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A PESCA NO RIO TEJO

OS AVIEIROS: Que padrões de cultura?


Que factores de mudança sócio-cultural? Que futuro?
CARLOS LOPES BENTO, professor da Universidade Internacional
É abundante a informação escrita sobre a importância geoestratégica do Tejo, que
durante séculos constituiu a base de uma sólida linha de defesa (1) contra diferentes
invasores (lembremos, entre outros, os romanos, árabes, castelhanos e franceses), mas
escassa sobre o papel que a bacia hidrográfica deste rio poderá desempenhar, do ponto de
vista económico, no desenvolvimento do País e no progresso social e cultural das populações
nela fixadas.
A sua grande riqueza hídrica tem sido apontada como susceptível de aproveitamento
em domínios como: a navegação, a produção de energia, o uso doméstico, a agro-pecuária, a
indústria, o turismo e as pescas, potencialidades que, até ao momento, talvez por falta de
vontade política, capacidade criativa e de projectos integrados e regionais de
desenvolvimento, estão mal utilizadas ou, na maioria dos casos, totalmente desaproveitadas.
Face à limitação da extensão da presente comunicação, não me é possível abordar tão
grande multiplicidade de domínios, debruçando-me, apenas, sobre aspectos liga¬dos à
produção científica relacionada com os pescadores avieiros do Tejo, quer a disponível, quer a
futura.
Mas quais as razões que me levaram a estar presente neste Congresso e à escolha da
temática «pesca e pescadores avieiros doTejo»?
Destaco algumas:
—Ser natural e sido enculturado no alto Ribatejo (Mouriscas), na margem direita do
médio Tejo (2) onde, desde a meninice, até cerca dos 25 anos, tive o privilégio de, no
inverno, contemplar, quase anualmente, a grandeza e a impetuosidade das então indomáveis
e volumosas cheias, por vezes devastadoras, que espalhavam o pânico entre as populações
ribeirinhas e destruíam os seus haveres e, no verão, de utilizar para banhos e para a pesca as
suas límpidas, serenas e curativas águas.
—Ter, por outro lado, atravessado e cruzado, centenas de vezes de barco e a pé (a
vau) o rio, quer por motivos da minha então profissão de moleiro e moleiro-estudante, tendo
até, no período final da 2ª Guerra Mundial, participado no comércio clandestino de cereais,
aproveitando os locais mais recônditos do Tejo para fugir à fiscalização, actividade que se
fazia, geralmente, a altas horas da noite, em condições perigosas.
—A curiosidade de conhecer, mais de perto, estes pescadores, surgida quando, de
1979 a 1983, como investigador, participei no Projecto de I&D intitulado «A reconversão da
pesca artesanal — Problemas Humanos —», comparticipado pela J.N.I.CT. e da
responsabilidade da Sociedade de Estudos de Sociologia e de Antropologia, Ldª (ANTROPOS) e,
nesse âmbito, ter realizado, nos núcleos piscatórios de Alhandra e Vila Franca de Xira,
estudos preliminares de carácter exploratório (3).
—Numa altura em que os recursos aquáticos vivos nacionais caminham para um rápido
esgotamento (4), sem que a maioria dos portugueses tenha disso consciência e das
consequências que, necessariamente, daí advirão para as gerações vindouras, pretender
lançar algumas bases que permitam, em futuros estudos científicos, conhecer, de maneira
global, sistemática e interdisciplinar:
● Os padrões de interacção entre o ecossistema aquático e o sistema sócio-cultural e
suas múltiplas implicações no modo de vida dos mesmos pescadores e no meio ambiente.
● Os factores de mudança sócio-cultural responsáveis por eventuais alterações das e
nas funções e estruturas das suas principais instituições.
Para que o Tejo volte a constituir um ecossistema vivo e funcional e os seus recursos
aquáticos sirvam, em primeiro lugar, a pessoa humana e a comunidade, é necessário tomar
decisões (5) que, para além da necessidade de estarem de acordo com a realidade concreta
actual, exijam, igualmente, que se faça o ponto da situação, quanto à administração das
pescas e dos recursos, de modo a conhecer e a avaliar as lacunas e os erros do passado que,
de algum modo, nos ajudem a compreender os comportamentos e dificuldades do presente e
a lançar as bases correctas do futuro, de modo a permitir uma exploração responsável,
adequada e eficiente das águas e das riquezas do rio Tejo, seus afluentes, esteiros e estuário,
... .
É deveras importante o conhecimento das situações reais do passado, para uma mais
completa compreensão dos muitos problemas que afectam a realidade actual do sector das
pescas, no caso concreto, a que diz respeito aos avieiros do Tejo. Contudo, a produção
científica em relação aos avieiros nem sempre tem primado pela qualidade nem pela
quantidade.
De qualquer maneira, as diferentes formas de conhecimento disponível realçam a
riqueza piscosa do rio Tejo até um passado não muito longínquo e a sua importância na
economia alimentar das populações fixadas nas suas margens e dos seus tributários, com
relevo para grandes aglomerações como Lisboa.
Nos finais do século passado, para além das espécies próprias do seu estuário, ainda
havia certa abundância de barbo, corvina, robalo, linguado, fataça ou muge ou tainha, boga,
sável, lampreia, saboga e enguia, evidência que é confirmada por estudos realizados por essa
altura, isto é, no último quartel do século XIX.
Surge, então, o relatório mandado elaborar pela Sociedade de Geografia de Lisboa,
em 1888, indicando-nos que, nos rios Douro, Mondego e Tejo, na época própria, pescavam-se
a lampreia e o sável, com grande valor económico, mas que, então, já escasseavam as
espécies sedentárias de água doce (barbo, robalo, enguia...) que, pela pequena quantidade
capturada, pouco valor tinham nas pescas (6).
Baldaque da Silva na sua memorável obra — Estado actual das pescas em Portugal — e
no relatório que elaborou para a 2ª Circunscrição do Reino, com base nos dados do Inquérito
Industrial de 1890, oferece-nos importantes referências sobre a pesca no Tejo e os
pescadores que, então, exerciam a faina, que, pela forma como foram recolhidas,
classificadas e interpretadas, devem ser consideradas de confiança e válidas, relativamente,
à época em que foi realizada a observação.
O Inquérito de 1890 referencia os seguintes portos fluviais no Tejo, Vila Franca de
Xira, Alcochete, Aldeia Galega, Muge, Santarém, Constância e Abrantes (pgs. 283 e
284).
Nos referidos portos, segundo o mesmo Inquérito, «em determinadas épocas do
ano é muito importante a pesca que se faz no rio Tejo, não só em todo o estuá rio do rio,
desde a embocadura até Valada, mas também para cima, até muito a montante de
Abrantes» (pg. 287).
Nas temporadas do sável, lampreia e corvina, procuravam os pescadores para
surgidouro os portos fluviais em condições mais favoráveis para a laboração da sua
indústria e escolhiam, geralmente, os que acima indiquei, nos quais, em maior ou menor
escala, sempre se exercia a pesca fluvial, embarcada ou a pé, durante todo o ano (pg.
287 e seguintes).
Nesta data, eram os pescadores ílhavos que emigravam para os rios Tejo e Sado em
determinadas épocas, fazendo moradia a bordo, resguardando-se do vento e da chuva
por meio de um pequeno encerado quadrangular, que atravessavam «da borda avante...»
(pg. 294).
É importante notar que o Inquérito não se referia, ainda, aos pescadores de Vieira ou
da Murtosa como frequentando, temporariamente, o Tejo para a safra do sável, lampreia e
corvina, e, ao mencionar, o porto de pesca da Vieira esclarece-nos que aí os pescadores
se dedicavam à pesca marítima costeira da sardinha, empregando artes de arrastar para
terra, começando os lances de madrugada, repetindo-se até à noite, segundo a maior ou
menor frequência dos cardumes que transitavam pela costa, acrescentando que os
pescadores da Vieira, nas ocasiões de mau tempo, costumavam ir deitar alguns lances no
rio Liz, mas a pesca fluvial, pela pouca importância que merecia, era exercida,
principalmente, pelos habitantes das margens, em geral, amadores (pg. 290).
De acordo com este testemunho, os avieiros do Tejo, apenas, terão vindo pescar para
este rio, por volta de 1900, possivelmente quando diminuiu a frequência dos cardumes de
sardinha que passavam junto a Vieira, facto também confirmado por muitos dos nossos
informadores de Alhandra e Vila Franca de Xira, contrariando os que defendem terem
chegado os avieiros ao Tejo há mais de 200 anos.
A abundância de pesca no Tejo terá assim, há muito, atraído, de Fevereiro até Junho,
muitos pescadores do litoral, que passavam a seguir os movimentos das espécies
migratórias (sável, lampreia e corvina), calculando sempre a duração da faina, de modo a
que o pescado chegasse de manhã aos cais do mercado e assim pudessem fazer a sua
venda a tempo de ser distribuído pelos vendedores ambulantes para consumo desse dia.
Esses pescadores, hoje denominados avieiros, com o decorrer do tempo, começaram,
pouco a pouco, a desligar-se das suas terras de origem e a fixar-se, temporariamente, em
diferentes locais das margens do Tejo, de acordo com as suas necessidades e os seus
interesses, habitando, numa primeira fase, nos barcos ou em barracas de pano, armadas
num abrigado recanto de uma margem, formando, pouco a pouco, vários núcleos, que
chegaram a estender-se de Olivais a Abrantes: Olivais, Sacavém, Póvoa de Santa Iria,
Alhandra, Vila Franca (com vários), Porto Alto, Alcochete, Carregado, Azambuja, Porto
Reguengo, Salvaterra, Palafita, Palhota, Escaropim, Vaiada, Muge, Sabugueiro,
Caneiras (Benfica do Ribatejo), Ribeira de Santarém, Santarém, Vale de Figueira,
Patacão de Baixo, Patacão de Cima, Chamusca, Barquinha e Abrantes (7).
Muitos destes núcleos decresceram de importância ou desapareceram face à
diminuição progressiva das mais importantes espécies do rio Tejo, especialmente, as
migratórias (sável, corvina e lampreia), devido:
—Ao emprego de aparelhos de pesca danosos e prejudiciais à procriação e
desenvolvimento das espécies (redes de arrastar e de emalhar com malha inadequada,
caneiros no meio do rio, tapa-esteiros,...), sobrepesca, pesca clandestina e deficiente
preparação e imprevidência dos pescadores.
—Ao uso de matérias venenosas e explosivas (trovisco, cal, dinamite, granadas de
mão,...).
—À instalação de fábricas poluidoras nas margens do Tejo e seus afluentes (de
celulose, curtumes,...) que tornaram as águas impróprias para a vida animal e vegetal pelas
alterações que os seus resíduos provocaram nas diferentes cadeias tróficas (9).
—As práticas agrícolas e silvícolas deficientes que, para além de agravarem o processo
de erosão, provocaram, através do acréscimo de sedimentos, o desaparecimento dos nichos
ecológicos e consequentes locais próprios para a fixação, esconderijo e desova de muitas
espécies.
—À utilização excessiva, na agro-pecuária, de herbicidas, pesticidas e outros produtos
venenosos que infestaram as águas e dizimaram as espécies.
—À construção de barragens e outras obras de arte que originaram profundas
alterações no regime de correntes, oxigenação e temperaturas das águas, na alimentação e
circulação das espécies.
—Ao desenvolvimento explosivo e desordenado e, por vezes, clandestino da
urbanização sem o conveniente tratamento dos esgotos, que puseram em perigo a vida dos
recursos vivos aquáticos.
—À má gestão e administração dos recursos aquáticos do País, a que não fugiu à regra
parte da bacia hidrográfica do Tejo.
Para além do conjunto de disposições legais tomadas pelos poderes públicos, desde a
fundação da nacionalidade até ao presente (9), e de alguns estudos realizados sobre aspectos
da vida de alguns núcleos dos avieiros do Tejo (19), onde se incluem os já atrás
referenciados, publicados no fim do século passado, o problema da pesca desta classe sócio-
profissional ligado ao ambiente, tecnologia e qualidade de vida, não mereceu, até agora, em
toda a sua extensão e profundidade, uma observação, classificação e interpretação
sistemáticas. Seja uma análise capaz de compreender os padrões interaccionais entre o
ecossistema aquático e o sistema sócio-cultural e as suas implicações na especialização
profissional, nas variedades de equipamentos e técnicas, nos processos de pesca, nos sistemas
de distribuição e de remuneração e na qualidade de vida dos avieiros ligados à actividade
piscatória.
Por estas razões, em virtude da informação disponível obtida, até este momento,
quer através da observação de pessoas quer através da observação de documentos, ser
manifestamente insuficiente para a realização daquele tipo de análise, há que incentivar uma
produção científica que permita, em relação ao passado e ao presente:
—Conhecer, através de um minucioso inventário, os vários núcleos piscatórios
avieiros, ainda existentes e os que foram extintos, desde Sacavém pelo menos até Abrantes, e
o número de pessoas, por sexos e idades, que ainda se dedicam, a tempo inteiro ou parcial,
às artes de pesca e aquelas que, embora resultado de movimentos migratórios de pescadores
(que devem ser identificados no tempo e no espaço) e vivendo nos referidos núcleos,
abandona¬am a actividade piscatória.
—Elaborar cartas de pesca ao longo do rio Tejo, que nos precisem o contorno das suas
margens, os esteiros, a orografia do seu leito, a natureza dos seus fundos, as correntes, os
locais mais piscosos e o movimento das espécies e os seus itinerários sobre as épocas da
desova, para além de particularidades meteorológicas (ventos, temperaturas, insolação,
chuvas,...), isto é, o conjunto dos factores responsáveis pelos padrões de interacção
homem/rio, pelas migrações das espécies, devendo ainda ser conhecidas as opiniões dos
pescadores sobre o ambiente físico e a etno-hidrografia do rio.
—Avaliar se, nas dezenas de núcleos piscatórios, por vezes próximos, existem
variantes sócio-económicas e tecnológicas que nos possam mostrar realidades multifacetadas
quanto a portos de abrigo, à natureza e composição das companhas, à propriedade das artes
e da habitação e formas desta, aos tipos de embarcações e aparelhos, às espécies capturadas,
isto é, se em cada local o pescador teve ou não necessidade de adaptar-se, culturalmente, ao
ambiente, por forma a dar uma resposta compatível com os problemas pelo mesmo
levantados e a poder satisfazer as suas necessidades de sobrevivência.
—Ter uma ideia precisa dos factores responsáveis pela diminuição da variedade e
riqueza das espécies no Tejo e, igualmente, da percentagem de pescadores, alguns já atrás
apontados, e aos quais poderíamos acrescentar os pesados custos dos aparelhos que, devido
às exigências do meio aquático e à diversidade de espécies, não podem ser únicos, exigindo a
posse de um grande número, e ainda os muitos perigos e trabalhos penosos que sofrem.
—Relacionar os tipos de pesca praticados (a pé e embarcada) com as condições de
tempo, época do ano, marés, espécies capturadas, situação geográfica e os diversos tipos de
aparelhos utilizados (de rede, de linha e de cana) com as características do ambiente
aquático, conhecendo a evolução das tecnologias e, porventura, os conflitos gerados entre as
velhas e novas e a influência destas na exploração e renovação das espécies e na alteração da
estrutura sócio-económica existente e, finalmente, quem manufactura os diferentes
aparelhos, em que material, seu custo médio e conservação.
—Conhecer os diferentes tipos e dimensões das embarcações utilizadas pelos avieiros,
de que modo estão adaptadas tecnologicamente às águas do Tejo e a força motriz que
utilizam, quem as constrói e onde, de que material, como se conservam e seu preço médio.
—Avaliar os problemas espaciais e temporais que se põem ao pescado, face às
condições naturais, as espécies migratórias e sedentárias e tecnologia que dispõe, procurando
saber qual a duração da actividade piscatória, as artes que utiliza e as espécies que captura,
ao longo do dia e do ano.
—Determinar a exigência de mão-de-obra face às características do meio aquático do
Tejo e à tecnologia utilizada e o papel da mulher na actividade piscatória, na companha e na
família, como dona de casa e como mãe.
—Relacionar a periodicidade dos recursos aquáticos, as formas de organização social,
a posse dos meios de produção e o sistema de retribuição do pessoal empregado na actividade
piscatória, descrevendo as modalidades que, porventura, este sistema abranja, as suas
variações ao longo do ano e os seus reflexos no modo de vida dos pescadores (habitação,
alimentação, vestuário, ensino, pobreza e segurança social.
—Relacionar as diferentes formas de habitação utilizadas e a sua natureza, com o
ambiente aquático, migrações das espécies, a tecnologia utilizada e os mercados
abastecedores e venda do pescado e as posses do pescador.
—Identificar os padrões alimentares em épocas de abundância e de escassez edurante
as estações do ano, relacionando-os com os recursos aquáticos IS7 existentes e os padrões das
populações ribeirinhas com o desempenho de papéis diferentes dos do pescador, conhecendo
também quem prepara a alimentação, onde e como o faz, a distribui e a que horas, incluindo,
igualmente, as bebidas utilizadas durante e fora das refeições e o significado da sua
utilização.
—Tipificar os padrões relativos ao vestuário e compará-los com os das populações
rurais ribeirinhas, com as disponibilidades económicas, períodos diurnos e sazonais da
actividade, destacando o vestuário utilizado durante a faina, por ambos os sexos, e fora dela,
quer em dias normais quer em dias especiais (baptizados, casamentos, festas,...), quem e
onde se confecciona e a que preços.
—Conhecer as diferentes instituições sociais em que o avieiro se integra, desenvolve e
relaciona ao longo do ciclo da vida, quais os principais agentes responsáveis pela enculturação
e socialização, a constituição e estrutura da família, as funções desta, da escola e da igreja
naqueles processos e as condições ecológicas onde exerce a actividade, realçando-se o
analfabetismo generalizado e a sua relação com a compreensão dos processos de mudança, a
aceitação de novas tecnologias e as novas maneiras de enfrentar e explorar os recursos
aquáticos e, ainda, as manifestações simbólicas relacionadas com o modo de vida dos avieiros
e os perigos que correm durante a faina.
—Avaliar as situações de dependência dos pescadores avieiros em relação a
comerciantes, agricultores, casas de penhor e outros, e as formas de solidariedade social e
inter-ajuda a nível dos poderes públicos e da sociedade civil que, em momentos de carência,
penúria e doença, serviam de apoio aos ditos pescadores e suas famílias.
—Inventariar as espécies capturadas, o seu tratamento, formas de distribuição e
preços e descrever os processos utilizados com certas espécies, destinados a manter na
produção o nível dos ditos preços.
(Continua)
OS AVIEIROS DO TEJO(II)
(Continuação)
Este conjunto de aspectos a observar, a classificar e a interpretar de forma
sistemática não procura ser completo e exaustivo, mas apenas mostrar a complexidade da
realidade sócio-cultural que procuramos conhecer com a ajuda do método científico da
investigação.
A comunidade dos avieiros parece encontrar-se, actualmente, ameaçada de extinção,
desconhecendo-se ao certo o número dos seus elementos (1000, 1500, 2000 ou mais?) e como
vivem, qual o seu potencial económico e serviços que ainda presta ou poderá vir a prestar à
colectividade, através do fornecimento de produtos da pesca.
Trata-se de uma singular comunidade de pescadores, única no País, segundo
julgamos, quanto ao modo da sua formação e aos valores dos seus membros, produto dum
conjunto de respostas que foram capazes de dar às exigências de um meio ecológico
especifico: tornaram-se pescadores nómadas, a quem alguém chama «ciganos do mar», que
até há poucos anos viviam nos barcos, locais onde lhe nasciam os filhos, tornando-se as
mulheres, além de governantes da casa, também pescadoras, o que é pouco vulgar entre a
classe dos pescadores.
Estamos perante um património cultural raro que urge e necessita de um estudo
interdisciplinar, sistemático e global, que aborde as múltiplas facetas da experiência humana
desta comunidade, pois, um dia, que talvez não esteja tão longíquo como parece, quando se
reconheça o seu valor científico e cultural, poderá acontecer que já não se encontre alguém
para contar as memórias e os valores desta gente.
Qualquer projecto de I&D a concretizar poderá ter como objectivos principais:
—Obter um conhecimento profundo e, numa perspectiva «emic» e «etic», uma visão
dinâmica, completa e global dos avieiros dos diferentes núcleos, de modo:
● a desvendar as interacções e inter-relações que eles estabeleceram entre si, com o
ambiente, comunidades e sociedades vizinhas e com o sobrenatural;
● a destacar as forças dinâmicas e contraditórias que se agitam no seu seio, os
valores, objectivos, normas e instituições que, porventura, sejam favoráveis a quaisquer
acções de desenvolvimento a levar a efeito junto deste grupo sócio-profissional ou, pelo
contrário, sejam susceptíveis de não corresponder às suas exigências por constituírem
obstáculos que as impeçam ou condicionem.
—Compreender o processo de mudança gerado no interior desta comunidade
piscatória e entre os seus elementos, em consequência do impacto de factores como: a
industrialização, a urbanização, a poluição nos seus diferentes aspectos, os meios de
comunicação, a educação, a sobrepesca, as novas tecnologias, a pesca clandestina, a
construção de barragens, etc., e conhecer as reacções culturais, sociais e económicas daí
resultantes.
—Perceber o inter-relacionamento das principais variáveis relacionadas com qualquer
programa de transferência tecnológica, das quais depende o seu sucesso ou fracasso.
—Proporcionar a todos os responsáveis pela planificação, decisão e acção uma
informação qualitativa e quantitativa capaz de mostrar as verdadeiras potencialidades deste
grupo sócio-profissional, os seus problemas e reivindicações.
—Contribuir, cientificamente, para evidenciar a necessidade de uma abordagem
interdisciplinar, para desenvolver hipóteses para futuros estudos e obter informações sobre as
possibilidades práticas de realizar investigação em ambientes concretos e reais (11).
Perante uma população piscatória avieira, na maioria analfabeta, envelhecida,
tecnologicamente pouco avançada, tecnicamente impreparada, nem sempre motivada para
mudança e em vias de desaparecimento por falta de renovação (12), e quando continua a não
compreender-se que a pesca, como actividade predatória e como recolecta que continua a
ser, está condenada a desaparecer ou, pelo menos, a ter um significado mínimo para a
economia do País julgo ser indispensável alterar a situação, quer a nível da pesca fluvial quer
da pesca marítima (13).
Será de recordar que há alguns milhares de anos, alguns seres humanos, por razões de
ordem ecológica e de necessidade (14), acabaram por constatar haver mais garantia em
domesticar animais do que persegui-los e mais útil cultivar plantas do que estarem sujeitos às
que a natureza, espontaneamente, lhes oferecia.
Também nos nossos dias, muitos países, face ao progressivo aumento da procura de
proteínas e às crescentes dificuldades verificadas no exercício da pesca, chegaram à
conclusão ser inevitável conservar e cultivar os recursos aquáticos, tratando-os de modo
idêntico ao utilizado para os ecossistemas cultivados, o que entre nós ainda não se constatou
apesar de há 100 anos se ter pensado seriamente na piscicultura e aquacultura (15).
Em jeito de conclusão, direi que em Portugal é necessário e inadiável que a Ciência
forneça o máximo de conhecimento, de modo a:
—Ensaiar novas maneiras de encarar o fomento e a administração de todos os seus
recursos aquáticos.
—Conhecer o inter-relacionamento das principais variáveis ligadas com qualquer
programa de transferência tecnológica.
—Compreender o processo de mudança gerado nas diversas comunidades piscatórias
devido ao impacto de diversos factores e as reacções sócio-económicas e culturais daí
resultantes.
Notas
(1) São testemunhos, em território português, os castelos de Lisboa, Santarém,
Almourol, Abrantes, Belver, Amieira e Vila Velha de Rodão, situados, com excepção do de
Almourol que fica no meio do rio, nas margens do Tejo.
(2) Araújo Correia, na sua obra «O Tejo», divide, em Portugal, a bacia hidrográfica
deste rio, em três zonas: a 1ª que vai de Lisboa a Tancos; a 2ª de Tancos a Belver; e a 3ª de
Belver à fronteira.
(3) Também os mesmos estudos foram realizados no rio Sado, tendo aí por objectivo o
conhecimento doa avieiros que, vindos do Tjjo, aí se fixaram, igualmente, na actividade
piscatória.
(4) Como resultado de: uso de aparelhos com malhagan imprópria, o aumento
demográfico, a sobrepesca, a poluição de natureza vária, a impreparação dos pescadores e as
suas dificuldades em entender os processos de mudança, circuitos de produção e distribuição
defeituosos, a falta de pesquisa social, e a má gestão e administração dos recursos aquáticos.
(5) Decisões que não devem ser apenas e necessariamente tomadas a nível do poder
político, mas, especialmente, a nível de novas formas de organização social criadas no seio da
sociedade civil, que assentem, essencialmente, nas tradicionais formas de solidariedade
social.
(6) Para maior esclarecimento sobre o assunto ver «Organização do Serviço de Pescas»
elaborado pela Sociedade de Geografia de Lisboa por João Mendes Guerreiro e Outros.
(7) Dados extraídos dos meus «Diários de Campo» relativos à observação realizada
entre os avieiros, em Vila Franca de Xira e Alhandra, de 1979 a 1983.
(8) O problema já preocupava os poderes públicos em 1897, pois, nesse ano, o
Decreto de 21 de Janeiro, de modo a obstar à «polluçao» das águas dos rios, estabelece
normas relativas ao licenciamento de indústrias ao longo dos mesmos rios, mas parece sem
grande expressão na prática, face aos casos concretos actualmente existentes.
(9) Os objectivos essenciais desta legislação, de natureza essencialmente política e
administrativa, era solucionar os conflitos e atenuar as tensões surgidas por causa: dos
processos de pesca serem de natureza muito diversificada, das situações sócio-económicas
diferentes e das pressões exercidas por uns grupos contra outros, estando a dita legislação,
raras vezes, voltada para a conservação e administração técnica e científica das pescas.
(10) Entre outros, referirei os de Alves Redol, Margarida Ribeiro, Francisco Câncio,
Luis Chaves, Micaela Soares, Jorge Massada, Marino Coelho e Alexandre Cancelas.
(11) Em 1984, apresentei a uma Universidade privada portuguesa um Projecto de
Investigação e Desenvolvimento intitulado: «Comunidades Piscatórias do Tejo — Os Avieiros»,
que por falta de meios financeiros não teve aprovação.
(12) O fenómeno não é apenas característico dos avieiros, mas constata-se, de um
modo geral, a nível nacional.
(13) Não se compreende muito bem como um País como Portugal, com a dimensão da
sua Z.E.E., com tão extensas bacias hidrográficas e com alguns rios de amplos estuários,
continue a importar, anualmente, milhões de contos de pescado (em 1986 segundo indicações
oficiais, as importações atingiram 25 milhões de contos).
(14) Estava em jogo a capacidade de carga de cada ambiente, que não podia ser
ultrapassado, sob pena de colocar em perigo a própria sobrevivência do próprio grupo.
(15) Basta recordar o Decreto de 30 de Setembro de 1894, que aprova o Regulamento
para a exploração de instalações permanentes de pesca, estabelecimentos de piscicultura e
viveiros de peixe nas águas públicas.
Bibliografia
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1977.
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