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COLONIALIDADE: A GÊNESE EM QUE SE ASSENTAM DISCURSOS RACISTAS

Lucimara Lemiechek1
Doutoranda em Educação
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo
Este breve ensaio reflete acerca dos discursos racistas percebidos em falas cotidianas e também durante
entrevistas utilizadas como recurso metodológico para uma pesquisa de mestrado realizada no ano de 2014.
Aproximando o diálogo com o objeto de pesquisa a ser desenvolvida no doutoramento, enfatizo os discursos
associados à professora Sebastiana Maria Vieira, uma mineira que passou sua vida adulta no município de
Laranjeiras do Sul/PR e foi uma das primeiras professoras legalmente habilitadas para ministrar aulas no
Grupo Escolar Aluísio Maier. Embora toda sua dedicação e pioneirismo na educação básica pública, sua
passagem pelo município sofre apagamentos e invisibilidade e, alguns discursos, revelam desqualificação
étnica. Para a elaboração deste trabalho, consideramos o diálogo com autores que abordam temas como: (des)
colonialidade, interculturalidade, preconceito e racismo. Ansiamos para que os desdobramentos desse texto
permitam um constante processo reflexivo que desencadeiem uma práxis fortalecida visando a desconstrução
do racismo e preconceito, sobretudo, no âmbito escolar.
Palavras-chave: colonialidade; preconceito; discursos racistas; professores negros.

1. Introdução

A proposta deste trabalho é revisitar alguns conceitos e refletir acerca de discussões avivadas
durante a realização da disciplina Educação e Interculturalidade: diálogos com memórias,
experiências e narrativas proposta pelo professor Dr. Elison Antonio Paim e vinculada ao Programa
de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Catarina. Há um longo
tempo venho vivenciando um processo de Letramento Racial experimentando exercícios diários de
descolonização da mente e de conceitos cristalizados. E, para esta (re/des) construção contínua, a
disciplina e as reflexões propostas por professores e colegas foram essenciais.
Para materializar, de forma escrita, as (re) elaborações das minhas compreensões e
interpretações, metodologicamente, optei por dialogar com teóricos problematizando discursos
racistas que ouvi ao longo da vida em diálogos cotidianos (entre 1986 a 2020) e, outras, durante as
entrevistas realizadas no ano de 2014 para a elaboração da dissertação de mestrado que tinha como
objeto as Escolas Normais do município de Laranjeiras do Sul-PR. Algumas falas se referem à
professora Sebastiana Maria Vieira que foi uma das mais importantes educadoras daquela
comunidade. Mas, qual é o meu lugar de fala enquanto mulher branca discutindo sobre aspectos da
1 Pedagoga na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), doutoranda em Educação na Linha Sociologia e
História da Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisa sobre instituições
escolares. lu.lemiechek@gmail.com.br
vida profissional de uma professora negra? Parto da premissa de que, quando não se discute, há uma
sensação de ausência de conflitos que, muitas vezes pode ser falsa: apenas ignoramos aquilo que nos
toca, nos agride e nos deixa desconfortáveis. De forma geral somos um povo racista que não admite e
não se vê racista. Para quê discutir algo que, teoricamente, não existe? No entanto, faço esta
proposição porque há muita simbologia ancorada nas falas destacadas, por mim, neste texto que
embora ditas de forma ingênua (ou não) trazem à tona o preconceito e o racismo enraizados
estruturalmente na sociedade brasileira.
Para compreender estes discursos que acontecem na atualidade é necessário retroceder no
tempo e revisitar alguns conceitos que esclarecem a existência do racismo e do preconceito com
relação aos povos afrodescendentes mesmo após mais de um século do fim da escravidão no Brasil. O
pressuposto é de que esses fenômenos se sustentam no princípio da colonialidade e seus
desdobramentos, por isso dialogo com Candau (2009) que detalha, rediscute e avança nos estudos de
Quijano (2000), Walsh e Garcia (2002) e Tubino (2005). Revisito ainda autores como Sant’Ana
(2005); Baniwa (2012); Antonacci (2016); Weimer (2017); Brighenti (2019); Telles, Santos e Maia
(2019); Paim, Pinheiro e Paula (2019). Também me reporto a trabalhos autorais relativos à
Historiografia da Educação (2014 e 2020).
A noção de história local está muito entrelaçada na história de vida dos professores que
desempenham um papel social importante. Nas pequenas comunidades, especialmente as localizadas
na zona rural, a escola é o centro, é onde o social daquele coletivo acontece. Na escola são realizadas
festas, funerais, missas e atos religiosos, campanhas de vacinação, reuniões para a discussão de
assuntos de interesse daquele coletivo. Assim sendo, para além de mentor intelectual das crianças e
jovens, na maioria das vezes o professor está envolvido em outras demandas na comunidade
construindo uma teia de relações que transcendem os espaços escolares. No entanto, muitas vezes a
história desses profissionais é invisibilizada ou sofre apagamento diante das narrativas oficiais
masculinas, brancas e elitistas. No município de Laranjeiras do Sul, centro-oeste do Paraná, esta é
uma realidade: o mundo normatizado branco, masculino, eurocêntrico, elitizado e patriarcal domina.
A pesquisadora Maria Antonieta Antonacci (2016) nos lembra que não é apenas a escrita que
preserva a memória. No entanto, quando o declínio das narrativas se faz presente, é importante o
registro. E, neste contexto, o trabalho do pesquisador e a historiografia se constituem atos políticos. É
pertinente destacar que o magistério, neste trabalho, é compreendido pelo viés da feminização pois
pesquisas anteriores apontaram para o predomínio das mulheres no campo da educação básica no
município. Assim, usarei os termos as normalistas, professoras e egressas.
O texto está estruturado da seguinte forma: no primeiro momento farei apontamentos sobre a
trajetória da educação pública no Brasil, (des) colonialidades, interculturalidade e racismos com o
intuito de melhor compreender as relações no mundo moderno. Em seguida, organizei um breve
relato sobre a vida da professora Sebastiana Maria Vieira esclarecendo o contexto em que ela viveu e
atuou. A terceira parte se concentra no apontamento e debates de discursos racistas em um âmbito
geral e outros que se referem à professora. Por fim, algumas considerações e conclusões.

2. Apontamentos sobre educação pública, (des) colonialidades, interculturalidade e racismos

Em 1549 os padres jesuítas aportaram na Colônia com a tarefa, outorgada pelo rei de Portugal,
de fundar colégios para atender os filhos dos colonizadores preparando sua entrada na Universidade
cursada, via de regra, na Europa. Aliada a esta tarefa, os jesuítas já trabalhavam em outra frente em
terras brasileiras: a catequização dos indígenas e, consequentemente, a iniciação nas letras pois a
alfabetização era um instrumento necessário no contato dos povos originários com os materiais
utilizados pelos catequizadores. A Companhia de Jesus, hegemonicamente, dedicou-se a questões
educacionais até o ano de 1759 quando foi expulsa pelo Marquês de Pombal a partir das reformas
feitas em Portugal fundamentadas nos princípios do Iluminismo. Neste ínterim, ampliou
consideravelmente seu capital econômico com a posse de terras, gado e benfeitorias consolidando,
por todo o país, uma grande rede de colégios desenvolvida especialmente após o aporte de recursos
do Estado. No entanto, embora essa subvenção e o caráter público, nem todos os extratos sociais dela
participavam: indígenas, mulheres e negros libertos não tinham o direito a frequentar os colégios.
Não se cogitava a instrução popular pois ela não era, até o momento, necessária na configuração de
sociedade mantida pela mão de obra escravizada tanto de povos originários quanto de povos
afrodescendentes. Assim, não havia demanda pela instrução popular fato que excluía qualquer
possibilidade para a pluralidade dentro dos colégios: era de elite para elite e sustentada nos princípios
da fé cristã e da política colonizadora do monarca português Dom João III. Com o fim da soberania
jesuítica e a chegada de Dom João VI ao Brasil, em 1808, abriu-se a perspectiva para o ensino técnico
e o superior e, inegavelmente, houve avanços educacionais. Entretanto, “nessa fase, a educação
elementar, relegada a segundo plano, não mereceu iguais cuidados. A educação do povo se fez ao
sabor dos interesses pessoais e políticos do Soberano no exercício de seu poder” (TELLES, SANTOS
e MAIA, 2019, p. 39).
É com o advento da República e a necessidade de promover o desenvolvimento social e
econômico que a educação popular passou a receber mais atenção. Porém, ao longo dos séculos XIX
e XX sofreu avanços e retrocessos com a ausência de um sistema integrado nacionalmente, ficando
assim, atrelado as vicissitudes dos governantes de cada província/estado, particularmente após o Ato
Adicional em 1834. A partir de meados do século XX e, mais precisamente nas suas décadas finais, a
promulgação da Constituição Federal de 1988 acelerou a ampliação do atendimento educacional, por
parte do Estado, a toda população. No entanto, a educação formal nunca perdeu de vista o seu caráter
elitista e excludente que havia se anunciado em 1549.
Apesar dos avanços educacionais, políticos, culturais e sociais que conquistamos enquanto
nação livre, autores como Aníbal Quijano (2000) sustentam que, embora legalmente independentes, a
maioria dos países colonizados como é o caso do Brasil, sofreram ao longo do tempo e ainda sofrem
com os resquícios de um fenômeno conhecido como colonialidade.

A elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma


perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que
demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno,
capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir
conhecimento se reconhecem como eurocentrismo. Eurocentrismo é,
aqui, o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração
sistemática começou na Europa Ocidental antes de meados do século
XVII, ainda que algumas de suas raízes são, sem dúvida, mais velhas,
ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes se tornou mundialmente
hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa
burguesa. Sua constituição ocorreu associada à específica secularização
burguesa do pensamento europeu e à experiência e às necessidades do
padrão mundial de poder capitalista, colonial/moderno, eurocentrado,
estabelecido a partir da América (QUIJANO, 2005, p. 9 apud
BRIGHENTI, 2019, p. 583).

Neste sentido, para Brighenti (2019), a colonialidade opera com força até os dias atuais e
algumas vertentes apontam para o fato de que, uma vez colonizado, é impossível descolonizar e que,
de certa forma, a escola se configura como um dos instrumentos de imposição de dominação
alicerçada em políticas estabelecidas por países centrais.
Dialogando com Quijano (2000), Catherine Walsh (2009) esclarece as três 2 formas principais
de colonialidade que foram identificadas, pelo autor, nas relações sociais. Em estudos mais recentes
Paim, Pinheiro e Paula (2019) discutem o racismo embasados na perspectiva de tríade da
colonialidade expressa por Quijano e esse é o fio condutor deste breve estudo. Uma primeira forma é
a colonialidade do poder que envolve a presença dos brancos no topo das relações. São as pessoas “de
bem”, os “trabalhadores”, os que “sustentam as relações econômicas”. Aqueles que, muitas vezes,
lançam a pergunta: “você sabe com quem está falando?” para, de forma a coagir, impor sua
concepção de que cada um deve ter um lugar pré-determinado nas relações sociais. Assim, “de acordo
com Quijano (2000) e o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres (2007), a colonialidade do
poder se constitui como elemento de conexão entre racismo, a exploração capitalista, o controle do
sexo e o monopólio do saber” (PAIM et al, 2019, p. 440). A segunda forma é a colonialidade do ser
que gera a desumanização, subalternização, desqualificação, invisibilização, subcidadania, os
cidadãos de segunda classe, ou seja, nem todos existem da mesma forma. Finalizando, a
colonialidade do saber se relaciona à epistemologia e preconiza a validação dos conhecimentos que
tem sua origem nos colonizadores europeus “onde há a valorização do conhecimento científico,
2 Uma quarta forma seria a colonialidade cosmológica ou da mãe natureza e as relações sagradas que se conectam de
forma que leva os povos a respeitar a natureza e não servir-se dela no sentido de exploração e depredação como é a
forma que dela se apropriaram os colonizadores (WALSH, 2009).
cartesiano, moderno, racional e eurocêntrico (Idem, p. 440). Tudo o que representa o conhecimento
dos demais povos é descartado e/ou desqualificado.
Assim, a trajetória da sociedade brasileira deu à educação um caráter excludente ampliado
pela característica de sermos a última nação a abolir, legalmente, a escravidão. Devido a séculos de
tráfico de escravizados, depois da abolição tínhamos uma população negra bastante numerosa.
Considerando isso, os governos e as elites implantaram políticas públicas que objetivavam o
embranquecimento da população amparado nessa perspectiva da colonialidade: o que pertence ao
colonizador tem mais valor, inclusive o seu corpo e, consequentemente, as características físicas.
Assim, a partir do final do século XIX houve o aporte do Estado no incentivo da imigração de
populações europeias. Os imigrantes eram priorizados na ocupação dos postos de trabalho nas
indústrias que se iniciavam, forçando a significativa população negra e livre a se afastar para as
periferias e para os subempregos. As mulheres negras, por sua vez, foram impelidas a desenvolver
atividades como quitandeiras, babás, cozinheiras, lavadeiras, enfim, ocupações que não exigiam mão
de obra qualificada pela escola (TELLES et al, 2019). Com o passar do tempo, essas políticas de
branqueamento desapareceram, no entanto, contribuíram para o fortalecimento de uma espécie de
racismo velado e todos esses acontecimentos solidificaram a base onde se assentam os racismos que
perduram em nossa sociedade até os dias atuais.
As diferenças individuais se constituem na diversidade que é uma construção histórica, social
e cultural e, no contexto escolar, elas se fazem presentes pela natureza coletiva do ambiente. No
entanto, nem sempre são tratadas de forma positiva: podem desumanizar quando transformadas em
desigualdades, especialmente num país miscigenado como o Brasil. Quando a nossa tendência
etnocêntrica nos faz crer que a nossa cultura é melhor que a do outro, então, essa variedade é tratada
de forma discriminatória. A diversidade que compõe a sociedade também pode ser concebida por
meio do conceito mais abrangente de interculturalidade que começou a ser discutido por Mosonyi e
Gonzalez, dois lingüistas-antropólogos venezuelanos na primeira metade dos anos 1970, aplicando-o
à questão educativa ao descrever suas experiências com os indígenas (CANDAU, 2009). Desde o
início das discussões, esse conceito vem se alargando entre os teóricos e abordando também questões
étnicas, de gênero e orientação sexual, por exemplo. Assim, Candau (2009) ao debater sobre a
interculturalidade o faz sob a perspectiva teórica de Fidel Tubino (2005) e Catherine Walsh (2009)
que a compreendem sob dois aspectos: interculturalidade funcional e interculturalidade crítica. De
forma geral, a interculturalidade funcional se caracteriza por estar presente nos discursos oficiais, no
entanto, visa apenas a coesão social e o apagamento dos conflitos mas não o enfrentamento e combate
às tensões sociais ocasionadas pelas relações de poder nos diferentes grupos socioculturais. Não se
alteram efetivamente as estruturas de poder atuando, assim, de forma superficial. Por outro lado, a
interculturalidade crítica questiona as diferenças e desigualdades construídas ao longo da história
entre os diferentes grupos.
Parte-se da afirmação de que a interculturalidade aponta à construção de
sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da
democracia e sejam capazes de construir relações novas,
verdadeiramente igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais, o
que supõe empoderar aqueles que foram historicamente inferiorizados
(2009, p. 4).

Não há dúvidas de que as políticas de ações afirmativas, conquistadas com muita luta,
colaboram na diminuição dessas desigualdades geradas pela dinâmica das relações sociais ao longo
do tempo. No entanto, Baniwa, ao se referir especificamente a povos originários, aponta para ações
de cunho “monoculturalista, que sempre pensa políticas genéricas para o país e para a sociedade, sem
levar em consideração as diversidades socioculturais que os constituem” (2013, p.136).
De tudo o que vimos até agora, depreendemos que, a colonialidade naturalizou, em nós, a
forma de ver o outro como inferiorizado gerando relações verticalizadas de poder configurando o
racismo e o preconceito. Ao pensarmos e agirmos movidos pelo pensamento colonializado negamos a
possibilidade da interculturalidade, da troca e do enriquecimento das relações sociais que se
estabelecem em todos os níveis e ambientes.

3. Sebastiana Maria Vieira: um breve histórico

Inicio esta seção destacando as limitações em razão do momento de crise sanitária em que
vivemos. Assim, foi impossível o aprofundamento no trabalho com fontes orais e localização de
fontes documentais junto à família da professora e às instituições de ensino nas quais ela trabalhou.
Deste modo, farei um breve resumo de sua vida pessoal e profissional, compilando pesquisas
anteriores (LEMIECHEK, 2014 e 2020), associando a informações enviadas, de forma remota, pela
família.
Sebastiana Maria de Oliveira nasceu no município de Dores do Indaiá no Centro-Oeste de
Minas Gerais em 28 de setembro de 1924. Em algum momento de sua infância ou adolescência
mudou-se para Curitiba onde concluiu, em 1944, o Normal Colegial no Instituto de Educação do
Paraná3. Desconheço, neste momento, as condições socioeconômicas da família de Sebastiana, no
entanto, cabe salientar que em seus estudos sobre professores e alunos negros no litoral do Rio
Grande do Sul, Weimer aponta para o fato de que

Ser professora, entre as mulheres negras, era um status bastante


almejado, reconhecido como resultante de hercúleos esforços familiares.

3 Criada em 1876, a Escola Normal de Curitiba tornou-se Instituto de Educação do Paraná em 1922 passando a ocupar
a atual sede no centro da Capital paranaense. Em 1994, o prédio foi tombado como patrimônio histórico e, no final
daquela década, passou a chamar-se Instituto de Educação do Paraná Professor Erasmo Pilotto (SEED, 2021).
Era uma possibilidade de ascensão social, na medida em que trazia
reconhecimento e deferência na própria comunidade (2017, p. 239).

Além disso, o advento do escolanovismo levantou a bandeira do feminismo e das escolas


mistas. Assim, numa época de fortalecimento e visibilidade das Escolas Normais, ser professora era
uma conquista de respeitabilidade para qualquer jovem e o ingresso em um curso bastante concorrido
e qualificado marcava a mobilidade e ascensão social.
Casou-se com José Vieira no dia 24 de maio de 1947 na Catedral Nossa Senhora da Luz, em
Curitiba, passando a adotar o nome de Sebastiana Maria Vieira. Não sou capaz de afirmar, neste
trabalho, o ano em que se mudou para Laranjeiras do Sul, na região Centro-Oeste do Paraná onde
constituiu família e morou até o final da vida. Minha hipótese é que ela tenha vindo para o município
entre 1947 e 19564 logo após a extinção do Território Federal do Iguaçu (1943-1946). Essa passagem
na história do município é bastante relevante pois impulsionou o fluxo migratório. Segundo
Lemiechek

Getúlio Vargas tomou posse em novembro de 1930 e durante aquela


década articulou-se politicamente para garantir a interiorização do país
criando a chamada Marcha para Oeste. Este programa tinha como meta
o avanço do capitalismo industrial alicerçado na integração econômica
de todo o território brasileiro. Fazendo parte deste programa, o
Território Federal do Iguaçu foi criado pelo Decreto-Lei nº 5.812, de 13
de setembro de 1943 e abrangia o Oeste e Sudoeste do Paraná e Oeste
de Santa Catarina. Dividido inicialmente em quatro municípios seus
limites foram revistos surgindo Iguaçu (Vila de Xagu ou ex-Laranjeiras,
distrito de Guarapuava) que foi elevada à categoria de município e
capital ao mesmo tempo. O Território teve dois governadores: o
paranaense João Garcez do Nascimento, nomeado em janeiro de 1944, e
o carioca Frederico Trotta empossado pelo presidente Eurico Gaspar
Dutra em fevereiro de 1946 no contexto de pós-guerra. Embora a vida
do Território tenha sido efêmera, a expectativa gerada pelo progresso
ocasionado por sua criação foi essencial para moradores e migrantes que
buscavam boa qualidade de vida com a possibilidade de usufruir de
melhores serviços públicos como segurança, saúde, educação, transporte
e comunicação (2020, p. 15-16).

Quando chegou ao município, sua posição se distinguia das demais professoras que exerciam
a docência pois possuía o diploma do Curso Normal Colegial e isso era um diferencial em sua
carreira. Na comunidade, não havia a oferta do Normal Colegial e, ela era uma das únicas (se não a
única) habilitada legalmente para o ensino no Grupo Escolar. Quando ocorreu a promulgação da Lei
Orgânica do Ensino Normal, em janeiro de 1946, Laranjeiras era a capital do Território e recebeu o
primeiro Curso Normal Regional do país em abril daquele ano. Esse curso habilitava para o exercício
da docência nas escolas isoladas e equivalia, atualmente, as séries finais do Ensino Fundamental (do
4 Esta hipótese se ampara em duas premissas: primeiro a de seu casamento em Curitiba (1947) e segundo é que ela
fazia parte do corpo docente do Grupo Escolar Tiradentes e pode ser vista em fotos da inauguração da nova sede em
11 de setembro de 1956.
5º ao 9º ano). Por conta da extinção do Território, em setembro de 1946, o Curso Normal Regional foi
fechado e reaberto em 1948 sob a responsabilidade do Governo do Estado do Paraná com o nome de
Escola Normal Regional Floriano Peixoto. No entanto, as egressas desse curso, em sua maioria
mulheres casadas e com famílias constituídas, não se aventuravam nas escolas isoladas: ministravam
aulas no Grupo Escolar Aluísio Maier na sede do município. Enquanto isso, as escolas isoladas
padeciam sem professores titulados. Portanto, o diploma de Normal Colegial a colocava em posição
de qualificação profissional superior as demais em determinados espaços como o escolar, por
exemplo.
Assim, no período entre 1948 a 1958, os egressos da Escola Normal Regional Floriano
Peixoto não conseguiam dar continuidade aos estudos em função da inexistência de uma Escola
Normal Colegial (ou Secundária). Nesta época, a professora Sebastiana Vieira ministrava aulas tanto
no Grupo Escolar Aluísio Maier, quanto na Escola Normal Regional Floriano Peixoto. Estava,
portanto, ciente da frustração daqueles que não conseguiam continuar seus estudos e qualificar-se
como prescrevia a legislação que, à época, era o Decreto-Lei nº 8.529, de 2 de janeiro de 1946
conhecido popularmente como Lei Orgânica do Ensino Primário promulgada logo após a queda do
governo Vargas. A oferta do nível secundário resultou da mobilização da comunidade que ansiou pela
sua existência por cerca de uma década. Entre as pessoas que lutaram pela criação desta escola,
destaca-se a professora Sebastiana.

A Escola Normal Colegial foi fruto da aspiração de muitos educadores e


líderes políticos do município de Laranjeiras do Sul. Pessoas que
reconheciam a importância da educação e vislumbravam, na continuação
dos estudos e elevação do grau de escolarização, meios de conquistar
postos mais altos de trabalho. Entre essas pessoas, podemos citar os
professores Amantino Carlos Stephanes, Sebastiana Maria Vieira e
Ondina Pereira Folda. O ex-prefeito Arival Natel de Camargo também
foi dos incentivadores e, com o advogado Gilson Carvalho, que foi o
primeiro diretor da instituição, propôs um projeto para a criação de um
estabelecimento que atendesse o segundo ciclo de formação de
professores (LEMIECHEK, 2014, p. 143).

Sebastiana não apenas lutou pela criação da Escola Normal Colegial Dr. Leôncio Correia
como também fez parte do corpo docente da primeira turma e tinha como alunas, algumas de suas
colegas de trabalho no Grupo Escolar. Ela era portanto professora e, paralelamente em outro período,
colega de algumas delas. Na imagem a seguir estão as professoras do Grupo Escolar de Laranjeiras
do Sul no dia da inauguração das novas instalações em 11 de setembro de 1956. Da esquerda para a
direita: Juraci Sá, Sebastiana Maria Vieira, Erondina Penteado Roseira, Clarisse Fontanella, Eugenia
Laderuski, Zempulski, Alzira Trindade Stocchero (diretora), Ondina Pereira Folda, Esther Araujo
Cordeiro, não identificada e Herminia Teresa Bedin Cordeiro.
Imagem 1: docentes do Grupo Escolar em 1956

Fonte: acervo da família Folda (2014).

Além de ministrar aulas no Grupo Escolar Aluísio Maier, Escola de Aplicação, Escola Normal
Ginasial Floriano Peixoto e na Escola Normal Colegial Dr. Leôncio Correia, Sebastiana Vieira foi
diretora desta última instituição em dois períodos: entre 1962 a 1966 e entre 1973 a 1975
(LEMIECHEK, 2014). Nestes períodos, ela ficou em posição hierárquica profissional acima das
demais, no entanto, muitas delas já tinham cursado o Normal Colegial. Como docente das Escolas
Normais Sebastiana ministrava a disciplina de Didática e Prática de Ensino, sendo portanto,
responsável pelos estágios das normalistas.
Sebastiana faleceu em 05 de maio de 2007 em Laranjeiras do Sul e parte de seus descendentes
ainda residem no município. Ao finalizar esta seção, para a qual trouxe fragmentos de vida, cabe
ressaltar que, embora seu relacionamento com a educação e a comunidade tenha ocorrido de forma
intensa, com uma vida tecida com fios da arte de educar desempenhando papéis de professora em
variados níveis de ensino e cargo de direção, sua história está apenas na memória de seus colegas,
alunos e comunidade. Embora possamos considerá-la como pioneira da educação desconhecemos
qualquer movimento ou ação do poder público municipal em lhe dar visibilidade. O mesmo acontece
com a maioria das memoráveis professoras que este município teve. O que há são silenciamentos,
apagamentos.

4. O racismo presente nos diálogos do cotidiano

Na coletânea lançada pelo MEC no ano de 2005 e intitulada Superando o Racismo na Escola,
o pesquisador Antônio Olímpio de Sant’Ana define preconceito como

Uma opinião preestabelecida, que é imposta pelo meio, época e


educação. Ele regula as relações de uma pessoa com a sociedade. Ao
regular, ele permeia toda a sociedade, tornando-a uma espécie de
mediador de todas as relações humanas. Ele pode ser definido, também,
como uma indisposição, um julgamento prévio, negativo, que se faz de
pessoas estigmatizadas por estereótipos (2005, p. 46).

O racismo, por sua vez, é uma espécie de preconceito mais refinado ou direcionado a questões
étnicas sendo

um produto da modernidade, filho da colonização e do processo de


escravização de negros/as e indígenas no continente americano, nutrido
pela colonialidade através da (re) construção de práticas racistas que
tendem a discriminar o que se relaciona com a cultura negra e indígena,
ou, ainda, histórias e culturas que não sejam eurocentradas (PAIM et al,
2019, p. 444).

A questão étnico-racial permeia a sociedade brasileira e nos atinge independente de nossa


reação ou do papel que desempenhamos diante de suas forças e formas. Discursos impregnados de
racismo transpassam as falas caracterizando-se como racismo internalizado e tantas vezes manifesto,
muitas vezes banalizado muito embora seja configurado como crime. Para quem se posiciona a
contrapelo das construções sociais excludentes e racistas o termo negro muitas vezes causa
desconforto pela forma e contexto em que ele é pronunciado: como demérito ou característica
desqualificadora.
Os relatos que apresento a seguir são experiências pelas quais passei e não são falas comuns:
são fruto de uma cultura embasada na verticalização das relações de poder e na visão de
inferiorização de pessoas negras. O discurso discriminatório e racista é facilmente perceptível em
frases aparentemente ingênuas e bastante presente nas práticas educativas e sociais, como por
exemplo: esta aluna é negra, mas é inteligente; tem um pé na senzala; é negro, portanto nasce sabendo
sambar ou remexer o corpo; é negro, mas é limpinho. Diariamente, ouvimos essas expressões entre
tantas outras. Em razão da colonialidade, somos forjados no racismo, portanto são manifestações, de
certa forma, naturalizadas mas que precisam ser desconstruídas. Intencionalmente ou não,
conscientemente ou não, as pessoas o reforçam ao reproduzir esses discursos. As falas a seguir trazem
à tona os racismos expressos nas relações de poder e esculpidos social e culturalmente por meio dos
processos de dominação e colonização.
O primeiro diálogo que apresento ocorreu em 1986 sendo essa pesquisadora, uma jovem
recém-casada conversando com alguém sobre histórias da família do marido.

Interlocutora: a família não aceitou aquele casamento porque não era


certo. Ela era brasileira.
Pesquisadora: como assim, vó? Nós somos todos brasileiros.
Interlocutora: você entendeu o que eu quis dizer. Ela não tinha origem.
Não era italiana como eu ou polonesa como você. Era matuta. Naquele
tempo nenhum italiano aceitava casamento com essa gente. (T. e L.,
1986).

O contexto de um diálogo familiar ocorrido há 35 anos nos remete às discussões já apontadas


por vários pesquisadores. Segundo minha interlocutora, em meados do século XX, em determinada
região do Rio Grande do Sul, onde ela morava antes de vir morar no Paraná, para que um casamento
ocorresse não importava o caráter da pessoa e tampouco seus bens. Ela poderia ser de poucas
condições econômicas: o que realmente importava era ter, estampado em seu sobrenome, o selo de
ascendência europeia. Assim, o casamento entre pessoas de diferentes origens étnicas não era aceito
com naturalidade. Baniwa, pesquisador de povos originários do Brasil, tece um comentário que julgo
pertinente neste caso: “a origem principal da discriminação e do preconceito é a ignorância, o
desconhecimento. Não se pode respeitar e valorizar o que não se conhece. Ou pior ainda, não se pode
respeitar ou valorizar o que se conhece de forma deturpada, equivocada e preconceitualmente” (2013,
p. 141). Este episódio deixa claro o aprendizado sociocultural da superioridade dos brancos europeus
e a consequente desqualificação dos demais. O reconhecer-se brasileiro implicaria em aceitar que era
uma pessoa qualquer, um matuto, um caboclo e não um descendente de povos europeus considerados
superiores.
A segunda fala é o registro de um momento informal recente entre esta pesquisadora e uma
pessoa de suas relações.

A Terezinha tinha uma criada que morava aqui com ela, na casa. Era
uma “negrinha”, uma meninota. Um dia, nós queria (sic) pegar fruta no
vizinho e jogamos a “negrinha” do outro lado, pelo muro. Mas era mais
alto do lado de lá e ela não conseguia subir de volta e essa “negrinha”
chorava e chorava e nós ria (sic) e deixamos ela lá algum tempo (R.,
2020).
É importante destacar que a existência dos chamados “filhos de criação”, que eram crianças
entregues para famílias de condições socioeconômicas favoráveis, era prática relativamente comum
até as últimas décadas do século XX. Muitas dessas crianças, na realidade, desempenhavam tarefas
domésticas sem receber qualquer remuneração pelos serviços permanecendo com ela enquanto eram
úteis à família. Não raras vezes, também não frequentavam a escola. Embora convivesse com a
família sendo amiga de Terezinha por mais de 50 anos, questionada quanto ao nome da menina, a
interlocutora disse não lembrar e respondeu negativamente também quando perguntei qual destino
teve esta jovem. Ambas as negativas me remetem à ideia de que a menina não era significativa no
contexto familiar, embora fizesse parte dele. É evidente, neste caso, o uso do termo “negrinha” como
forma de desqualificação. Ela não era alguém importante: era uma negrinha. Nessa fala podemos
evidenciar as relações assimétricas de dominação/dominado mesmo que disfarçadas sob o objetivo de
fazer parte de uma família de posses. O foco da minha interlocutora, com esta narrativa, era contar
uma piada sobre a tal negrinha, apenas isso. Paim et al entendem que essas são narrativas que dão
continuidade à formas de dominação colonial

na construção e manutenção da ideia de raça; de inferioridade de um


povo em relação ao outro; no aparato ideológico criado para a livre
exploração de negros/as e indígenas por pessoas brancas, consideradas
dotadas de superioridade e pureza de sangue, ao longo da história e
consequente manutenção de privilégios elitistas (2019, p. 440 e 441).

Infelizmente, nós naturalizamos o discurso racista e toleramos piadas xenofóbicas,


homofóbicas, sexistas e desqualificadoras da diversidade. Quando ouvi este “causo”, que me
inquietou, eu ainda não estava tomada pelas reflexões acadêmicas e não possuía arcabouço conceito
básico para ponderar sobre o assunto assentada em pressupostos teóricos de cunho decolonial.
Mas, como despertei para os discursos impregnados de racismo acerca da professora
Sebastiana Vieira? Durante a realização da dissertação de mestrado, entrevistei seis egressos das
Escolas Normais do município. Todos citaram a professora durante suas falas porque, pela trajetória
profissional dela, em algum momento, tiveram contato e, inegavelmente, ela os marcou de uma forma
ou outra. Duas coisas chamam atenção: primeiro, a unanimidade em referir-se a ela como uma ótima
professora, uma dama, uma mulher de gestos delicados e finos que tratava a todos respeitosamente e,
também, o discurso racista. Evidência de um paradoxo: ela era capaz de possuir todos esses bons
atributos apesar de ser negra. O discurso racista, aponta para o fato de que ela seria uma exceção aos
outros negros conforme salienta o trecho a seguir, retirado de uma entrevista com uma ex-aluna
normalista.
Dona Sebastiana? Era maravilhosa, uma professora ótima de Didática e
Prática de Ensino. Acompanhava nós (sic) durante os estágios. Também
foi diretora da Escola Leôncio por algum tempo. Você sabe que ela era
negra, né? (M., 2014).

Essa observação ao final me remete a uma conexão entre um corpo estranho estar num lugar
errado como se a professora Sebastiana transitasse num espaço que não fosse comum. Reforça ainda
a ideia de que, ser e ter uma professora negra era uma exceção à época. De certa forma, não é uma
afirmação incorreta: “O ser professora negra numa instituição escolar torna-se extremamente difícil
quando esta é identificada a partir de resquícios da trajetória histórica de seu grupo social de
pertença” (TELLES et al, 2019, p. 45). Os autores ainda afirmam que a inferioridade atribuída aos
negros está assentada, também, nas diferenças físicas de acordo com o branqueamento populacional
citado anteriormente com o incentivo à imigração. Ser negro ou ser branco foi/é ser detentor de
determinadas capacidades ou incapacidades sociais, morais e intelectuais. Isso explica o
estranhamento do trânsito desta professora num espaço elitizado como o campo da docência na
segunda metade do século XX. A fala desta ex-normalista se apoia na ideia de sermos constantemente
guiados pelos papéis que deveríamos ocupar na sociedade e, qualquer coisa além disso, causa
estranhamento.
Durante uma conversa informal com uma contemporânea da professora Sebastiana (que não
era professora) ela assim falou:

Eu me lembro bem dela. Era colega do Luís 5 na Escola Normal. Dona


Sebastiana tinha várias crianças. Passava na rua com aquelas negrinhas
todas bem arrumadinhas, com as roupas brancas todas perfeitamente
engomadas. Os cabelos esticadinhos pra trás feito tranças. Eram
crianças muito limpinhas (R., 2020).

O que ficou na memória da interlocutora, hoje com 80 anos, foi presenciar, no início da
década de 1960, uma mãe negra e limpa que andava, orgulhosa e empoderada, pelas ruas centrais da
cidade com sua prole bem-vestida e bem-arrumada. Evidencia-se, nesse discurso, as atribuições dadas
aos negros em uma sociedade de origem escravocrata e discriminatória. A imagem do negro
associada a aspectos negativos: inferioridade, incapacidade, marginalidade, imbecilidade,
promiscuidade, desleixo, indolência, vícios, imoralidade, barbarismo, violência entre tantas outras
atribuições estereotipadas. Paim et al discutem questões acerca de raça sob o ponto de vista biológico
chegando a conclusão que

5 Refere-se ao professor Gildo Aloysius Schuck que foi colega de trabalho de Sebastiana Maria Vieira (LEMIECHEK,
2014).
[…] a raça é uma construção social criada e fortalecida pelo sistema
moderno/colonial, ou seja, a cor da pele ou da raça de uma pessoa se
associa a significados simbólicos de discriminação, dominação,
opressão. Compreendemos, então, que no Brasil, ser negro/a, indígena e
branco/a implica diferenças de tratamento manifestadas pelo acesso à
escolaridade, saúde, mercado de trabalho, segurança, moradia – direitos
básicos – a critérios estéticos de beleza (2019, p. 442).

Considerando a história de imigração dos europeus para o Brasil e sua migração para a região
Centro-Oeste do Paraná, onde predominam as ascendências italiana, alemã e polonesa, é possível
inferir que havia conflitos racistas nas relações sociais e, consequentemente, no contexto escolar em
meados do século XX. O branqueamento populacional e a ênfase na qualificação apenas do que
pertencia aos colonizadores europeus contribuía para esse estranhamento relatado nas falas anteriores
porque são resultados de aprendizados sociais e culturais. Infelizmente, a pesquisa ainda não dá conta
de entender como era o contexto em que a professora Sebastiana atuava entre as décadas de 1940 a
1980 mas, o excerto a seguir, retirado de uma entrevista com uma colega de trabalho, pode nos dar
indícios.

Uma pessoa de ouro! […] Uma finesse, uma educação! Ela se formou
aqui em Curitiba. Até uma vez ela ofendeu todas nós. Nós éramos
formadas no Regional, né? Só ela era formada normalista aqui em
Curitiba, no Colegial e nós éramos aqueles refuguinhos lá. Numa
reunião do Grupo ela falou: “eu não sou dessas professorinhas feita a
machado”. Eu tinha uma amiga chamada Iolanda Mendes, daí ela
cochichou pra mim: “você ainda tem esse cursinho de porcaria de
Regional, eu nem isso tenho” (O., 2014. grifos da autora).

Esse excerto é muito significativo. Sendo a escola concebida, por diversos autores, como
campo de conflitos e disputa de poder, a professora Sebastiana poderia ter usado, nessa ocasião, a sua
qualificação profissional e seu diploma de Normal Colegial como um instrumento de
empoderamento, de resistência e protagonismo negro para reagir às tensões e enfrentamentos que
vivia naquele e em outros espaços. Na condição de pesquisadora, desejaria compreender como ela
transitava nesses espaços tão simbólicos e entremeado de contradições em uma sociedade
estruturalmente racista. Muito possivelmente, a vida da professora Sebastiana foi marcada por lutas
pessoais diárias, considerando à época em que vivia, os postos de trabalho que ocupou e as
características da emigração que formou a população regional.

o processo de ingresso da mulher no magistério foi ainda mais


complexo para a mulher negra já que historicamente ela foi tolhida de
ter acesso ao espaço escolar. Por volta do século XX, inclusive com
advento da Escola Nova, houve uma maior flexibilização da entrada
dessas mulheres na educação, pois tornou-se obrigatória a escola pública
integral, estabelecendo-se ainda, transformações do direito civil em
social (TELLES et al, 2019, p. 45).
De todos esses episódios e discursos depreende-se que

É de suma relevância compreender a colonialidade do poder, a invenção


da raça e os processos de negação do outro que estão ligados às
representações do imaginário social, na manutenção de conceitos do que
é ser belo/a, branco/a, negro/a, indígena, homem, mulher, hétero ou
homossexual, enfim, do que é ser brasileiro/a. Destacamos ainda que,
sendo essas representações simbólicas elementos das relações sociais
que nos circundam, estão também presentes e sendo reproduzidas nos
ambientes educacionais que vão da Educação Básica a Educação
Superior (PAIM et al, 2019, p. 443).

5. Considerações finais

A partir de alguns discursos que compreendo como racistas procurei refinar a compreensão
acerca do processo de construção social das desigualdades e do racismo. Embora tenhamos, enquanto
nação, um arcabouço legal, conquistado a partir de muitas lutas e enfrentamento pelas populações
historicamente marginalizadas, precisamos lutar diariamente contra as manifestações racistas e o
silenciamento das questões étnico-raciais em todos os espaços.
Nesse contexto a escola é, por excelência, um local permeado de potencialidades para a
desconstrução do racismo e precisa contribuir para a construção dos processos identitários que não
são inatos: são tecidos nas relações sociais. É, portanto, um lugar privilegiado e estratégico para
reduzir ou eliminar a intolerância, o preconceito, a discriminação e o racismo entre pessoas e povos.
Assim, o silêncio na escola não traz mudanças: faz-se necessário, cada vez mais, criar uma cultura
acadêmica que trabalhe com a pluralidade e a diversidade, concretamente incorporando e
desenvolvendo a interculturalidade crítica.
O diálogo aqui proposto não consegue abarcar a complexidade que envolve uma vida e as
relações que se estabelecem a partir dela. No entanto, abre possibilidades para novas pesquisas. Desta
forma, escrever, mesmo que embrionariamente, sobre a professora Sebastiana Vieira é uma forma que
encontrei de me posicionar contra o racismo e preconceito étnico e, ao mesmo tempo, lutar contra o
extermínio de suas memórias que vão se perdendo com o declínio das memórias orais. Posicionar-me
também contra a invisibilidade que atinge não somente ela, mas a maioria das professoras que
atuaram no município de Laranjeiras do Sul e que não estão nos discursos oficiais e nem são
lembradas em espaços públicos, especialmente os educacionais. Memórias como a da professora
Sebastiana são memórias contra-hegemônicas e precisam ser trazidas a tona por pesquisadores
comprometidos politicamente. Enfim, a produção de conhecimento histórico educacional local tem,
como intuito, impedir o silenciamento e o apagamento dessas memórias ao mesmo tempo que dialoga
com a Historiografia da Educação de forma mais ampla.
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