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Ensaio Filosófico – Tema: Que sentido para a vida humana?

Vitória Ezra

Reflexão filosófica con(tempo)rânea no Existencialismo


A tonalidade afetiva do absurdo na existência humana: uma leitura da obra “O Mito de
Sísifo” de Albert Camus

1. O confronto entre o homem e o universo

Ó minha alma, não aspira à imortalidade: esgota o campo do possível. Píndaro, 3.ª Pítica.

“Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou
não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da Filosofia”. (Camus, 2019:7).

É na obra “Mito de Sísifo”, escrito durante a segunda guerra mundial, que Albert Camus
se propõe refletir sobre a condição humana. É a este propósito, que o autor investe todo o
esforço filosófico, ao questionar a frágil condição ontológica do homem face à consciência do
seu último reduto, o suicídio ou o confronto do seu restabelecimento.
Camus recorre literariamente ao mito de Sísifo, uma narrativa grega das Odes de
Píndaro, que nos conta uma história bela, e que coloca no centro da discussão o homem e o
seu derradeiro esforço perante o inconformismo e a recusa a todas as fugas. Resumidamente
o mito, narra a história de Sísifo, que é condenado, pelos deuses a levar uma pedra até ao
cume de uma montanha. Pedra esta que acaba por cair montanha abaixo, dia após dia, num
incessante esforço para cumprir o seu destino trágico. Sísifo tem um trabalho hercúleo para a
eternidade, carregar com esforço esta pedra sabendo que no final ela acabará por cair. Esta é a
imagem paradoxal da vida humana, tudo passa, tudo acaba, ou seja, todas as pedras que
levamos para cima da montanha acabarão por cair. Então o que fazer?
Questiona-se, pois, o que diz respeito a uma consideração do estatuto do homem face à
natureza, perante aquilo que tem sido o equívoco do pensamento ocidental. Encontramo-nos
perante alguns traços fundamentais de uma relação do homem com a realidade, uma
fundamentação conduzida ao nível do pensamento. Um esforço e audácia que conferiram ao
homem um papel indispensável, mesmo preponderante em todo o processo. Todavia, a
diversidade manifesta-se com um fundo de unidade, seja no jogo dialético do mesmo e do
outro, da semelhança e da diferença, do uno e do múltiplo, constituindo, na verdade, o próprio
fluxo do devir vital. Fundar no homem ou, por referência a este, o seu lugar tornou-se
constitutivo do sentido do mundo. Em jogo, não estará já apenas uma simples tarefa
hermenêutica, o significado, a coisa, no sentido daquilo que está diante como um conteúdo
inteligível, mas um pretexto para a transformação da vida humana em direção ao futuro.
O despertar aqui da interrogação indicia já o seu caráter indeterminado, senão vasto,
devendo por isso manter-se em aberto ao caminho que permitirá levantar a questão.
Efetivamente perguntar corresponde não a um enunciar, mas a uma atitude de procura, um
demorar-se em relação ao que se procura com o próprio ato de perguntar. É o caminho, ele
mesmo, que nos revela o seu sentido, despertar o homem, para o perigo de perder a sua
ligação afetiva. A pergunta pelo sentido da existência, enquanto pensamento suspenso é a
única possibilidade de dar voz ao silêncio de um pensar, que aguarda. Um esboço que assim se
põe a caminho, fundado na tonalidade afetiva do absurdo que procura chegar à proximidade,
e que se pressente no silêncio, no momento rítmico da pausa.

2. Angústia, tédio e absurdo como sintomas do abandono ontológico

De entre os Homens que imortalizaram o tempo, Albert Camus, é sem dúvida o génio, a
consciência, que neste século são, a par de outros nomes, como George Steiner, das últimas
referências humanistas de uma redescoberta intelectual. Filósofo de percurso invulgar, que
soube encontrar na leitura dos grandes mestres, Nietzsche, Kierkgaard, Dostoiévski ou Sartre
os desdobramentos afetivos, de uma vida humana cada vez mais só, dilacerada, uma presença
que se torna silêncio.
Porque não encontramos sentido na nossa possibilidade de viver? É a condição de
absurdo que desperta a presença do nada sob a forma de um profundo tédio. Detidos no
momento enfrentamos o tempo em que somos esvaídos de qualquer autêntica ocupação. Este
tempo parece aqui arrastar-se de uma forma infinita e morosa, impondo-se pelo seu poder.
Surpreendidos de forma arrebatadora e paralisante pelo curso do tempo, que agora parece
hesitar em avançar, estamos efetivamente retidos e incapazes de preencher esse nada em que
as coisas passam a ser meras coisas e “nada nos dizem”.
3. Escapar a este absurdo. Será a evasão o sentido para o desfecho da vida humana?

Para Camus, o ser humano não é absurdo, e o universo também não é absurdo. O
absurdo nasce precisamente da relação entre os dois, da relação entre o homem e o universo
que em nós se manifesta sob esse sentimento. Uma tensão que resulta da vontade humana
em impor ao universo características como: a clareza, o sentido, a unidade; na verdade
querendo que as coisas façam sentido em direção a um progresso infinito, em que o homem
investe sobre si mesmo. Portanto, este sentimento de absurdo resulta precisamente da
resistência que o universo mostra aos nossos conceitos.
Este homem caminha, confrontado com a temporalidade da morte, uma sombra que
não consegue erradicar. Do passado, a memória do que já não é mais. À frente um futuro que
ainda não é, mas que assegura a sua ligação à construção do seu projeto de vida, e um
presente que é o nada, um tempo que se espraia num profundo tédio, uma desarmonia
rítmica que desajusta o homem na sua ligação afetiva. Como diz Camus, um estrangeiro em
nós mesmos, um estranho em relação ao mundo e à realidade, a suspensão do sentido, uma
apatia que teima em perpetuar a eternidade que é a mesma, e igual para todos depois da
morte.
Assim, para Camus, o suicídio aparece como uma trágica inevitabilidade para o ser
racional, o homem, que tomado pelo sentimento de angústia, desespera e confronta.
Em causa, a possibilidade do suicídio. Camus questiona primeiro o suicídio pessoal, que
é acabar com a própria vida, algo que o autor condena, pois, o homem ao acabar com a sua
vida não põe fim ao absurdo. Segue-se a hipótese do suicídio político, em que o homem passa
a viver a partir de uma utopia, que ainda assim não nos livra do absurdo. Depois ainda, o
suicídio político que corresponde à ideia de uma encenação, um simulacro. É no suicídio
filosófico, que parece eclodir este desfecho. Camus critica fortemente um outro existencialista,
Soren Kierkegaard, existencialista cristão, que na obra Temor e Tremor também coloca o
homem perante o absurdo da vida, mas deslocando o seu desfecho no salto para a fé. Como
refere no elogio a Abraão;
“Se o homem não possuísse consciência eterna, se um poder selvagem e efervescente
produtor de tudo, grandioso ou fútil, no torvelinho das paixões obscuras, existisse só no fundo
de todas as coisas; se sob elas se escondesse infinito vazio que nada pudesse encher, que seria
da vida senão o desespero? ”. (Kierkegaard, 1979: 201).
É neste salto para a fé que corresponde o suicídio filosófico, o erro de se procurar o
agradável de não o verdadeiro, apelar para o conceito metafísico, que desemboca no abismo
do nada. Recuperando a ideia inicial do suicídio pessoal, por confronto com o absurdo, Camus,
coloca o desfecho da vida humana no caminho aberto pelo paradoxo de Sísifo, que consiste
em aceitar o absurdo, saber abraçar esta vida, que é paradoxal, sem sentido, sem esperança,
sabendo que o que importa não é a vida eterna, mas a eterna vivacidade.
Se deus não existe, como diz Camus, se deus não existe, como diz Dostoiévski, então
tudo é permitido, nós somos livres, condenados a ser livres, como diz Jean Paul Sartre, somos
livres para construir um sentido para a nossa existência. A atitude humana mais digna é a
atitude de revolta, a revolta contra este universo absurdo, a revolta contra esta vida sem
sentido, não fugir, não evadir, mas defrontar o abismo do nada, amar esta liberdade que é
dada ao homem.
É perante esta condição, que Sísifo tem consciência da sua vida, tem consciência da sua
tragédia, mas encara o seu destino, que é o absurdo, empenhado e concentrado na sua tarefa,
que desta forma lhe bastará para dar um sentido. Ou seja, a solução para os paradoxos, ilusões
e absurdos da nossa vida é viver a sua vivacidade, encarar a nossa liberdade, não ter medo do
absurdo, e não fugir do nosso destino. Recomeçar por mais absurdas que sejam as tarefas
humanas, manter na consciência esse trabalho, lutar para fazer chegar a pedra ao cume da
montanha, bastará para encher o coração do homem. A alma humana não aspira à vida
imortal, mas esgota o campo do possível.

Referências Bibliográficas
Camus, A. (2019). O Mito de Sísifo. In Coleção dois mundos (Eds). Brasil: Livros do Brasil.

Kierkegaard, S. (1979). Temor e Tremor. In Coleção os pensadores (Eds). Brasil: Victor Civita
Editor.

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