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Teatro

De 19 a 22 Março

A Mãe
De Bertolt Brecht,
com música de Hanns Eisler.
Encenação de Gonçalo Amorim
© Rosa Baptista

1. Desta vez o Blade Runner e o Matrix, dado que,


para além de pensarem o futuro, eles
tinham, na sua narrativa, alguns traços
que faziam lembrar esta Mãe. Com o
Somos todos avançar do processo2, e como desde
Pelageas Vlassovas o princípio me interessou olhar para o
passado para poder vir a compreender
esse possível futuro, fomos acumulando
Esperas sim, muitas referências cinematográficas
que os teus livros te desculpem e bibliográficas de épocas diferentes,
te salvem do inferno
e nem chegámos a voltar a ver esses
porém
filmes. Dentro desta reflexão chegámos
sem sombra de tristeza
sem de modo algum à conclusão (talvez óbvia, mas está a ser
parecer recriminar-te escrita hoje) de que esse futuro passa
(escusas de o fazer pela sua construção – dia após dia – no
sabendo bem o que importa que escolhemos ser o nosso palco.
a um amante de arte como tu) O espectáculo, então, como improvisa-
Deus poderá condenar-te
ção. A arte que tenta voltar, de novo, a
no dia do juízo
a chorar de vergonha
reflectir e fazer o quotidiano. Através
recitando de cor de um guião bem estudado, de uma
os poemas que terias escrito, tivesse dramaturgia subterrânea conhecida por
Título original Die Mutter (direitos de representação detidos por Suhrkamp Verlag) sido boa a tua vida todos, e de um exaustivo dissecar dos
Tradução Lino Marques (Teatro 3 de Brecht, Livros Cotovia) W. H. Auden1 materiais de cada cena, construir então
Encenação Gonçalo Amorim Assistência e pesquisa dramatúrgica Ana Bigotte Vieira Cenografia Rita Abreu a performance – o acto ao vivo.
Figurinos e adereços Ana Limpinho e Maria João Castelo Tradução das canções Pedro Boléo e João Quando avancei para a montagem da E connosco o Brecht e o Eisler dos
Paulo Esteves da Silva Músico João Paulo Esteves da Silva Pesquisa e recolha musical Pedro peça A Mãe propus a quem ia trabalhar anos 20/30, implicados, os de A Mãe,
Boléo Sonoplasta Sérgio Milhano Movimento Vânia Rovisco Desenho de luz José Manuel Rodrigues comigo e a mim mesmo que pensásse- os do Kuhle Wampe, os de A Decisão,
Imagem Frederico Lobo Construção de cenário Nuno Tomaz e Carlos Caetano mos o futuro. E que o fizéssemos através felizes ou infelizes, não sei, mas a viver,
Operação de som Pedro Alçada Design gráfico Rosa Baptista Grafismo das frases projectadas Inês Barros desta história que nos fala da estrutura a filmar, a escrever e a compor. E a
Produção Mafalda Gouveia Assistência de produção Andreia Carneiro nuclear da família – a relação mãe-filho. trabalhar com amadores, com profissio-
Com Bruno Bravo, Carla Galvão, Carla Maciel, Carloto Cotta, David Pereira Bastos, E de como às vezes são as mães que se nais, com associações de operários e a
Mónica Garnel, Paula Diogo, Pedro Carmo, Raquel Castro e Romeu Costa emancipam dos seus filhos. Do conflito estrear os objectos difíceis de catego-
Co-produção Gonçalo Amorim, Culturgest, Centro Cultural Vila Flor e TEMPO – Teatro entre oprimidos e opressores mas rizar que faziam em festivais de música
Municipal de Portimão também da guerra, da estupidez e da experimental. São Homens em Tempos
Apoios Fundação Calouste Gulbenkian, Primeiros Sintomas loucura – antevendo todas as pequenas Sombrios, como diz a Hannah Arendt,
Projecto financiado por Ministério da Cultura / Direcção-Geral das Artes e grandes tragédias do último século: mas para nós este período, o de Weimar,
Agradecimentos LerDevagar, Vera San Payo de Lemos, Adelino Mota (Vale do Ave), as que se passam na cabeça, dentro de é uma inspiração, não um modelo, é um
Rita Garnel, Ricardo Noronha, Pedro Cerejo e Rui Teigão, Marta Figueiredo, casa, na rua, nos campos de batalha e atestado de vida e de experimentação.
José Nuno Matos, Pedro Pinho, Luísa Homem, Graça Costa, Fátima Sá, Terra Treme as transmitidas por satélite. Na altura, o Brecht dizia que se devia assistir ao
Filmes, às nossas mães. meu imaginário passava por filmes como teatro como se assiste a um combate

De Qui 19 a 22 de Março 1 In Hannah Arendt, Homens em Tempos 2 Ver texto “O espectáculo como produção”,
Grande Auditório · 21h30 (dias 19, 20 e 21) · 17h00 (dia 22) · Dur. 2h20 · M12 Sombrios, p. 239 mais à frente neste programa.

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Pelagea dança na cozinha do professor
de boxe: activo, a fumar, a comer, atento partir destas linhas que se cruzam em viva, actriz excepcional e mulher inteira /
e interventivo, no momento presente. palco – linhas que tentam corresponder Paula Diogo pela sua calma, e pelo seu
E o Deleuze, neste tempo da serpente, a uma viagem de emancipação que é a fogo interno intenso / Pedro Carmo por
das sociedades de controlo (e por da Pelagea Vlassova, mas que também é ser um actor completo e um homem
isso a Matrix ainda na minha cabeça), a nossa, porque vamos decidindo que os livre / Raquel Castro pela sua ternura
pergunta-nos a nós, “geração dos 500 nossos poemas são para escrever agora. e olhar inteligente, e pela sua loucura
euros”: O que vos faz servir? E como somos todos Pelageas que vai aparecendo / Romeu Costa
E então eu pego neste texto sobre Vlassovas, e todos nos completamos pelo seu estado ainda puro, por estar
a velha toupeira, ainda sobre ela, para em cada momento com o que temos sempre disponível para recomeçar, pela
tentar a partir dela pensar em novas para dar e com o que exigimos rece- sua sabedoria e maravilhoso coração /
formas colectivas de teimosia. ber, queria agradecer a estas velhas Francisco Frazão pelo seu comprometi-
Um bocado ao estilo das Ciências toupeiras: mento e inteligência
Sociais, acho que devemos ter um
objecto de estudo e definir um plano de Ana Bigotte Vieira pelo seu dançar A toda a Culturgest: desde as Tver – Baden-Baden –
trabalho estabelecendo objectivos e tes- de ideias / Rita Abreu pelo seu bom empregadas de limpeza e do bar, aos Guimarães – Lisboa
tando hipóteses. O texto – A Mãe – serviu gosto e sobriedade / Ana Limpinho pela seguranças, à produção, à divulgação, ou
então como objecto de estudo (mais do sua inesgotável capacidade de trabalho ao excelente pessoal de palco, e a E se, continuando a debater
que obrigação ou convenção) e acabou e talento / Maria João Castelo pela sua todos aqueles que nos ajudaram e não estas questões, fôssemos sempre
por se nos apresentar como um propul- subtileza e perspicácia / Pedro Boléo ajudaram a fazer este projecto. improvisando?
sor de ideias sobre nós, sobre a família, pelo seu brilhantismo e amizade / Vânia Mais uma vez obrigado.
sobre o depender menos dos outros Rovisco pela sua loucura e por nos
para depender melhor, sobre o mundo e encher de vida / João Paulo Esteves da Gonçalo Amorim “Um espectáculo especialmente inde-
sobre este último século. O espectáculo Silva pela sua enorme disponibilidade / feso, especialmente exposto, especial-
tem o eco dessa intemporalidade. Frederico Lobo pela sua visão certeira mente nosso”3, especialmente divertido
Mais do que um encenador, neste e inspiradora / Sérgio Milhano pela de fazer, especialmente arriscado, espe-
processo senti-me como um produtor- sua sensibilidade e experiência / José cialmente experimental, especialmente
‑autor, alguém que permitiu que estes Manuel Rodrigues por ser um homem de resultado de um processo que vivemos
artistas se juntassem, desenvolvessem teatro com um grande talento / Nuno mesmo colectivamente.
o seu trabalho e explicitassem as suas Tomaz e à sua equipa por nos dar este À Mãe de Gorki, e depois de Brecht, e
inquietações, convocando para isso o chão / Rosa Baptista pelo seu traço que agora é nossa, fomos buscar algu-
seu património pessoal e artístico. original e desconcertante / Mafalda mas questões:
A cada componente do espectáculo Gouveia pela partilha dos sucessos e
(actor, cenário, figurino, luz, vídeo, insucessos / Andreia Carneiro pela sua Pergunta à propriedade
música…) chamo linha. Cada uma tem generosidade / Bruno Bravo pela sua De onde vens tu
E às opiniões
um guião específico, mas todas têm amizade e delicadeza / Carla Galvão
A quem servis?
ecos e ressonâncias em pelo menos uma pelo seu lado solar e inspirador /
das outras, numa combinação harmo- Carla Maciel pela sua inesgotável energia mas também
niosa de energias, consonâncias e dis- e beleza / Carloto Cotta pela sua alma
sonâncias – sem personagens, mas com de artista / David Pereira Bastos por — A senhora é uma tirana terrível.
— Sim. Isso temos que ser.
ideias; brincando ao teatro (também todas as suas inquietações e poemas /
com personagens), ocupando a assem- Mónica Garnel por ter assumido a lide-
3 Fomos buscar esta frase a Luis Miguel Cintra,
bleia, interferindo no espaço público. rança, e por não parar de nos surpre- “Este espectáculo”, programa de Primavera
Este espectáculo foi construído a ender – velha toupeira linda e viva, tão Negra, 1993.

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para as tratarmos como as entendemos: mínima que propõe, pela liberdade que — Tem mesmo de ser “ramo, peixe, ninho”? outra vez. Claro que há acordos, combi-
questões maiores do que as categorias deixa para a sua representação, pelo Somos velhos e temos de aprender nações, atmosferas, distribuição de tare-
em que, tratadas como respostas, nos experimentalismo do espírito com que depressa as palavras de que precisamos! fas, coisas que têm de ser feitas. Foi por
[diz Pelagea ao professor Vessovtchikov]
habituámos a vê-las encerradas. foi escrita e representada nos anos 30; isso – para conseguirmos perceber-nos
(...)
Foi grande o trabalho de as despren- nos diálogos austeros travados entre — Ramo nunca aparece!
uns aos outros em cena – que falámos e
dermos dessas categorias. novos, velhos, funcionários do Partido experimentámos tanto e que chegámos
E também foi pequeno porque foi (?), desempregados, mulheres e o à conclusão de que o caminho passa
nosso – foi a nossa maneira de falar- Professor: trocou-nos as voltas. Pelas Há uma urgência que perpassa toda a por continuar a falar e a experimentar, a
mos do mundo falando de nós, o grupo questões que nos fez levantar. Não peça e que nos contagiou. experimentar e a falar e etc.
pequeno destes que somos, que não com grandes teorias mas com a astúcia Uma urgência de vida fora dos prazos É que para uma improvisação correr
somos outros senão estes: que vivemos teimosa das dúvidas que vai tendo e das (e no entanto demos connosco a traba- bem (e isto ainda – e já – não é bem uma
estes tempos. decisões que vai tomando em situa- lhar com prazos apertadíssimos); uma improvisação) temos de nos ouvir a nós
Um grande problema, às vezes, ções concretas. Sim, mas. A banha. Os urgência de falar do que não pode ser e aos outros, temos de escutar a sala, de
foi a falta de imaginação que tínha- pepinos. O barulho da impressora. Os e no entanto é; uma urgência de mudar ter atenção aos materiais, de realmente
mos / temos / que nos é permitido ter, copeques. O pão com manteiga. mesmo e de, para o fazer, ir experimen- inventar um bocado de vida vivido em
um problema terrível: não conseguir ser Sem papas na língua, chamam-se os tando – que é a única maneira disso colectivo, se, como com este tempo
capaz de imaginar a possibilidade de bois pelos nomes. Diz-se o que está mal. acontecer. de ensaios decidimos achar, é também
desejar colectivamente outra coisa que Fala-se de exploradores e de explorados Então fomos experimentando. E disso que se trata.
não o existente. (que, sabemo-lo todos, existem e bem: nesta experimentação encontrámos um
Como se o que existe tivesse sido é preciso voltar a ser capaz de pensar Brecht que, mais do que um autor, foi Ana Bigotte Vieira
sempre assim; como se as coisas, à nisso, parece-nos). Da guerra. Do que um material (duro!) e um método, uma
excepção dos produtos e das modas que há que estranhar no que é dado como espécie de abordagem que tivemos de
estão sempre a mudar, as relações entre “natural”, a começar pela família e a ir inventando. O que nos levou a nunca
as coisas, em traços largos, fossem para acabar no profissionalismo que desu- querer “montar o texto”: um texto que
sempre exactamente as mesmas e não maniza (“militante” como “empresarial”, nas leituras “se punha de pé”, como se
pudessem ser de outra maneira. decidimos achar), ou na fé pela ideologia. saísse da tumba, e falava com uma voz
E, no entanto, este é o Ano Europeu “Temei menos a morte e mais a vida que não era a nossa. Como fazê-lo então
da Criatividade e Inovação. Mas, e então, que não satisfaz!”, diz Pelagea às vizi- falar com a nossa voz, se entre nós e ele
até onde é que podemos ter imagi- nhas que por ela vêm chorar a morte do se metia todo o século XX com as suas
nação? Imaginação de quê, senão de seu filho. guerras, os seus regimes, as suas desi-
mudar o mundo mudando a vida, de E as pessoas trocam de lugares, os lusões, e o cinismo com que a memória
mudar a vida mudando o mundo; se a velhos aprendem, vive-se em colectivo. se calafetou para ir conseguindo aceitar
essa não estamos habituados? Quer-se mudar tudo em conjunto; está- o inaceitável e, muitas vezes, até tirar
E que imaginação é esta que nos ‑se disposto a isso sem se saber muito proveito disso?
incentivam a ter? É um produto, uma bem como poderão vir a ser as coisas, Não sabíamos então, como não sabe-
mercadoria? Como é que se vende? E não se tem um modelo, o programa mos agora, mas aquilo a que chegámos
quem é que pode ter imaginação? Para (achamos nós) não está ainda definido. foi ao que vão ver, ao que nem nós
quê? Ao serviço de quem? E, o que achámos mais interessante, no vimos ainda, ao que será aquilo que for
E se na Europa se tem imaginação, esforço para o fazer, já se está a reinven- o que se fizer em cada noite. E há dias e
onde é que se fabricam as coisas? Que tar outra vida. Onde é que já se viu isto? dias mas não se desiste – não se declara
imaginação é esta que incentivam assim, a coisa impossível, não se a torna impen-
tão separada do resto? — Ramo, peixe, ninho. sável. Tenta-se perceber para se con-
E de repente A Mãe, pela narrativa — Para quê essas palavras? seguir mudar. Fala-se e experimenta-se

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Tal como a gralha Nunca chega nem basta
Faça a gente o que faça Preparação de “como se pode No chão somos da nossa altura e
Escova o casaco Isto está uma merda trabalhar com um grupo?” cada um pensa o que quiser. Os
Escova-o de novo! E ainda vai piorar Procurar mudar a não-satisfação que têm sorte descem sempre pelo
Depois de escovado Assim não se aguenta menos um degrau para sair à rua.
É um farrapo limpo Será que a gente se safa?
Dar ou acrescentar qualquer coisa aos
Trabalha, trabalha mais “utensílios de palco” dos actores para os A cenografia de A Mãe explora a espa-
Poupa, reparte melhor apoiar na construção daquilo que mais cialidade através de formas geométricas
Contas, contas e mais contas! Canção da sopa me interessa, a improvisação, para que simples: a linha e o plano. A construção
Sem o copeque dentro dela se consiga compor. do cenário parte da abstracção e cria
Não podes fazer nada Se a sopa se acabar Na equipa do Gonçalo Amorim, de assim um espaço ambíguo: estamos
Como é que te vais defender? que fiz parte, criou-se um espírito de dentro e fora, são os actores que nos
Nunca chega nem basta Tens de virar do avesso a cidade enorme liberdade. Liberdade de trazer e transportam para os vários lugares da
Faças o que faças Para teres a tua sopa outra vez partilhar ideias que – utilizando sempre peça.
Isto está uma merda E seres o teu próprio convidado. a improvisação como partida, A ideia de chão construído surge por
E ainda vai piorar viagem e oposição à verticalidade inerente às
Assim não se aguenta Quando tu não encontras trabalho chegada ideo­logias materializadas em monumen-
Será que a gente se safa? Como é que te defendes? – se foram tos e estátuas, objectos que nos transmi-
Tens de virar do avesso a cidade construindo num todo, tem uma ideia de leveza, no sentido de
Tal como a gralha que já não consegue Para seres tu o teu próprio patrão em genuína colaboração. ascensão; ou peso, pela sua imponência.
Alimentar as crias Para teres o trabalho na mão. Senti-me num laboratório do corpo No espaço cénico de A Mãe a força está
E luta impotente contra o vento e a neve (a composição do e no espaço), labora- na base, no chão, na estrutura da hori-
Sem ver saída se lamenta Quando alguém se ri de ti tório do grupo (da sua construção e da zontalidade de um hipotético caminho
Tu também não vês saída Como é que te vais defender? organização de cada um nele). e a verticalidade é trabalhada através
E lamentas-te Têm de virar do avesso a cidade Tentar transmitir alicerces que supor- da sua fragilidade, linhas finas que não
Para serem um grande poder tem o subir ao palco. E em cena – no têm fim.
Nunca chega nem basta E acaba-se a brincadeira. momento presente – deixar acontecer Este é um espaço sem hierarquia,
Faças o que faças um fundir com o trabalho encontrado um espaço transitório, um território
Sabes bem, estás na merda durante os ensaios. provisório que tem a duração do tempo
E ainda vai piorar Agora, para continuar o trabalho, do espectáculo. É um lugar que se
Assim não se aguenta resta-me esperar e perceber o que o transforma, se desconstrói para
Será que a gente se safa? publico apreende. ser outro sem nunca deixar de
ser chão, espaço dentro de
Trabalhas em vão sem temer o cansaço Vânia Rovisco outro espaço. É esta tensão
Para mudar o que não muda da territorialidade, que tanto
Para chegar onde não se chega pode ser anulada como
Se te falta o copeque, não há trabalho acentuada, que se pretende
que valha visível.
Sobre a carne que vos falta hoje na
cozinha Rita Abreu
Não é na cozinha que se decide

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Neve em Guimarães
de “narcótico” (como Brecht gostava com tudo o que esta música cheia de
de dizer). Liga os actores e os músicos esperança deixou em aberto, para A Mãe
em enérgicos coros ou em pequenas do futuro.
canções. Ao mesmo tempo divide, inter- Uma coisa simples, difícil de fazer.
rompe, exige tomar posição.
É uma música que diz coisas. Pedro Boléo
Tentámos por isso encontrar a voz de
cada canção. Depois da difícil tarefa de
fazer versões para a língua portuguesa
(traduzir as canções) sem trair nem a ... até hoje
música nem o texto, fomos aprender
a cantá-las, a dar-lhes o tempo e a
dinâmica certa. Perante um material O desafio surgiu numa fase avançada do
A Música rigoroso, poderoso, às vezes complexo, processo. A proposta era a da criação
às vezes rígido, arriscámos ainda assim de uma janela livre e aberta para a O espectáculo como produção
(ou por isso mesmo) o confronto com a actualidade. Num tempo saturado de
Hanns Eisler (1898-1962) colaborou improvisação. Com um pianista, algumas imagens, o caminho foi o de recorrer a
intensamente com Brecht no teatro. Para percussões e com as vozes e os corpos memórias cinematográficas e a imagens -3. Uma guerra entre ricos e pobres
além de A Mãe, fizeram juntos A Decisão, dos actores, tomámos a liberdade de acedidas através do baú sem fundo da Fazer o projecto para a DGArtes: com
Os Cabeças Redondas e os Cabeças inventar outros sons que não estavam internet. A Mãe e a actualidade, ques- muita antecedência perder bastante
Pontiagudas, O Sr. Puntila e o seu Criado escritos. tões e relações similares, novas palavras tempo (compatibilizar isso com os
Matti, Schweyk na Segunda Guerra É música presente, em vários sentidos: e desejos de perpétua mudança – do outros trabalhos que vamos tendo) a
Mundial, entre outras experiências literalmente, porque os músicos e os mundo para o lar. O ruído e o excesso escrever textos sobre o que ainda não
singulares e radicais de “teatro político”. cantores estão visíveis em palco e não das imagens granuladas e de baixa reso- sabemos muito bem como vai ser, nem
Eisler fez música para muitos poemas de disfarçados num fosso; porque a música lução e, ao mesmo tempo, o imaginário se vai acontecer: pensar a proposta,
Brecht. Colaboraram também no cinema de cena está presente, em directo – é de relações e curtas apropriações de estudar Brecht, investigar a história da
(Kuhle Wampe ou: A quem pertence o uma das acções do teatro e uma das objectos fílmicos surgem em contacto peça, imaginar cenografia, investigar
mundo?). tarefas dos actores; porque ela actualiza entre si, pontuando um diálogo ora para- música. Descobrir coisas fabulosas sobre
“Judeu, pobre, pequeno, sarcástico, e dá outra dimensão, no espaço cénico, lelo ora convergente com uma reflexão o que pode vir a ser, se for. Ter ideias,
polemista” (como dizia Albrecht Betz), às palavras e às ideias do texto, por conjunta, livre e despojada, sobre aquilo estar entusiasmado. Comprometermo-
o compositor Hanns Eisler foi um dos meio de processos muito caros a Brecht que nos envolve. nos a fazer mesmo sem saber se dá. Ver
mais importantes teóricos da música e a Eisler: a interrupção e a montagem; disponibilidade de todos, planear, preen-
da primeira metade do século XX. presente ainda porque há nela uma Frederico Lobo cher formulários. Juntar as nossas vidas
Compositor “erudito”, interessou-se urgência e uma exigência que ecoa nas num documento com os cv’s de todos.
cedo pela canção de luta e pela transfor- luzes e nas sombras da actualidade. Não deixar o prazo passar. Verificar se
mação das formas e das funções sociais O nosso trabalho foi procurar revelar, não falta nada, se não tem erros. Enviar.
da música. com os meios, as técnicas, os músicos e Ficar à espera.
A música tem nesta Mãe um papel os actores do nosso tempo, a força e o Para além da ideia do projecto em si,
central – interrompe a acção, sintetiza sentido possível desta música. No teatro das descobertas desta altura, uma em
ideias, expande o impacto da obra, de Brecht, ela toma posição / posi- particular:
acrescenta vibração ao texto de Brecht. ções. São essas posições que é preciso Uma crítica de Carlos Porto ao espec-
É poesia, reflexão e contraponto. Junta e descobrir de novo. Para o teatro que táculo feito em 1977 pela Comuna –
separa. Dá unidade mas não serve nunca age (e canta) no presente. Mas também, Teatro de Pesquisa, que – coisa difícil de

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pensar como possível nestes tempos de pequeno subsídio de desemprego que 0. (Janeiro: começou!). Neve em emoções. De algum modo sentimo-nos
redução da crítica e de limitação do dis- se acrescenta com “biscates por fora”, Guimarães: se o Pavel não vai à Rússia a a lidar com toda a história do século
curso aos especialistas com a sua ordem ao empréstimo contraído para com- Rússia vai ao Pavel XX. À Mãe, do Pudovkin, vamos buscar
especializada de falar – é... um poema. prar o carro ou o electrodoméstico, à Residência no Centro Cultural Vila Flor aquilo a que chamámos o “corpo do
presença do homem que vem recrutar (Guimarães). Estamos pela primeira vez início do século”; ao Kuhle Wampe, de
Palavras para A Mãe gente para ir trabalhar para Espanha ou todos juntos muitas horas por dia. Vemos Brecht/Dudow, o “corpo dos anos 30”,
de Gorki-Brecht-Comuna para o Norte da Europa, às mulheres que o filme Opening Night do Cassavetes; contemporâneo da escrita da peça; a
em casa costuram pequenos acrescentos vemos as críticas à encenação feita La Chinoise, do Godard, o “corpo dos
A mãe
passeia pensativa corre, de negro vestida
para conhecidas marcas têxteis. Como em 1977 pela Comuna; improvisamos anos 60”; a Opening Night, um corpo
à volta de um espaço branco, em muitas zonas de grande concentra- sobre excertos de manifestos da Grécia; extremo de emoções para o qual não
mundo que ela não entende, ção industrial, o espaço é atravessado treinamos as canções com o João Paulo precisámos bem uma época histórica; a
ardósia para as palavras, os gestos, os por cabos de alta tensão, mas, repará- e o Pedro; discutimos o texto do Jean alguns vídeos de Anna Halprin, peque-
pensamentos mos nós, os movimentos de quem tra- Jourdheuil. Visitamos (por fora) comple- nos apontamentos para a construção
gazua da realidade balha (por exemplo, uma única senhora xos fabris do Vale do Ave. Trabalho de daquele que íamos imaginar como o
A mãe
a varrer folhas num complexo gigante) corpo com a Vânia. Decidimos trabalhar “corpo do futuro”; e à nossa imaginação
temerosa no seu pequeno mundo
não gosta dos amigos do filho
parecem meio absurdos, desintegrada cena a cena e levar todas as persona- (de cada um) aquilo a que entendês-
dos livros do filho que está a que se percebe ter sido em gens a sério (se seguimos só a mãe, é semos chamar “corpo português”. Vão
das conversas em segredo do filho tempos uma força colectiva de trabalho. uma história tipo Rambo); mostra-se aparecendo adereços e figurinos (num
Não gosta da rapariga que visita o filho E o mesmo (aparentemente) com a que é possível um desdobramento das trabalho que depois se vai mantendo
dos papéis que a rapariga traz ao filho capacidade colectiva de reacção. Porque personagens e dos tempos históricos. constantemente subtil e imperceptível
Não gosta do polícia que bate à porta a desintegração do local onde se traba- Achamos que vai ser um espectáculo ao longo do processo). Visita-conversa
à procura dos papéis que ela, num repente,
lhava em conjunto, e a desigualdade das inacabado. Dizemos que gostávamos da Vera San Payo de Lemos (sobre
mete junto dos seios nus como um filho
indesejado
maneiras de cada um ir arranjando com de trabalhar sem cinismo. Falamos de Brecht, anos 30, peças didácticas, teatro
Primeiro gesto da conquista do mundo (...)4 que ganhar a vida, tornam muito difícil a convicção e de falta dela. Improvisamos. épico).
consciência da possibilidade colectiva de Divertimo-nos. Parece-nos que há um
nomear o problema, e de lhe responder. caminho que é dado pelas coisas (e 2. As visitas que nos ajudam. Textos
-2. O Vale do Ave Decidimos que, com o tempo e o pelas situações) concretas e pelo modo para casa, discussão na mesa
Tínhamos a ideia de fazer qualquer orçamento que tínhamos, era compli- como a mãe lida com elas: Sim, mas. Começamos a levantar as cenas. Visita
coisa com pessoas do Vale do Ave mais cado transportar a equipa para o Vale No último dia neva, ficamos umas horas do Ricardo Noronha (sobre movimento
do que sobre elas. Estivemos lá com o do Ave o tempo suficiente para real- bloqueados. Se o Pavel não vai à Rússia, operário, comunismos, marxismos,
Adelino Mota, e o Vale do Ave apareceu- mente fazermos alguma coisa com as a Rússia vai ao Pavel, diz o Carloto. partidos, funcionários de partidos,
‑nos como um território de precarização pessoas do local. Optámos por utilizar precariedade). Muitas discussões
máxima da força de trabalho. Ao longo estas nossas experiências nas reflexões 1. Os Filmes e os Corpos exaustivas sobre o mundo, intercaladas
dos últimos anos têm vindo a fechar que tivemos ao analisar a actualidade Encontramo-nos na sala 3 da Culturgest pelo voltar à análise das cenas. Todos
fábricas umas atrás das outras, em do texto, e na produção de algumas para trabalharmos oito horas por dia, muito cansados de estar a trabalhar
levas sucessivas (primeiro as grandes e imagens vídeo. seis dias por semana. Entre nós circulam tantas horas todos juntos. Todos um
agora as familiares). Há muitos edifícios textos de Estudos sobre teatro de bocado inseguros e fartos por ainda não
abandonados, muitos espaços desertos, -1. Estes que somos nós Brecht. Fazemos longas improvisações se perceber o que se vai fazer. Muito
muitos regimes diferentes de emprego A primeira reunião da equipa toda. com a Vânia. Vemos filmes e neles cansaço. Algum humor sardónico sobre
(e de dependência): desde a “tradicio- Somos muitos e há grávidas e crian- “tipos de corpo” (corpos que perten- estas improvisações “tão fora” e por se
nal” agência de trabalho temporário, ao ças na reunião. Calendários, salários, cem a épocas históricas diferentes), estar tantas horas em conjunto a discutir
horários: vai ser um tempo inteiro com tipos de ambientes (de atmosferas); questões nada fáceis, às vezes pesadas.
4 Diário de Lisboa, 30/01/1978. bastantes part-times. personagens com determinado tipo de Improvisações com música do Pedro

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A Mãe (1926) Kuhle Wampe (1932)
Boléo. Visita-conversa da Rita Garnel, Trabalho individual com cada actor (e
historiadora, mãe da Mónica (sobre não cada personagem) para, com o que
mulheres e movimento operário). Novas tem vindo a acontecer nas improvisa-
improvisações: algumas correm mal, ções, se encontrar uma linha de cada um
outras mesmo bem. deles (Vânia e Gonçalo).

3. E se fosse uma improvisação? 5. Viva a Reforma Agrária!


O Gonçalo avança com a ideia de o A senhora da limpeza da CGD que vem
espectáculo ser uma improvisação. falar connosco e que diz que sabe o que
Espalha-se um certo pânico, um certo andamos a fazer. Despede-se de nós:
entusiasmo, um certo medo. São muitas Viva a Reforma Agrária!
horas todos juntos, todos a gerir outros Chega o vídeo. Reforços. Continuar a La Chinoise (1967) La Chinoise (1967)

trabalhos que também se têm, vive- discutir as cenas e a improvisar.


‑se a um ritmo que não pode ser (em
geral). Trabalhar tantas horas e sempre 6. Texto
todos juntos é, de certo modo, uma Conhecer o texto de trás para a frente.
violência, mas há uma cumplicidade Sabê-lo de cor. Aparecem novas can-
qualquer. Continua-se a trabalhar cena ções. Continuar a improvisar. Ter atenção
a cena, dissecam-se as temáticas das a não serem sempre os(as) mesmos(as)
cenas até ao limite, delas parte-se para a limpar a cena, a não haver tarefas que
conversas cada vez mais gerais sobre o se fazem pesadas. Ensaios corridos de
mundo, e a seguir improvisa-se. Lemos 3 horas em que se tem de passar pelo
o “Post-scriptum sobre as sociedades espectáculo todo, mas as cenas não têm
Opening Night (1978) The Golden Positions (1971)
de controlo” de Gilles Deleuze, mais de aparecer por ordem. Mais tarde fazer
alguns textos de Walter Benjamin, e o mesmo por ordem.
discutimos o texto. Aparece proposta
de cenário. Percebemos que é urgente 7. Uma sala por reinventar
o cenário porque, com este método, (ou da arquitectura como dominação)
os actores (valentes) para dar corpo Primeiro ensaio no palco, ainda sem
àquilo de que se falou, usam o que está cenário; como fazer a sala nossa, se ela
à mão. Começa-se a distribuir texto é tão diferente daquilo que andamos a
por necessidade de dividir tarefas (mas experimentar mas é a que temos?
todos podem a qualquer momento dizer Diz a Raquel: Quando dermos por isso, o
qualquer texto). Inverno já passou.

4. Discutir cena a cena, cena a cena, 8. No palco / O público


cena a cena e recomeçar. Andar de Um espectáculo que não sabemos bem
metro sem pagar como vai ser, mas que também tem
A análise exaustiva cena a cena e con- qualquer coisa de dádiva, pelo menos foi
versas intermináveis. E se os transportes assim que sempre vimos esta parte.
públicos fossem gratuitos? Bolas, agora
penso nisso de cada vez que compro um
bilhete de metro, e fico confuso!

14 15
Canção do remendo e do casaco Elogio do comunismo os salários; mas, numa sociedade de
As sociedades de controlo controlo, a empresa substituiu a fábrica,
Quando se rompe o casaco Ele é sensato, todos o entendem. É tão e uma empresa é uma alma, um gás. A
Vocês vêm a correr e dizem: simples fábrica conhecia decerto já o sistema
Isto assim não dá Tu não és um explorador, tu podes Foucault situou as sociedades discipli- dos prémios, mas a empresa esforça-se
Temos de combater por todos os meios! entendê-lo nares nos séculos XVIII e XIX; atingem mais profundamente por impor uma
E vão todos contentes ter com os Ele é bom para ti, informa-te acerca dele o seu apogeu no começo do século XX. modulação de cada salário, em estados
patrões Os estúpidos chamam-lhe estúpido e os Procedem à organização dos grandes de perpétua meta-estabilidade que
Enquanto a gente espera ao frio porcos chamam-lhe porco meios de encerramento. O indivíduo não passam por challenges, concursos e
E voltam triunfantes Ele é contra a porcaria e contra a pára de passar de um meio fechado para colóquios extremamente cómicos. Se
E mostram-nos o que têm para nos dar: estupidez outro, tendo cada um deles as suas leis: os jogos televisivos mais idiotas têm
Um pequeno remendo Os exploradores chamam-lhe crime primeiro a família, depois a escola (“já tanto sucesso, é porque exprimem
Mas nós sabemos: não estás em família”), depois o quartel adequadamente a situação da empresa.
Bom, é um remendo Que é o fim dos crimes deles (“já não estás na escola”), depois a A fábrica constituía os indivíduos em
Mas onde está o casaco inteiro? Não é loucura, mas sim fábrica, de tempos a tempos o hospital, corpo, em duplo benefício do patronato
O fim da loucura eventualmente a prisão que é o meio de que vigiava cada elemento na massa,
Quando gritamos de fome Não é o caos encerramento por excelência. É a prisão e dos sindicatos que mobilizavam uma
Vocês vêm a correr e dizem: Mas sim a ordem que serve de modelo analógico: a heroína massa de resistência; mas a empresa
Isto assim não dá A coisa simples de Europa 51 pode exclamar quando vê não pára de introduzir uma rivalidade
Temos de combater por todos os meios! difícil de fazer operários “pensei ver condenados...” (…) inexpiável como sã emulação, excelente
E vão todos contentes ter com os Estamos numa crise generalizada motivação que opõe os indivíduos entre
patrões de todos os meios de encerramento, si e atravessa cada um deles, dividindo-o
Enquanto a gente espera com fome prisão, hospital, fábrica, escola, família. em si próprio. O princípio modulador do
E voltam triunfantes A família é um “interior”, em crise como “salário por mérito” não deixa de tentar
E mostram-nos o que têm para nos dar: qualquer outro interior, escolar, profis- a própria Educação Nacional: com efeito,
Uma pequena migalha sional, etc. Os ministros competentes tal como a empresa substitui a fábrica, a
não têm parado de anunciar reformas formação permanente tende a substi-
Bom, é uma migalha supostamente necessárias. Reformar a tuir a escola, e o controlo contínuo a
Mas onde está o pão inteiro? escola, reformar a indústria, o hospital, substituir o exame. O que é o meio mais
as forças armadas, a prisão; mas toda a seguro de entregar a escola à empresa.
Nós não queremos só remendos gente sabe que estas instituições estão Nas sociedades de disciplina, não
Queremos o casaco inteiro a acabar, a mais longo ou mais curto se parava de recomeçar (da escola ao
Nós não queremos só migalhas prazo. Trata-se apenas de gerir a sua quartel, do quartel à fábrica), enquanto
Queremos o pão inteiro agonia e de ocupar as pessoas, até à nas sociedades de controlo nunca nada
Não queremos só um emprego instalação das novas forças que batem já acaba (…). As sociedades disciplinares
Nós queremos a fábrica toda à porta. São as sociedades de controlo têm dois pólos: a assinatura que indica o
E o carvão e o minério e o poder na que estão em vias de substituir as socie- indivíduo, e o número ou a matrícula que
cidade dades disciplinares. (…) indica a sua posição numa massa. É que
Vemo-lo bem na questão dos salários: as disciplinas nunca viram incompatibili-
Sim, é o que queremos a fábrica era um corpo que levava as dade entre as duas coisas, e é ao mesmo
Mas o que têm para nos dar? suas forças interiores a um ponto de tempo que o poder é massificante e
equilíbrio, o mais alto possível para a individuante, quer dizer: constitui em
produção, o mais baixo possível para corpo aqueles sobre os quais se exerce

16 17
e molda a individualidade de cada que quer comprar são acções. Já não vados”, requerem estágios e formação
membro do corpo (…). Nas sociedades é um capitalismo da produção, mas do permanente; é a eles que compete des-
de controlo, pelo contrário, o essencial produto, quer dizer para a venda ou para cobrir aquilo que os fazem servir, como
já não é uma assinatura nem um número, o mercado. Por isso é essencialmente os mais velhos descobriram não sem
mas uma cifra: a cifra é uma palavra- dispersivo, e a fábrica cedeu o seu lugar dificuldades a finalidade das disciplinas.
‑passe, ao passo que as sociedades à empresa. A família, a escola, as forças Os anéis de uma serpente são ainda
disciplinares são reguladas por palavras armadas, a fábrica já não são meios mais complicados que os buracos de um
de ordem (tanto do ponto de vista da analógicos distintos que convergem num túnel de toupeira.
integração como da resistência). A proprietário, Estado ou potência privada,
linguagem digital do controlo é feita de mas as figuras cifradas, deformáveis e Gilles Deleuze
cifras, que marcam o acesso à infor- transformáveis, de uma mesma empresa “Post-scriptum sobre as sociedades
mação, ou a recusa do acesso. Já não que já não tem senão gestores. A pró- de controlo” (1990) in Conversações,
estamos perante o par massa-indivíduo. pria arte deixou os meios fechados para Lisboa, Fim de Século, 2003
Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, e entrar nos circuitos abertos da banca.
as massas, amostras, dados, mercados (…) O marketing é agora o instrumento
ou “bancos”. Talvez seja o dinheiro que do controlo social, e forma a raça impu-
melhor exprime a distinção das duas dente dos nossos senhores. O controlo
sociedades, uma vez que a disciplina é a curto prazo e de rotação rápida, mas
sempre se referiu a moedas cunhadas também contínuo e ilimitado, enquanto
segundo moldes que continham ouro a disciplina era de longa duração,
como número-padrão, ao passo que o infinita e descontínua. O homem já não
controlo remete para trocas flutuantes, é o homem encerrado, mas o homem
modulações que fazem intervir como endividado. É verdade que o capitalismo
cifra uma percentagem de diferentes manteve por constante a extrema misé-
moedas-amostra. A velha toupeira ria de três quartas partes da humani-
monetária é o animal dos meios de dade, demasiado pobres para a dívida,
encerramento, mas a serpente é o das demasiado numerosas para o encerra-
sociedades de controlo. Passámos de mento: o controlo não terá somente de
um animal a outro, da toupeira à ser- enfrentar as dissipações de fronteiras,
pente, no regime em que vivemos, mas mas as explosões dos bairros de lata ou
também na nossa maneira de viver e nas dos guetos.
nossas relações com outrem. (…) (…)
[N]a situação actual, o capitalismo Uma das questões mais importantes
já não se orienta para a produção, que diria respeito à inaptidão dos sindicatos:
relega muitas vezes para a periferia ligados ao longo de toda a sua história
do Terceiro Mundo, até mesmo sob as à luta contra as disciplinas ou nos meios
formas complexas do têxtil, da meta- de encerramento, poderão adaptar-se
lurgia ou do petróleo. É um capitalismo ou darão lugar a novas formas de resis-
de sobreprodução. Já não compra tência contra as sociedades de controlo?
matérias-primas e já não vende pro- Poderemos já discernir esboços dessas
dutos acabados: compra os produtos formas por vir, capazes de se oporem às
acabados, ou monta peças separadas. alegrias do marketing? Há muitos jovens
O que quer vender são serviços, e o que estranhamente reclamam ser “moti-

18 19
Elogio da aprendizagem Elogio do revolucionário 2. De outras vezes onde, simultaneamente, se
faz sentir um intenso
É fácil aprender Muitos são demais experimentalismo
Quando chega o momento Queremos vê-los pelas costas social e artístico
Nunca é tarde Mas quando ele não está – faz falta! A Mãe, Vida da Revolucionária (fervilhando estruturas
Aprende o ABC Pelagea Vlassova, de Tver associativas operárias,
Não chega mas Ele anda a organizar (breve contextualização) clubes de leitura, bandas
Tens de o aprender A luta pelo tostão de música, grupos de
Não percas o alento Pela água do chá teatro amador, coros e
Começa! Tens de saber tudo E o poder na cidade actividades desporti-
Tens de assumir a liderança A forma das peças didácticas é rigorosa, vas6), tem uma importância fundamental
Pergunta à propriedade mas só para que seja mais fácil introduzir na obra de Brecht. Muitos dos seus
partes inventadas pelos próprios e de
Aprende tu no asilo! De onde vens tu? trabalhos, com particular destaque
carácter actual. Ao estilo de representa-
Aprende tu na prisão! E às opiniões: para aqueles que se apresentam sob a
ção aplicam-se as instruções do teatro
Aprende mulher na cozinha A quem servis? épico. O estudo do efeito de estranha- designação de peças didácticas (grupo
Aprende sexagenária mento é imprescindível.5 no qual A Mãe se pode, em sentido lato,
Tens de assumir a liderança! Se todos se calam, sempre enquadrar), foram feitos num espírito de
Tens de ir à escola, sem abrigo Aí é que ele fala participação colectiva, quer na prática
Procura o saber tu que tens frio E onde reina a opressão Bertolt Brecht, teatro épico, peças da escrita como do palco. São experi-
Faminto pega no livro – ele é uma arma E o destino é conversa didácticas (“para ver” e “para fazer”) ências de transformação do papel do
Chama os bois pelos nomes espectador e da função do teatro na
Não tenhas medo de perguntar, Bertolt Brecht nasceu em Augsburgo em sociedade que tinham por objectivo –
camarada! Quando ele se senta à mesa 1898. Tendo sido destacado, enquanto como parte integrante de um programa
Não te deixes enganar, vê tu mesmo! Senta-se a insatisfação estudante de medicina, para partici- de educação estética e política que
Se não és tu quem sabe, não sabes Sabe mal a comida par na I Guerra Mundial, abandona os eram – fomentar uma atitude crítica
Vê bem a conta, és tu que pagas E o quarto fica apertado estudos pouco depois da guerra. Em que levasse não apenas à compreensão
Põe o dedo em cada parcela 1922, escreve Tambores na Noite, peça do mundo mas à sua transformação. É
Pergunta: Como veio aqui parar? Para onde o escorraçam que ganha o prémio Kleist e o transporta de notar que muitas destas peças não
Tens de assumir a liderança Lá chega a revolta para Berlim, onde trabalha como drama- estrearam em teatros mas em “terri-
E quando ele é expulso turgista no Deutsches Theater e onde tórios” da música (como concertos,
Fica a inquietação mais tarde vem a ser colaborador de festivais de música, rádio...) ou foram o
Erwin Piscator, experiência fundamental resultado de experiências de ensino e
na sua formação. formação (em escolas, universidades,
A vida quotidiana na Alemanha pós associações recreativas ou empresas).
I Guerra Mundial, onde, sobretudo a Como nos diz Vera San Payo de
partir dos anos 20, se agravavam os Lemos no prefácio ao Volume 3 das
problemas políticos e sociais que darão obras de Bertolt Brecht recentemente
origem à ascensão do nazismo mas editadas pela Cotovia, ao interpelarmos
as peças didácticas de Brecht importa

5 Bertolt Brecht, “Zur Theorie des Lehstucks” in


Gesammelte Werke 17. Schriften zum Theater 3 6 Como se pode ver no filme Kuhle Wampe ou:
[trad. Vera San Payo de Lemos], Frankfurt am A quem pertence o mundo? escrito por Brecht
Main, Suhrkamp Verlag, pp. 1024-1025. e realizado por Slatan Dudow em 1931.

20 21
ter em conta “o contexto em que foram teatro épico, diz-nos Walter Benjamin por especialistas de diversas áreas) e, uma versão cénica do seu romance A
escritas, levadas à cena, as condições em “O autor como produtor”, como exemplo destes novos modos de Mãe onde, através da história de Pelagea
de recepção e produção, mas também produção, aborda experiências feitas por Vlassova – uma mãe viúva que para
a didáctica específica da ‘teoria da peça deve (...) apresentar situações. Chega a si naquela época, distinguindo as peças ajudar o seu filho se envolve na luta
didáctica’ dentro do quadro da didáctica essas situações (...) fazendo interromper de dramaturgia não-aristotélica (em que operária e se transforma numa empe-
as acções. Lembro aqui as canções, cuja
geral enunciada na(s) teoria(s) do teatro inclui, entre outras, Um Homem é um nhada militante – é contada a formação
função principal é interromper a acção.
épico”.7 Homem, Santa Joana dos Matadouros do movimento revolucionário na Rússia
(…) A interrupção da acção, devido
Assim, para entender uma peça à qual Brecht designou de épico o seu e A Mãe) das peças didácticas (nas e a actuação do partido bolchevique
como A Mãe é necessário inseri-la teatro, impede constantemente uma quais inclui O Voo dos Lindberg, A na preparação da Revolução de 1905.
no âmbito da poética de Brecht que, ilusão do público. (...) Mas é no fim e não Peça Didáctica de Baden-Baden sobre Interessado no teatro didáctico de
pouco tempo antes, nas “Notas sobre no princípio dessa experiência que se o Acordo, O que Diz Sim e A Decisão). Brecht, Weisenborn convida-o para
a ópera Ascensão e Queda da Cidade encontram as situações. Situações que, No entanto, embora Brecht estabeleça colaborar neste projecto e assim nasce,
sob esta ou aquela forma, são sempre
de Mahagonny”, havia já enunciado uma distinção entre as “peças para ver” em 1932, uma primeira versão de A Mãe
as nossas situações. Não se procura
as características do seu teatro épico aproximá-las do espectador, mas sim
[Schaustuck] – que pretendem fazer com com música de Eisler, cenário de Caspar
(não-aristotélico) por oposição ao distanciá-las dele. (...) O teatro épico não que o espectador, reflectindo intelectual- Neher, projecções de Wolfgang Roth e
teatro dramático (aristotélico). O reproduz, pois, situações, antes as des- mente, desperte (dentro das quais A Mãe encenação de Emil Burri.
teatro épico caracteriza-se por tratar cobre. No entanto, a interrupção não tem se enquadra) – e as “peças para apren- Em 1933 Brecht volta, por razões de
temas da actualidade, integrar na sua uma função de excitação mas sim uma der” (Lehrstuck) – que se centram na publicação, a pegar no tema, escre-
dramaturgia conhecimentos vindos de função organizadora. Faz parar a acção própria experiência do fazer –, a verdade vendo uma nova versão que, segundo o
em curso, e com isso obriga o ouvinte a
diversos ramos da ciência, utilizar na sua é que as experiências deste período se autor, corresponde a “uma recriação do
tomar posição perante o acontecimento,
linguagem inovações técnicas (filmes, o actor a tomar posição perante o seu
inserem todas num clima de experimen- romance de Gorki”, “escrita no estilo das
máquinas de cena, projecções, rádio...) papel.8 tação em que cada proposta faz parte peças didácticas”: a história é prolon-
possibilitando uma abordagem dinâmica de um projecto de emancipação colec- gada até à Revolução de Fevereiro de
e multifacetada à vida e ao mundo Deste modo a dramaturgia dialéctica, tiva e de transformação do mundo. 1917 (para o que são utilizadas outras
moderno que a enquadra. Trata-se com as suas interrupções, inacabamen- De facto, o contexto do fim dos anos fontes9 que não A Mãe) e as 15 cenas
de um teatro materialista e filosófico tos e o seu tratamento não linear dos 20, a recém-triunfante Revolução Russa, que compõem a peça são agora entre-
porque experimental, um teatro-labo- assuntos estaria então apta a suscitar o tratado de Versalhes, as sanções cortadas por 9 canções e coros, cuja
ratório onde o que está em causa é, a discussão e a reflexão, contribuindo impostas à Alemanha pós I Guerra, música é composta por Eisler10.
em última análise, “o comportamento assim para, ao fomentar a compreensão juntamente com o crash da Bolsa de Aquando da estreia as opiniões
humano, as ideias humanas e as conse- do mundo, impulsionar a sua trans­ Nova Iorque de 1929, faziam com que as
quências das acções humanas” enten- formação. condições sociais se fossem degradando
9 Brecht utiliza como fontes as suas vivências
didos enquanto produto de contextos e Em “O drama alemão anterior a Hitler” e o desemprego subisse em flecha – a de conflitos na república de Weimar (como o
relações sociais concretos, passíveis de (1935), Brecht enumera não apenas as sociedade polarizava-se. A tendência sangrento 1º de Maio de 1929 em Berlim) ou a
leitura de livros como Recordações de Lenine
serem transformados e não já produto grandes inovações técnicas que Piscator era para a criação de uma arte capaz de
de Clara Zetkin ou Contra o Reformismo de
de inexoráveis forças do destino. O introduz no teatro (projecção de docu- servir às massas, que avanços da repro- Rosa Luxemburgo, cuja figura de lutadora se
mentos em écrans, máquinas de cena, dutibilidade técnica estavam, em moldes reflecte na personagem de Pelagea Vlassova.
cenas simultâneas) como as alterações modernos, a começar a criar. Brecht, aquando da estreia (por volta do dia da
7 Vera San Payo de Lemos, “Antes de ensinar e morte da revolucionária), dedica esta peça às
introduzidas ao nível da dramaturgia mulheres e em particular a Rosa Luxemburgo.
aprender. Propostas para uma educação esté-
tica e política numa série de peças” in Bertolt (montagem de textos levada a cabo A Mãe 10 Também a música de Eisler foi composta
Brecht, Teatro 3, Lisboa, Livros Cotovia, 2005. apenas para quatro instrumentos de modo
Salvo excepções assinaladas é esta a principal Em 1931, Gorki propõe ao autor alemão a facilitar a sua execução e foi concebida de
fonte deste texto, pelo que as citações (entre 8 In Walter Benjamin, A Modernidade [trad. modo a que as canções da peça entrassem no
aspas) não indicadas em rodapé corresponde- João Barrento], Lisboa. Assírio & Alvim, 2007, Weisenborn e a Stark, dramaturgista repertório dos coros operários, tornando-se
rão sempre a esta obra e a este capítulo. pp. 289-290. do Volksbühne de Berlim, que seja feita muito populares.

22 23
dividiram-se. Considerado simplista e do autor – e cada uma delas corres- no Teatro da Trindade, pela Cooperativa
panfletário pela chamada imprensa bur- pondendo a uma encenação feita num de Comediantes Rafael de Oliveira, com As diversas versões de A Mãe:
guesa, o espectáculo foi, pelo contrário, determinado momento histórico – várias tradução de Yvette K. Centeno, encena- 1932, 1938, 1951
muito bem recebido pelo público operá- versões publicadas de A Mãe, a que aqui ção de Carlos Wallenstein, cenário, figu-
rio e pela imprensa comunista, sendo as se segue corresponde à versão de 1938, rinos e imagens de Eduardo Nery e Ana
simplificações de A Mãe luminosamente editada na primeira edição das Obras Vieira, direcção musical de Olga Prats, Brecht fez duas encenações desta peça,
analisadas por Walter Benjamin num Completas. Esta versão reúne as ante- com Anna Paula e Luis Lello nos papéis em 1932 e 1951. Trata-se do mesmo
artigo11 publicado pouco após a estreia. riores experiências de encenação (de de Pelagea Vlassova e Pavel Vlassov. No objecto teatral ou de dois objectos
Benjamin entende o recurso às simplifi- 1932, 1935 e 1936) e nela Brecht reforça mesmo ano foi montada por diversos distintos cujas semelhanças conviria
cações como uma forma construtiva e e reafirma o carácter de “crónica de uma grupos amadores: com estreia dois dias analisar? O teatro de Brecht, em 1932,
não agitadora de reforçar a simplicidade época e de biografia de uma revolucio- depois, a 21 de Março, pel’A Plebe – é idêntico ao que se virá a tornar em
e a utilidade prática dos ensinamentos nária”, o que está bem patente não só Grupo de Intervenção Cultural (Évora), 1951? Entre as duas representações de
feitos por Pelagea Vlassova, destacando no subtítulo da peça (“Vida da revolucio- no Mercado do Povo, em Lisboa, com A Mãe há o nazismo, o estalinismo e uma
o facto de estes serem feitos na forma nária Pelagea Vlassova, de Tver”) como encenação de Luís Varela; e depois pelo guerra mundial.
não de canções de combate mas de nas datas incluídas nos títulos das cenas. Grupo Caricatura (Parede), pelo Grupo A Berliner und Frankfurter Ausgabe
“canções de embalar o comunismo que Em 1951, já na Alemanha de Leste, na de Iniciação Teatral da Trafaria e, já em publica duas versões do texto: a de 1933
é pequeno e frágil, mas não pára de direcção artística do Berliner Ensemble, 1977, pelo Grupo de Teatro Amador da e a de 1938. A versão de 1933, publi-
crescer”. Brecht volta a encenar A Mãe, desta Amorosa. A segunda produção profissio- cada inicialmente no Caderno 7 dos
A agudização da situação política na vez para “trabalhar e testar a peça em nal foi a d’A Comuna, com estreia a 23 Versuche, tem como subtítulo Schauspiel
Alemanha pré-nazi leva à proibição da condições históricas completamente de Dezembro de 1977 no Centro Cultural e Histórias da Revolução; esta menção
peça e a que Brecht, Eisler e muitos dos diferentes” – agora que a URSS mostrou – Casa da Criança, em Lisboa. Teve tra- desaparece em 1938, sendo substi­tuída
seus outros colaboradores tenham de ser uma ditadura capaz de exterminar dução de Yvette Centeno e Teresa Balté por Vida da revolucionária Pelagea
abandonar o país. Em 1935, um grupo intelectuais de referência para Brecht (editada pela Ática em 1978) em versão Vlassova de Tver.
de teatro operário de Nova Iorque e de fazer um pacto de não-agressão da companhia, encenação de João Mota As diferenças entre estas duas ver-
mostra-se interessado em representar com Hitler, sendo na época a “protec- e com Manuela de Freitas e José Mário sões são pouco numerosas e algumas
A Mãe. Brecht e Eisler acompanham tora” da jovem RDA. Em 1951, A Mãe é Branco nos papéis principais. A música são anedóticas. (...)
inicialmente o projecto, que cedo se uma peça histórica que se retoma pelo de José Mário Branco, inspirada em Há, no entanto, três diferenças que me
transforma numa má experiência: as que narra mas também pela sua própria Eisler, foi editada um ano depois em LP. parecem importantes:
concepções do teatro dramático ame- história enquanto texto e espectáculo, Podem ainda destacar-se, depois deste 1. O quadro 10, Kramladen (o bazar: ali
ricano chocam com os princípios de A enquanto testemunho de um momento período a seguir ao 25 de Abril de maior vendem-se salsichas, farinha, chá, fósfo-
Mãe. O Theatre Union terá “trata[do] a tão distante do clima da guerra-fria dos concentração de montagens de A Mãe, ros e casacos) foi pura e simplesmente
peça simplesmente como [uma] merca- anos 50. A encenação, não obstante as encenações parciais (três cenas) do suprimido em 1938. É uma cena onde
doria”, não respeitando a integridade do a sua dramaturgia ter sido condenada Grupo de Teatro de Campolide em 1980 Pelagea Vlassova demonstra a um jovem
texto, dirá então Brecht. por não se enquadrar nos princípios do e 198512. chamado Ilitch, à frente da sua mãe e
Em 1936, Eisler pede a Brecht um realismo socialista, obtém um grande da dona do bazar, que, sendo as coisas
texto para uma versão de concerto da sucesso junto da crítica, mantendo-se como são, não tendo a sua mãe com que
peça, em forma de cantata, a acontecer no repertório do Berliner Ensemble até à Ana Bigotte Vieira lhe comprar um casaco de lã ou de qual-
em Maio desse ano. morte de Helene Weigel, em 1971. quer outro tecido, e não estando a dona
Havendo, tal como em outras peças do estabelecimento disposta a dar-lho,
Em Portugal ele terá de se contentar com um casaco
12 Cf. Maria Manuela Gouveia Delille, Do Pobre de papel e rogar à chuva e à neve que
11 “Ein Familiendrama auf dem epischen B.B. em Portugal – Aspectos da recepção de
Theater” [“Um drama de família no teatro A Mãe teve estreia portuguesa há exac- Bertolt Brecht antes e depois do 25 de Abril de não caiam. Esta cena é puramente
épico”], mais à frente neste programa. tamente 33 anos, a 19 de Março de 1976, 1974, Aveiro, Editora Estante, 1991. fantasista.

24 25
2. Segunda diferença: os quadros 12 e portanto apenas no final; as três últimas que em 1933 estava ainda no seu lugar, sensível, o Partido é uma coisa que
13 (da versão de 1933) na versão de 1938 cenas tratam, em resumo e de maneira inserida no espaço flutuante indistinto, existe, sem ele tudo aquilo seria incon-
estão invertidos. Poder-se-ia à primeira simplificada, do processo histórico que abstracto talvez, da acção revolucionária cebível, a sua vocação é ser, ao mesmo
vista pensar que se trata de um aperfei- faz passar de 1914 a 1917, da guerra até na qual A Mãe se inicia antes de nela se tempo, imanente e transcendente. Em
çoamento de construção, sendo assim à revolução. Até então estava-se num distinguir. (…) 1932 a organização revolucionária era
mais eficazes a montagem das cenas e espaço fluido, não datado. uma “jovem” organização e a figura do
a focalização na personagem da mãe. O romance de Maxim Gorki, escrito A versão de 1951 filho Pavel a sua imagem emblemática.
Esta melhoria, no entanto, tem efeitos em 1906, acabava em 1905. Brecht na Na versão de 1951 o Partido já se tornou
secundários problemáticos. sua peça “utilizando livremente temas O texto que virá a ser publicado após a adulto, à sua cabeça encontra-se agora
Em 1938 a mãe deixa-se morrer tomados de empréstimo ao romance de encenação de 1951 no Berliner Ensemble uma figura “paternal” que faz conjunto
porque na cena anterior soube da morte Gorki” prolonga o período histórico da integra correcções específicas então com a personagem da “mãe”: um chefe
do filho. Depois da visita do médico, obra até à guerra (imperialista) de 1914 feitas por Brecht mas não é idêntico de célula, um efectivo, um secretário-
o coro dos operários “Levanta-te, o e a sua reviravolta com a revolução de ao texto levado à cena, que foi “feito ‑geral. (...) O Partido, na versão de 1951,
Partido está em perigo” tem sobre ela o Outubro de 1917. É evidente que o tra- à medida” para os actores do BE, em passou implicitamente a ser o partido
mesmo efeito que a ordem “Levanta-te e tamento deste campo histórico, e a sua particular Helene Weigel, Ernst Busch e estalinista13. (...)
anda” de Jesus a Lázaro. A mãe levanta- representação, em Gorki e em Brecht Gerhardt Bienert.
‑se e na cena seguinte é espancada não podiam senão diferir: o texto de 1. Sistematiza o princípio cronológico Tretiakov sobre a versão de 1932
por ter gritado “Abaixo a guerra, viva a Gorki fornece um material (documental que se tinha imposto em 1938 ten-
revolução”. e pré-dramatúrgico: acção, personagens, tando fazer coincidir a vida de Pelagea Sergei Tretiakov, no seu prefácio à
Em 1933 passa-se o inverso. Ela foi etc.) que Brecht prolonga e transforma Vlassova e a história russa: cena 5, 1 de edição russa das peças de Brecht,
espancada por ter gritado “Abaixo a de maneira a produzir uma represen- Maio de 1905; cena 8, Verão de 1905; referindo-se à versão de 1933, identifi-
guerra, viva a revolução”. A seguir ao tação emblemática da revolução de cena 9, 1912, etc. cou uma quantidade de elementos que
espancamento o médico vem examiná-la Outubro: a revolução como resposta à 2. Apresenta outra singularidade, a de seriam inverosímeis e incongruentes
e depois de ele sair o coro dos operários guerra imperialista. As cenas datadas se multiplicarem as ocorrências da pala- numa “peça histórica sobre a proletária
trá-la de volta ao seu trabalho militante. são o “material” sobre o qual Brecht vra Partido que, em 1932, só aparecia russa Pelagea Vlassova” mas que
A versão de 1933 é menos dramática, exerce a sua actividade de engenheiro- uma vez, no coro “Levanta-te, o Partido são totalmente pertinentes
menos patética, coloca em primeiro ‑montador dramatúrgico. está em perigo” e, em 1938, apenas mais se se considerar a
plano a acção militante (quando se é Em 1938, de acordo com o subtítulo uma vez, na cena 9. Nos outros casos peça como tratando
espancado é normal chamar o médico); Vida da revolucionária Pelagea Vlassova não se tratava senão de “movimento”. de uma “revolucio-
a de 1938, fazendo jus ao seu subtí- de Tver, as indicações de datas são mais Partido, essa palavra emblemática, apa- nária profissional
tulo, privilegia a personagem da mãe, numerosas: a cena 5 – a do 1º de Maio rece agora (na versão posterior a 1951) alemã que, através
o médico vem porque ela se deixa – passa-se em Maio de 1908, e a cena nas cenas 6c, 9 e 11. Mas o PC bolchevi- do seu pequeno trabalho dia
morrer, e a acção do coro dos operários 8 – a agitação nos campos – refere- que, historicamente, não apareceu senão a dia, tenta despertar a consciência dos
“Levanta-te, o Partido está em perigo” ‑se às tentativas dos operários (ainda com as últimas primícias da revolução
torna-se milagrosa. não bolcheviques mas já ligados a um de Outubro (cena 15 da versão de 1932- 13 Em 1932, as projecções – previstas para um
3. A terceira diferença diz respeito à “movimento” ou uma “organização” ‑33, cena 14 da versão de 1938). ecrã colocado ao fundo da cena – contempla-
ordem de sucessão das cenas: em 1933, revolucionária) para, entre 1908 e 1913, Enquanto na versão de 1932-1933 o vam nomeadamente uma fotografia de Lenine
e várias citações suas. Algumas foram proibidas
até ao quadro 12, onde se trata do início conquistarem os camponeses para a sua “movimento” aparecia como uma coisa
pela polícia. (cf. Brecht, “Notas sobre A Mãe”,
da guerra de 1914, nenhum dos quadros causa: a actividade política e militante que se estava a fazer, uma organização 1932).
se encontra datado. E, no quadro 15 (o em tempo de paz. A representação da conspiradora cuja existência não era um Em 1951, no ciclorama de fundo, projectar-se-á
último), uma alegoria da revolução de vida de Pelagea Vlassova desenrola-se não apenas a silhueta de Lenine mas também o
dado adquirido, estes pequenos acres-
rosto de Estaline. Alguns anos mais tarde (após
Outubro, aparece mencionado o Inverno como uma crónica. É por isso que a cena centos conferem ao Partido (a partir o XX Congresso) esta referência a Estaline
de 1916-1917. A história datada intervém do bazar teve de ser cortada. Enquanto de 1951) o estatuto de uma evidência desaparecerá. (...)

26 27
milhões de Pelageas Vlassovas alemãs”. final um filme documentário sobre a zar e estruturar a equipa do Berliner Vlassova, do professor), bem como o
Esta formulação de Tretiakov tem o revolução de Outubro, mas foi proibido. Ensemble, encontrar equilíbrios praticá- pátio da fábrica e o parlatório da prisão,
mérito de situar A Mãe no prolonga- A decoração das cenas era minimal, veis em torno de Weigel (e de Busch), compondo quadros naturalizados e his-
mento ou na imediata vizinhança de A apenas o estritamente necessário: os tirar partido da notoriedade destes nos toricizados, que tornam palpável a repre-
Decisão – as duas peças14 foram criadas lugares estavam sinalizados e não repre- círculos comunistas (Busch, sobretudo, sentação dos meios. Precisamente o que
respectivamente em Dezembro de 1930 sentados de maneira realista. O espaço era célebre) e prever a passagem do Brecht recusou em 1932 e 1936 (a propó-
e Janeiro de 1932. (...) da representação estava no limite da testemunho, organizar a coexistên- sito da encenação de Nova Iorque). (...)
abstracção: um desenho técnico. cia de gerações (...). Nesta época o Quanto às citações de Lenine, cujo efeito
As representações de A Mãe O processo de criação passou-se num Berliner Ensemble era apenas um grupo. em 1932 podemos imaginar, fazem, em
em 1932 e 1951 contexto extremamente tenso de lutas E Helene Weigel estava à cabeça dessa 1951, parte do mobiliário russo. Outrora
políticas e sociais. (...) empresa cultural brechtiana. O que “peça épica escrita no estilo das peças
Em 1932 estava então em jogo era portanto a ins- didácticas” A Mãe tinha, em 1938, adqui-
Helene Weigel então com 32 anos Em 1951 crição da obra de Brecht numa empresa rido no papel a forma de uma “crónica”
desempenhou o papel da “mãe”, no Em 1951 as representações tiveram teatral e a inscrição dessa empresa no antes de se tornar no palco, em 1951,
papel de filho Pavel encontrava-se lugar no Deutsches Theater dirigido contexto da RDA (Estado e população). uma “peça histórica”.
Ernst Busch e no de professor Gerhardt por Wolfgang Langhoff. Com efeito, a As correcções feitas ao texto, a discreta Retomar assim esta peça, cerca de
Bienert. Margarete Steffin fazia o papel companhia de Brecht só se instalou no mas real proeminência que a perso- 20 anos mais tarde, era também, para
da doméstica das duas últimas cenas. O Theater am Schiffbauerdamm em 1953. nagem interpretada por Ernst Busch Brecht, Helene Weigel e o Berliner
espectáculo era interpretado por jovens (...) teve em relação às outras (à excepção Ensemble, estender uma passadeira,
e pouco importava que eles tivessem O papel da mãe foi desempenhado da mãe), a transformação da estética restabelecer uma ligação, talvez tentar
ou não a idade dos papéis15. A peça por Helene Weigel, então com 51 anos. geral do espectáculo (música de Eisler, estabelecer uma continuidade entre 1932
foi levada à cena na Komödienhaus Ernst Busch, demasiado velho para o cenários de Caspar Neher), tudo isto se e 1951. (...) Resumindo, esta represen-
am Schiffbauerdamm no aniversário papel de Pavel, constava ainda do elenco interpreta facilmente nos termos de uma tação de A Mãe era o que Brecht e o
da morte de Rosa Luxemburgo (na e Brecht preparou-lhe à medida o papel adaptação da obra inicial (o espectáculo Berliner Ensemble podiam oferecer
realidade, alguns dias antes). Tendo sido de Semion Lapkine, operário-quadro do de 1932) ao contexto da RDA. como forma de adesão à RDA. Contudo,
várias vezes representada em teatros mas Partido. Gerhardt Bienert continuava Hanns Eisler modifica, enriquece e há entre estas duas representações
também em locais de reunião operária, a desempenhar o papel do professor. refina a instrumentação da sua música, uma cesura, a marca de um passado
chegou a ser interrompida pela polícia. Os jovens actores de 1932 tinham-se suprimindo os trombones, introdu- indigesto: o nazismo, a guerra, os
O cenário era extremamente leve: uma tornado adultos. O espectáculo também zindo flauta, clarinete, trompa e banjo, “processos de Moscovo” evocados por
armadura metálica desmontável e trans- teve de envelhecer. (...) compondo três trechos suplementares Brecht e Benjamin nas suas conversas de
formável durante o espectáculo onde se As preocupações de Brecht foram e fazendo ascender a treze o número de Svendborg em 1938, e, de maneira geral,
fixavam telas claras, e um ecrã ao fundo aparentemente de dois tipos. Por um partes cantadas. A música de 1951 cita o estalinismo em relação ao qual Brecht
no qual tinham lugar as projecções: lado, precisava de impor o Berliner e afasta-se simultaneamente da música não tinha ilusões mas ao qual tinha
texto ou imagens. Projecções que inter- Ensemble na RDA, de o fazer ser aceite inicial. Quanto aos cenários, Caspar (talvez) de se subordinar.
rompiam a representação e dialogavam pelas autoridades da Alemanha do Neher volta a pegar no dispositivo ini- Este novo tratamento de A Mãe, ao
com ela. Estava previsto para a cena Leste e pelas autoridades soviéticas cial, composto de telas claras estendidas historicizar, naturalizar e russificar todos
de ocupação16 e, por outro, de organi- sobre quadros metálicos, mas dedica-se os elementos visuais do espectáculo
14 As duas com música de Hanns Eisler. agora a figurar os interiores (de Pelagea (cenário, figurinos, adereços), confe-
A Decisão foi encenada por Slatan Dudow, o 16 O que não foi alcançado com as representa- ria uma significação problemática ao
realizador de Kuhle Wampe, que é igualmente ções da Mãe Coragem, contrariamente ao que sienses de 1954 e 1955. A intenção declarada “Elogio do comunismo”.
mencionado como sendo um “Mitarbeiter” para hoje em dia seríamos levados a crer. A posição de Brecht e do BE era, com esta encenação de (…)
o texto de A Mãe. do BE em Berlim-Leste foi assegurada e a sua A Mãe, “tornar a União Soviética amável aos
15 O cenário era de Caspar Neher e a música de reputação garantida após alguns sucessos inter- olhos da população trabalhadora, da pequena- Este poema, que não é de uma
Hanns Eisler. nacionais, em especial as representações pari- ‑burguesia e dos intelectuais”. (…) qualidade poética sobre-humana mas

28 29
que também não é medíocre, tornava- na re-presentação (até à abolição da Para cantar na prisão Porque nem tanques nem canhões os
‑se um momento de dissimulação. (…) distinção entre actores e espectadores) salvam
Com esta encenação de A Mãe Brecht depreende-se ainda em filigrana na Eles têm códigos e decretos E aí bem podem gritar “basta!”
(…) exonerava o estalinismo dos seus estética do espectáculo de 1951-1971 (a Eles têm fortalezas e prisões Porque nem tanques nem canhões os
crimes e guardava silêncio sobre ele. interpretação, as marcações, as deixas (Sem contar com asilos e orfanatos) salvam
Resta dizer que este se tornou um dos para a sala): e no entanto alguma coisa Eles têm guardas e juízes
espectáculos emblemáticos do Berliner tinha mudado, o lugar destinado ao Que ganham muito e estão dispostos a
Ensemble, ajudando na construção da espectador mais não era senão a lem- tudo
ortodoxia brechtiana, e foi reproduzido brança daquele que tinha sido o lugar do Para quê, então? Elogio da Vlassova
e reactualizado em 1957, após a morte espectador dos anos 30. A problemática Acham mesmo que nos conseguem
de Brecht, por Manfred Wekwerth e das “peças didácticas” já não era visível vencer? Esta é a nossa camarada Vlassova,
Peter Palitzsch para ser apresentado no senão no modo da radiografia. grande lutadora
Theater am Schiffbauerdamm, e vinte e Antes que desapareçam, em breve, Activa, astuta e constante
duas vezes em tournée internacional em Jean Jourdheuil Ainda vão reparar que isso não lhes vai Constante na luta, astuta contra o
Paris em 1960 e em 1971, ano da morte “La Mère au Berliner Ensemble” servir de nada inimigo e activa
de Helene Weigel. (…) in Frictions, nº 2, 2000, pp. 71-84 Isso não lhes vai servir de nada Na agitação. O seu trabalho é miúdo,
Mas não se pode senão ficar descon- (Tradução de Ana Bigotte Vieira Tenaz e indispensável.
certado com o carácter duplo deste e Rui Teigão) Eles têm jornais e tipografias Ela não está só.
espectáculo: adaptação calculada Para nos fazer frente e calar-nos a boca Onde quer que lute, a luta é tenaz,
para a RDA, nascimento da ortodoxia (Sem contar com os seus homens de constante e astuta.
brechtiana com Brecht ainda vivo, e A Mãe, 1932 estado) Em Tver, Glasgow, Lyon, Chicago,
persistência apesar de tudo do modelo Eles têm padres e professores Xangai, Calcutá
de 1932 que a encenação de 1951 enco- Que ganham muito e estão dispostos a Todas as Vlassovas de todos os países,
bre mas não apaga. A estrutura base do tudo boas toupeiras,
cenário, o funcionamento do coro (tanto Para quê, então? Soldados desconhecidos da revolução,
o texto como a encenação funcionam Têm assim tanto medo da verdade? Indispensáveis.
de maneira coral), as marcações, e essa
maneira de representar (contar) para a Antes que desapareçam, em breve,
plateia, de representar em dois registos Ainda vão reparar que isso não lhes vai
e duas coisas de cada vez: a represen- servir de nada
tação dirigida ao outro actor, a que Isso não lhes vai servir de nada
se dirige à plateia, e na representação
A Mãe, 1951
dirigida ao outro actor a unidade de dois Eles têm tanques e canhões
procedimentos distintos (“mostrar-se” e Polícias e soldados
“mostrar uma coisa”), tudo isto partici- Para quê, então?
pava de uma representação concebida Será que os seus inimigos são tão
como um processo onde (...) os actores poderosos assim?
expõem um caso, uma série de acon-
tecimentos a um público colocado em Eles pensam que ainda se aguentam
posição activa, uma espécie de “coro de Não vêem que estão a cair
juízes” ou uma “assembleia de conhece- Qualquer dia, e já não tarda,
dores, de peritos”. A problemática das Vão ver que nada lhes serve de nada
“peças didácticas” que implica o público E aí bem podem gritar “basta!”

30 31
representado e da própria representa- Carta ao teatro de trabalhadores renças sociais e as restantes diferenças
Textos de Brecht ção. Seguem-se alguns exemplos de Theatre Union de Nova Iorque acerca da que existem entre os indivíduos. (...) Seja
A propósito das encenações coros. Foram concebidos de acordo com peça A Mãe qual for o caso, cria-se entre os especta-
dos anos 30 a possibilidade de virem a ser modifica- dores um todo colectivo, surgido a partir
dos (conforme a situação) e podem ser (...) do “humano universal”, comum a todo
completados ou substituídos pela leitura 4. o auditório, durante o tempo da fruição
Notas sobre a peça A Mãe de citações ou de documentos e pela Camaradas, estou a ver-vos artística. A dramática não-aristotélica do
execução de canções. a lerem esta pequena peça com tipo de A Mãe não está interessada na
A Mãe, escrita no estilo das peças didác- (...) perplexidade. produção deste género de colectivismo
ticas, mas exigindo actores, é uma peça P. 18, depois de “Lá proceder bem, não A linguagem sóbria parece-vos pobre. e, muito pelo contrário, divide o seu
de concepção dramática anti-metafísica, procedem, mas ele também não.” As pessoas público.
materialista, não-aristotélica. Esta arte CORO: Alto! Não prossigam! É espan- não se exprimem, dirão vocês, tal como
dramática não explora, tão decidida- toso o que para aí estão a representar! neste relato. Bertolt Brecht
mente como a arte dramática aristoté- Aquela condena os homens que contra Li a vossa adaptação. Neste passo acres- Estudos sobre Teatro – para uma arte
lica, a tendência que há no espectador ela lutam, centam um “bom dia”, dramática não-aristotélica, Lisboa,
para uma empatia por abandono; revela, por causa da sua brutalidade. noutro um “olá, rapaz”. O espaço cénico, Portugália Editora
além disso, uma atitude essencialmente Apenas o exercício da lei lhe parece repleto (Trad. Fiama Hasse Pais Brandão)
diversa em relação a determinados efei- bárbaro, de mobiliário. Da lareira vem um cheiro
tos psicológicos, tal como, por exemplo, não a própria lei. Outros há que per- a carvão.
a catarse. Assim como não pretende doam aos homens A mulher destemida transforma-se numa
entregar os seus heróis ao mundo, que executam leis bárbaras. simples “boa pessoa”, o histórico Benjamin sobre A Mãe em 1932
mundo este que surge como destino Tanto uma coisa como outra são erradas. passa a trivial.
inevitável, também não é intuito seu Não estabeleçam (...)
entregar o espectador a uma experiên- pois, diferença entre a lei e os seus Camaradas, a forma das novas peças Com as suas experiências de “peças
cia dramática por sugestão. Esta arte executores, é nova. Mas porquê temer didácticas” Brecht tentou uma renova-
dramática, empenhada em ensinar ao entre o Estado e os respectivos o que é novo? É difícil de executar? ção do teatro (lugar do público, função
espectador um determinado compor- senhores! Mas porquê temer o que é novo e difícil? do teatro, relação palco/sala, formas de
tamento prático, com vista à modifica- Um Estado é tal e qual os seus senhores, Para quem é explorado e sempre representação, redistribuição do que é
ção do mundo, deve suscitar nele uma pois desiludido do domínio da literatura, da arte, da polí-
atitude fundamentalmente diferente por homens é feito, de homens se também a vida é uma constante expe- tica e da filosofia, etc.). Isto nos últimos
daquela a que está habituado. (…) compõe e para homens riência, e anos da república de Weimar, no con-
foi organizado – o ganho de uns quantos tostões uma texto político que se sabe, e enquanto
Os Coros não para todos, de facto, empresa incerta ele se dedicava ao estudo e à experi-
Para combater a tendência que o espec- mas para uns poucos, apenas, e para que em parte alguma jamais se aprende mentação de um pensamento marxista
tador tem de se “deixar levar”, para outros que não sejam como tu. Por que razão temer o que é novo, em concebido não como uma ortodoxia mas
combater as suas “irrefreadas associa- (...) vez do que é velho? como um espaço de invenção, de discus-
ções de ideias”, podem dispor-se, na (...) são, de reflexão e de prática. Foi neste
sala, pequenos coros que lhe ensinem espírito que conviveu com Karl Korsch
qual é a atitude devida, o incitem a O efeito “imediato” de superação e Benjamin, que esteve próximo da
formar opiniões, a recorrer à sua experi- Sociedade dos Dialécticos e participou
ência, a controlar-se. Estes coros apelam A estética de hoje em dia, ao exigir um na concepção da revista Krise und Kritik,
para o lado prático do espectador, efeito imediato, exige também, da obra que não chegou a ver a luz do dia mas
exortam-no a emancipar-se do mundo de arte, um efeito que supere as dife- cujos preparativos desempenharam um

32 33
papel determinante na consolidação das lhe ocorre querer suprimir simplesmente alavanca apenas, ela pode colocar em não se podia referir aos seus actos a não
relações entre Brecht e Benjamin, que se os laços familiares. Apenas os examina marcha o mecanismo que canaliza as ser através de reflexões) seja substi-
prolongaram até à morte deste último. para ver se necessitam de ser transfor- suas energias maternais para a classe tuída pela oposição dialéctica entre a
Os escritos de Benjamin sobre Brecht mados. Questiona-se: pode a família ser operária no seu conjunto. Em casa, a sua teoria e a prática (da qual resulta que a
são por isso particularmente interessan- desmontada de forma a que os seus ele- tarefa é cozinhar. Produtora do homem, acção, nas rupturas que introduz, abre
tes para reler Brecht hoje, na condição mentos constitutivos recebam uma outra converte-se em reprodutora da sua uma perspectiva sobre a teoria). (...)
de os lermos seguindo uma ordem função social? Mas estes elementos não força de trabalho. Um dia não tem meios Os ensinamentos, explicações do seu
cronológica e sem os organizar segundo são tanto os seus membros, são antes as para assegurar essa reprodução. Para a próprio comportamento com que a mãe
a tríade: dramático, épico, lírico17. Ora, relações entre eles. E destas, é óbvio que comida que ela lhe põe à frente, o filho preenche as derrotas ou os compassos
entre estes ensaios figura o comentário nenhuma é tão importante como a que só tem um olhar de desprezo. É tão fácil de espera (para o teatro épico não existe
que Benjamin fez de A Mãe em 1932: une a mãe e o filho. Para além disso a esse olhar poder afectá-la! Ela não vê diferença entre ambos) têm algo de
“Um drama familiar no teatro épico”. mãe é, de todos os membros da família, solução, porque não sabe que “sobre especial. Ela canta-os. Canta: “O que há
Um comentário magistral do texto e o mais claramente determinado na sua a carne que falta na cozinha não é na contra o comunismo”; canta: “Aprende
da representação. (...) O que é particu- função social: ela produz a descendên- cozinha que se decide”. É assim ou mais sexagenária”; Canta: “Elogio da terceira
larmente notável neste comentário é a cia. A pergunta que a peça de Brecht ou menos assim que deve estar escrito coisa” e canta isto como mãe. É que
forma que tem Benjamin de contar (sem coloca é: pode essa função social tornar- nos panfletos que vai distribuir. Não para são canções de embalar. Canções de
contar) a peça do princípio ao fim e -se revolucionária e como? (...) Nas ajudar o comunismo, mas para ajudar embalar o comunismo que é pequeno
simultaneamente de a comentar. Todos condições actuais a família é uma o filho a quem foi destinada a tarefa de e frágil, mas não pára de crescer. (...) A
os elementos textuais, de cenário e de organização destinada à exploração da os distribuir. É assim que o seu trabalho mãe é a prática feita carne. Quer dizer,
interpretação que estavam isolados e mulher como mãe. Pelagea Vlassova, para o Partido começa. E é assim que ela é de confiança, não de entusiasmos.
como que postos em evidência pela “viúva de um operário e mãe de um ela transforma a inimizade que amea- E a mãe não seria alguém em quem se
representação, diante das paredes de operário”, é assim duplamente explo- çava aparecer entre si e o seu filho em pode confiar se de início não tivesse
cor clara, reencontram-se no texto de rada, em primeiro lugar como membro inimizade contra o inimigo comum. Isto, objecções contra o comunismo. Mas, e
Benjamin, que se apresenta portanto da classe operária, em segundo como este comportamento de uma mãe, é isto é o decisivo, as suas objecções não
como uma tradução, um equivalente da mulher e mãe. A duplamente explorada também a única forma de ajuda válida são as dos entendidos; são as do sau-
peça representada. (…) mãe representa os explorados na sua que, levada a cabo mesmo no seu lugar dável senso comum. (…) Mas chega de
humilhação máxima. Se se revolucionar próprio, primitivo (as pregas duma saia falar da mãe. Agora é tempo de inverter
Jean Jourdheuil as mães, nada mais resta a revolucio- de mãe), conquista ao mesmo tempo no o ponto de vista, tempo de perguntar: se
“La Mère au Berliner Ensemble” nar. O que Brecht pretende realizar é plano social (como solidariedade dos a mãe tem um papel dirigente, qual é a
in Frictions, nº 2, pp. 77-78 uma experiência sociológica sobre a explorados) a validade que possui na atitude do filho? Porque é o filho quem
transformação revolucionária da mãe. origem de forma animal. É o caminho de lê livros e se prepara para um papel de
De onde advêm uma série de sim- uma ajuda primeira à ajuda derradeira, dirigente. Eis os quatro elementos: a
Um drama familiar no teatro épico18 plificações que não têm um carácter a solidariedade da classe operária. (...) mãe e o filho, a teoria e a prática, que
de agitação, mas sim um carácter É por ajudar, portanto, e só em segunda empreendem uma refundição da suas
Do comunismo Brecht disse que era construtivo. “Viúva de um operário e instância pela teoria que a mãe chega funções, que “jogam aos quatro canti-
o meio-termo. “O comunismo não é mãe de um operário”, eis a primeira ao Partido. Esta é a segunda simplifi- nhos”. Se se atinge o ponto crítico em
radical. Radical é o capitalismo”. (...) simplificação. Pelagea Vlassova é mãe cação construtiva. Estas simplificações que o bom senso se ocupa da direcção,
O comunismo não é radical. Por isso não de um único operário, encontrando-se servem para sublinhar a simplicidade então a teoria está bem é para tratar da
assim numa certa contradição com o dos ensinamentos. Faz, com efeito, lida da casa. Então o filho tem de cortar
significado original da mulher proletária parte da natureza do teatro épico que o pão enquanto a mãe, que não sabe ler,
17 Como infelizmente o fez Rolf Tiedemann
(“prole” significa descendência). Esta a oposição não dialéctica entre a forma imprime panfletos; então as necessi-
na edição de Versuche über Brecht, Suhrkamp,
1966. mãe só tem um filho. É suficiente. De e o conteúdo da consciência (da qual dades da vida deixaram de se repartir
18 A propósito da estreia de A Mãe de Brecht. facto, vem a perceber-se que, com esta resultava que a personagem dramática pelos homens segundo o seu sexo; então

34 35
há um quadro preto na casa do proletá- Discurso fúnebre De pé!
rio que serve de biombo entre a cozinha
e a cama. Quando, na luta pelo copeque, Mas ao chegar ao muro para ser fuzilado De pé, de pé, o partido está em perigo!
o Estado é posto de pernas para o ar, Viu que era um muro feito por gente Estás doente, o partido está a morrer.
também na família alguma coisa terá como ele Estás cansada, tens de nos ajudar.
de mudar, e então não se pode evitar E as armas apontadas ao seu peito e as De pé, o partido está em perigo!
que, no lugar da noiva que encarna os balas Tu duvidaste de nós.
ideais do futuro, surja a mãe que, com Eram feitas pelos seus iguais. Chega de dúvidas:
quarenta anos de experiência, confirma Só que tinham partido, ou então tinham Estamos nas últimas.
Marx e Lenine. Porque a dialéctica não sido a isso forçados Tu censuraste o partido.
precisa de horizontes distantes e ene­ Mas ainda com ele, presentes no Não o censures:
voados: está em casa entre as quatro trabalho das suas mãos. Ele está ameaçado.
paredes da prática e é no limiar do agora Nem sequer os que atiraram sobre ele De pé, o partido está em perigo,
que pronuncia as palavras com que eram diferentes depressa!
termina A Mãe: “E o nunca transforma-se E nem sempre impossíveis de ensinar. Estás doente, mas de ti precisamos.
em hoje ainda!”. Sim, ele ia preso nas correntes forjadas Não morras, tens de nos ajudar.
pelos companheiros Não fiques de fora, nós vamos à luta.
Walter Benjamin E postas no companheiro. De pé, o partido está em perigo, de pé!
(Tradução a partir do espanhol E ele que entendia também não
e do alemão de Ana Bigotte Vieira entendia.
e Vera San Payo de Lemos) As fábricas a crescer ele via do caminho,
Chaminés, chaminés,
E como era manhã, e é costume de
manhã levá-los,
Estavam vazias, mas ele via-as cheias
Com o exército a crescer, que sempre
crescera e ainda crescia.
Mas os seus iguais levaram-no agora
para o muro
E ele que entendia, também não
entendia.

36 37
Próximo espectáculo
© Nuno Reis Gonçalves

Concerto para
Maquinaria e
Estados Líquidos
Canal Zero

Música Sex 20 Março


Pequeno Auditório · Dur. 50 min · M12

Projecto de fusão entre música electró- matérias, que são visualizadas em palco,
nica e música acústica, que associa ao através de uma dupla projecção, que nos
vivo a imagem em tempo real analógica, mostra uma dualidade óptica, porme-
mostrando como são infinitos os limites nor / geral, criando a ilusão de uma só
e as potencialidades de duas artes – imagem.
música e vídeo – quando cruzadas. Uma Os três intérpretes tecem entre eles
partilha de múltiplas situações através uma relação de continuidade, desconti-
da manipulação de sons e imagens, nuidade e deformação, permitindo assim
criando ambientes que nos transportam que a imagem seja um elemento escul-
para uma realidade (in)visível. tórico do som e o som uma composição
A música surge no contexto de da imagem. Uma viagem para ver, sentir,
quem se encontra a narrar uma história, ouvir e imaginar.
através da conjugação de instrumentos
analógicos e electrónicos. Fazem-se
viagens por entre paisagens sonoras que
nos transportam a um vastíssimo mundo
onde o encantatório encontra semelhan-
ças com o real.
A imagem é utilizada como instru-
mento visual e sonoro. Recorrendo a
uma mesa de luz, diversos materiais
(maquinaria, sucata, tintas, entre outros)
são expostos e transformados sobre
um vidro, adquirindo diferentes formas
e cores. Exploram-se sonoridades de Os portadores de bilhete para o espectáculo
mecanismos e transformam-se múltiplas têm acesso ao parque de estacionamento da Caixa Geral de Depósitos.
Conselho de Administração Comunicação Frente de Casa
Presidente Filipe Folhadela Moreira Rute Sousa
António Maldonado Joana Bernardo
Bilheteira
Gonelha estagiária
Manuela Fialho
Administradores
Publicações Edgar Andrade
Miguel Lobo Antunes
Marta Cardoso
Margarida Ferraz Recepção
Rosário Sousa Machado
Teresa Figueiredo
Assessores
Actividades Comerciais Sofia Fernandes
Dança
Catarina Carmona
Gil Mendo Auxiliar Administrativo
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da Caixa Geral de Depósitos
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Direcção Técnica Isabel Corte-Real
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Raquel Ribeiro dos Santos
Pietra Fraga Direcção de Cena e Luzes
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Margarida Mota Assistente de direcção cenotécnica
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Mário Valente Iluminação de Cena
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