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Black Friday: O Racismo Estrutural e os Bastidores do Mercado

Afinal de contas, o que significa o termo Black Friday? Sexta-feira negra? Sexta-feira
preta? Dia de preto? Dia que pobre pode comprar coisas boas e bem barato? Se você quer se
conscientizar sobre esse termo, que já tomou conta do comércio no Brasil nos últimos 10 anos,
leia o texto abaixo:

Neste dia 20 de novembro de 2020-dia de uma reflexão global sobre a realidade de vida
das pessoas negras- o termo “Black Friday” entra para a suspeita de uma possível origem racista
surgida nos Estados Unidos da América. Isso já começou a preocupar algumas grandes
empresas que usaram esse termo nos últimos anos como sinônimo de promoção, o dia de preços
baixos. A empresa Boticário, já se pronunciou que em 2020 não usará mais esse termo. Outra
empresa, a Adidas, também já entrou na discussão. Na verdade, as pessoas vão sendo tão
envolvidas pelas propagandas para a necessidade de consumir, que muitas não param sequer
pra questionar: por que “Black Friday” e não “White Friday”? Apesar da origem do termo
“Black Friday” não existir em nenhum registro histórico, será interessante fazermos um
rastreamento histórico, desde os primórdios desta expressão, pra percebermos como tudo foi
sendo construído até que esse termo se tornasse popular.

Comecemos nos primórdios do ano de 1621. A Black Friday acontece sempre após o
Dia da Ação de Graças, nos Estados Unidos. Esse Dia da Ação de Graças é um feriado para
agradecer, comer e ficar em família. Quer dizer que “Black Friday” seria um dia contrastante
com o Dia da Ação de Graças? Seria então o dia da ingratidão, onde não há comida e não há
família? É possível fazermos essas conclusões se conseguirmos perceber a possibilidade da
origem subliminar do contraste entre esses dois dias? Essa possibilidade não pode ser
conclusiva, mas também não pode ser descartada. Apenas podemos desconfiar. São necessários
mais dados para essa confirmação.
No século XVIII, na América escravagista, os negros escravizados, vindos da África,
que sobreviviam à rotina de trabalho de até 18 horas, ficavam doentes e fracos, eram vendidos,
às sextas-feiras, a preços baixos, promocionais.
No ano de 1869, As empresas de Wall Street estavam arruinadas porque o mercado de
ouro quebrou numa sexta-feira. O termo “black” se referia à crise daquela sexta-feira, uma
conotação negativa de “black” como sendo arruinado. Por que não usaram o termo “White”
para arruinado?
Em 1960. Dá-se a origem do termo como o conhecemos hoje. Há duas versões interessantes
aqui: Na primeira versão mais moderna, os comerciantes, após o Dia da Ação de Graças faziam
promoções de até 90%, o que causava imensa procura causando problemas de trânsito, furtos e
violência, dobrando o trabalho dos policiais. Os policiais racistas, aproveitando a segregação
racial norte americana, associavam a cor da pele dos negros à violência, dizendo que “era uma
sexta-feira negra”. Na segunda versão, conta-se que os policiais da cidade de Filadélfia
aproveitaram que no sábado havia um clássico do time da Academia do exército norte-
americano (Army Black Knights) contra o time da Marinha ( o Navy Midshipmen), e usaram o
termo Black Friday para caracterizar a desordem do trânsito e a falta de descanso por conta do
engarrafamento e o grande tumulto de pessoas. Uma verdadeira muvuca. Muitos dos policiais
americanos ( que se comportam nos conflitos com os negros , quase sempre, e abertamente, por
decisões racistas) não escolheram o termo “Midshipmen day”, por razões óbvias do racismo
estrutural que há nos EUA. Os comerciantes se aproveitaram dessa muvuca para fazerem
promoções para esses consumidores desenfreados. Começou aí a tradição como a conhecemos
hoje, mas o termo só se popularizou em 1980 quando se espalhou pelo resto dos EUA. Aqui no
Brasil, a Black Friday, começou pela internet em 2010, pelo site chamado Buscas Descontos e
foi seguida por cerca de 50 lojas online. Hoje engloba tanto as lojas virtuais quanto as físicas.
Cabe aqui uma pergunta interessante: Por que, em geral, os movimentos negros dos EUA
não se pronunciaram até hoje contra o termo Black Friday? Talvez porque a primeira luta dos
negros norte-americanos foi combater o racismo segregacional, que ainda não desapareceu
completamente. permitindo a ascensão econômica e social dos negros nos EUA. Essa ascensão
econômica e social pode ter mitigado uma contestação do termo, por parte de uma parcela da
população negra, uma vez que passaram também a se beneficiar dos lucros da Black Friday.
Muitos deles podem até, neste sentido, considerar a expressão positivamente. É importante
entendermos que o racismo é sempre estrutural mas pode tornar-se na sua versão mais violenta:
o racismo segregacional. O primeiro é invisível e o segundo é visível. O primeiro, é a ideia; o
segundo, a aplicação da ideia. O primeiro, pode ter como representante o Brasil; e o segundo,
o Apartheid da África do Sul e o segregacionismo dos EUA. No Brasil, a segregação geográfica
das favelas e dos morros e os indicadores sociais dos descendentes dos 5 milhões de negros e
negras escravizados não são vistos como segregação racial-principalmente pelos representantes
da elite privilegiada- porque aqui o racismo estrutural é dominante e procura ocultar a realidade
do país.
Nesta breve reflexão, podemos perceber que, das várias versões, não podemos apontar
aquela que foi mais determinante para as origens do termo Black Friday, mas podemos
compreender agora o poder da linguagem para, a partir de um contexto histórico e social,
alavancar uma expressão que- na grande maioria das vezes ao longo da história- está manchada
de conotações negativas. Conotações essas que tentam diminuir a história e o valor de um povo
pela cor da sua pele. Por isso, quando falamos de racismo estrutural, estamos falando de uma
ideia preconceituosa, que foi arraigada nas estruturas mais profundas do pensamento das
pessoas e que integra a organização econômica e política da sociedade. A linguagem pode ser
uma das ferramentas usadas pelos opressores para transcrever, e tornar invisível, a realidade e
o valor dos oprimidos, a partir da construção de uma expressão de sentido negativo. Cabe a
todos nós, optarmos por um mundo livre e democrático, onde todas as pessoas tenham seus
direitos respeitados, independentemente da cor de sua pele. Direito, por exemplo, a uma
equidade salarial justa que conduza a população negra a uma ascensão social digna. Importa
também, uma ocupação crescente de homens e mulheres negros em cargos estratégicos de
decisões das instituições públicas e privadas e uma inclusão da história da África para o ensino
básico. Desta forma, as próximas gerações de pessoas negras não terão a sua história contada
por pessoas brancas. E as feridas, finalmente, possam ser fechadas.

João Filho, doutorando, UFPE.

Referência Bibliográfica

1.Souza, Felipe de. Suspeita de origem racista faz mercado discutir expressão Black
Friday.<https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/07/suspeita-de-origem-racista-
faz-mercado-discutir-expressao-black-friday.htm> Acesso: em 20/11/2020

2.Almeida, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural. Editora Jandaíra, 2020, São Paulo.

3.Rossini, Maria Clara. Como Surgiu a Black Friday. Revista SuperInteressante, 2019.

4.Gomes, Laurentino. Escravidão – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte


de Zumbi dos Palmares, Vol.1, Editora Globo Livros, 2019.

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