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Este texto expande, aprofunda e comenta o ensaio “As Práticas Artísticas Contemporâneas no
Contexto Ibero-Americano e o Pensamento Pós-Colonial e Decolonial” (Sales & Cabrera,
2020), onde comentamos a obra dos artistas Yonamine, Grada Kilomba, Jota Mombaça e
Daniela Ortiz. No texto citado, trabalhamos a problemática da discussão em torno do
surgimento de um campo de pensamento denominado “pós-colonial”, bem como um projeto
decolonial e a maneira como se configuram no espaço ibero-americano práticas poéticas
interessadas na discussão em torno do legado colonial. A partir de uma abordagem histórica,
neste artigo, tentamos perceber a forma como os estudos pós-coloniais produzem influência
no Brasil, assim como o giro e o pensamento decolonial que se consolida na América Latina, a
fim de compreender as formas de produzir respostas do campo da arte brasileira para
questões que envolvem a descolonização. Nos estudos pós-coloniais e também no projeto
decolonial, a descolonização da arte está relacionada com o questionamento da matriz de
pensamento eurocêntrico a partir de seus esquemas de representação de mundo racializados
e subalternizados, e também está profundamente relacionada com o caráter performativo
daquele ou daquela que narra. Ou seja, a descolonização da arte e do pensamento, assim
como dos modos de ser e de estar no mundo não estão dissociados do aparecimento de
artistas, escritores e intelectuais que disputam o direito de autorepresentação, de auto-
apresentação e de criação de narrativas e imagens não coloniais ou completamente fora do
imaginário e da cosmovisão euro-centrada. No texto que agora se apresenta, firmamos um
interesse aprofundado no contexto brasileiro, apropriando-nos da discussão importante em
torno da constituição de um campo de pensamento decolonial, analisando a obra de artistas
brasileiros contemporâneos como Jota Mombaça, Juliana Notari, Michelle Mattiuzzi e Paulo
Nazareth.
Our Ghosts Have Come to Collect: Decolonial Turn in Contemporary Brazilian Art
This text expands, deepens and comments on the essay “As Práticas Artísticas Contemporâneas no
Contexto Ibero-Americano e o Pensamento Pós-Colonial e Decolonial” (Contemporary Artistic
Practices in the Ibero-American Context and Postcolonial and Decolonial Thought; Sales & Cabrera,
2020), where we comment on the work of the artists Yonamine, Grada Kilomba, Jota Mombaça, and
Daniela Ortiz. In the text cited, we work on the problematic discussion around the emergence of a
field of thought called “post-colonial” and a decolonial project and how poetic practices interested
in the discussion around the colonial legacy are configured in the Ibero-American space. From a
historical approach, we try to understand how postcolonial studies produce influence in Brazil and
the decolonial turn and thought consolidated in Latin America to understand how to produce
responses from the Brazilian art field to decolonization issues. In postcolonial studies and the
decolonial project, the decolonization of art is related to the questioning of a Eurocentric thought
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matrix from its racialized and subalternized world representation schemes deeply related to the
performative character of the one who narrates. In other words, the decolonization of art and
thought, and the ways of being and existing in the world, are not dissociated from the emergence of
artists, writers, and intellectuals. These intellectuals dispute the right to self-representation, self-
presentation, and the creation of non-colonial narratives and images or those who stand completely
outside the Eurocentric imaginary and worldview. This text establishes a deep interest in the
Brazilian context, appropriating the important discussion around the constitution of a decolonial
field of thought, analyzing the work of contemporary Brazilian artists such as Jota Mombaça,
Juliana Notari, Michelle Mattiuzzi, and Paulo Nazareth.
Introdução
Este texto expande, aprofunda e comenta o ensaio “As Práticas Artísticas Contemporâneas no
Contexto Ibero-Americano e o Pensamento Pós-Colonial e Decolonial” (Sales & Cabrera, 2020)
publicado em 2020 juntamente com Jorge Cabrera, e onde comentamos a obra dos artistas
Yonamine, Grada Kilomba, Jota Mombaça e Daniela Ortiz. No texto citado, discutimos a formação
de um campo de pensamento denominado “pós-colonial”, consolidado, sobretudo, a partir da
produção diaspórica de intelectuais negros radicados na Europa, bem como um projeto decolonial e
a maneira como se configuram no espaço ibero-americano práticas poéticas interessadas na
discussão em torno do legado colonial, da memória do colonialismo e das consequências da
escravidão.
Considero justo citar esse acúmulo gerado pelos trabalhos compartilhados supracitados uma vez
que a questão da descolonização do campo da arte vem assumindo inúmeras frentes no Brasil e
mostrando-se cada vez mais um tema transdisciplinar e coletivo, em face de sua urgência num
mundo que se mostra ainda mais turvo por conta da recrudescência da pandemia da COVID-19 e do
contexto político autoritário e neocolonial em que nos encontramos.
No texto que agora se apresenta, firmamos um interesse mais aprofundado no contexto brasileiro,
apropriando-nos da discussão importante em torno da constituição de um campo de pensamento
denominado “pós-colonial” e de um movimento social e estético pensado como decolonial,
analisando a obra de artistas brasileiros contemporâneos como Jota Mombaça, Michelle Mattiuzzi,
Paulo Nazareth e Juliana Notari.
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Em Crítica da Razão Negra, Achille Mbembe (2013/2017) sustenta que a conquista territorial, a
dominação econômica e a submissão política dos povos colonizados, através dos vários continentes
do planeta, carregou consigo um complexo de fantasia da imaginação europeia, cujos efeitos ainda
incalculáveis coincidem com o trabalho da morte e da precarização, empobrecimento e
subalternização de muitas vidas no âmbito da esfera política mas também no domínio da produção
simbólica e da construção das identidades. A este delírio de superioridade de que nos falam tanto
Ella Shohat e Robert Stam e Achille Mbembe, ao lado da ficção civilizadora que está impregnada no
discurso da colonização, núcleo constituinte da modernidade, podemos chamar de
“eurocentrismo”.
Antes disso, nos anos 1980, os subaltern studies, “influenciados” pela primeira geração de
intelectuais pós-coloniais maioritariamente radicados na Europa, projetaram nomes como Partha
Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Gayatri Chakravorty Spivak. Este grupo de intelectuais indianos
foi responsável por consolidar a ideia de que o colonialismo não é somente um fenômeno político ou
econômico, mas um acontecimento cuja dimensão epistêmica está ligada ao próprio nascimento das
ciências humanas, correspondendo a uma dominação também epistêmica e, sobretudo, simbólica.
A projeção dos estudos de subalternidade foi determinante para o giro decolonial na América
Latina, como argumenta Luciana Ballestrin (2013), uma espécie de corrente, grupo de pesquisa e
movimento social que irá surgir nos anos 1990 nos Estados Unidos e na América Latina, agregando
no campo das ciências humanas intelectuais interessados em pensar a matriz colonial de poder
(Mignolo, 2011/2017): não mais o colonialismo, mas a colonialidade, ou seja, a continuidade de
instituições e práticas sociais e culturais criadas durante o período colonial que persistem mesmo
após o fim do colonialismo — e suas várias implicações no campo da cultura, arte e pensamento.
Este giro decolonial amplia e aprofunda a crítica e a crise em torno da matriz eurocêntrica, da
imagem eurocêntrica e dos velhos esquemas de representação amparados pela cosmovisão euro-
centrada criada por um sistema-mundo moderno/colonial. Dessa forma, temos observado uma arte
contemporânea que tem tensionado os regimes de representação, e cada vez mais, afastando-se da
norma/estética universal eurocêntrica, ou que tem sinalizado que esse sistema de representação de
mundo está não apenas em crise, como em franco declínio.
Walter Mignolo (2010) em “Decolonial Aesthesis” avança sobre a definição de uma estética não
colonial ao abordar o trabalho dos artistas Fred Wilson, Pedro Lasch e Tanjia Ostojic. No ensaio
supracitado deste autor, somos convidados a pensar nas formas possíveis assumidas por uma arte
descolonizada capaz de ativar sujeitos e subjetividades também de(s)coloniais1. Assim como
aprofunda e argumenta, por outro lado, Denise Ferreira da Silva (2015/2020) em “Ler a Arte Como
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Confronto”, ao tratar de uma arte anticolonial fundada na recusa como forma de auto
representação.
opressão e negação são dois aspectos da lógica da colonialidade. O primeiro opera na ação
de um indivíduo sobre o outro, em relações desiguais de poder. O segundo age sobre os
indivíduos, na forma como negam aquilo que no fundo sabem. Os processos decoloniais
consistem em retirar ambos dos lugares reprimidos, mostrando também as características
imperiais da “negação”. A opressão e negação não se limitam ao sujeito europeu moderno -
o trabalhador assalariado de Marx ou o sujeito moderno europeu que Freud analizava.
Operam na opressão racial/colonial, e também na negação dos sujeitos imperiais e coloniais:
o negro que quer ser branco, e o patrão que se nega a ver que a opressão e a exploração de
outro ser humano é eticamente reprovável e humanamente inaceitável. Por essas e outras
razões, a obra de Fred Wilson é um constante processo de descolonização da aesthesis. (pp.
18–19)
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Essa dupla problemática em torno da descolonização da arte e do pensamento pode ser também
compreendida ou expandida se adotarmos a noção de cultura do “Atlântico negro”, uma cultura
que, pelo seu caráter híbrido, não se encontra circunscrita às fronteiras étnicas ou nacionais, como
pensada por Paul Gilroy (1993) em The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (O
Atlântico Negro: Modernidade e Consciência Dupla), que se refere metaforicamente às estruturas
transnacionais criadas durante o estabelecimento do mundo moderno-colonial e que deram origem
a um sistema de comunicações e trocas culturais no ocidente, marcado por exílios, deslocamentos
forçados e viagens de trabalho. A formação dessa rede possibilitou às populações negras e não-
brancas durante a diáspora africana (mas não só) formarem uma cultura que não pode ser
identificada exclusivamente como caribenha, africana, americana, ou europeia, mas todas ao
mesmo tempo.
Ainda de acordo com Gilroy (1993), tais relações estabelecidas a partir da experiência da diáspora
favorecem a formação de um circuito colaborativo de comunicação que está para além das
fronteiras étnicas do Estado-nação, permitindo às populações trocas culturais próprias de um novo
contexto criado a partir do trânsito de pessoas escravizadas e/ou de seus descendentes. O mar
sinaliza um índice de mistura, contaminação e instabilidade, e diz respeito a um contexto cultural
pensado enquanto uma rede entrelaçada entre o “local” e o “global”. Para Gilroy, a análise da
história política e cultural negra no ocidente requer uma maior atenção à complexa mistura entre
sistemas filosóficos e culturais europeus e africanos. É essa complexa mistura que consolida o
mundo moderno-colonial e que marca também hoje a dinâmica, a temática e o posicionamento de
artistas afrodiaspóricos ou interessados nas questões afro-brasileiras e indígeno-brasileiras. Apesar
da análise de Gilroy estar circunscrita ao império colonial britânico e às trocas culturais
subordinadas ao colonialismo britânico, argumentamos que a ideia de um “Atlântico negro” revela-
se uma chave de leitura importante também para pensar os atravessamentos culturais presentes na
história do colonialismo português.
Para perceber como essa complexidade cultural e discursiva pode ser engendrada no campo da
arte, iremos abordar os trabalhos dos artistas Jota Mombaça, Juliana Notari, Michelle Mattiuzzi e
Paulo Nazareth. Propositadamente, inseri nesta análise uma artista brasileira não-negra com o
interesse de pensar as implicações no campo da arte que envolvem forma e conteúdo dos trabalhos,
assim como a origem social, raça e gênero dos artistas contemporâneos brasileiros. Para abrir essa
discussão, analisaremos o trabalho de Jota Mombaça.
O legado colonial no trabalho de Mombaça reflete-se em muitos aspectos, seja no trânsito pessoal
marcado pela forte presença no eixo Portugal–Brasil, seja na abordagem de temas que atravessam
a relação entre Brasil e Portugal, ou naqueles que tocam questões vividas/sentidas por uma artista
trans, negra e nordestina, como apontado em inúmeros textos da artista. O percurso e trabalho de
Jota Mombaça engendram questões que envolvem raça, gênero e sexualidade, confrontando a
própria vida como um objeto de criação estética — fato que também marcará a trajetória de outros
artistas aqui apontados, como Michelle Mattiuzzi e Paulo Nazareth.
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o silenciamento dos sujeitos negros permite que a fala colonial branca se consolide como
verdade sem a interferência de discursos contrários. A inviabilidade de manifestação da fala
negra é a condição por meio da qual o sujeito branco se reproduz. Assim é que, no marco do
racismo, o sujeito branco depende da produção arbitrária do sujeito negro como “Outro”
silenciado para se constituir, atualizando, a partir do binômio branco/negro, uma série de
outras fórmulas binárias tais como bem/mal, certo/errado, humano/inumano,
racional/selvagem, nas quais o negro não cessa de ser representado como mal, errado,
inumano, selvagem. Dessa maneira, não é jamais o sujeito negro que está em questão, mas
as imagens e narrativas dominantes produzidas desde um ponto-de-vista colonial acerca
dele. (para. 5)
Na entrevista que Mombaça cedeu ao grupo de pesquisa África nas Artes (2018a, 2018b), na
ocasião da conferência “Ecos do Atlântico Sul”, realizada pelo Instituto Goethe, em Salvador, em
2018, há pontos muito relevantes que podemos ressaltar. Queremos partir de um ponto específico
desta entrevista, na fala da artista sobre a autodefinição e os desdobramentos da questão
identitária no mundo das artes. Reclamar para si uma auto-definição, no caso de Jota Mombaça,
artista bicha, nordestina, não-binária, que foge às definições normativas que o mundo da arte
dispõe, e, em contrapartida, reagir à “híper-definição” da sua prática artística, abordando temas e
questões que estão muito para além do binômio raça-gênero, é uma das proposições da artista que
parece relevante. Trata-se de um esforço ambivalente e “violento”, uma tentativa de performar
outras experiências, outras vidas e outros mundos que não aqueles que o cotidiano e o imaginário
cisheteronormativo preveem, inclusive para a própria experiência estética. Esse é um ponto central
na performance realizada durante a exposição A Gente Combinamos de Não Morrer, realizada em
Lisboa, em 2018 na Galeria Municipal da Avenida da Índia.
Para pensar a obra de Mombaça é necessária uma atenção para essa resistência à “híper-definição”
como força de travessia em direção a novos horizontes pós-coloniais ou decoloniais diante de um
mundo em crise, ou seja, como uma forma de atravessar o caos político-social em que vivemos, e
fazer perdurar agendas progressistas contidas na luta identitária tão presente na obra de
Mombaça, mas não só:
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zona muito pequena quando na verdade eu estou interessado em muitos outros assuntos
que excedem essas minhas definições. (África nas Artes, 2018b, 00:02:25)
Esse duplo movimento é um ponto importante para ser desenvolvido enquanto pensamento
estratégico para uma atitude decolonial, enquanto artista brasileira. A questão que Jota Mombaça
levanta, de forma muito habilidosa, não é a de simplesmente marcar uma fala enquanto corpo
negro-bicha-nordestina, mas também (e principalmente) a partir daí produzir um lugar de
enunciação que gera por si “violência” ou, como ela prefere definir, “redistribui a violência”
(Mombaça, 2016). Esta violência opõe-se à ideia de segurança, isto é, ao desejo incontido da
consciência branca em preservar sua vida em detrimento de outras, e à sua capacidade de erguer
literalmente um mundo sólido a seu favor em detrimento do outro racializado e periférico.
Tal duplo movimento é a “língua bifurcada”, a dupla consciência de que fala Gilroy (1993), uma
inteligência pouco óbvia, marcada pela ironia e pelo sarcasmo tão presentes na cultura brasileira,
resgatada no percurso político-estético de Mombaça, não só como estética de criação, mas como
forma de resistência e re-existência política para corpos e vidas negras, constantemente em jogo e
em risco.
não ser silenciada e ainda assim não ser completamente traduzida. Incorporar uma forma
de resistência que está nessa ambiguidade, nessa opacidade. Chegou a hora, já passou da
hora talvez de reivindicar também junto com o direito à visibilidade, o direito à
representatividade, o direito à opacidade. (África nas Artes, 2018a, 00:02:05)
Assim como o racismo não é um epifenômeno do colonialismo, o sexismo também não é uma prática
lateral ao mundo erigido a partir da dicotomia modernidade–colonialidade. A criação de papéis
sociais em torno do gênero impôs uma condição para a mulher, assim como um sistema de
representação que aprisiona e controla o corpo da mulher. As feministas interseccionais e negras,
como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Beatriz Nascimento, vêm chamando atenção para a dupla
opressão, a dupla subalternidade e o duplo controle a que estão submetidas mulheres negras, ao
vivenciarem o racismo e o sexismo de forma indissociável e não hierarquizável. De certa forma,
essa discussão assume também um caráter poético nas artes visuais, na literatura e no cinema a
partir da consagração de inúmeras artistas negras que se consolidam no campo da arte no Brasil no
século XXI. Artistas como Michelle Mattiuzzi, cujo trabalho confronta a representação e a condição
de vida da mulher negra.
No trabalho Merci Beaucoup Blanco!, Michelle Mattiuzzi põe em causa o branqueamento forçado
de corpos e mentes negras, imposto pelo mito da democracia racial. No Brasil, ao longo do século
XX, as ciências sociais aperfeiçoaram saberes e práticas racistas ao consolidar o mito do convívio
pacífico das três raças — o branco, o índio e o negro —, que teria dado origem a uma sociedade
amistosa baseada na miscigenação própria do nosso legado colonial.
Muito contribuiu para a construção da ideia em torno dessa sociedade amigável, o pensamento do
sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, a partir de inúmeros ensaios, sendo o mais marcante aquele no
qual desenvolve os traços específicos do colonialismo português como em O Luso e o Trópico. A
desconstrução em torno da tal miscigenação pacífica — consolidada a partir da ampla difusão do
conceito de democracia racial no Brasil — passa, invariavelmente, pelo feminismo negro, já que
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autoras, como Lélia Gonzalez, ao aprofundar o olhar sobre a imagem estereotipada da mulher
negra na cultura brasileira, apontam paradigmas aprisionantes de representação que rompem com
a falácia da miscigenação pacífica, ao expor toda a violência do colonialismo sobre o corpo da
mulher e as formas assimétricas e desiguais que permearam essa “mistura”. De acordo com
Gonzalez (1984):
como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa
primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial
sobre a mulher negra. Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano
dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que
a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de
agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos mulata e doméstica são
atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos
vistas. (p. 228)
Em sua análise, Gonzalez (1984) ressalta o lugar social desempenhado pela mulher negra na
estrutura social brasileira ao ocupar duplamente uma função produtiva — o trabalho na plantação
— e uma função reprodutiva. A performance de Michelle Mattiuzzi, a nosso ver, dialoga com o
pensamento de Gonzalez uma vez que seu trabalho Merci Beaucoup Blanco!, ao apropriar-se da
conhecida máscara usada como instrumento de tortura durante a escravidão no Brasil expõe o
cotidiano de violência na plantação. Por outro lado, a exposição do corpo nu de uma mulher negra
traduz em imagem a continuidade da objetificação do corpo negro feminino numa sociedade sexista
e colonial. É interessante pensar como o trabalho de Mattiuzzi torna mais complexa a relação entre
trabalho produtivo e reprodutivo, ao dialogar com representações da escravidão (como a máscara)
através de um corpo exibível, vendável e comercializado.
Argumentamos que a máscara usada na performance de Mattiuzzi dialoga com a pesquisa recente e
também com a prática poética de Kilomba em sua exposição Secrets to Tell (Segredos Para Contar),
realizada no Museu de Arquitetura, Arte e Tecnologia de Lisboa, em 2017. Tal exposição de
Kilomba recupera grande parte de seu ensaio anterior Memórias da Plantação (Kilomba, 2019),
obra que tem como imagem inicial o rosto da escrava Anastácia sempre coberto pela máscara que a
impedia de falar, segundo Kilomba, sobre os segredos da escravidão, os segredos do colonialismo
que a autora traz à tona em Secrets to Tell e que Mattiuzzi explora em sua performance.
Este passado agonizante reencenado de que nos fala Kilomba é determinante no trabalho de
Mattiuzzi. Ao expor publicamente o corpo da mulher negra em lugares públicos através de seu
trabalho, a artista confronta abertamente o destino dos corpos negros violentamente impostos pelo
racismo (e sexismo) cotidiano e estrutural no Brasil de hoje.
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Assim como nos trabalhos anteriores, a questão racial é estruturante na obra de Paulo Nazareth,
mineiro de Governador Valadares, considerado um dos reinventores da performance no Brasil. Num
de seus trabalhos mais conhecidos, Notícias da América, o artista cruza a América a pé, andando de
Governador Valadares aos Estados Unidos, fotografando e oferecendo serviços de limpeza para
custear parte dos gastos da viagem.
o meu trabalho trata de questões também do nome, das nomeações, eu reivindico cada vez
mais o nome anterior, o nome de origem: Figueiras, Porto das Figueiras, Santo Antônio das
Figueiras, Porto das Canoas e Atu, na língua borum, o nome do Rio. A mãe de minha mãe
vem do povo borum e aí tem essa mistura com algumas comunidades que na época se
diziam quilombolas, do entorno, e que tinham práticas parecidas e que eram grupos
menores. Então quando tanto o povo borum quanto as comunidades quilombolas iam
crescendo, elas iam se desmembrando em grupos menores justamente por uma questão de
sobrevivência nessa região. A mãe da minha mãe é de 1913, o pai dela é de 1911 e os pais
dos pais e mães das mães são do final dos anos 1800, mais ou menos 1890, 1880. Em 1944,
a mãe da minha mãe, Nazareth Cassiano de Jesus... ela tinha muitas revoltas, muitas
questões… aí nessa região de onde a família era, essa região foi transformada em uma
fazenda e algumas pessoas se foram, outras ficaram e se tornaram o que chamava de
bugres. Então, aqueles que eram indígenas borum permanecem no território e são
transformados em bugres, são nomeados como bugres. A mãe de minha mãe tinha muita
resistência e quando minha mãe nasce, ela sai da fazenda e vai para cidade… e aí contam
que no dia que eles [a polícia] a agarraram e enviaram para a colônia, o Hospital
Psiquiátrico de Barbacena, ela estava caminhando em direção ao rio… e aí, disseram que
ela ia se afogar, ia matar a criança e ela brigou por essa criança, esse neném que era minha
mãe e quanto mais eles tentavam retirar a criança, mais ela brigava e quanto mais ela
brigava mais eles afirmavam que ela estava louca e de fato, ela teve um acesso de fúria pela
situação e o roubo da criança dela. E aí o patrão, que era delegado na época e também juiz
de cartório, assina o documento para enviar minha avó lá para Barbacena, onde ela é
colocada no trem de doido e vai embora Nazareth Cassiano de Jesus. Então, essa é parte da
história que eu herdo, é parte de minha história e a minha mãe tem esse choro até os dias
de hoje, ela chora a mãe que se foi. Meu trabalho é ser Nazareth também, carregar
Nazareth, eu carrego Nazareth e Nazareth me carrega… (P. Nazareth, comunicação
pessoal, 7 de setembro de 2020)
Também é central no trabalho da artista brasileira Juliana Notari o legado colonial e suas feridas e
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traumas. Escolhi incluir o trabalho de uma artista não-negra a partir de um viés decolonial porque
considero a discussão em torno de quem pode narrar (e quem consegue ser ouvida), como
questionam Spivak, Kilomba e Mombaça, um debate central que envolve o questionamento do
legado colonial e, portanto, do racismo e do sexismo de forma indissociável. A escolha por Notari,
uma artista não-negra, apresenta o desejo de problematizar essa discussão. Caberia analisar
também o trabalho de Gê Viana, Denilson Baniwa, Jorge Cabrera, André Feitosa, Daniel Meirinho,
entre outras e outros que optei por abordar em futuros textos. Caberia igualmente retomar o
conceito de arte afro-brasileira e as discussões em torno deste conceito engendradas nas últimas
décadas por Kabengele Munanga, Emmanuel Araújo, entre outras e outros, e tensioná-las à luz das
problemáticas de hoje — trabalho ainda em desenvolvimento e a ser publicado.
Segundo Notari, em entrevista a Luciana Veras (2020), a performance consistiu num ritual de
"limpeza e purificação". A ação, digamos, "central" da performance é constituída pelo gestual da
artista, vestida de branco, limpando não apenas os túmulos, jazigos e monumentos de mármore,
como também os restos mortais e ossadas de supostos antigos colonizadores residentes em Belém
e/ou da elite local. De acordo com a artista,
tinha autorização da Prefeitura de Belém para estar ali, mas não sabia o que poderia
acontecer, se acharia um rato ou uma cobra, por exemplo. Quando cheguei, um ossuário
estava aberto e comecei, então, a retirar tudo para lavar. Terminei e minha roupa estava
podre, toda verde do limo, e os ossos e aqueles túmulos de mármore estavam limpos. Foi
uma troca entre vida e morte. (Veras, 2020, para. 14)
Em Soledad, a mulher de branco capaz de expiar os pecados dos mortos através daquele ritual de
limpeza faz alusão aos vários rituais de cuidado e limpeza a que o corpo feminino é submetido
numa estrutura social patriarcal, ao mesmo tempo em que este mesmo corpo é agente do gesto, do
ritual. Não é demais referir que, para muitas pensadoras e pensadores decoloniais da América
Latina, a matriz colonial de poder não caminhou deslocada do desenvolvimento de uma sociedade
patriarcal e do aperfeiçoamento do modo de produção capitalista/extrativista que inscreve de forma
subalternizada os corpos genderizados da “mulher”.
eu estava no período de dois anos sem me depilar e ali, naquele lugar, com aquele animal,
me vi sujeita a forças da natureza, a forças libidinosas, à vibração que emanava pelo búfalo
e à liberdade de seguir no fluxo. (Veras, 2020, para. 12)
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A relação entre natureza e legado colonial tem sido abordada na trajetória de artistas latino-
americanas que têm chamado atenção para o esgotamento dos recursos naturais, o colapso
ambiental e o desgaste da vida no antropoceno, como uma forma de questionamento das práticas
extrativistas e coloniais em relação à Terra e seus desdobramentos na vida do presente. Sobre a
discussão em torno do antropoceno, a era geológica marcada pela pegada humana na Terra,
Marina Guzzo e Renzo Taddei (2019) comentam o papel das artes no esforço de reorganização do
mundo e na criação de novos regimes de percepção e visibilidade:
Trazer à tona saberes locais, indígenas, femininos tem sido uma das formas assumidas por uma arte
que pode ser compreendida a partir do viés decolonial. Os desdobramentos da modernidade-
colonialidade e dos impactos do capitalismo e das formas extrativistas na relação com os recursos
naturais do planeta têm sido pensados em práticas poéticas que questionam e aprofundam a
discussão em torno do legado colonial. É a partir daí que propomos pensar a obra de Notari.
A relação entre corpo, legado colonial e natureza é reforçado em Amuamas. Novamente de branco,
reproduzindo e alterando os rituais de cuidado e limpeza, geralmente relacionados ao feminino (e
abordados em trajetórias de artistas brasileiras tão diversas), Notari cava uma fenda em forma de
vagina no tronco de uma samaúma amazônica e introduz um espéculo ginecológico, cobrindo por
fim com o próprio sangue do ciclo menstrual.
Podemos perceber que a escolha da árvore não se deu por acaso: representa o sagrado feminino, a
fecundidade, a abundância, a capacidade de fazer as mulheres engravidarem; a artista, através do
corpo, sempre em ciclos de vida e morte. Para realizar o trabalho, a artista muniu-se da relação
local com xamãs para pedir conselho e autorização para a execução da obra. Agressivo e cruel, o
estupro cometido, pensado e acompanhado por Notari na "mãe das florestas" é metáfora que faz
ecoar nos corpos femininos. Ferida e trauma: legado colonial e formação do Brasil.
Conclusão
Ao expandir, aprofundar e comentar o ensaio “As Práticas Artísticas Contemporâneas no Contexto
Ibero-Americano e o Pensamento Pós-Colonial e Decolonial”, reunimos neste texto análises dos
artistas Jota Mombaça, Michelle Mattiuzzi, Paulo Nazareth e Juliana Notari, que se somam aos
anteriores no artigo citado: Yonamine, Grada Kilomba e Daniela Ortiz. Ao trabalharmos a
problemática da discussão em torno do surgimento de um campo de pensamento denominado “pós-
colonial”, bem como de um projeto decolonial, o interesse recaiu sobre a maneira como se
configuram no Brasil práticas poéticas interessadas na discussão em torno do legado colonial, dos
traumas da escravidão e dos desdobramentos do colonialismo no tempo presente. A partir de uma
abordagem histórica, neste artigo, tentamos perceber a forma como os estudos pós-coloniais
produzem influência no Brasil, assim como o giro e o pensamento decolonial que se consolida na
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América Latina, a fim de compreender as formas de produzir respostas do campo da arte brasileira
para questões que envolvem a descolonização. Esta análise ainda se revela circunstancial e deve
ser expandida, inclusive para ser capaz de contemplar as diferentes autoras e autores que
emergem no Brasil na virada para o século XXI e que tratam do debate decolonial. Ao pensar e
relacionar os estudos pós-coloniais e o projeto decolonial, torna-se evidente como a descolonização
da arte está relacionada com o questionamento da matriz de pensamento eurocêntrica a partir de
seus esquemas de representação de mundo racializados e subalternizados, assim como com o
caráter performativo daquele ou daquela que narra. Ou seja, a descolonização da arte e do
pensamento, como também dos modos de ser e estar no mundo não está dissociada do
aparecimento de artistas, escritores e intelectuais que questionam a hegemonia dos estereótipos
criados pelas representações coloniais e reinvindicam o direito de auto representação e de criação
de narrativas e imagens não coloniais ou que escapam e recusam por completo o imaginário
colonial e a cosmovisão euro-centrada. Ao trazer a obra de Juliana Notari no contexto dessa
discussão em torno das formas de uma arte contemporânea decolonial, salientamos que não é
suficiente pensar apenas as questões étnicos-raciais que atravessam as formas e representações
coloniais, e sim que, como sublinha Lélia Gonzalez (1984), o racismo e o sexismo devem ser
pensados de forma indissociável. Por outro lado, ainda que esta questão não tenha sido desdobrada
aqui, incluir uma artista não-negra no interior do debate decolonial implica dialogar com as ideias
de Kabengele Munanga, Emmanuel Araújo, entre outras e outros, quando pensam uma arte afro-
brasileira e as implicações do uso deste conceito. Uma arte contemporânea decolonial diz respeito
a sua forma e conteúdo e também ao sujeito que engendra o discurso. Acreditamos que essa
discussão é capaz de provocar desdobramentos que escapam este texto e que se tornam cada vez
mais incontornáveis quando se anunciam no nosso presente.
Agradecimentos
A André Feitosa, Jorge Cabrera, Juliana Notari, Paulo Nazareth.
Nota Biográfica
Michelle Sales é pesquisadora, professora e curadora independente. É professora associada da
Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010 até a atualidade) e do
Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas. É
coordenadora da rede de pesquisa Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos, no Brasil e em Portugal, e
do projeto As Práticas Artísticas Contemporâneas e o Pensamento Pós-Colonial e Decolonial. Fez
um pós-doutoramento em estudos contemporâneos pela Universidade de Coimbra (2018–2020),
coordenou o projeto de investigação À Margem do Cinema Português (2020), financiado pela
Fundação Calouste Gulbenkian. É ex-bolseira da Fundação Calouste Gulbekian, no programa
Investigadores Estrangeiros (2013–2014) e colabora com o Centro de Estudos em Comunicação e
Sociedade da Universidade do Minho (2020). Como curadora, entre outras exposições, contam-se:
"Daqui Para Frente: Arte Contemporânea em Angola" (Caixa Cultural, Rio de Janeiro, 2017; Caixa
Cultural, Brasília, 2018). Atua nas áreas dos estudos pós-coloniais, decoloniais e anti-coloniais,
feminismo interseccional, relações étnico-raciais e gênero.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1589-4003
Email: sales.michelle@gmail.com
Morada: Av. Pedro Calmon. nº 550 – Prédio da Reitoria, 2º andar, Cidade Universitária – Rio de
Janeiro, RJ – CEP 21941-901
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Notas
1. No Brasil, a opção por usar o termo descolonial implica uma posição política, uma vez que o
termo não é a simples tradução ou sinônimo do termo corrente usado pelos latino-americanos, o
decolonial. Portanto, o descolonial se refere a uma discussão cuja matriz é pensamento brasileiro e
seu contexto próprio.
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