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Lucia Teixeira
Desenvolvimentos recentes
As novas formulações teóricas, que, a partir sobretudo dos anos 90, fazem
avançar o modelo, instalam a dinâmica do corpo e a sensibilização dos afetos no centro
mesmo dos mecanismos de produção de sentido.
Pensa-se então num sujeito cuja presença no mundo é afetada por um certo grau
caótico de sensações e movimentos, a partir dos quais se definem mecanismos de
interações entre sujeitos e de percepção dos objetos. Para Landowski (2004, pp.111-
112), as modalidades da presença oscilam inicialmente entre uma não-presença, estágio
em que o mundo significa mas “o sujeito separa-se dele para etiquetá-lo, classificá-lo;
renuncia a senti-lo e compreendê-lo na sua alteridade fundamental” e a presença viva,
que é o regime de fazer sentido. No primeiro caso, há ausência de toda modulação, o
que corresponde à morte do sentido e do próprio sujeito enquanto ser-no-mundo; no
segundo, uma dinâmica e uma modulação instalam-se para fazer com que o sujeito seja
capaz de deslocar o sentido já dado e criar outra vez o mundo, o sentido, a vida.
Esse sujeito exposto ao mundo é então um “eu semiótico” que, segundo
Fontanille e Zilberberg (2001, p.128) “não se reduz ao ‘eu’ linguístico: o ‘eu’ semiótico
é um ‘eu’ sensível, afetado, muitas vezes atônito, quer dizer, comovido pelos êxtases
que o assaltam, um ‘eu’ mais oscilatório do que identitário.”
O ato perceptivo desse sujeito constitui o campo da presença e seu alcance é
expresso em termos de extensão dos objetos percebidos e de intensidade das
percepções. O ajuste das tensões próprias a esse estar no mundo tem relação com os
afetos do sujeito.
Ao incorporar a afetividade ao percurso de produção do sentido dos textos, a
semiótica a integra sob a denominação de intensidade, grandeza oposta à extensidade,
para formar o par designado pelo termo tensividade, lugar imaginário em que a
intensidade (os estados de alma) e a extensidade (os estados de coisas) se juntam. Essa
junção define um espaço tensivo de acolhimento das grandezas do campo da presença:
por causa de sua imersão nesse espaço, toda grandeza discursiva se acha qualificada
como intensidade e extensidade e todo texto é considerado como “unidade rítmica”
(Zilberberg 2006) que se constrói segundo uma práxis enunciativa, por meio da qual o
discurso incorpora o novo ao mesmo tempo que assegura a inteligibilidade e sustenta
sua força coesiva ao incorporar “organizações culturais, mais ou menos congeladas, da
significação” (Fontanille; Zilberberg 2001).
Se as forças coesivas manifestam-se por meio de tipos e gêneros textuais,
formações discursivas e ideológicas e coerções diversas de textualização, a novidade
aparece não só no plano do conteúdo, sob a forma de estruturas concessivas que
instalam a surpresa e o inesperado, mas também no plano da expressão, por meio da
exacerbação das qualidades significantes da linguagem utilizada.
Num texto há sempre um jogo de forças discursivas, que pode ser compreendido
como um embate entre intensidades (o descontínuo, o novo, o inesperado) e
extensidades (o contínuo, o já conhecido). Cabe à enunciação regular os aumentos e
diminuições de impacto do novo ou de manutenção do já conhecido. Os anúncios
publicitários regulam sua ação num equilíbrio bem pensado entre o novo e o esperado.
As cenas clássicas de anúncios de margarinas repetem sempre ambientes e figurinos
claros, famílias felizes, mesas bem postas. A novidade estará na substância de última
geração incluída no preparo da margarina, na cor, textura, sabor, naquilo que pode
diferenciar um produto recém-lançado de outros já em circulação no mercado.
Nas produções estéticas, o impacto do novo pode ser mais forte e aí estará,
certamente, o sentido na plenitude de sua emergência. Tal plenitude poderá estar não no
achado poético espetacular de uma pintura, como nas distorções de Picasso, mas nos
pequenos movimentos do sujeito em seu contato cotidiano com o mundo. As relações
que o corpo descobre nos impactos sensíveis do acaso ou da surpresa podem levar o
sujeito a escapar do caminho retilíneo da obrigação pragmática, que acaba por
neutralizar a existência na previsibilidade da mecanização e consequente ausência de
sentidos. Fora da vida funcional ou do rumo previsível, existe o retorno, a sinuosidade,
a descoberta.
Figurações do mundo representados nos textos, os movimentos rítmicos do
sujeito instauram a sensibilização e os afetos no centro da investigação semiótica. Para
observar esse movimento, Zilberberg (2006) propõe um quadro de categorias tensivas,
desdobradas, como subdimensões e foremas, a partir das dimensões da intensidade e da
extensidade. Andamento e tonicidade são as subdimensões da intensidade e
temporalidade e espacialidade, da extensidade. As primeiras regem as segundas,
incidem sobre elas para produzir as ondulações do discurso e consagram os afetos como
“as razões de nossas razões no discurso” (Zilberberg 2010). Os efeitos da intensidade
podem ser medidos em suas qualidades de subitaneidade, precipitação e energia
(Zilberberg, 2006), aspectos que serão formalizados como os foremas de direção,
posição e elã, unidades do campo da foria que estabelecem estilos diferentes e oferecem
medidas para a presença dos afetos no discurso.
A semiótica tensiva, ao tratar de tais problemas, não é um modelo que destitui o
primeiro nem de sua precedência teórica nem de seu papel organizador da reflexão
interpretativa do sentido dos textos. É uma concepção teórica em formulação, que
tensiona a metodologia original e permite a compreensão do sentido não apenas como
descontinuidade mas também como instabilidade, continuidade e fluxo. Junta o mundo
sensível ao inteligível, na eterna busca pela completude da análise e do modelo.
Nesse corpo teórico em transformação, põe-se em questão também a escolha dos
objetos. De que modo tratar o apelo das novas tecnologias e formas de comunicação
com os instrumentos teóricos disponíveis? Se um texto não é mais apenas uma página
escrita, mas todo artefato humano constituído de linguagem ou como linguagem, de que
maneira se controlará a intervenção do analista até mesmo na definição do que vai
considerar como texto? Que conceitos mobilizar e que objetos escolher?
Tais problemas configuram as condições necessárias à constituição de um
corpus de análise, que é assim tanto a amostra necessária à demonstração da teoria
quanto a arena de descobertas de novas demandas teóricas.
A escolha de um corpus
Claude Hagège, em livro lançado com grande impacto em 1985 e depois
sucessivamente reeditado, afirmava que a Linguística perdera, a partir dos anos 70, sua
liderança entre as ciências humanas e que tanto isso se devia aos avanços importantes da
Antropologia, da Sociologia, da Psicologia, quanto à produção da própria Linguística,
que passou a ser fortemente técnica. A obsessão de cientificidade a teria conduzido a
um falso rigor, de que não se teria modelo nem mesmo nas ciências mais rigorosas.
Segundo o autor, a fascinação pelos formalismos terminou por circunscrever a
Linguística a um discurso essencialmente técnico, que parece temer seu próprio objeto,
um homem que fala. Não somente a Linguística rejeita, então, o histórico e o social,
mas o humano passa a ser para ela uma abstração definitiva, como se as palavras não
dissessem nada. Perdem-se de vista as promessas que a Linguística dos anos 50-60
deixava entrever, de revelar os mistérios ligados aos fenômenos humanos.
A esse tecnicismo da linguística vêm se opor os estudos do discurso, que
penetram com vigor no universo das letras após a década de 70. O modelo ortodoxo
estruturalista, esvaziado dos princípios e da interessante discussão teórica neles contida,
acaba por perder-se no esgotamento dos modelos mecanicistas. Da mesma maneira, o
paradigma da gramática gerativa oferecia as dificuldades dos sucessivos padrões de
análises propostos e da sofisticação teórica e metodológica que o afastava dos falantes
reais e da língua em uso.
É nesse momento que se instala uma dissensão fortemente marcada na
Linguística, com os próprios linguistas demarcando seus campos de atuação por meio
de rótulos classificatórios que circulam em torno dos lexemas mole e duro (não terá sido
à toa que escolhemos o provérbio analisado acima!).
A oposição no campo dos estudos linguísticos contrapõe teorias mais
preocupadas com o formalismo a concepções teóricas predominantemente afeitas ao
contato com outros campos do saber e à definição de métodos menos controlados por
tabelas e percentuais, provas e contraprovas empíricas. Não se trata, entretanto, de opor
rigor e método a descontrole e acaso.
A semiótica, com seu gosto pela terminologia e os conceitos e seu apego à
formulação de modelos de análise, acaba por tratar com rigor e minúcia o texto que se
apresenta diante do analista e poderia mesmo ser considerada uma espécie de núcleo
duro da chamada linguística mole. Tendo como metodologia da análise a consistência
de esquemas, modelos e categorias solidamente formulados e mesmo consubstanciados
nos dois dicionários de semiótica adotados como orientação conceitual, a semiótica
rejeita, entretanto, as exigências de exaustividade e adequação que pretensamente
garantiriam, num corpus escolhido, a “cientificidade da descrição”. Tais pressupostos
positivistas acabam por considerar o corpus como “uma coisa em si, a qual comporta
suas próprias leis, ao passo que a epistemologia atual concede pelo menos igual
importância ao sujeito na construção do seu objeto” (Greimas; Courtés 2008, p.104).
O problema do corpus para uma teoria que lida com textos e discursos não pode
estar atrelado à mesma necessidade de adequação e exaustividade das pesquisas
linguísticas que operam com coleções de frases ou de palavras. O corpus, para a
semiótica, deve ser “limitado, aberto e representativo” e os modelos que os analisam são
considerados “hipotéticos, projetivos e preditivos” (Greimas; Courtés 2008, p.105).
Greimas e Courtés propõem que se considere a possibilidade de “corpus
sintagmáticos (conjunto de textos de um autor) ou de corpus paradigmáticos
(conjunto de variantes de um conto), sempre levando em conta o fato de que eles nunca
são fechados nem exaustivos, mas representativos apenas” (Greimas; Courtés 2008,
p.105).
Observam-se nas últimas décadas, no campo da semiótica, os mais
diversificados objetos de estudo. Floch (1985), ao analisar um quadro de Kandinski,
recorreu a uma série de obras do pintor, para encontrar recorrências capazes de atribuir
sentidos a traços, cores e procedimentos. Teixeira (1996) analisou a crítica de arte
brasileira por meio da seleção aleatória de 45 críticas, publicadas em 4 diferentes meios
de circulação, durante 2 anos. Tatit elege a canção popular brasileira como objeto e suas
análises de uma canção (2001) costumam ser rica fonte de aprofundamento e proposição
de conceitos teóricos. Discini (2003), ao propor a formulação semiótica do conceito de
estilo, recorreu a vasto e diversificado corpus, que ofereceu exemplares para
comparação e observação de contrastes entre estilos, da mesma maneira que testou
numa coleção de textos de um mesmo autor ou órgão de imprensa a recorrência dos
traços identificados por oposição nos discursos contrastantes. Dissertações e teses
recentemente produzidas nas universidades em que há núcleos de pesquisa em semiótica
elegem objetos tão variados quanto estimulantes, que vão do discurso de panfletos
religiosos a programas de auditório, de canções a sites da internet, de romances e
poemas a mensagens publicitárias 1.
Pode-se escolher um período, um autor, um texto apenas, um gênero textual ou
um tipo discursivo. Pinturas, esculturas, poemas, canções ou praças e estações de
metrôs, todos são objetos de sentido e, portanto, considerados como textos, podem ser
analisados semioticamente. A representatividade do corpus subordina-se à necessidade
da análise e aos propósitos do analista. Da mesma maneira, o olhar do analista treinado
numa metodologia e formado por determinada concepção teórica sabe o que procura
num corpus e conhece o modo de procurar.
Se não é então sob uma concepção positivista que o semioticista concebe o
corpus, também não é sem método ou sem critério que o faz. A dificuldade de constituir
um corpus é a mesma de decidir o que pesquisar, a origem da vida ou a notação musical
nas peças de Chopin, a vida urbana numa metrópole superpovoada ou a luminosidade
amarelada dos quadros de Rembrandt, a comunicação entre os tucuna ou a logomarca de
uma empresa. Mais recentemente, a semiótica vem incorporando objetos sincréticos,
como uma ópera ou uma página de internet a seus objetos de interesse, o que exige da
1
Grupos de pesquisa em semiótica estão formados, no Brasil e na França, sobretudo em faculdades de
Letras e de Comunicação, havendo lugar para a disciplina também em Escolas de Arte, de Arquitetura, de
Design, de Moda etc. Dentre os grupos sediados nas faculdades de Letras, devem-se citar o GES-USP,
por seu papel pioneiro e exemplar de formação de pesquisadores e divulgação da disciplina,
particularmente por meio da revista digital Estudos semióticos, o SEDI-UFF, outro importante núcleo de
formação, que se destaca com os estudos sobre relações entre linguagens, e o CASA-UNESP, que
mantém importante publicação digital na área. Além destes, há grupos de semiótica nas Faculdades de
Letras da UFMG, UFT, UFGD, UFRJ, UFC e UEL, todos com importante contribuição à formação de
pesquisadores e ao desenvolvimento da pesquisa.
teoria novas formulações que deem conta das transformações dos meios de
comunicação e das formas sociais de interação.
Não se deve desprezar a ideia de que uma análise fala sempre também do
analista e que a escolha de um objeto e do modo de descrevê-lo e interpretá-lo filia-se
ideologicamente a discursos. Em estudos de linguagem, trabalha-se com uma concepção
escolhida de língua e de linguagem. A língua pode ser, por exemplo, meio de
comunicação entre um emissor e um receptor, ou pode ser uma forma de estar no
mundo e produzir as relações sociais de conflito e de acordo nas situações de troca que
possibilita. Pode ser um conjunto ou uma lista de palavras ou um sistema organizado de
signos, pode manifestar-se em textos compreendidos como unidades de sentido,
constituídas por relações inter e intradiscursivas, ou como sequências de enunciados
relacionados por mecanismos de coesão e coerência gramaticais.
A adesão a um desses conceitos marca um modo de estar no mundo, aqui,
especificamente, no mundo acadêmico. Estar num desses lugares teóricos é não só
definir-se como um pesquisador da linguística dura ou da linguística mole, mas é
também, no limite, correr o risco de não ser considerado linguista. É ainda decidir de
que modo sua produção poderá interferir na vida social. Serve, por exemplo, a descrição
sofisticada das línguas indígenas, de acordo com o último modelo gerativista, à causa da
preservação da cultura dos povos indígenas? Serve ao avanço da ciência, quando
permite a comprovação da universalidade do modelo? A resposta que se der a cada uma
dessas duas questões define ideologicamente a opção teórica do pesquisador.
Perspectivas da pesquisa
A adoção de uma teoria não é uma questão de crença, mas de adesão, de escolha,
de filiação a determinada matriz teórica. Entre crença e adesão existe a diferença
conceitual que faz intervir na segunda a racionalidade. Na crença, tem-se a “atitude de
quem se persuadiu de algo pelos caracteres de verdade que ali encontrou” (HOUAISS,
2001). Na adesão, não há aceitação, mas acordo, não há verdade, mas possibilidades que
se oferecem, dentre as quais se escolhe uma, a partir de determinada análise. Essa
diferença é fundamental e serve aqui para afirmar que o trabalho de pesquisa e suas
aplicações origina-se na filiação, na adesão a alguma teoria e que sem a densidade de
uma teoria bem assimilada e bem compreendida não há análise de texto ou de discurso
que se sustente. Serve também para afastar a passionalidade tantas vezes revelada nas
escolhas acadêmicas. Apaixonar-se pela semiótica não é tão boa garantia de fazê-la bem
quanto estudar com profundidade suas formulações conceituais.
Compreendida como matriz de produção de conhecimento, a teoria não é,
necessariamente, terreno seco e pedregoso, árido, difícil de penetrar. Pode ser que se
torne o ponto de partida de uma nova atitude, de um outro modo de olhar o mundo.
Barthes e Greimas cultivaram os mesmos autores num certo momento e depois
se separaram, porque leram diferentemente as teorias e isso os fez olhar de modo
diferente para os mesmos objetos. O poder da palavra exercia tal fascínio em Barthes –
para encerrar com mais anedotas –, que ele comprava as tintas com que fazia seus
exercícios de pintura e aquarela pelos nomes, não pelas cores. Esse encantamento pela
palavra atravessou a brilhante obra do semiólogo francês, transformando disciplina em
gozo e rigor em inspiração. Greimas e a semiótica discursiva são talvez menos afeitos à
beleza da palavra, mas recuperam a possibilidade poética da interpretação em análises
densas e minuciosas, que arrebatam não, como em Barthes, pela centelha, mas pela
diligência.
Talvez seja preciso embelezar as análises semióticas, dar-lhes sopros mais fortes
e vibrantes de vida e de inquietação, sem perder a direção teórica. A terminologia deve
servir à análise, a metodologia não é um modelo a ser seguido, os conceitos são
orientações e não amarras. A compreensão dessas possibilidades de conferir mais
intensidade às leituras dos objetos requer, entretanto, o domínio das bases da teoria, o
conhecimento dos conceitos, a familiaridade com a terminologia. Exige também a
capacidade de articular à teoria semiótica o conhecimento seguro do objeto a investigar.
Não se produz boa análise semiótica da pintura sem conhecer História da Arte, não se
compreende inteiramente a canção sem o domínio da teoria musical, não se interpreta
poesia sem ler também a teoria da literatura.
Estamos sempre num dilema: mais que viver ou morrer, trata-se de escrever ou
escrever, falar ou falar. Não se faz aqui um jogo de palavras. Brinca-se de
pressuposição: que sentidos há em escrever e falar? Todos eles estão profundamente
implicados em fazer semiótica.
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