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Walter Gropius e a Bauhaus

No mesmo ano em que a recém fundada República alemã assinava o humilhante


Tratado de Versalhes, assinado em Paris em 1919, o movimento modernista germânico
dava um importante passo para a consagração internacionalmente. Naquela ocasião, em
sintonia com uma época inaugurada por revoluções, golpes e tumultos de toda ordem
que se estenderam pelos anos vinte, um reduzido grupo formado por profissionais das,
mas variadas atividades artísticas e técnicas, liderado pelo o arquiteto Walter Gropius
lançou na cidade de Weimar, a Atenas da Alemanha, o Manifesto da Bauhaus , em abril
de 1919.

A ação de vanguarda deles iria provoca uma alteração duradoura na história da


arquitetura e das artes plásticas em geral. Não era para menos visto que a ambição do
movimento era “a nova construção do futuro.” Começava então uma das mais
importantes transformações do século 20: a aliança entre a estética e a tecnologia, entre
o artista e a indústria.

O sol e a bigorna

Desde tempos imemoriais artistas e artesãos ocupavam espaços distintos no universo


das artes em geral. Os primeiros, os artistas, sempre se viram como um espécie de
aristocracia das belas artes, os favoritos das musas, os eleitos de Apolo, o deus-Sol que
tudo alumia, enquanto os artesão, humildes, tinham como inspirador a Hefesto,
o deus corcunda da forja que, infeliz, malhava o ferro incandescente na bigorna
numa oficina nos subterrâneos da Terra, suando por todos os poros em meio às
labaredas e às ferramentas ardentes.

Um dos primeiros propósitos da fundação da Bauhaus, em abril de 1919, foi a superação


desse estigma histórico-corporativo pela educação do artista-artesão, alguém tão hábil
com as mãos como enfronhado na concepção mais elevada da arte, um ser capaz de
conceber um objeto qualquer, esteticamente relevante, e, ao mesmo tempo, hábil em
executá-lo em conjunto com os demais colegas da construção. Fazer, enfim, com que o
belo Sol de Apolo entrasse em harmonia com a fornalha do torto Hefesto. Ou ainda,
metaforicamente, promover a simbiose da estética cosmopolita de Goethe com o aço
alemão dos Krupp.

Para levar tal concepção à prática, Walter Gropius, então jovem arquiteto promissor,
transferindo-se de Berlim para Weimar, determinou a junção das duas escolas que lá
existiam: a Escola de Artes e Ofícios (a Kunstgewerbeschule) e a Escola de Belas Artes
(a bildende Kunst): que vieram a formar a célebre Staatliches Bauhaus, ou
simplesmente Escola da Bauhaus, instalada no edifício de Van der Velde.

A formação do artista-artesão

Apesar das propostas modernistas da Escola, o processo de admissão dos pretendentes


ainda respeitava uma liturgia comum às antigas corporações de ofício da Alemanha
medieval. O candidato, após submeter-se a uma série de exigentes provas, terminava
sendo avaliado pelo Conselho de Mestres, dando início então à sua formação que o
conduzira, em círculos concêntricos, a obtenção do diploma de Mestre da Bauhaus.
A estética ideológica do primeiro momento da escola, o Período de Weimar, entre 1919-
1923, estava marcada pelo Expressionismo (*) e pelo lirismo de uma sociedade
libertária identificada, ainda que à distância, com a Revolução Bolchevique de 1917 e
com o Levante Espartaquista de janeiro de 1919, no qual sucumbiram Rosa
Luxemburgo e Karl Liebcknecht, líderes da organização extremista.

Num primeiro momento do processo de aprendizagem, tendo como objetivo a derrubada


da “parede de arrogância” que separava o artista do artesão, os alunos-aprendizes
passavam pela fase do contanto direto com os elementos do mundo material, botânico e
zoológico, como uma iniciação à sensibilização. A escola propunha-se a reagrupar todos
os trabalhos criativos da arte aplicada: a escultura, a pintura, o artesanato e os ofícios
em geral.

Na verdade os integrantes da Escola da Bauhaus constituíam um tipo de nova ordem


monacal, ainda que secular, composta por mestres e aprendizes, erguida para, em
conjunto, construir a modernidade, a partir do que Johannes Itten, um dos grão-
pedagogos da escola, denominou de “ estado criativo primitivo”.

Superado o primeiro contanto com as formas elementares, saltavam eles então para o
aprendizado da construção, da composição das cores e dos tecidos, dos instrumentos-
ferramentas e, por fim, do estudo geral sobre a natureza. Familiarizam-se nesta etapa
com a argila, a pedra, a madeira, o metal, o têxtil, as cores e o vidro. Literalmente
metem a mão na massa, estando então aptos para a construção graças aos
conhecimentos de engenharia recebidos na derradeira etapa do processo educativo.

Nesta fase a formação do aluno da Bauhaus reduzia-se muito “a área de atrito entre o
artesanato e a indústria, entre arte e técnica.” A confiança de Gropius no resultado
levou-o a dizer: “O espírito das pequenas comunidades deve conduzir-nos à vitória, a
vitória das pequenas e fecundas comunidades, os conjurados e as confrarias que, em
silêncio, guardam o segredo inexplicável e libertarão a bandeira da arte por cima da
imundície quotidiana.”

(*) O termo Expressionismo foi usado pela primeira vez na Alemanha em 1911 por Wilhelm Worringer
para definir as novas tendências na literatura (W.Laqueur – Weimar 1918-1933, Paris, 1978, p.156).

A questão da tecnologia

Os efeitos devastadores e mortíferos que a Grande Guerra de 1914-18 provocara,


causaram um profundo abalo na confiança otimista que o positivismo do século 19
depositara na tecnologia. O otimismo engendrado pelas conquistas obtidas pela máquina
viu-se então obscurecido pelo pessimismo sombrio que tomou conta das
perspectivas sobre os dias futuros. A intelectualidade alemã da época dividiu-
se radicalmente entre os que passaram a abominá-la (Oswald Spengler, Martin
Heidegger, Ernst Jünger), definindo-a como “diabólica”, e os que procuraram aceitá-la
como parte integrante da paisagem do mundo moderno contra a qual era inútil e sem
sentido lutar.

A Escola Bauhaus alinhou-se junto a este último grupo, dos que consideravam que as
novas catedrais viriam a ser erguidas com aço, com cimento e vidro. Não só isso. Tratou
inclusive de propor uma estética que melhor expressasse o domínio da tecnologia,
inspirando-se na geometria euclidiana e nas formas mecânicas (os oposicionistas
acusaram-na de Amerikanismus, de importar uma estética não-germãnica)

Posicionamento que levou a que a Escola Bauhaus se deixasse fascinar pelas linhas
retas, pelas formas cúbicas, triangulares ou circulares e pelo total despojamento
decorativo. Segundo a ambição do projeto social-utópico dos teóricos da Bauhaus, -
profundamente hostil ao passado Barroco e à Art Nouveau, mais recente - o desenho
fortemente geometrizado do edifício presente no novo cenário urbano, resultado do
encontro da ciência com a técnica, causaria um impacto racionalista na sociedade,
imunizando-a e afastando-a das paixões extremadas (por exemplo, do patriotismo e do
nacionalismo chauvinista exacerbado pela guerra de 1914-18).

O clímax dessa tendência cubista foi alcançado na Grande Exposição da Bauhaus de


1923, com conferências de Gropius e Wassily Kandisnky, o pintor modernista russo que
havia se transferido para a Alemanha. Feita a devida ruptura com o passado, tudo, do
design dos móveis aos prédios, dos materiais aos projetos urbanistas, devia ser claro,
transparente, funcional e adequado aos novos tempos igualitários e democráticos que
emergiam do mundo após a Grande Guerra. A estética baseada no “despojamento
proletário”, oposto ao decorativismo aristocrático-burguês, anunciava a nova era de um
mundo dominado pelos trabalhadores espelhava-se na racionalidade e na planificação
geral da vida.

Mudando de lugar: de Weimar à Dessau

Passando os primeiros anos em Weimar, local onde também realizara-se a Assembléia


Constituinte de 1919 que lançou os pilares da República, a República de Weimar, a
Escola da Bauhaus mudou-se em fevereiro de 1925 para Dessau, a convite do
governador do estado de Anhalt, tomando lá, em 1927, a denominação de Hochschule
für Gestaltung, Instituto Superior da Forma.

O principal motivo desta transferência deveu-se a que o governo regional da Turíngia


(estado onde Weimar ficava), nas mãos de partidos direitistas, mostrou-se abertamente
hostil aos propósitos estéticos da Escola e ao que ela representava. A direita
nacionalista (precursora do nacional-socialismo) associava o movimento modernista na
literatura, nas artes em geral e na arquitetura, ao Kulturbolchevismus, isto é, ao
Bolchevismo Cultural.

A pretensão nada modesta dos vanguardistas de “irem ao povo e transformarem o


mundo”, como fora anunciado pelo Conselho dos Intelectuais”, de 9 de novembro de
1918, pareceu-lhes algo abominável, um despropósito insano totalmente estranho à
germanidade, uma traição aos valores nacionais e à Alemanha. O Modernismo era o
maléfico Mesfistófeles insinuando-se para desvirtuar a boa alma alemã, uma
degenerescência enfim. Como então registrou um funcionário do governo da Turíngia
“Não se deve permitir que um pequeno núcleo de interessados, que em grande parte são
estrangeiros, sufoque a massa saudável dos jovens artistas alemães... K.Nonn –
Deutsche Zeitung, abril de 1924).

As ameaças à Escola não vinham somente de fora. Duas correntes começaram a cindir-
se no interior da própria direção da instituição. Uma delas, a do escultor e gravurista
Gerhard Marcks, por exemplo, em nome do purismo e contra “a exploração
econômica”, defendia a continuidade da ligação estreita da Bauhaus com o estado,
enquanto Gropius procurava aproximá-la da indústria privada para que ela pudesse
libertar-se dos condicionamentos orçamentários. O desenlace deu-se em dezembro de
1924, quando a Escola foi fechada pelo governo direitista da Turíngia.

Em Dessau, por fim, surgiu a oportunidade de Gropius erguer um edifício símbolo das
ambições da Escola, uma construção que abrigasse, ligado ao prédio principal onde se
dava o ensino, uma série de outros edifícios (oficias e habitação dos estudantes)
formando um conjunto arquitetônico síntese da integração arte-artesanato .

Foi lá, por igual, que Gropius projetou a construção do bairro modelo de Törten-
Dessau, um conjunto habitacional que serviu à politica da planificação urbana
obediente à uma linha de montagem previamente elaborada. Guardava, o projeto, a
expectativa de servir como modelo à sociedade igualitária do futuro, toda ela
organizada em espaços geométricos amplamente arejados, totalmente contrária aos
cortiços a que os trabalhadores estavam confinados na maioria das grandes cidades
industriais daquela época.

Enquanto isto, dos seus ateliers, surgiam os novos móveis inspirados no design
futurista, feitos de couro, plástico, madeira e aço, obedientes ao estilo funcionalista que
a Escola da Bauhaus adotara desde os seus começos por seus principais mestres. (*)

Em 1928, Gropius deixou a Bauhaus, sendo que Hannes Meyer e, em seguida, em


1930, Mies Van der Rohe, que viria a torna-se um dos maiores arquitetos do século 20,
tomaram-lhe o lugar. Entremetes avançava a crise político-social da Alemanha fazendo
com que a República de Weimar começasse a soçobrar. O partido nazista de Dessau
chegou a propor, junto ao Conselho Municipal, a demolição do prédio da Bauhaus,
denunciada como “centro artístico hebraico-marxista”, ou ainda como “Catedral do
Socialismo”.

Por fim, em 5 de outubro de 1932, o contrato da cidade de Dessau com a Escola foi
rescindido, forçando a que Van der Rohe tratasse da transferencia para Berlim. Pouco
adiantou o trabalho. Em 20 de julho de 1933, seis meses após a ascensão de Hitler ao
poder, ela fechou definitivamente suas salas e oficinas. No dia 20 de abril daquele ano,
200 policias a haviam invadido Escola, providenciando-se em seguida um inquérito
contra ela na Procuradoria Geral da República.

A única porta que então se abriu aos integrantes da Bauhaus foi a do exílio. Como
tantos outros artistas, cientistas e homens de letras anti-nazistas, eles também partiram
para longe da Alemanha. Gropius e Van de Rohe foram recebidos de abraços abertos
nos Estados Unidos, país onde a maioria deles iria dar continuidade a uma carreira
brilhante. Gropius, por exemplo, afamou-se ainda mais com seu empenho em favor do
International Style, movimento arquitetônico síntese do estilo Bauhaus com o
funcionalismo norte-americano que, além dos alemães emigrados, contou com
arquitetos como Phillip Johnson e Richard Neutra. Expulso pela Alemanha Nazista, o
estilo Bauhaus, atravessando o Atlântico, facilmente aclimatou-se no Novo Mundo,
dando ainda mais ousadia à revolução modernista do século 20.

(*) Núcleo difusor de novas tendências, a Bauhaus foi composta por um corpo docente formado por
diversas profissões: eram engenheiros, arquitetos, pintores, desenhistas, gravuristas, decoradores e
artistas industriais, grupo este que causou profundo impacto na arte do século XX. Entre eles
encontrava-se, além de Walter Gropius, que foi diretor até 1928, Johannes Itten, Lyonel Feininger,
Gehard Marcks, George Muche, Gertrud Grunow, Lothar Schreyer, Adolf Meyer, Oskar Schelemmer
László Moholy-Nagy, Paul Klee, Wassily Kandinsky, Herbert Bayer, Hinnerk Scheper, Gunta Stölzl,
Joost Schmidt, Hannes Meyer, Ludwig Hilberseimer, Alfred Arndt, Ludwig Mies Van Der Rohe, Lily
Reich e Walter Peterhans.

O manifesto Bauhaus:

“O fim último de toda a atividade plástica é a construção. Adorná-la era, outrora, a


tarefa mais nobre das artes plásticas, componentes inseparáveis da magna arquitetura.
Hoje elas se encontram numa situação de auto-suficiência singular, da qual só se
libertarão através da consciente atuação conjunta e coordenada de todos os
profissionais. Arquitetos, pintores e escultores devem novamente chegar a conhecer e
compreender a estrutura multiforme da construção em seu todo e em suas partes; só
então suas obras estarão outra vez plenas de espírito arquitetônico que se perdeu na arte
de salão.

As antigas escolas de arte foram incapazes de criar essa unidade, e como poderiam,
visto ser a arte coisa que não se ensina? Elas devem voltar a ser oficinas. Esse mundo
de desenhistas e artistas deve, por fim, tornar a orientar-se para a construção. Quando o
jovem que sente amor pela atividade plástica começar como antigamente, pela
aprendizagem de um ofício, o "artista" improdutivo não ficará condenado futuramente
ao incompleto exercício da arte, uma vez que sua habilidade fica conservada para a
atividade artesanal, onde pode prestar excelentes serviços. Arquitetos, escultores,
pintores, todos devemos retornar ao artesanato, pois não existe "arte por profissão".
Não há nenhuma diferença essencial entre artista e artesão, o artista é uma elevação do
artesão, a graça divina, em raros momentos de luz que estão além de sua vontade, faz
florescer inconscientemente obras de arte, entretanto, a base do "saber fazer" é
indispensável para todo artista. Aí se encontra a fonte de criação. artística.
Formemos, portanto, uma nova corporação de artesãos, sem a arrogância exclusivista
que criava um muro de orgulho entre artesãos e artistas. Desejemos, inventemos,
criemos juntos a nova construção do futuro, que enfeixará tudo numa única forma:
arquitetura, escultura e pintura que, feita por milhões de mãos de artesãos, se alçará um
dia aos céus, como símbolo cristalino de uma nova fé vindoura.”

Walter Gropius (Weimar, abril de 1919)


O prédio da Bauhaus, em Dessau.

Bibliografia:

http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/2005/03/12/002.htm

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