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ARTIGO DE OPINIÃO

Re-pensando o estudo e o manejo da pesca no Brasil

LEANDRO CASTELLO1
1
State University of New York, College of Environmental Science and Forestry, Syracuse, New York, Estados Unidos;
E-mail: leandro_castello@hotmail.com

Está sendo criada a sociedade científica diretamente relacionada a aspectos intrinsicamente


da pesca do Brasil, e há grande expectativa de que humanos, como por exemplo a sobre-capitalização,
essa sociedade contribuirá significativamente para os subsídios (Pauly et al. 2002), e o crescimento
a conservação da pesca. Mas conservar a pesca populacional humano.
brasileira é possível somente através de Outro problema é que a abordagem
uma abordagem ao estudo e o manejo pesqueiro convencional ao manejo pesqueiro é inadequada
diferente daquela usada até hoje. Nas linhas para a pesca no Brasil assim como na maioria
abaixo, eu sugiro que é necessário resolver dois dos países tropicais (Castello et al. 2007). A
problemas relacionados com a falta de consideração abordagem convencional é aquela onde os pesqui-
do fator humano e das características da pesca sadores estudam a biologia e a dinâmica popula-
brasileira. cional do recurso pesqueiro, passam a informação à
Talvez, o problema mais importante é agência de manejo, e a agência determina regras
que a maioria da ciência pesqueira é, na verdade, de manejo que, às vezes, são implementadas na
biologia pesqueira. A ciência pesqueira que nos prática. A abordagem convencional é assim
ensinaram, e que hoje em dia ensinamos nas salas de porquê ela foi inventada na Europa e na América do
aula, não dá suficiente atenção ao papel do Norte onde existem recursos humanos e financeiros
elemento humano. A ciência pesqueira reduziu o suficientes (ou pelo menos em abundância) para
elemento humano a conceitos simplistas como, por que ela funcione da maneira como foi idealizada,
exemplo, ‘esforço’ de pesca, entre outros. embora nem sempre bem sucedida. Mas no
Dessa forma, os processos sociais que crescen- Brasil não existem recursos humanos e financeiros
temente ameaçam as populações de peixes foram em quantidades suficientes para que a abordagem
quase que completamente marginalizados do estudo convencional funcione com um mínimo de eficácia,
da pesca. Uma evidência disso é que os três pondo por água abaixo qualquer esperança de
livros mais citados na ciência pesqueira (Walters sustentabilidade. Uma prova disso é que
1986, Hilborn & Walters 1992, Wootton 1998) mais da metade dos estoques pesqueiros
enfocam-se quase que exclusivamente na biologia e mais produtivos do Brasil, os quais são “manejados”
ecologia dos peixes e em estratégias de pesca. através da abordagem convencional, estão sobre-
Mas agora é claro que somente o entendimento explorados (Paiva 1997).
sobre a biologia e ecologia das populações de Alguns de meus colegas podem argumentar
peixes não é suficiente para determinar estratégias que existem avanços na ciência pesqueira que
de exploração pesqueira que sejam sustentáveis. prometem resolver ou amenizar o problema da
Uma das razões pela qual cerca de 25% dos sobre-pesca. Dois desses avanços são o uso de
estoques pesqueiros do mundo estão sobre- áreas protegidas e de modelos da cadeia trófica
explorados e depletados (FAO 2005) é que pouca para reduzir esforço de pesca e aprimorar nosso
atenção foi dada aos processos humanos que entendimento dos sistemas aquáticos, respectiva-
afetam a pesca. A maioria das causas de sobre- mente (Pauly et al. 2002). Mas as áreas protegidas
exploração da pesca em todo o mundo está e os modelos da cadeia trófica têm utilidade limitada

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porquê até hoje nem as agências de manejo com Algo precisa ser feito para que a futura
mais recursos do mundo foram capazes de assegurar sociedade científica da pesca do Brasil possa ajudar
o cumprimento de regras simples de manejo, tais a reverter o estado triste da pesca brasileira, e eu
como cotas de captura (Pauly & Maclean 2003). acredito que ainda estamos longe de saber
No Brasil, muitas regras de manejo existem exatamente o que. É por isso que o título deste
somente no papel, mesmo no caso de pescarias ensaio inclui a palavra ‘re-pensando...’.
importantes tais como da lagosta no nordeste ou da Todos nós sabemos que o primeiro
sardinha-verdadeira na bacia sudeste (Paiva 1997, passo para resolução de um problema é o
Isaac et al. 2006). seu reconhecimento, e parte desse reconhecimento
O manejo participativo (e suas variantes: co- já existe há algum tempo. Muito do que foi
manejo, manejo comunitário, etc) é outro avanço apresentado nas linhas acima foi inspirado no
na ciência pesqueira, e este aparenta poder trabalho de muitos profissionais envolvidos em
promover a conservação da pesca no Brasil projetos de estudo e manejo pesqueiro no
através da integração do elemento humano no Brasil (McGrath et al. 1993, Diegues 1999, Reis &
manejo pesqueiro (veja Berkes et al. 2001). D’Incao 2000, Seixas & Berkes 2003, Viana et al.
Experimentos de manejo participativo estão 2007). Em todo o Brasil, existem profissionais
ocorrendo em todo o país. Nos pampas do que possuem uma visão ampla e integrada da
Rio Grande do Sul, por exemplo, o manejo pesca—exatamente do tipo que é necessário para a
participativo feito por pescadores artesanais e conservação da pesca. O estudo de Isaac et al.
autoridades governamentais tem resultado na (2006) é evidência disso. No entanto, eu tenho a
implementação de importantes medidas tais impressão que os esforços desses profissionais
como a determinação de áreas pesca (Reis & ainda são irrisórios quando comparados com o
D’Incao 2000, Kalikoski et al. 2002). Já nas tamanho do Brasil. Ainda é preciso consolidar a
florestas alagadas da Amazônia (Viana et al. 2007), nível nacional um novo tipo de estudo e manejo
a participação dos pescadores na avaliação dos pesqueiro.
estoques do pirarucu (Arapaima gigas), a A criação da sociedade científica da
determinação de cotas de pesca, até a fiscalização pesca do Brasil é um momento oportuno para
das regras de manejo ajudou em muito a reverter engajar profissionais das áreas biológicas, sociais, e
um estado de sobre-exploração da espécie (Viana et administrativas do país inteiro em uma processo
al. 2007). Apesar desses resultados positivos, de análise crítica sobre o estudo e o manejo da
no entanto, questões de participação e gestão pesca. Somente assim, creio eu, seria possível
pesqueira no Brasil continuam recebendo pouca produzir resultados positivos e suficientemente
atenção quando comparados as questões biológicas importantes para que possamos re-direcionar o
e ecológicas dos estoques pesqueiros. Por exemplo, curso atual do manejo pesqueiro no Brasil.
uma coleção recente de artigos científicos, segundo Em um primeiro momento, seria interessante
os editores, considerou a pesca e o ecossistema determinar lições aprendidas sobre manejo
no Brasil (Velasco et al. 2007), mas nenhum desses pesqueiro. Em um segundo momento, seria
artigos considerou os processos sociais. importante desenvolver abordagens alternativas
Como o leitor pode ver, o estudo o manejo ao manejo pesqueiro e avaliar junto a órgãos
da pesca no Brasil deixam muito a desejar governamentais a viabilidade de implementá-las
mesmo quando consideramos os avanços recentes. na prática. Seria fundamental implementar
A ciência pesqueira no Brasil e na maioria do essas abordagens de manejo na forma de
mundo pode ser comparada com a estória das experimentos acompanhados de monitoramento,
dez pessoas que estavam com seus olhos avaliação, e intervenção se necessário. Nossos
fechados, tocando um elefante grande, e tentando colegas na Argentina, Chile, Mexico, e Uruguai
descobrir o que tocavam. Cada pessoa concluía têm feito algo parecido, embora em uma escala
coisas diferentes porquê cada uma delas tocava menor, e assim contribuído significativamente
partes diferentes do elefante, e, assim, ninguém para o entendimento e a conservação da pesca nos
conseguia reconhecer o animal. Essa ciência seus países. Os estudos de Castilla & Defeo (2001) e
inadequada se reflete no manejo da pior Orensanz et al. (2005), por exemplo, analisam
maneira possível: recursos pesqueiros sobre- abordagens de manejo eficazes que foram
explorados e agências de manejo incapazes de desenvolvidas com base na realidade social
assegurar sua conservação (veja quadro). e ecológica de algumas pescarias e implementadas

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de forma adaptativa. pesca do Brasil que sejam, digamos, “verde-e-


Promover a conservação da pesca brasileira amarelo”, autênticamente brasileiras. Abordagens
é muito importante porquê o Brasil tem uma eficazes de manejo pesqueiro requerem que
rede hidrográfica densa e uma linha costeira os aspectos biológicos e ecológicos dos peixes
imensa—mas é difícil também porquê os livros que sejam integrados com os aspectos econômicos,
usamos para aprender biologia pesqueira não políticos e institucionais, das sociedades que os
servirão de ajuda. Nesse sentido, eu convido meus exploram.
colegas a re-pensar o estudo e o manejo da • Re-formular os currículos universitários
pesca brasileira, e a considerar cinco medidas de de ensino do manejo pesqueiro. A biologia
ação: pesqueira deve necessariamente ser ensinada junto
• Estudar a pesca como ela realmente é: um com as questões sociais que afetam a pesca.
sistema integrado formado pela interação dos Professores em todo o país precisam de um livro
sistemas sociais e ícticos. texto adequado.
• Aprender de um processo lento mas • Vencer o obstáculo da falta de comunicação
significativo que está ocorrendo em todo o mundo da ciência pesqueira no Brasil. Por exemplo,
de desenvolvimento de abordagens alternativas ao Castello (2007) questionou a possibilidade de
manejo pesqueiro para países tropicais e manejar sustentavelmente os recursos pesqueiros
subdesenvolvidos (Pauly et al. 1989, Berkes et al. no Brasil, mas até hoje ninguém se manifestou
2001, Castilla & Defeo 2001, Orensanz et al. 2005, a respeito. Avanços científicos requerem comu-
Castello et al. 2007). nicação, e não existe um jornal científico dedicado a
• Desenvolver abordagens ao manejo da pesca brasileira.

Quadro: Qual é o futuro dos recursos pesqueiros Brasileiros?


A captura pesqueira no Brasil tem caido já ha mais de uma década devido a sobre-exploração dos
estoques pesqueiros, embora tenha havido uma leve recuperação nos últimos anos.
No entanto, um programa
Captura pesqueira do Brasil
nacional implementado em
1000
2003 visa renovar a frota
? pesqueira e aumentar em
800
50% as capturas pesqueiras
1000 toneladas

(SEAP/PR 2003). Esse


600
plano pode piorar as
400
tendências atuais de sobre-
exploração pesqueira no
200
Brasil (Fonte de dados:
FishStat 2004)
0
1950 1960 1970 1980 1990 2000

A Amazônia possui uma diversidade íctica


Taxas de desmatamento na Amazônia
enorme, e a maioria das espécies de peixe
2.5 consumidas pelas populações amazônidas
Milhões de hectares por ano

depende da floresta para viver. Mas o


2
desmatamento pôe em risco essa
diversidade íctica assim como o
1.5
abastecimento de pescado para a população
1
local. As taxas de desmatamento atuais vão
aumentar drasticamente com a
0.5 implementação do plano federal chamado
‘Avança Brasil’ para desenvolver a
0 Amazônia (fonte de dados: Laurance et al.
1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002).

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Received November 2007


Accepted December 2007
Published online January 2008

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