, a fim de mantê-lo no posto
que ocupava havia décadas. Andou sem destino, começou a conversar com as pessoas
na portaria do hotel, depois na praia e, por fim, falava com todos na rua e no calçadão.
Falava em um português rústico, mas, como é peculiar a todos os brasileiros, as pessoas
ansiavam em se comunicar, e assim John foi gradativamente aprendendo o básico do
idioma para não passar fome nem se perder na cidade. Todas as noites eram reservadas
para caminhar até a ponta da praia e ver Lua e sua tribo se apresentarem.
Algo mudara na forma de vê-los desde aquela noite no hotel, algo mudara dentro de
John, só que ele ainda não havia percebido isso. Estava só na busca por si mesmo e,
como todos que caminham só, andava às cegas com suas certezas e atitudes caindo uma
a uma por terra.
John Bonaventura estava passando por uma profunda mudança, no entanto, não a
compreendia, nem sequer a percebia com todo o seu ser. Algo se insinuava
internamente dizendo que nunca mais seria o mesmo homem que fora até aquela altura
de sua vida. Fizera uma pequena lista de possíveis novos e originais talentos, possuía
quatro ou cinco nomes, mas nenhum dos que ele listara estavam interessados em
dedicar-se ao mundo da escrita de forma profissional e sob a demanda da empresa que
John trabalhava. Pela primeira vez na vida, não tinha um único talento para apresentar
aos seus empregadores. Caminhou até a ponta da praia e sentou-se ao lado da estátua do
famoso poeta. A fogueira de Lua estava acesa, e seus amigos estavam presentes. A
jovem mulher o incomodava e atraía mais do que John gostaria de admitir. Não havia
como se aproximar de Lua sem ser acometido de uma profunda ternura.
Noites e noites, quando o remorso vinha incomodá-lo, levava o pequeno pedaço de
pano ao nariz, e o cheiro acalmava seus sentimentos. Era imensamente grato a ela,
alguém que conhecera há semanas e não se simpatizara nem um pouco com sua
filosofia de vida, tampouco com sua forma de se expressar. Entretanto, era inegável o
efeito que a moça tinha sobre seu ser. Ficou sentado, enquanto ela dançava. No final, as
pessoas estavam extasiadas e aplaudiram até Lua se retirar silenciosamente em direção
ao mar. Naquela noite, após sua dança, a tribo começou a juntar as coisas, desmontando
os panos em que expunham seus trabalhos. O ―Compra meu Trampo‖ recolhia suas
esculturas de gosto duvidoso, bem como Aramis seu instrumento. John se aproximou e
perguntou:
– Vocês estão se recolhendo?
– Olha, estamos é indo embora – respondeu ―Compra meu Trampo‖.
– Embora? Como assim?
– Nós não temos mais nada para fazer aqui, vamos seguir em frente...
Aramis se aproximou e continuou:
– Ficamos por aqui tempo demais, agora precisamos ver outras pessoas, vivenciar
outras coisas. Quem sabe no próximo ano voltaremos?
– Assim? E irão para onde?
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Ninguém sabe ao certo. Quem decide é Lua, e ela ainda não nos disse nada, apenas
que partiremos pela manhã.
– E os amigos do hotel, os amigos de vocês?
– Talvez partam também, mas para outro destino.
– Ainda estão no hotel?
– Não sei, você ainda esta lá, não está?
John acenou com a cabeça afirmativamente.
– Bom, espero que sua dor tenha melhorado – disse Aramis se afastando.
Todos recolheram suas coisas. A praia estava particularmente fria e deserta naquela
noite. Sentia-se o vento longínquo do outono soprando em direção à cidade, vindo do
oceano, mesmo faltando ainda um mês para a mudança da estação.
John podia ver Lua à beira da água com as ondas quebrando a seus pés. Caminhava
sozinha de costas para a avenida e seus prédios.
John saiu do calçadão, entrou na grande faixa de areia que compreende a praia de
Copacabana, e caminhou em direção à mulher silenciosamente. Ao se aproximar de
Lua, sem virar-se, ela disse:
– Chegou a hora de partirmos. Tudo embaixo do Sol tem seu tempo, e o meu aqui já
acabou.
John ficou curioso sobre a afirmação da mulher, e mais ainda por ela ter percebido
sua presença.
– Mas vocês partem sem destino?
– Quem disse que não tenho destino?
– Seus amigos.
– O deles é diferente do meu, a partir de agora.
– Mas...
Lua virou-se para o homem. Seu olhar era terno e não havia ironia em suas palavras
agora.
– Tudo o que vemos, John, é apenas uma minúscula parte do que chamamos de
realidade.
– Mas...
– Tudo isso ao nosso redor não passa de entretenimento. A existência é mais que
isso!
– E por isso você parte?
– Parto porque não há mais o que fazer aqui.
Ele deu mais alguns passos, aproximando-se o bastante para ambos sentirem o hálito
um do outro.
– Abra sua mente, John... abra seu coração, ouça seu espírito...
– E para quê?
– Quando você o fizer, descobrirá.
O vento, agora, trazia em sua bagagem pequenas partículas de água pertencentes ao
mar. A chuva fina de água salgada concentrara-se nos cabelos de Lua, e a luz refletida
fazia com que eles brilhassem como pequenas pedras preciosas, conferindo-lhe uma
aparência mágica.
– O que preciso fazer?
– Ter coragem.
– Para quê?
– Para deixar de ser quem você foi até hoje.
– E se eu fizer isso, o que serei? O que me restará?
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A Jornada Alquímica Nigredo
– Tudo, John... Se você deixar de ser quem pensa que é, poderá se tornar o que é de
verdade!
– São palavras complicadas as suas, moça.
– Eu sei, mas nem por isso não são verdade.
Lua caminhava, não fitava John, apenas olhava para seus pés descalços pisando a
areia branca e fria da praia. Ele a seguia tentando manter o ritmo da conversa.
– Como posso ser algo que sequer sei se sou?
– Pois, então, como pode?
– Não sei! Você me diz o que fazer, e eu farei. Tenho alguns dias de férias e... – a
frase morreu na garganta de John.
Sorrindo, Lua parou e olhou-o de cima a baixo com visível carinho humano. Seu
aspecto de entidade divina colocava a mente exata de John em um profundo conflito
entre o que via, pensava e sentia. Abdicara, havia muito, de crenças e crendices. Nunca
se dedicara a nada que não pudesse ser visto ou tocado. Apesar de trabalhar com seres
que lidam com o efêmero, com o mundo das ideias, John jamais tivera noção do que
vinha a ser o não exato. Agora, perdido em seus sentimentos e sensações em uma praia
de um país sul-americano, o homem sentia-se desconcertado na presença da estranha e
encantadora mulher que lhe afirmava haver mais ao seu redor do que suas mãos e mente
pudessem tocar e conceber.
– Não é algo que se possa fazer em alguns dias, John, mas, sim, com todos os dias
que lhe restam nesta existência – disse Lua, afastando-se do homem, em perfeita
harmonia, na fria e misteriosa noite de verão nos trópicos.
John ficou parado no meio da praia deserta. Seus olhos intrigantemente
lacrimejaram, não pela dor de ter perdido um ser humano que estava ao seu lado e deu
fim à existência, mas pelas palavras misteriosas que Lua lhe dissera. Não via coerência
nas palavras da estranha, no entanto, tocavam-lhe profundamente.
O vento açoitava violentamente o rosto do homem, as ondas cresceram
assustadoramente, vindo molhar seus pés e a barra da calça. O frio, não comum nessa
época do ano, causava-lhe arrepios, porém manteve-se imóvel. Ficou perdido dentro de
sua própria mente, dentro do seu próprio espírito e, principalmente, dentro de sua
própria existência.
Na manhã seguinte, a cidade do Rio de Janeiro foi acometida por uma violenta
ressaca, acompanhada de ventos de 100 km por hora. Os meteorologistas chamaram de
furacão tropical. Lua interpretou como um sinal.
Hermes Arauto e Monique Marie partiram cedo. Lá embaixo podiam ver, assim que
a aeronave decolou, as belíssimas praias violentamente castigadas pelo mar. O céu
estava completamente cinza, e o voo levaria quatro horas até o Nordeste do país.
Lua e seus amigos partiram silenciosamente na noite anterior. Na recepção do hotel,
apenas um bilhete foi deixado para o casal de amigos.
―Tão logo a Deusa determine, nos reencontraremos,
Com amor, Lua.‖
Monique guardou o bilhete. Sabia o que a mística queria dizer, percebera que seu
plano existencial começaria verdadeiramente a partir desse ponto.
Hermes, de posse de seu corpo agora sem enfermidade, sentia sua percepção a
respeito de tudo crescer misteriosamente. Olhava para o mundo, no entanto, parecia que
o via pela primeira vez. Especulou o que teria acontecido, caso não tivesse seguido seu
coração. Especulou, ainda, o que seria se o tivesse feito há anos... Tratou de afastar tais
pensamentos, pois uma das formas que a mente tem de nos aprisionar é cogitar o que
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A Jornada Alquímica Nigredo
poderíamos ou não ter feito no passado ou de nos preparar para o futuro que ainda não
existe. Ao se manter vigilante dos próprios pensamentos, Hermes não mais era
comandado por sua mente, mas a comandava. Olhou para Monique, que lhe tocou a
mão gentilmente, como se adivinhasse seus pensamentos. O gesto de cumplicidade
acalentou sua alma. Sorriu e tirou do bolso uma folha de papel amassada. Em cima, lia-
se Hospital Israelita Albert Einstein, atrás havia sua lista de vida. Riscou o item
―apaixonar-se verdadeiramente‖.
O jornal que a comissária de bordo distribuía trazia embaixo do título a data
3/3/2008. Fechou os olhos enquanto a gravidade dentro da aeronave lhe causava frio na
barriga e felicitou-se, dizendo baixinho:
– Feliz Ano Novo!
Dentro da floresta, aos pés da árvore sagrada, Malaki, o sábio, sorriu sinuosamente.
Seu coração estava conectado com o da jovem e bela mulher. Abdias, o pequeno
aprendiz, trouxe-lhes flores coloridas para enfeitar a refeição. No éter, forças
misteriosas confluíam em direção ao seres encarnados nesta dimensão. A floresta
movia-se violentamente sob a força do furacão. Malaki adentrou a gruta dos mistérios,
estava na hora de mergulhar em seu ser e buscar compreensão do que estava por vir. A
criança o seguiu com um curioso olhar, enquanto a tempestade caía ferozmente sobre as
árvores milenares. Tudo agora era cor de chumbo, e Malaki sabia perfeitamente o que
isso significava...
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Sequência...
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