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Arquitetura Vernacular no Brasil:

necessidade de inventário e estudo

Dr. Augusto da Silva Telles


Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Esta comunicação que estamos apresentando ao Congresso do Barroco Ibero-


Americano pretende levantar alguns pontos de reflexão e de instigação à pesquisa no
campo da Arquitetura Vernacular, até hoje pouco analisado em profundidade, e de
forma abrangente em toda a extensão do território nacional. Arquitetura Vernacular
é aquela feita por autor, a mais das vezes, anônimo, sem formação profissional espe-
cializada; arquitetura baseada no saber do povo. Para isso, enfocaremos o acervo
dessa arquitetura que se fez no Brasil nos séculos XVI ao XIX e, especialmente, a ar-
quitetura civil, urbana e rural.
Em 1987, por ocasião do 1o Congresso do Patrimônio Luso no Mundo, realiza-
do em Lisboa, pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa,
apresentei como comunicação, essa proposta, que, no entanto, por razões da pro-
gramação, não foi lida, substituída por um simples resumo, e muito menos foi pu-
blicada, conservando-se inteiramente inédita. Agora, revimos o texto, e atualiza-
mos as informações referentes às pesquisas realizadas nesse campo da Arquitetura
Vernacular, anotando as ocorridas nesse interregno, até os dias presentes.
Em 1990 foi aprovada e divulgada pelo ICOMOS, a “Carta do Patrimônio Cons-
truído Vernacular”, que fora ratificada por sua XII Assembléia Geral, reunida na cidade
do México, em outubro daquele ano.
Em outubro de 1995, o IPHAN realizou o “Encontro de inventários de conhe-
cimento”, a partir dos levantamentos realizados, visando o cadastramento e / ou a
melhor compreensão dos bens de valor cultural, isolados e os integrados em con-
juntos urbanos ou rurais. Dessa reunião, resultou a publicação de inventários de
Identificação, organizada por Lia Motta e Maria Beatriz Resende Silva, IPHAN,
1998 e a troca da denominação, ‘conhecimento’ por ‘identificação’, segundo a ti-
tulação da UNESCO.
A Carta da UNESCO, assim define a Arquitetura Vernacular: “importante, por
ser a expressão fundamental da cultura de uma coletividade, de suas relações com
o território e, ao mesmo tempo, a expressão da diversidade cultural do mundo” e
884 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano

continua: “A construção vernacular é o meio tradicional e natural pelo qual as


comunidades criam seu hábitat”.
Em oposição a essa arquitetura vernacular situa-se a arquitetura erudita, “sabi-
da”, no dizer de Mário de Andrade, da maior parte das edificações religiosas - ma-
trizes, conventos e mosteiros, igrejas de irmandades e de ordens terceiras, das mi-
sericórdias - assim como das casas de câmara e cadeia, de governo, e de
espetáculos e também, da maior parte das casas dos senhores de engenho, dos
comerciantes, edificações que se destacam nas cidades ou fora delas, e que cons-
tituem acervos já razoavelmente bem estudados por pesquisadores brasileiros e
estrangeiros. As influências portuguesas de seus programas, de seus partidos arqui-
tetônicos, e o estudo de sua evolução no tempo e sua diversificação nas diferentes
áreas sócio-econômicas têm sido estudadas e anotadas em sucessivas publicações
e artigos em revistas. Eu mesmo, em 1980 preparei uma resenha da bibliografia
crítica da arquitetura barroca no Brasil, por ocasião do Congresso do Barroco Lati-
no-Americano, realizado em Roma, coordenado pelo IILA.
Tentaremos, para o simples efeito de apontar alguns rumos para essas ano-
tações, dividir essas construções da arquitetura vernacular em dois grupos: as urba-
nas e as rurais.

Arquitetura Urbana
As casas urbanas, térreas e assobradadas, que, colando-se umas às outras,
formaram as ruas e praças das diversas cidades brasileiras - e continuam formando,
nos núcleos urbanos que conservam seus acervos arquitetônicos históricos – apre-
sentam, em sua quase totalidade, um programa muito semelhante entre si, confor-
me tem sido enfatizado por muitos observadores e estudiosos. Construções que,
na sua maioria, apresentam-se singelas, sem afetação, como observou Lucio Cos-
ta, procurando apenas atender ao programa de morar e de trabalhar de seus pro-
prietários ou moradores. Diferenciam -se, no entanto, segundo a técnica e o mate-


Citada por Lúcio Costa em “Documentação Necessária”, Revista do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, 1, Rio de Janeiro, 1937.

Augusto da Silva Telles, “O Barroco no Brasil, análise da bi¬bliografia crítica e colocação
de pontos de consenso e de dúvidas” - (comunicação ao Colóquio Barroco Latino-America-
no, realizado em Roma, no IILA, em1980), in Revista do P.H.A.N., 19 – Rio de Janeiro, 1984.
Posterior a esta bibliografia: História Geral da Arte no Brasil, org. por Walter Zanini, textos
de Benedito Toledo e Mário Barata, S. Paulo, 1983, 2 vols. Arte no Brasil, texto de Carlos
Lemos, S. Paulo,1979, 2vols.

Sylvio de Vasconcellos, Vila Rica, Rio de Janeiro, INL, 1956, que cita Vauthier e Debret. Pau-
lo Thedim Barreto, “O Piauí e sua arquitetura” in Revista do P.H.A.N., 2, 1938. Robert Smith,
“A Arquitetura Civil no Período Colonial”, in Revista do P.H.A.N. 17, Rio de Janeiro, 1969.

Cf. nota 1.
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rial de que são feitas, em sua adaptação aos diferentes sítios e por uma evolução de
forma no tempo, quanto ao tratamento de seus elementos constitutivos.
I - Nas cidades localizadas na faixa litorânea, desde o Pará, o Maranhão, o
Nordeste, a Bahia, o Rio de Janeiro até o sul, a casa residencial, construída robus-
tamente de alvenaria de pedra e cal é, na sua quase totalidade, filha das portuguesas
das áreas litorâneas de Lisboa, Porto, do Minho e, mesmo, dos Açores. O uso da
cantaria ou de molduras de massa nas guarnições dos vãos, nos cunhais, nas cima-
lhas, o emprego das beira-seveiras nos beirais, assim como, a utilização nos vãos, das
vergas retas, curvas, de plena-volta, estas últimas no século XIX, são todos elementos
e formas que coexistiram aqui e em Portugal. O próprio revestimento azulejar em
edificações brasileiras do dezenove, que poderia ter precedido igual uso na Metrópo-
le, conforme propôs Santos Simões – o que seria uma influência torna-viagem, leva-
da para lá pelos “brasileiros” – poderá ser, ao contrário, mais uma influência lusa no
Brasil, conforme deduziu Dora Alcântara a partir de estudos mais recentes, baseados
em documentação, de importação de azulejos no Maranhão.
No entanto, essas mesmas edificações urbanas vão se diferenciar entre si,
quando as analisamos a partir de suas fachadas voltadas para os fundos, para os
pátios ou jardins. Normalmente essas facha¬das que se relacionam com a parte
íntima da casa, com a sala de estar, a “varanda”, e com o “correr” de serviço, apre-
sentam-se com feição muito mais leve, com domínio dos vãos, estruturadas que
são, por elementos verticais de alvenaria, e travamentos horizontais – madres e
frechais – de madeira. É no Nordeste – até o Maranhão – que estas características
se evidenciam mais generalizadamente com maior clareza. Assim, as casas do Ma-
ranhão, do Piauí e do Ceará possuem largos alpendres envolvendo todas as suas
fachadas posteriores, que funcionam como sala de estar – a varanda – do viver
doméstico, e que se estendem ao longo do puxado; alpendres totalmente protegi-
dos por caixilharias contínuas de venezianas, ou, mesmo, que são inteiramente
abertos, desguarnecidos de qualquer proteção. Os beirais são longos, balanceando
cerca de metro dos frechais, os quais, por vezes, apresentam-se baixos - conferindo
pés-direitos também baixos aos cômodos da casa - tudo, no sentido de protegê-la
da inclemência do sol, forte e agressivo, e das violentas chuvas tropicais.
Alguns inventários e estudos regionais têm sido realizados, sem que, no entan-
to, até o presente, tenha sido analisada essa arquitetura de forma crítica, em um
panorama global do acervo brasileiro. Realizados com maior extensão e detalha-
mento foram os levantamentos da arquitetura urbana de São Luís e de Alcântara no
Maranhão; de Sobral, Icó, Crato e Aracati, no Ceará; de cidades do interior de Per-
nambuco; e do acervo urbano de valor cultural do estado da Bahia, além dos in-
ventários realizados nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
das arquiteturas das regiões dos imigrantes alemães, italianos, poloneses, et, tanto
das edificações pertencentes aos núcleos urbanos quanto as isoladas, em fazendas


J.M. dos Santos Simões, “Azulejaria no Brasil”, in Revista do P.H.A.N. 14, Rio de Janeiro, 1959.

Dora Alcântara, Azulejos portugueses em São Luiz do Maranhão, Rio de Janeiro, 1980.
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ou pequenos povoados. Merecem menção especial os inventários dos bens cultuais


da Bahia, realizados pela equipe do nosso colega, arquiteto Paulo Ormindo de Aze-
vedo, que abrangeu toda a área do estado, e que, ao correr do trabalho foram sendo
aprimorados, resultando em uma publicação com 6 volumes de fichamentos.
II – Nas cidades do interior do Brasil, do ciclo do ouro e dos diamantes de
Minas, Goiás, Mato Grosso, ou da Chapada Diamantina, da Bahia, assim como do
planalto paulista, apesar de as casas residenciais conservarem, de forma geral, o
mesmo programa comum, evidencia-se uma maior dessemelhança entre elas, no-
tadamente pela diversidade de material de construção empregado e da técnica
construtiva. Assim, a taipa-de-pilão utilizada no planalto paulista, e que migrou
para Minas, Goiás e Mato Grosso; o uso de estrutura autônoma de madeira com
vedação em paus-a-pique ou em adobes, dominante em Minas, em Goiás, no Vale
do Paraíba, na Chapada Diamantina; além das alvenarias de pedra e cal, usadas
nas épocas de maior enriquecimento do ciclo do ouro e das pedras, tudo isso con-
fere à arquitetura das cidades proporções e características distintas.
A arquitetura vernacular urbana das Gerais constitui um dos acervos brasilei-
ros da maior importância e variedade, a despeito da singeleza de cada uma das
edificações. Nelas, devem ser notados os detalhes de acabamentos construtivos e
decorativos que, em muitos casos, apresentam especial apuro. Semelhanças com
casas de Lamego nas cercanias da Catedral, com edificações da praça da Casa da
Câmara de Guimarães, e com casas de Bragança, podem ser encontradas em edifi-
cações de estrutura autônoma de Ouro Preto, Mariana e Diamantina. Por sua vez,
as dessemelhanças nas proporções, no posicionamento diante do logradouro em
que se situam, no colorido, no ritmo dos vãos e cheios, entre os diferentes acervos
das cidades mineiras, estão ainda por ser mais bem analisadas e estudadas. O ca-
sario despretensioso, com estrutura autônoma de Ouro Preto – da rua Santo Anto-
nio, dos Paulistas, da Glória, do Ouvidor, do trecho da Praça Tiradentes entre a rua
Direita e os fundos da Igreja do Carmo – e, em Mariana, da Praça Conde BobadeIa,
convive ao lado das edificações mais sólidas e apuradas da rua Direita, do Carmo,
da Praça Tiradentes, em Ouro Preto, ou da rua Direita, em Mariana.
Características próprias apresentam outros acervos mineiros: - o da cidade de
Tiradentes, com suas edificações, na sua maioria térreas, feitas de “moledo” (blocos
de saibro cortados e usados como alvenaria) e que apresentam proporções com do-
minância horizontal; o do conjunto de sobrados próximo à matriz de Itabirito, com


A Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Ceará realizou levantamentos exten-
sos da Arquitetura de São Luiz e Alcântara, no Maranhão, e de Icó, Aracati e Sobral no Ceará,
sob a coordenação do Arquiteto José Liberal de Castro,¬ que é autor, igualmente, do estudo
Notas Relativas à Arqui¬tetura Antiga no Ceará - tese de docência, Fortaleza,1980. Paulo
Thedim Barreto citado na nota 3. Olavo Pereira da Silva , Arquitetura Luso-Brasileira no Mara-
nhão, 1986. A FIAM, órgão do Estado de Pernambuco, tem realizado inventários da Arquitetu-
ra do interior do Estado, tendo publicado um primeiro volume: Plano de Preservação dos sítios
Históricos do Interior: Municípios do Litoral e do Circuito da Fazenda Nova, Recife, 1982.

A arquitetura de Ouro Preto foi estudada por Sylvio de Vasconcellos, Cf. nota 3.
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seus alpendres - à feição de casas semi-rurais do Minho - que mereciam ter uma
proteção especial, por sua excepcionalidade no acervo brasileiro; outro acervo a ser
pesquisado é o das edificações civis, urbanas, da área do vale do rio Piranga, onde
já foi levantado o acervo religioso que se mostrou do maior interesse.
Da mesma forma pode-se verificar que, enquanto em Diamantina predomi-
nam edificações assobradadas de pequeno porte que se sucedem lado a lado, com
estrutura autônoma de madeira, em que o colorido variado e rico em seus contras-
tes é um dos mais importantes componentes dessa arquitetura, a cidade do Serro,
distante poucos quilômetros, apresenta-se completamente diferente; nela, os sobra-
dos têm maiores dimensões, os elementos construtivos – cunhais, cimalhas – apre-
sentam-se fortes, comparecem varandas ladeando os sobrados, e estes não se co-
lam uns aos outros, conforme é usual na arquitetura urbana luso-brasileira, de
maneira a formar, entre eles, becos estreitos de acesso aos quintais. Evidentemente,
o visitante que chega a uma dessas cidades observa muito viva a origem comum
lusa, mas dessemelhanças igualmente existem lá em Portugal, entre norte e sul,
entre litoral e interior.10 Cremos que há urgência de ser realizado, sistematicamen-
te, um estudo comparativo desses acervos com a arquitetura de Portugal, assim
como dos acervos de cada uma dessas cidades com os das demais cidades mineiras
e com os de outras cidades brasileiras. Assim, há necessidade de ser realizado in-
ventário e estudo dos conjuntos urbanos das diversas cidades do ciclo do ouro e
dos diamantes e daquelas pelo mesmo influenciadas, como Goiás, Pirenópolis,
Pilar de Goiás, Corumbá de Goiás em Goiás; Natividade em Tocantins; São Luiz de
Paraitinga, Bananal, e vestígios ainda existentes no Vale do Paraíba, em São Paulo
e Rio de Janeiro, e as cidades da Chapada Diamantina na Bahia - Rio de Contas,
Lençóis, Andaraí etc. - assim como Cuiabá e Mato Grosso, no estado de Mato Gros-
so. Alguns inventários foram feitos há poucos anos em cidades de Goiás, pelas
equipes das “Oito Vertentes”, e também em Minas, pelas equipes da Superinten-
dência Regional do IPHAN e pelo IEPHA/MG11.
Da arquitetura urbana primitiva do planalto paulista, especialmente da cidade
de São Paulo, de taipa-de-pilão, lamentavelmente pouco se conhece, por ter sido
perdida a quase totalidade de seus exemplares, demolidos na viragem dos séculos
XIX e XX, quando a cidade tornou-se uma grande metrópole, verticalizando-se.
Documentos importantes para o conhecimento da maior parte desse acervo perdi-
do, são as fotos novecentistas do fotógrafo Militão Augusto Azevedo. Estudos de
Luiz Saia e de Carlos Lemos, feitos a partir dos poucos vestígios conhecidos, de
iconografia antiga, e de descrições documentais, mostram ter sido ela de notável


Selma Melo Miranda. “Arquitetura Religiosa no Vale do Piranga”. Revista Barroco, 13. Belo
Horizonte, 1984/5.
10
Para um melhor conhecimento da arquitetura vernacular em Portugal veja a publicação da
Associação dos Arquitetos Portugueses. Arquitectura popular em Portugal. Lisboa, 1980.
11
Oito Vertentes e dois momentos de síntese - Natividade, Goiânia, 1985. E relatório, original
datilografado, da visita a Diamantina e Serro do Prof. Arq. Edgard Greiff. Fernando Machado
Leal, “A antiga comercial Vila dos Lençóis”. In: Revista do P.H.A.N., 18, Rio de Janeiro, 1978.
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importância, com características próprias, algumas que se podem melhor aferir


pela comparação com as dos remanescentes da arquitetura rural.12

Arquitetura Rural
I - Com o início da colonização, instalou-se aqui no Brasil um amplo empreendi-
mento agrícola, o da cana-de-açúcar, com a criação dos engenhos como unidades
produtoras; empreendimento que perdurou pelos séculos XVI, XVII e XVIII. Portugal já
conhecia a produção de açúcar nas ilhas dos Açores e Cabo Verde, mas aqui, com a
enorme extensão territorial, os programas tiveram de ser completamente alterados,
ajustados a uma nova realidade. O acervo arquitetônico dos engenhos, com todo seu
complexo edificado, é assunto já estudado, tanto dos pontos de vista econômico, social
e político, quanto arquitetônico.13 Na sua maior parte, os engenhos que se instalaram
no Nordeste, na Bahia, no Rio, mas, também, no litoral paulista, pertencem mais a uma
arquitetura que temos denominado erudita, feita por e para uma classe dominante,
produtora de riquezas, relacionada diretamente com a Metrópole.
II - Coetâneo igualmente do início da colonização é um outro conjunto arquite-
tônico, que foi produzido no planalto paulista, e relacionado com o movimento das
entradas e bandeiras. Edificações com caráter totalmente diferente das dos engenhos
– de taipa-de-pilão, compactas, sóbrias – essas casas ditas “bandeiristas” têm sido,
também, suficientemente inventariadas, analisadas e estudadas, tanto em seu contex-
to sócio-econômico, quanto de obra arquitetônica. Os estudos publicados por Luiz
Saia, Carlos Lemos, Aracy Amaral e Júlio Katinski14 (14) cremos terem esgotado o
conhecimento desse acervo, bem como as influências que tiveram em outros sítios,
tais como Minas Gerais, Goiás, Rio de Janeiro.
III - No entanto, um imenso acervo da arquitetura rural de feição vernacular
existente por todo o interior brasileiro, das áreas onde a riqueza era menor, ou
daquelas mais afastadas dos polos econômicos e políticos - arquitetura despojada
e singela - tem sido, com raras exceções, pouco ou nada inventariado e muito me-
nos estudado. As edificações produzidas – apesar da ausência de um inventário

12
Luiz Saia, Morada Paulista, São Paulo, 1972. Pedro Corrêa do Lago. Militão Augusto Aze-
vedo, São Paulo nos anos de 1860 – São Paulo, Capivara, 2001.
13
Giberto Freyre. Casa Grande e Senzala, Rio de Janeiro, 1950, 2 vols. IPAC/BA - Inventário
de Proteção do Acervo Cultural, coordenaçâo Paulo O.D. Azevedo, 6 vols. Publicados.
Salvador, ¬1975/78/80/82/88. Wanderley Pinho. História de um Engenho do Recôncavo,
Rio de Janeiro, 1946. FIAM - citado na nota 7. Luiz Saia, citado na nota 12. Alberto Lamego.
O Homem e o Brejo, Rio de Janeiro, 1945, e O Homem e a Restinga, Rio de Janeiro, 1946.
Joaquim Cardozo. “Um tipo de casa rural do Distrito Federal e do estado do Rio de Janeiro”,
in Revista do P.H.A.N. 7, Rio de Janeiro, 1943. Esterzilda B. de Azevedo. Arquitetura do
açúcar, São Paulo: Nobel, 1990.
14
Luiz Saia - citado na nota 12. Carlos Lemos - citado na nota 12. Júlio Katinski. Casas Ban-
deiristas, São Paulo, 1976. Aracy Amaral. A hispanidade em São Paulo, São Paulo, 1981.
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completo - podemos informar com segurança, apresentam características arquite-


tônicas diversificadas e utilizaram-se de materiais e técnicas construtivas distintas,
de acordo com os contextos sócio-econômicos e geográficos e com a região em
que eles se situam.
Assim, poderemos anotar todo um grupo de construções relacionadas com a
pecuária e que, desde o início do século XVII, se espalhou pelo Vale do São Francis-
co, pela região do agreste e do sertão do Nordeste até o sul do Ceará e do Piauí;
outro grupo integra as fazendas e sítios de subsistência ligados à mineração das Ge-
rais, de Goiás, e os vestígios do caminho de tropas de muares, a partir dos estados do
Sul, passando por São Paulo, até as Minas Gerais; um terceiro liga-se à pecuária ma-
togrossense e à produção da erva-mate no Paraná e no sul do Mato Grosso.
De todos esses grupos conhecemos, até agora, apenas algumas unidades in-
ventariadas que, no entanto, servem para nos indicar a qualidade excepcional des-
ses acervos de edificações; sóbrias e desataviadas de qualquer preocupação formal,
demonstram entretanto, uma especial saúde plástica.
IV - Das extensas fazendas de gado que serviram de apoio aos engenhos mo-
nocultores de açúcar do Recôncavo e do Nordeste, e que ocuparam todo um ex-
tenso sertão, pelo Vale do São Francisco e pelo agreste do Nordeste, foram anota-
dos alguns poucos exemplares até agora conhecidos, como a Fazenda Acauã, no
município de Aparecida, na Paraíba, e a casa da Fazenda Cachoeira do Taépe, em
Surubim, Pernambuco.15 (15) A casa da Fazenda Acauã é constituída de dois mó-
dulos anexos, um térreo, mais antigo, envolvido por alpendres e em telha-vã, para
melhor aeração e proteção térmica e o outro, de um sobrado e capela do dezoito,
algo mais requintado, incluindo pinturas na capela. A casa do Taépe, descoberta
há poucas décadas, é edificação de extrema sobriedade, assobradada com peque-
nas varandas e escadas externas, e se apresenta como obra de proporções exempla-
res. Todas essas duas edificações são de taipa sobre embasamento de pedra.
Essas fazendas de pecuária ligadas à gente do Recôncavo, aos engenhos do
Nordeste, às excursões de homens de São Paulo, às bandeiras de preamento de
índios para o comércio de escravos e aos padres da Companhia, estenderam-se até
o Piauí, onde legaram alguns exemplares da arquitetura rural até hoje existentes,
como os que se localizam nos municípios de Oeiras, de Piracuruca, de Campo
Maior. São edificações envolvidas quase totalmente por alpendres, as paredes são
de taipa sobre uma armação de troncos de carnaúba ao alto e de embiras amarra-
das com tiras de couro. Toda a armação dos telhados, inclusive os caibros que
servem de apoio às telhas, são igualmente de carnaúba. As paredes que terminam
a meia altura, os alpendres abertos entre o guarda-corpo e o frechal e os telhados
em telha-vã garantem uma aeração indispensável em clima que mantém altas tem-
peraturas durante o ano todo.16 Acervo que apesar dos inventários realizados pelas

15
Luiz Saia. Residências rurais do Brasil Colônia - tese de docência, São Paulo, 1958. FIAM,
citado na nota 7.
16
Paulo Thedim Barreto, citado na nota 3.
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equipes do IPHAN, não mereceu, ate hoje, um cadastramento contínuo, e da tota-


lidade dessa extensa área do agreste nordestino. No vale do São Francisco baiano,
o IPAC realizou o inventário arquitetônico, e em Pernambuco a FIAM vem inven-
tariando o acervo do agreste e do sertão, assim como o acervo arquitetônico cultu-
ral do Piauí foi, em grande parte cadastrado, pelas equipes do IPHAN.
V - Das fazendas de subsistência ligadas à mineração em Minas e Goiás, conhe-
cemos apenas os exemplares mais notáveis, corno os da Boa Esperança ou do Rio
São João em Minas, ou da Babilônia em Goiás, edificações de grande porte e nobre-
za de proporções; umas mais toscas, corno a Babilônia, outras mais requintadas,
corno a da Boa Esperança, em cuja capela existem painéis pintados por Manoel da
Costa Ataíde.17 No entanto, pouco ou nada conhecemos das casas das pequenas fa-
zendas, de ranchos, de antigas vendas de toda essa imensa região. Igualmente é to-
talmente desconhecida inclusive a possibilidade da sobrevivência de vestígios do
caminho de tropas de muares que, vindos do Rio Grande do Sul, eram comercializa-
dos em São Paulo, em Sorocaba, para atingirem as Minas Gerais.
VI - Outra área que, até hoje, é pouco ou nada conhecida é a do Mato Grosso
do Sul, área de pecuária desde o século XVIII e, juntamente com a do Paraná, do
comércio da erva-mate. Referente a esta última atividade, conhece-se apenas um
exemplar subsistente, próximo a Curitiba, edificação de um antigo moinho de mate.
Construção de alvenaria de pedra com estrutura e maquinaria, inclusive a roda de
água, de madeira, está transformada em museu.18
Concluindo esta comunicação queremos enfatizar, mais uma vez, a necessi-
dade de ser programado um inventário sistemático desse acervo urbano e rural da
arquitetura popular, vernacular, do Brasil. Temos analisado, estudado, inclusive
com auxílio de críticos estrangeiros, os exemplares arquitetônicos mais notáveis.
Precisamos, agora, em conjunto com os órgãos estaduais e municipais, e com as
Universidades, inventariar, analisar e estudar essa arquitetura que se diz menor,
mas que, verdadeiramente, melhor expressa as realidades das diferentes fases e
etapas da civilização brasileira, pois que são a obra do povo, feita com a sabedoria
dos que a realizaram e dos que a utilizaram e a vivenciaram, o brasileiro de todas
as épocas e de todos os sítios.

17
Ivo Porto de Menezes. Fazendas Mineiras, B. H., 1969. Carlos Lemos. Notas sobre a arqui-
tetura tradicional de são Paulo, S.Paulo, 1984. Lena Castello Branco Ferreira Costa. Arraial
e Coronéis, S.Paulo, 1978.
18
Cyro I C Lyra. Guia dos Bens Tombados – Paraná. Rio de Janeiro, 1994.

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