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Música na
Semana de 22:
tradição
e ruptura
na cidade
de São Paulo
RESUMO
A
ABSTRACT
O
mais brasileiro” pintura e da melodia na música.
O desenvolvimento urbano em constante
(Gilberto Freyre).
aceleração, a imprensa e o cinema trouxeram
novos padrões sociais. A pluralização das
visões de mundo, derivada da evolução das
objetivo deste tra- novas classes e meios de comunicação, pro-
balho é apresentar vocou uma sismologia cultural. O refinamen-
uma breve revisão to estético envolveu uma desumanização da
sobre a t rad ição arte, a progressiva eliminação dos elementos
musical paulista e humanos, predominantes na produção ro-
a ruptura provoca- mântica e naturalista (Ortega y Gasset, 1956).
da pela Semana de A busca de novas formas de expressão
Arte Moderna de 1922, que conduziu a cida- tornou-se uma constante no universo dos ho-
de de São Paulo e o Brasil a um importante mens europeus, especialmente da década de
avanço cultural em compasso com a vida 1920. A tecnologia impôs novo tempo, literal-
cultural da Europa. Para a realização deste mente falando, ao cotidiano do ser humano.
trabalho, procedeu-se a uma pesquisa explo-
ratória com base em revisão bibliográfica e “Nessa época, a tecnologia do relógio tornou
análise documental. Este trabalho recupera possível a sincronização da medida do tem-
alguns fatos e textos que colaboram na com- po de modo que, desde a Primeira Guerra,
preensão do modernismo com uma sondagem impôs-se uma mudança grande na forma de
centrada nos músicos e na música da Semana percepção do tempo, que passou a ser um
de 22, de modo a constituir um testemunho dos componentes mais importantes dentre
da prática musical que escapa dos propósi- os fatores de mobilização geral dos corpos
tos da maioria dos historiadores. Optou-se e das mentes dos cidadãos do novo mundo
por realizar um estudo sobre o ambiente e o urbanizado” (Dias, 1992, pp. XIV-XV).
tempo em que floresceu o modernismo em
São Paulo, partindo-se da premissa de que O argumento sobre o predomínio ab-
a cultura não é apenas um reflexo das es- soluto do modernismo no início do século
truturas econômicas e sociais, mas também: XX é frequentemente apresentado porque
os movimentos e experiências dos escrito-
“[…] é mediada em vários níveis: é mediada res, pintores, músicos e outros mediadores da
pela complexidade e pela natureza contradi- inteligência criativa modernos impuseram-se
tória dos grupos sociais nos quais se origi- à atenção artística (Bradbury, 1989).
na; é mediada pelas situações específicas de
seus produtores; é mediada pela natureza da “A palavra ‘moderno’, de recente fluência
operação dos códigos e convenções estéticas na linguagem cotidiana, em particular atra-
através dos quais a ideologia é transformada vés da presença crescente da publicidade, EDSON LEITE
e nos quais se expressa” (Wolff, 1982, p. 85). adquire conotações simbólicas que vão do é professor titular e
exótico ao mágico, passando pelo revolucio- vice-diretor da Escola
de Artes, Ciências
O século XX trouxe uma nova arte para nário. Assim como os talismãs são objetos- e Humanidades
(EACH-USP)
um “mundo transformado e reinterpretado -fetiche, assim também a palavra ‘moderno’ e diretor da Orquestra
por Marx, Freud e Darwin, do capitalismo se torna algo como uma palavra-fetiche que, Sinfônica da USP.
sística à prática generalizada do piano. […] ressaltar a importância dos novos meios de
Assim, é possível que o claro existente en- comunicação na transformação que passa a
tre essa floração romântica imperial e os ocorrer na cidade de São Paulo. Sem consi-
compositores modernistas da década de 20 derarmos esse poder irresistível da fotogra-
se deva, em certa medida, ao baque da ‘de- fia, do cinema e do cartaz, não se poderia
cadência republicana’, como diz Mário de compreender a amplitude, rapidez e persis-
Andrade, que representou um sensível es- tência, apesar do morticínio atroz, das vastas
morecimento da atividade musical na última mobilizações demandadas pelo esforço de
década do século, perdendo-se desde então guerra, assentes sobre os três fatores-chave
esse brilho exterior que caracterizara a fase – a grande indústria, a rede de comunicações
antecedente. A verdade é que o processo de e a propaganda –, resultando no que foi cha-
formação de compositores passa no final do mado pela primeira vez de “guerra total”, por
século por uma transição, e é readaptado envolver simultaneamente o front e o cotidia-
em certa medida: tanto Villa-Lobos como no das populações civis num único e grande
Gallet, representantes por excelência da fase movimento, elétrica e mecanicamente coor-
inicial do Modernismo, tornam-se compo- denado. A metrópole surgiu inesperadamen-
sitores modernos sem sair do Brasil – e a te e continuou crescendo sem tempo para os
Europa continua a ser um ponto de referên- ajustes necessários.
cia primordial, mas os canais de informação Se o modernismo brasileiro não é um
já estão mais aptos que no século XIX, e acontecimento exclusivo de São Paulo em
prontos a assimilar as grandes novidades suas origens, é inegável que essa cidade
cosmopolitas” (Wisnik, 1977, pp. 53-4). foi responsável pelo grande impulso a esse
movimento no sentido da sua consolidação
São Paulo se modificava em ritmo ace- (Freitas, 1947, p. 31). A ruptura provocada
lerado, e sua programação cultural já res- pela Semana de Arte de 22 colocou São
pondia a públicos mais sofisticados. Com a Paulo na vanguarda da produção cultural
economia cafeeira São Paulo passou a cres- brasileira.
cer e tornou-se rapidamente o principal polo Nas artes plásticas o modernismo com-
econômico e político do país. Multidões de punha seu percurso paralelamente ao moder-
brasileiros transferiam-se para São Paulo, nismo musical:
atraídos pela acumulação de recursos. Em
meio à precariedade de seus haveres e sem “O início foi marcante, com uma exposição
especialização de trabalho, esses migrantes casual do jovem pintor russo Lasar Segall,
enfrentavam graves problemas, tendo que lídimo representante da arte alemã de Dres-
improvisar suas moradias, seus ofícios, etc. den e Berlim, onde estudara e em cujo meio
se operou entre 1911 e 1913 a fusão entre as
estéticas da Freie Sezession e do grupo Die
O MODERNISMO
Brücke, cruzando a intensidade cromática
A ânsia pelo moderno se fazia sentir na fauve, com a distorção expressionista e a geo-
gama de novos costumes do homem do pós- metrização rigorosa do cubismo da Seção de
-guerra. Ele buscou tornar-se um desportis- Ouro. No ano seguinte, procedente do mes-
ta, dançar ritmos novos, vestir-se conforme mo meio germânico, onde estudara de 1910
a nova moda. O passadismo tinha seus dias a 1914, exporia a jovem Anita Malfatti, nos
contados. São Paulo, como centro urbano, salões da Casa Mappin, numa combinação
teve que se adaptar e pagar o preço da sua eclética de estilos e configuração artística
metropolização desenfreada. incipiente, porém de nítida matriz moderna.
Num mundo agora povoado por ruido- De volta aos estudos, agora na Independent
sos automóveis e aviões, São Paulo começa Art School de Nova York, um dos centros
a sentir-se uma grande metrópole. Cumpre de ressonância da arte francesa durante o
grandes modernos, por Guiomar Novaes “‘Mas nunca admitimos o nascimento da ló-
no Municipal de São Paulo. No terceiro, o gica entre nós.’ ‘Nunca fomos catequizados.
programa todo era exclusivamente dedi- Fizemos foi Carnaval.’ ‘A magia e a vida.’
cado à obra de Villa-Lobos. Os anúncios ‘Antes dos portugueses descobrirem o Brasil,
mesmo da Semana de Arte Moderna na o Brasil tinha descoberto a felicidade.’ ‘A ale-
imprensa destacavam sempre, em primei- gria é a prova dos noves.’ ‘No matriarcado de
ro lugar e associados, o nome dele e o de Pindorama’” (apud Sevcenko, 1992, p. 299).
Guiomar Novaes” (Sevcenko, 1992, p. 273).
Além das vaias e algazarras de parte da
Nesse processo, estavam fertilizando plateia, outro momento provocou tensão du-
talentos destinados a desempenhar papéis rante a Semana de 22. A execução da paródia
da maior envergadura nos anos seguintes. de Satie da “Marcha Fúnebre” de Chopin,
Artistas estrangeiros continuavam vindo por Ernâni Braga, no primeiro dia da Sema-
para o Brasil, reforçando o apelo ao moder- na, ativou as declarações de Oswald de An-
nismo dominante em centros culturalmente drade sobre como Carlos Gomes era horrível,
mais avançados, como foi o caso do artista uma glória de família, que conduzia à can-
plástico Lasar Segall e do arquiteto Gregori tarolice do Guarani e do Schiavo. O crítico
Warchavchik. Oswald de Andrade lança um Oscar Guanabarino respondeu iradamente a
texto radical denominado “Manifesto An- essa provocação, e Guiomar Novaes enviou
tropófago”: uma carta aberta aos responsáveis pela Se-
B I B LI O G R AFIA
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