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identidade e letra1
Luciano Elia2
Talvez uma das primeiras lições que todo aquele que se dirige ao
campo da Psicanálise, quer como campo de saber, quer como experiência,
e, no melhor caso, das duas formas, deve extrair de seu encontro com este
campo é a de que, nele, não há identidade. Na psicanálise, não trabalhamos
com a noção de identidade, com o self, com o si mesmo, apesar de existir
uma tendência na psicanálise que se auto-intitula Psicanálise do self.
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proeminentes, já que poderíamos citar muitos outros na psicanálise,
substituem os terminados em “ade” ou “ez” (identidade, fixidade ou
fixidez, para continuarmos com os exemplos). E alemão, esse sufixo toma a
forma do “ung”, obviamente encontrado em vários conceitos freudianos:
Identifizierung, Fixierung, em vez de Identität, ou Fixität. Posteriormente,
Lacan introduzirá a palavra sexuação, que será preferida à de
“sexualidade”, (Sexualität), que Freud emprega e mantém, fazendo com
que a própria sexualidade deixe de ser um objeto que define um campo
análogo aos campos científicos, para tornar-se um campo que só se
constitui, no plano da lógica, pelo ato do sujeito: “ão”.
2
faz esta referência em seu escrito A instância da letra no inconsciente ou a
razão desde Freud, de 1957.3
3
Lacan, J. – A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, (1957), in Escrtos, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
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Idem – Posição do inconsciente no Congresso de Bonneval (1960) retomado em 1964, in Escritos, op.
cit. Pág.
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que o sujeito destaca, extrai, da avalanche de traços que ele recebe do
Outro, e que ele elege como base do Ideal do eu.
Mas não é todo sujeito que faz essa operação redutora. Isso é próprio
da estrutura neurótica. Os psicóticos e os perversos, por exemplo, dão outro
jeito, encontram outras formas de se haverem com o Outro primeiro,
legiferante, oracular. Ou antes, talvez o Outro desses sujeitos não
neuróticos não tenha sido tão oracular e firme em seu dito, o que não terá
permitido que sua onipotência tenha sido reduzida em potência pela
redução ao traço unário e conseqüente identificação primordial. Por isso a
repetição é tão importante, e é só a partir dela que se pode cernir o que se
repete, na estrutura mesma que o significante constitui e que o constitui no
inconsciente, para no esgotamento disso, fazer algo que tenha a chance de
ser novo. Ir direto para o novo, para as novidades e invencionices pode ser
uma forma do sujeito nada querer saber do que o funda como sujeito, no
nível do significante, e que, por não promover identidades, repete e repete a
não-identidade, produzindo as identificações.
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identificação, situada aqui em oposição conceitual à identidade. E cheguei,
de passagem, a contrariar a própria dimensão da identificação, pela
referência à operação da análise. Mas agora quero falar em que sentido o
plano da identidade se recoloca na experiência psicanalítica. Como não sou
Raul Seixas e não tenho a capacidade de ser uma metamorfose ambulante,
não “pretendo dizer agora exatamente o contrário do que disse antes”. O
que pretendo é conseguir transmitir a vocês que a identidade, quando tem
lugar na experiência analítica, não designa o contrário de todo o
desenvolvimento que fiz a respeito do rompimento freudiano que resultou
no conceito também freudiano de identificação. Não estamos voltando a
antes de Freud, mas, pelo contrário, tentando extrair as consequências que
as operações da análise, feitas sobre as operações de identificação que são
obra do significante e do sujeito, produzem sobre as próprias
identificações.
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Esse objeto não cai do corpo como naco, fatia, pedaço material, e sim como
parte perdida de si mesmo, fundamento, sem carne nem objetividade
alguma, de tudo o que, a partir daí, será objeto para o sujeito, caro ao
sujeito, no duplo sentido (caro de custoso e de precioso, palavra, aliás, que
reincide no primeiro sentido de custo, já que precioso vem de preço, que é
custo, a ponto de podermos perguntar se há duplo sentido). Todo objeto
carnal do desejo (e convém que o objeto do desejo tenha carne) terá que ser
reconstituído pelo sujeito como carnal, dotado de imagem de corpo, já que,
em seu fundamento, o objeto é sem face e sem carne, perdido, como objeto
a.
O sujeito tem a mais íntima relação com esse objeto, que saiu –
ficamos tentados a dizer, dele mesmo, mas não é dele mesmo que saiu,
porque não havia dele mesmo – que saiu do corpo do Outro no qual o
sujeito estava inicialmente subsumido, no momento mesmo em que o
sujeito também se separa deste Outro. O sujeito, de algum modo, é ou “foi”
este objeto, entre aspas porque ele nunca o foi. Mas o uso desses tempos
verbais nos permite dizer que, na verdade, é só prospectivamente, só
depois, no tempo da análise, é que ele poderá vir a ocupar o lugar desse
objeto, deixar-se ocupar por ele, pela operação da análise, em seu final. O
sujeito sempre esteve como que conjugado a este objeto do qual, ao se
constituir como sujeito, ele se separou e perdeu “de si”, e portanto, sempre
esteve também dele disjunto. Conjugado e disjunto, é como Lacan escreve
a relação do sujeito do inconsciente (portanto, do desejo, do significante e
da identificação) com o objeto a, que é a sua formulação mesma do
matema do fantasma, o modo como ele escreve o que lê em Freud como
sendo a fantasia fundamental do sujeito.
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função do falo, como suportado, no imaginário, pelo objeto a, deste objeto
mesmo. O falo permanece na não-identidade, sustentando a diferença
sexual, como fundamento da castração na sexuação. No homem, como –φ,
isto é, como o que falta ao seu corpo, a ser situado no campo da mulher
como revestimento do objeto a; na mulher como Φ a ser situado no campo
do homem como significante e atestado da castração do homem, que
possibilita seu desejo). Mas o objeto a não é sexualizado, é fundamento da
sexuação que se opera pela via do falo. Por isso o objeto a não é
identificável, nem especularizável. Lugar da identidade que resta às
operações a análise, lugar de causa (que a Filosofia não conseguiu cernir
porque não a articulou ao corpo do falante, como pôde fazer a Psicanálise,
através do significante), o objeto a será também o operador do discurso do
analista, quando colocado em posição de agente, ou seja, de semblante
desse discurso.
Para isso, o sujeito terá que se haver com o que nele é objeto, e
retomar, por assim dizer, um ponto em que ele é idêntico a si mesmo, como
a letra, que, ao contrário do significante, é o que ela é, e, se for algo diverso
de si mesma, já será outra letra.
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Recife, 5 de maio de 2006