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Identificação e significante,

identidade e letra1

Luciano Elia2

Talvez uma das primeiras lições que todo aquele que se dirige ao
campo da Psicanálise, quer como campo de saber, quer como experiência,
e, no melhor caso, das duas formas, deve extrair de seu encontro com este
campo é a de que, nele, não há identidade. Na psicanálise, não trabalhamos
com a noção de identidade, com o self, com o si mesmo, apesar de existir
uma tendência na psicanálise que se auto-intitula Psicanálise do self.

A problemática da identidade está indissociavelmente ligada à do ser,


e, neste ponto, é em Parmênides que encontramos o mais conhecido
fundamento: o ser é aquilo que é. Na psicanálise, ser e identidade (que
significa mesmo ser) são, de saída, problematizados, desconstituídos como
tais.

Em Freud isso é bem patente: todo o trabalho freudiano dos Três


ensaios sobre a teoria da sexualidade, bem inicial e fundamental, já indica
claramente que, na desmontagem operada pelo que ele chama de
aberrações sexuais (1º ensaio) – aberrações assim chamadas porque
desmontam, com o empréstimo da escuta e da escrita de Freud, a noção
então estabelecida de sexual, mais do que são desmontadas por Freud – a
identidade, como princípio, cai por terra. Em seu lugar, a identificação
aparece como via de constituição do sujeito, neste caso, de sua posição
sexual.

Na psicanálise, os substantivos conceituais terminados em “ão”,


como “identificação” e “fixação”, apenas para tomar dois exemplos
1
Trabalho apresentado na VI Jornada Brasileira de Convergencia, Movimento Lacaniano para a
Psicanálise Freudiana, com o tema “Identificação e identidade”, realizada em Recife, sob organização de
Intersecção Psicanalítica do Brasil, instituição membro de Convergencia, nos dias 5 e 6 de maio de 2006.
2
Psicanalista, Membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise, instituição membro de Convergencia.

1
proeminentes, já que poderíamos citar muitos outros na psicanálise,
substituem os terminados em “ade” ou “ez” (identidade, fixidade ou
fixidez, para continuarmos com os exemplos). E alemão, esse sufixo toma a
forma do “ung”, obviamente encontrado em vários conceitos freudianos:
Identifizierung, Fixierung, em vez de Identität, ou Fixität. Posteriormente,
Lacan introduzirá a palavra sexuação, que será preferida à de
“sexualidade”, (Sexualität), que Freud emprega e mantém, fazendo com
que a própria sexualidade deixe de ser um objeto que define um campo
análogo aos campos científicos, para tornar-se um campo que só se
constitui, no plano da lógica, pelo ato do sujeito: “ão”.

O grande responsável por esta operação freudiana é justamente o


significante. Mesmo sem nomeá-lo assim, pois significante não é um
significante freudiano no plano do emprego lingüístico e conceitual, é com
o significante que Freud está operando para desmontar a evidência da
identidade do sujeito com seu sexo biológico, por exemplo. Isso é tão
notável no texto de Freud que merece uma citação. Há um momento, em
que Freud trata da homossexualidade, em que ele diz que todo sujeito já
fez, em seu inconsciente infantil, uma escolha homossexual, e que é tarefa
do psicanalista explicar por que avatares terão passado as escolhas do
sujeito para que ele tenha feito a escolha final que fez, já que, nas palavras
de Freud, “afinal de contas, não se trata de uma escolha de natureza
química”. Continua ele com a surpreendente afirmação de que para o
psicanalista é igualmente enigmático que alguém se torne heterossexual ou
homossexual. De que se trata, nesse dizer de Freud, absolutamente
desconcertante para o pensamento científico e para a moral da sua, da
nossa, e de todas as épocas da civilização, senão da operação do
significante?

Pois bem, o significante, tomado de Lacan da Lingüística moderna


de Saussure, tem na verdade uma origem bem mais antiga, nos estóicos
(Lucrécio). Os estóicos afirmavam a prevalência das formas verbais sobre
as substantivas, preferindo os acontecimentos, por eles chamadas de
incorpóreos, resultante do encontro dos corpos, ao estudo da natureza
substancial e essencialista desses corpos, que vigia na Filosofia, e forjaram
o termo de significante, cujo sufixo “ante” (oposto, aqui ao “ado” –
particípio passado, que está em “significado”), afirma, em suas letras
constitutivas, a dimensão do ato, demonstrando que nada separa
significante de ato, no corpo das letras que o escrevem. Deleuze morreu
antes de entender o quanto isso é lacaniano (o significante, que é estóico, é
também lacaniano), e os lacanianos também não entendem freqüentemente
esta convergência quanto ao uso do significante. Mas Lacan a percebeu, e

2
faz esta referência em seu escrito A instância da letra no inconsciente ou a
razão desde Freud, de 1957.3

Significante, portanto, terminando em “ante”, é ativo, é ato, e seu ato


consiste em produzir efeito de sujeito. Mas que tipo de efeito produz
sujeito? Aqui Lacan está sozinho, ou melhor, sem Lucrécio nem Saussure,
mas acompanhado de Freud que, não tendo usado a palavra significante, é a
única referência para o que Lacan articula sobre a relação do significante
com o sujeito. Que relação é essa? Consiste ela em introduzir no sujeito a
clivagem fundante pela qual ele não será jamais idêntico a si mesmo. O
significante é aquilo que falta em seu próprio lugar, e que não é idêntico a
si mesmo.

Lacan escreve, em Posição do inconsciente [196], que “o efeito de


linguagem é a causa introduzida no sujeito”4. O sujeito, seu efeito no corpo
do falante, também não será idêntico a si mesmo, sendo, por isso mesmo,
convocado a operar identificações. Ali onde falta a identidade, resta a
identificação. Nesse sentido é que começamos por dizer que Freud não
apenas usa identificação em vez de identidade por gosto pessoal,
preferência conceitual, mas por absoluta
impossibilidade de recorrer à identidade, que não existe, resta-lhe o recurso
conceitual à identificação, cuja introdução em sua teoria lhe é então
imposta, mais do que escolhida por diletantismo teórico. Do mesmo modo,
a pulsão faz fixações em determinados objetos pela única razão de que
nada a fixa, a priori, neles. Não havendo fixidade (fixidez prévia, que
dirigiria a pulsão a determinado objeto, o homem para a mulher e a mulher
para o homem, por exemplo), resta à pulsão a fixação, que é, como a
identificação em relação à identidade, seu oposto, nesse sentido.
De identificações, múltiplas, muitas e florestais, o sujeito vai
desenhando o mapa de sua vida erótica, amorosa, ou seja, narcísica, que
acaba por se revelar repetitiva, de modo algum rica em variedade,
pluralidade e multiplicidade, mas, como a gente diz, fazendo variações
sobre o mesmo tema. Isso porque, se o significante não é idêntico a si
mesmo, não permitindo ao sujeito saber ou dizer o que ele é de uma vez
por todas, ele opera por repetição do traço único, dito também unário, não
por designar o Um que sujeito seria, não por lhe dar unidade (o que
acabaria por lhe dizer quem ele é e assim recair na identidade com o qual o
significante justamente rompeu em seu surgimento), mas por ser um traço

3
Lacan, J. – A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, (1957), in Escrtos, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
4
Idem – Posição do inconsciente no Congresso de Bonneval (1960) retomado em 1964, in Escritos, op.
cit. Pág.

3
que o sujeito destaca, extrai, da avalanche de traços que ele recebe do
Outro, e que ele elege como base do Ideal do eu.

“O dito primeiro decreta, legifera, aforisa, é oráculo, e confere ao


outro
real sua obscura autoridade” diz Lacan na Subversão do sujeito5 – ou seja, é
onipotente e avassalador – mas é por isso mesmo que, deste dito assim tão
poderoso, o sujeito extrai, pelo traço que toma do Outro, reduzindo-o a este
traço, a sua potência, a possibilidade. Na língua francesa a seqüência fica
mais forte e transmissiva: “cette toute-puissance, ce pouvoir tout em
puissance, cette naissance de la possibilité”6. Da onipotência do Outro, o
sujeito, reduzindo-o ao traço único, um só, e não todo-o-outro, faz-se
potente e possível.

Mas não é todo sujeito que faz essa operação redutora. Isso é próprio
da estrutura neurótica. Os psicóticos e os perversos, por exemplo, dão outro
jeito, encontram outras formas de se haverem com o Outro primeiro,
legiferante, oracular. Ou antes, talvez o Outro desses sujeitos não
neuróticos não tenha sido tão oracular e firme em seu dito, o que não terá
permitido que sua onipotência tenha sido reduzida em potência pela
redução ao traço unário e conseqüente identificação primordial. Por isso a
repetição é tão importante, e é só a partir dela que se pode cernir o que se
repete, na estrutura mesma que o significante constitui e que o constitui no
inconsciente, para no esgotamento disso, fazer algo que tenha a chance de
ser novo. Ir direto para o novo, para as novidades e invencionices pode ser
uma forma do sujeito nada querer saber do que o funda como sujeito, no
nível do significante, e que, por não promover identidades, repete e repete a
não-identidade, produzindo as identificações.

A operação da análise trafega na mesma via da repetição e da


identificação operadas pelo significante, mas em sentido contrário, na
contra mão. A análise só pode produzir seus efeitos através da
desmontagem da rede identificatória que sustenta o sujeito e seu sintoma, o
que exige que a via da repetição e da transferência. A transferência,
articulada à função do desejo do analista, ou seja, como transferência
analítica, situará o analista em um lugar completamente diverso daquele
que opera, promove ou mesmo sustenta identificações.

Neste ponto, introduzo a segunda vertente deste trabalho. Tratei até


aqui do que não é identidade, do que a contraria, tomando a forma da
5
Idem – Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960), in Escritos, op. cit.,
pág.,
6
Idem – Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien (1960), in Édrits, Paris,
Aux editions du Seuil, 1966, pág.

4
identificação, situada aqui em oposição conceitual à identidade. E cheguei,
de passagem, a contrariar a própria dimensão da identificação, pela
referência à operação da análise. Mas agora quero falar em que sentido o
plano da identidade se recoloca na experiência psicanalítica. Como não sou
Raul Seixas e não tenho a capacidade de ser uma metamorfose ambulante,
não “pretendo dizer agora exatamente o contrário do que disse antes”. O
que pretendo é conseguir transmitir a vocês que a identidade, quando tem
lugar na experiência analítica, não designa o contrário de todo o
desenvolvimento que fiz a respeito do rompimento freudiano que resultou
no conceito também freudiano de identificação. Não estamos voltando a
antes de Freud, mas, pelo contrário, tentando extrair as consequências que
as operações da análise, feitas sobre as operações de identificação que são
obra do significante e do sujeito, produzem sobre as próprias
identificações.

A análise não é criacionista nem eliminalista. Não se erradica o


fantasma, não se fulmina o narcisismo, não se elimina o sintoma, não se
acaba com as identificações. Analisar é outra coisa, que consiste em fazer
outra coisa de cada uma dessas coisas, mas não em acabar com elas. Não
somos médicos nem deuses e na verdade não vemos vantagem nisso,
achamos que a operação da análise é mais forte do que essas na vida dos
sujeitos.

O que a análise pode fazer com as identificações de um sujeito já


que, embora sustentem seu sofrimento sob a forma do sintoma, elas lhe
foram tão fundamentais, fundacionais e mesmo cruciais em sua
constituição?

Para tentar responder a isso, temos que considerar um elemento de


estrutura que incide no próprio movimento operatório da identificação.

Se dissemos que o significante não é idêntico a si mesmo, ou seja, se


ele vem desmontar a ideia de uma identidade prévia, primeira, do sujeito
consigo mesmo (o que só poderia justificar-se em um sujeito biológico ou
espiritual, já que não há sequer um “si-mesmo” no início do sujeito), então
podemos perguntar: que efeito essa não identidade, que se inscreve no
âmago da identificação, produz no sujeito, senão uma clivagem, uma
divisão dele em relação a ele mesmo?

Pois bem. No corte mesmo que a operação do significante faz no


sujeito, ao constituí-lo como dividido, base de suas identificações, um resto
decai, uma parte do corpo, libra de carne, como diz Lacan, cai como
separada, perdida, do sujeito. É isso que Lacan denominou de objeto a.

5
Esse objeto não cai do corpo como naco, fatia, pedaço material, e sim como
parte perdida de si mesmo, fundamento, sem carne nem objetividade
alguma, de tudo o que, a partir daí, será objeto para o sujeito, caro ao
sujeito, no duplo sentido (caro de custoso e de precioso, palavra, aliás, que
reincide no primeiro sentido de custo, já que precioso vem de preço, que é
custo, a ponto de podermos perguntar se há duplo sentido). Todo objeto
carnal do desejo (e convém que o objeto do desejo tenha carne) terá que ser
reconstituído pelo sujeito como carnal, dotado de imagem de corpo, já que,
em seu fundamento, o objeto é sem face e sem carne, perdido, como objeto
a.

O sujeito tem a mais íntima relação com esse objeto, que saiu –
ficamos tentados a dizer, dele mesmo, mas não é dele mesmo que saiu,
porque não havia dele mesmo – que saiu do corpo do Outro no qual o
sujeito estava inicialmente subsumido, no momento mesmo em que o
sujeito também se separa deste Outro. O sujeito, de algum modo, é ou “foi”
este objeto, entre aspas porque ele nunca o foi. Mas o uso desses tempos
verbais nos permite dizer que, na verdade, é só prospectivamente, só
depois, no tempo da análise, é que ele poderá vir a ocupar o lugar desse
objeto, deixar-se ocupar por ele, pela operação da análise, em seu final. O
sujeito sempre esteve como que conjugado a este objeto do qual, ao se
constituir como sujeito, ele se separou e perdeu “de si”, e portanto, sempre
esteve também dele disjunto. Conjugado e disjunto, é como Lacan escreve
a relação do sujeito do inconsciente (portanto, do desejo, do significante e
da identificação) com o objeto a, que é a sua formulação mesma do
matema do fantasma, o modo como ele escreve o que lê em Freud como
sendo a fantasia fundamental do sujeito.

O objeto a, portanto, não é o sujeito, por mais intimamente


articulados que eles estejam, no fantasma e no inconsciente. O objeto a não
é atravessado pelo significante como o sujeito, não é “barrado”, não é
cindido, dividido, como o sujeito. Pela simples e boa razão de que ele é
resto e efeito desta divisão mesma do sujeito pelo significante. O objeto a
portanto, não tem que padecer do processo de identificação. Não se aplica a
ele a questão do identificar-se. Ele sim é idêntico a si mesmo, nada lhe
falta, ele é o que falta ao sujeito. Então, se o sujeito terá que se haver, na
análise, com sua condição de objeto, e até mesmo chegar a ponto
(avançado) de equiparar-se a ele, a questão de um ponto de identidade se
colocará para ele. Sua clivagem tem, em seu cerne, o vazio de um objeto
idêntico a si mesmo.

Mas resta no final da análise algo que permanecerá não idêntico a si


mesmo. Refiro-me ao falo, na forma de –φ. A análise deverá distinguir a

6
função do falo, como suportado, no imaginário, pelo objeto a, deste objeto
mesmo. O falo permanece na não-identidade, sustentando a diferença
sexual, como fundamento da castração na sexuação. No homem, como –φ,
isto é, como o que falta ao seu corpo, a ser situado no campo da mulher
como revestimento do objeto a; na mulher como Φ a ser situado no campo
do homem como significante e atestado da castração do homem, que
possibilita seu desejo). Mas o objeto a não é sexualizado, é fundamento da
sexuação que se opera pela via do falo. Por isso o objeto a não é
identificável, nem especularizável. Lugar da identidade que resta às
operações a análise, lugar de causa (que a Filosofia não conseguiu cernir
porque não a articulou ao corpo do falante, como pôde fazer a Psicanálise,
através do significante), o objeto a será também o operador do discurso do
analista, quando colocado em posição de agente, ou seja, de semblante
desse discurso.

Para isso, o sujeito terá que se haver com o que nele é objeto, e
retomar, por assim dizer, um ponto em que ele é idêntico a si mesmo, como
a letra, que, ao contrário do significante, é o que ela é, e, se for algo diverso
de si mesma, já será outra letra.

A função da letra nesse momento é fundamental. É a letra que, em


tudo contrária ao significante, permite à análise dar ao gozo do sintoma um
destino inédito para o sujeito. Uma vez desfeita a montagem identificatória
do sujeito através da análise da transferência, e uma vez distintos e
separados o falo como operador da castração e da sexuação e o objeto a
como o que causa o desejo mas não é sexual, a letra pode cumprir a função
de escrever o gozo, o sentido que já então terá sido suficientemente ouvido
(sens dejà ouï, j’ouïs sens, jouissance). Escrever o que já se ouviu, letra por
letra, em um novo corpo de letras.

O “tu és isto”, do final de análise, reinscreve a identidade entre o


sujeito e o objeto que ele é, ou entre o sujeito e o um real do seu sinthoma,
ou seja, aquilo que resta, irredutível e ineliminável, de nossos sintomas
neuróticos uma vez feita a análise, aquilo do sintoma que, despojado de sua
carga gozosa, permite que o sujeito possa dizer “Eu sou o meu sinthoma”.
Pela identificação radical do sujeito com o seu sintoma, ele se faz idêntico
a ele. É só nesse sentido que a identidade faz sua incidência na análise,
ponto limite, corte, fim da identificação, não porque acaba com ela (caso
em que não haveria resto) mas justamente porque resta dela.

7
Recife, 5 de maio de 2006



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