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S E M I Ó TI CA AP LI CADA AO D I R E ITO

Sandro Canedo

ANÁLISE SEMIÓTICA DE DISCURSO


JURÍDICO DECISÓRIO NO CASO
“TESTE DE HONESTIDADE”
A SEMIOTICS-BASED APPROACH OF THE RULING 91

ISSUED IN THE CASE “HONESTY TEST”


Ariane Emílio Kloth

RESUMO ABSTRACT
Realiza uma análise, a partir da semiótica greimasiana, de dis- The author conducts a study, based on Greimas’
curso jurídico decisório exarado em ação ajuizada contra a TV- Semiotics, of a ruling issued in a lawsuit filed against
SBT, em virtude de um “teste de honestidade”. SBT-TV network over an “honesty test”.
Após um esclarecimento inicial a respeito dos elementos que After an introductory explanation on the elements that comprise
englobam o discurso jurídico em geral e o decisório, parte para legal discourse in general and legal ruling, she presents the
a exposição do percurso gerativo do sentido e a discussão do generative trajectory of meaning and corpus discussion,
corpus, suas estruturas narrativas, discursivas e fundamentais. along with its narrative, discursive and basic structures.
Objetiva demonstrar como a semiótica pode contribuir para o She intends to demonstrate in which way Semiotics may
estabelecimento dos sentidos no gênero textual “sentença jurí- contribute to the establishment of meanings within the discursive
dica”, por meio da identificação dos níveis superficiais, interme- genre “legal ruling”, by identifying the superficial, intermediary
diários e profundos do texto e da imanência sob a aparência. and deep text levels, as well as the essence beneath the surface .

Palavras-chave KEYWORDS
Teoria semiótica greimasiana; teste de honestidade; discurso Greimas’ Semiotic Theory; honesty test; legal discourse;
jurídico; sentença; percurso gerativo; imanência; aparência; es- legal ruling; generative trajectory of meaning;
truturas semio-narrativas. essence; surface; semio-narrative structures.

Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 40, p. 91-100, jan./mar. 2008


1 INTRODUÇÃO psicológicas etc. complexa e mais concreta. As estrutu-
A textualidade jurídica é uma mani- A contribuição da semiótica, mais ras profundas são aquelas mais simples
festação semiótica que ocorre tanto por precisamente da semiótica greimasiana, e também as geradoras das estruturas
meio dos elementos de uma linguagem para a compreensão de sentidos, é gran- mais complexas (BARROS, 1988).
verbal (escrita e fala) como pelos ele- de, pois possibilita o exame atento desses A noção de percurso gerativo de
mentos de linguagens não-verbais, como, níveis de significação manifestados na su- sentidos permite a apreensão dos textos
por exemplo, os signos de trânsito, que perfície e na profundidade do texto. em diferentes instâncias de abstração,
constituem símbolos de comunicação A semiótica greimasiana toma o tex- por meio de etapas que variam entre a
jurídico-normativa, ou os gestos do juiz to como objeto de análise e, ao contrário imanência e a aparência. São três etapas,
na corte, como o bater do martelo para de Saussure, não considera a linguagem necessárias para a clareza da explicação
pedir silêncio ou encerrar a sessão. como um sistema de signos, e sim como do percurso – fundamental, narrativa
No entanto a linguagem verbal um sistema de relações, do qual decorre e discursiva –, e cada uma possui dois
representa sempre o maior plano de a significação. Pelo fato de descrever e ex- componentes, um semântico e um sin-
manifestação jurídica, e tal explica-se plicar de modo satisfatório o componente tático, os quais não foram distinguidos
pelo fato de constituir um gênero que narrativo do discurso, é a proposta mais com nitidez neste trabalho. Cada etapa,
engloba tipos discursivos variados, como desenvolvida atualmente de análise inter- entretanto, foi apresentada e explorada
o da norma, da decisão, da burocracia e na e imanente do texto (BARROS, 1988). ao longo da análise.
da doutrina, contendo informações que A análise interna diz respeito à expli-
são melhor manifestadas na forma verbal cação e descrição dos mecanismos que 1.1 METODOLOGIA, OBJETO
(BITTAR, 2001). engendram o texto, isto é, de como o E OBJETIVOS
A problemática da significação no texto é organizado e como diz o que diz. Nesta análise, tendo por fundamen-
Direito é constatada a partir de expres- A imanência (plano do conteúdo) foi se- tação teórica a semiótica greimasiana, foi
sões que expõem sua pretensa rígida es- parada, já a partir de Hjelmslev, do plano tomada como objeto de estudo uma de-
trutura de “dever-ser” a riscos de origem de expressão (lingüístico), sem que isso cisão de 19 de abril de 2004, referente à
não-jurídica, com sérios entraves quanto signifique deixar de reconhecer a impli- ação proposta contra a TV-SBT por certo
à interpretação. Como diz Bittar (2001, cação mútua entre os dois, pois um pla- casal, depois de ter participado de uma
p. 3), a definição do que sejam “bons no de conteúdo precisa ser veiculado por “brincadeira” produzida pelo programa
92 costumes” do Código Civil, a tradução um plano de expressão, e este pode ser “Domingo Legal”, que lhe teria acarreta-
do sentido atual de “mulher honesta”, de diferentes naturezas: verbal, gestual, do graves prejuízos morais e financeiros.
no texto do Código Penal, a identifica- pictórico etc (FIORIN, 2006). Quando um Propõe-se a discussão dos seguintes
ção da amplitude da expressão “digni- discurso é manifestado por um plano de pontos: a) Como a semiótica contribui
dade da pessoa humana” utilizada na expressão, tem-se um texto. para a leitura crítica de um texto jurídico?
Constituição Federal, são apenas alguns Segundo Barros (1988, p. 14), para b) Diante das especificidades do discurso
exemplos desses desafios com os quais ser compreendido, o texto precisa ser abs- jurídico, que modalidades resultam em
deve lidar o operador do Direito. traído dos efeitos de sentidos aparentes: uma performance ideal da autoridade
decisória num programa narrativo?
A semiótica greimasiana toma o texto como objeto de análise
2 ESTUDO DE TEXTO
e, ao contrário de Saussure, não considera a linguagem
2.1 O TEXTO JURÍDICO E
como um sistema de signos, e sim como um sistema SUAS ESPECIFICIDADES
de relações, do qual decorre a significação. Com o fim de esclarecer a natureza
do discurso a ser analisado, cabem algu-
Conforme alega Carvalho (2002, p. Sob a aparência, busca-se a imanência mas considerações a respeito do gênero
8), admite-se, assim, que a atividade do discurso; sob a máscara, as leis que o “texto jurídico”.
de compreensão do texto ultrapassa produzem. Depois de cumpridos os pro- Explicita Carvalho que o texto jurí-
sua própria textualidade (superfície) e cedimentos de abstração é necessário dico, proveniente da linguagem natural,
penetra nas entranhas das significações efetuar o percurso inverso e reconstruir, freqüentemente atribui sentidos próprios
profundas dele decorrentes. Percebe- a partir de estruturas imanentes, as es- aos termos que compõem o seu univer-
se, pois, que o discurso envolve tanto o truturas aparentes da manifestação. so discursivo. No entanto, tal autonomia
que nele está explícito como o que nele A busca da essência, ou imanência, não significa que a linguagem não sofra
está subentendido, oculto na dimensão é feita por meio de um percurso gerati- influência dos demais discursos existentes
implícita de sentido por força de mo- vo de sentidos (plano do conteúdo), que na sociedade. Nas palavras de Greimas
tivações ou interesses circunstanciais parte dos elementos mais superficiais do (apud CARVALHO, 2002, p.10) : o discur-
(in)conscientemente encobertos pelo texto aos mais complexos, de modo a so jurídico não passa de um caso particu-
enunciador. Uma prospecção mais aten- identificarem-se as ideologias dele cons- lar, definível na sua especificidade, ante
ta da manifestação textual encontrará tantes. Há um ponto de partida e um de todos os discursos possíveis – e realizados
novas emanações de sentidos decorren- chegada, tendo por início uma estrutura – numa língua natural qualquer.
tes de motivações culturais, ideológicas, mais simples e mais abstrata até a mais Quanto à sua essência, o discurso

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jurídico, de modo geral, concentra elementos lingüísticos e Ademais, o discurso decisório é o ponto fulcral de todo
extralingüísticos, que podem ser resumidos segundo a teoria processo – este envolvendo um conjunto de textos orais e escri-
dos atos de fala de Austin e Searle (BITTAR, 2001). Essa teoria, tos, como aqueles de uma testemunha (orais), posteriormente
da lingüística pragmática, compreende a linguagem como ação, transcritos, contendo ainda a norma, para fundamentar a deci-
ou melhor, considera as ações realizadas pela fala como parte são, e os atos procedimentais, a fim de levar as partes a adota-
do sentido lingüístico, e graças a ela os lingüistas deixaram de rem determinadas posturas.
entender a língua como meio de representação de significados Os argumentos das partes são coadjuvantes na construção
objetivos somente, passando a considerá-la também como for- de sentido do texto legal. Mas, ao discurso decisório, que finda
ma de agir no mundo. São três os atos: locução – o que se diz; um litígio, atribui-se uma relevância na criação e/ou consolida-
ilocução – o que se intenciona com o discurso; e perlocução ção de significações por ser um discurso que, como já disse, ao
– o que se provoca com o discurso, por exemplo, convencimen- consolidar ou modificar situações e estados, incide diretamente
to, susto, contentamento etc. sobre a vida das pessoas (CARVALHO, 2002, p. 12).
Ao manifestar-se sobre uma demanda, um procedimento
ou pedido, o juiz ilocuciona-se por meio do texto escrito. Age Quanto a sua estrutura, o universo jurídico engloba
ilocutoriamente, ao utilizar-se do discurso normativo, com vistas diversos gêneros, como o discurso jurídico da
a persuadir o destinatário do discurso; e perlocciona, mediante
norma, da decisão, da burocracia e o da doutrina,
seu pronunciamento e posterior publicação, uma vez que pro-
duzirão determinados efeitos, agindo sobre condutas sociais. reveladores da grande heterogeneidade existente
Cabe observar ainda que todo ato de fala é concomitantemente no âmbito do Direito [...]
locucionário, ilocucionário e perlocucionário, pois sempre que
algo é dito, produz-se um enunciado com determinada força Os interesses dos sujeitos envolvidos encaminham a argu-
ilocucionária que produzirá certos efeitos, desejados ou não mentação no sentido de uma conclusão. Cada sujeito ocupa um
(KOCH, 2006). lugar específico no processo e cabe à autoridade instituída do po-
Quanto a sua estrutura, o universo jurídico engloba diver- der-fazer, no caso, ao juiz, relatar os fatos e decidir. Assim, o dis-
sos gêneros, como o discurso jurídico da norma, da decisão, curso da autoridade decisória contém uma parte descritiva e outra
da burocracia e o da doutrina, reveladores da grande heteroge- argumentativa, ou persuasiva, visando à justificação da decisão.
neidade existente no âmbito do Direito, que trazem em si pos- Apesar de o discurso decisório ser predominantemente
sibilidades de sentido, de aplicação e de interpretação. Alguns escrito, não significa que, nos autos, não estejam presentes lin- 93
desses discursos, como o decisório, originam significações ca- guagens outras que não a verbal. A linguagem não-verbal está
pazes de produzir mudanças na situação jurídica das pessoas presente, por exemplo, nas fotografias, fonogramas ou filma-
(CARVALHO, 2002, p. 11). gens televisivas (como no caso ora em análise), que podem
servir de elementos de prova, trazendo um conteúdo outro do
2.1.1 A SENTENÇA que sua própria natureza, um conteúdo capaz de representar o
Segundo Bittar, o discurso jurídico decisório constitui uma que se chama de “iconismo probatório” (BITTAR, 2001).
prática textual de cunho performativo produzido por uma auto- Para Greimas (1976), o discurso decisório é de dois tipos:
ridade competente, com poder de modificar a situação jurídica referencial, ou seja, o discurso dos sujeitos a respeito dos fatos
daqueles a quem se refere. ocorridos anteriormente à fala nos autos; e legislativo (ou nor-
Por performativo compreende-se aquele ato com força mativo). O juiz assim produz um discurso a partir da interpreta-
para produzir mudanças sociais por meio do discurso. No ní- ção dos fatos e da aplicação da norma.
vel lingüístico são realizados por determinados verbos, quando
empregados na 1ª pessoa singular do presente do indicativo. 2.2 ANÁLISE DO DISCURSO DECISÓRIO NO
Formas como “eu prometo”, “eu ordeno”, “eu suplico”, “eu os CASO “TESTE DE HONESTIDADE”
declaro marido e mulher” provocam mudanças, realizam uma Passa-se então à apresentação do objeto desta análise, ex-
ação. Assim, a sentença encaixa-se nesse caso, pois decide o traído dos Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura
processo, o destino da parte. (2004, v. 5, p. 63-67):
Bittar (2001, p. 283) a define sob os seguintes aspectos: Sentença. Dano Moral. Uso de Imagens. Programa “Do-
toda sentença é um ato performativo de linguagem e ainda mingo Legal”. “Teste de Honestidade”.
exercício da concretização e atualização de estruturas semióti- Ausência de informação aos autores quanto ao contexto
cas; deve ser escrita para que se apresente em sua concretude de uso de suas imagens. Caráter abusivo.Configuração do pre-
(saber-fazer); deve ser emitida por órgão investido do poder juízo.Condenação.
de julgar, deve ser competente (poder-fazer); deve ser dota- 31ª VARA CÍVEL CENTRAL
da de publicidade; deve conter três partes formais: relatório, COMARCA DE SÃO PAULO - SP
fundamento e dispositivo; deve apresentar-se lingüística e ju- VISTOS.
ridicamente aceitável; deve encontrar-se inserida no contexto Abrão Couri e Silvia Parisi Couri ajuizaram ação contra TV-
de um processo e de um conflito material existente na esfera SBT Canal 4 SP S/A e Augusto Liberato, alegando que: tomaram
jurisdicional; deve obedecer aos trâmites processuais, a um pro- conhecimento através de parentes, amigos e conhecidos de
cedimento definido em lei e apresentar a opinião conclusiva do que haviam aparecido no programa “Domingo Legal”, exibido
juiz acerca de todos os elementos formadores do processo. no dia 16 de novembro de 1997, no canal da primeira ré, com

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apresentação do segundo requerido; esses parentes, amigos e nicação em que se deu a transmissão, diante do que dispõe o
conhecidos relataram que os autores haviam sofrido exposi- art. 49, § 2º, da Lei nº 5.250/67.
ção vexatória e infamante, porque haviam sido identificados Tal responsabilidade é reiterada nos artigos 50 e 52 da
como pessoas desonestas, já que teriam sido filmados no mesma lei. Na lição de ENÉAS COSTA GARCIA (Responsabili-
momento em que se apropriavam de uma carteira, supos- dade Civil dos Meios de Comunicação, Ed. Juarez de Oliveira,
tamente perdida por alguém no passeio público; continua- 2002, p. 415), trata-se de responsabilidade por fato de terceiro,
ram sendo interpelados, nos dias seguintes, por conhecidos e ainda que o terceiro não seja funcionário com vínculo empre-
amigos, escandalizados com o que haviam visto na televisão; gatício. Ainda segundo o mesmo autor (op. cit., p. 417/418),
clientes da autora manifestaram estranheza com o que havia não beneficia o proprietário do meio de comunicação a alega-
ocorrido, ou passaram a tratá-la de modo estranho, tendo ha- ção de isenção de culpa, pois a responsabilidade do meio de
vido até mesmo interrupção de chamadas para atendimento comunicação é praticamente objetiva; basta que se caracterize
externo; clientes do autor também demonstraram conhecimento o abuso do preposto ou colaborador para que surja o dever
do que havia sido exibido no programa de televisão, e contratos de indenizar.
foram adiados; os filhos do autor foram alvo de comentários de Os autores alegam que, na ocasião em que se deu a fil-
colegas e professoras; os autores e seus filhos foram expostos a magem das imagens posteriormente transmitidas pela televi-
execração pública; houve divergência entre o que ocorreu e o são, estavam passeando por um bairro que não conheciam
que foi exibido no programa, pois as imagens foram editadas bem e que, ao encontrarem a carteira com o dinheiro e um pa-
sem que aparecesse a intenção dos autores de telefonar para o pel onde constavam um nome de pessoa, um endereço com-
número existente na carteira, a fim de devolvê-la; embora tives- posto de rua e número e um número de telefone, resolveram
sem assinado autorização de exibição de sua imagem, não fazer uma ligação para o telefone anotado, com a intenção de
autorizaram a utilização da imagem de forma a criar uma devolver a carteira, mas, antes de encontrarem um telefone
situação vexatória e humilhante, em que aparecessem como público, foram abordados por integrantes da produção do pro-
paradigmas de pessoas desonestas. grama do apresentador Gugu Liberato, a quem devolveram
Pelo exposto, requereram os autores a condenação solidá- a carteira e autorizaram o uso das imagens, recebendo dos
ria dos réus ao pagamento de indenização do dano moral, a produtores a informação de que se tratava de uma brincadeira
ser arbitrada pelo Juízo, a se absterem de utilizar novamente que seria mostrada no programa.
as imagens exibidas no programa de 16 de novembro de 1997, As imagens transmitidas pela televisão, no entanto, mos-
94 inutilizando-as; à publicação da sentença em jornais e outros tram apenas os autores guardando a carteira. Não é mostra-
periódicos, e à inserção de avisos em canais de televisão indica- da nenhuma intenção de localização da pessoa mencionada
dos pelos autores, de larga circulação e divulgação, às expensas no papel colocado na carteira, nem de devolução da carteira.
dos requeridos. A inicial veio acompanhada de documentos e foi A prova pericial ressaltou que as imagens transmitidas
aditada para especificar o pedido de publicação da sentença. pela televisão foram resultado da edição da gravação original
Os réus foram citados e apresentaram contestações, e não estavam acompanhadas de vozes. Embora os documen-
acompanhadas de fita com a gravação do programa e docu- tos de fls. 58/70 comprovem que a ré foi regularmente notifi-
mentos, nas quais pleitearam a improcedência da demanda. cada para preservar a integralidade da fita original em que
foram gravadas as imagens dos autores — houve até mesmo
Para Greimas (1976), o discurso decisório é de remessa de correspondência para o endereço da ré, informa-
dois tipos: referencial, ou seja, o discurso dos do na procuração por instrumento público outorgada pela
requerida (fls. 112) —, a TVSBT não trouxe a Juízo nenhum
sujeitos a respeito dos fatos ocorridos
elemento de prova que permitisse rejeitar a alegação de
anteriormente à fala nos autos; e legislativo que a ré ocultou a parte da gravação que demonstrava a
(ou normativo). intenção dos autores de telefonar ao dono da carteira, a fim
de providenciar a devolução do objeto.
Houve réplicas. Realizou-se audiência de conciliação, in- Não demonstrou a requerida que tivesse tomado qual-
frutífera. O feito foi saneado, com rejeição das preliminares quer cautela para comprovar, oportunamente, o caráter
articuladas nas contestações e deferimento de prova pericial, “científico” do “teste” que patrocinou e a “desonestidade”
consistente na degravação da fita do programa. Apresentado das pessoas que primeiro foram filmadas e depois receberam
o laudo, sobrevieram manifestações das partes. Em audiência, mera solicitação de autorização para o uso das imagens, sem
foram ouvidos os autores em depoimento pessoal e quatro explicações completas sobre o uso que delas seria feito. Em
testemunhas. Encerrada a instrução, as partes apresentaram outras palavras, a ré promoveu um “julgamento” dos autores,
memoriais de alegações finais.Transitou em julgado a decisão pronunciou um veredicto de desonestidade, transmitido em
que excluiu da lide o co-réu Augusto Liberato. rede nacional de televisão, consistente na afirmação de que os
É o relatório. requerentes guardaram a carteira sem intenção de devolvê-la,
SEGUE A FUNDAMENTAÇÃO. mas impedem a demonstração, mesmo a posteriori, da ino-
É patente a legitimidade da TV-SBT para a lide, pois a cência dos autores, na medida em que a edição das imagens
responsabilidade da emissora de televisão não decorre da pro- comprova que nem toda a gravação foi aproveitada, mas não
dução do programa, nem de culpa da própria empresa, e sim é apresentada a integralidade da gravação, nem mesmo para
de sua condição de empresa exploradora do meio de comu- comprovar não serem verdadeiras as alegações dos autores a

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respeito do endereço constante da car- gular da liberdade de manifestação do como o direito de resposta, devem ser
teira e de sua intenção de telefonar para pensamento, a ser indenizado diante do proporcionais ao agravo.
o dono do objeto. disposto no art. 5º, V, da Constituição da A proporcionalidade é incompatível
Não há como acolher as alega- República. As conseqüências da exibição com o estabelecimento apriorístico de li-
ções da ré no sentido de que os auto- televisiva da imagem dos autores não mites e tarifas de indenização, apontan-
res não tiveram a intenção de devolver se limitaram a brincadeiras inocentes do, pelo contrário, para a consagração
a carteira, porque não caminharam de amigos e conhecidos. A prova teste­ normativa de um direito à plena repara-
em direção à rua mencionada no pa- munhal informa que os autores foram ção do dano.
pel existente na carteira nem pararam alvo de comentários maldosos, tachados A indenização do dano não patri-
nos telefones pelos quais passaram como pessoas desonestas, daí decorren- monial deve ser fixada eqüitativamente
após pegar a carteira. A ré não apre- do constrangimentos no ambiente de pelo juiz, de acordo com as circunstân-
sentou imagens que comprovassem tais trabalho com repercussões inclusive na cias do caso (Código Civil art. 953, pa-
alegações, sendo irrelevante a imagem escola dos filhos. rágrafo único). Além disso, neste feito,
do autor pegando a carteira, pois a con-
trovérsia é a respeito de outros fatos. [...] o percurso gerativo compõe-se de três níveis de
Foram aproveitadas apenas as significação, que se conjugam para conferir sentidos ao texto.
imagens que servem à “demonstra- São eles: o das estruturas fundamentais (mais abstrato), o
ção” da “tese” de que os “pobres” pro-
curavam devolver a carteira, enquan-
das estruturas narrativas (intermediário) e o das estruturas
to os “ricos” dela se apoderavam, pois discursivas (mais concreto) [...].
“nem tudo o que é gravado é levado
ao ar” (testemunha Alan Eduardo Não consta que os autores tivessem devem ser considerados os aspectos
Rapp – fls. 631/633). Não há, neste sido informados, quando subscreveram previstos no art. 53 da Lei n. 5.250.
contexto, fundamento para a alegação a autorização para a utilização de suas No caso dos autos, os autores foram
de que houve transmissão de fato ver- imagens, que elas seriam utilizadas no utilizados como instrumentos na “guer-
dadeiro, pois a verdade só exsurge da contexto dessa “demonstração” da ho- ra de audiência”, que, pelo menos na
consideração de todo o evento, não das nestidade dos “pobres” em contraposi- época dos fatos, era travada pelas emis-
partes que atendem ao interesse e à ção à desonestidade dos “ricos”. Segun- soras de televisão Globo e SBT (fls. 55). 95
conveniência da emissora de televisão do a testemunha Alan Eduardo Rapp É notório que, nesta guerra, foram uti-
em “demonstrar” a “tese” cogitada com (fls. 631/633), as imagens não foram lizadas armas que constituíram alguns
o evidente objetivo de compor um qua- gravadas para uma simples brincadei- dos episódios mais degradantes da
dro televisivo demagógico, destinado a ra, e sim para uma matéria destinada história da televisão brasileira, dentre
exaltar a honestidade dos “pobres” e a verificar o nível de honestidade das os quais se podem citar, apenas como
execrar os “ricos”. Conforme assinalou pessoas de várias classes sociais. exemplos, a exibição de pessoa com
a prova pericial, a edição torna possí- Portanto, não bastava à ré, ou ao deformidade física e de uma entrevis-
vel obter uma seqüência de imagens seu colaborador, obter simples autori- ta com falsos integrantes de organiza-
diferente da filmagem original, ou seja, zação inespecífica para a utilização das ção criminosa. Briga-se pela audiência,
permite criar algo diferente do que efeti- imagens. A autorização devia prever portanto, não em atenção ao conteúdo
vamente aconteceu — algo irreal. explícita e especificamente a finalidade que se pretenda ofertar a ela, e sim pelo
A exibição da imagem dos auto- do uso, pois a utilização da imagem aumento da audiência em si, na medida
res não se deu como mera e estrita para fim diverso do autorizado equiva- em que isso atende ao interesse primor-
narrativa de fatos, tal como se deram. le ao uso sem autorização, gerando a dial das empresas de comunicação: ob-
Primeiro, porque os fatos não foram responsabilidade civil do agente (ENÉAS ter maior poder de negociação para a
apresentados em sua integralidade, COSTA GARCIA, op. cit., p. 214). fixação do valor de venda de seu espaço
uma vez que a gravação foi editada. Descabe a aplicação dos limi- publicitário.
Em segundo lugar, porque as imagens tes indenizatórios previstos na Lei n. A repercussão da ofensa foi na-
foram exibidas no contexto de um “teste 5.250/67. Primeiro, porque é eviden- cional. Milita em desfavor da ré a re-
de honestidade”, com o que a conduta te o caráter doloso do ato lesivo. As provabilidade de sua conduta. A enver-
dos autores foi valorada, e de forma imagens dos autores foram exibidas gadura econômica da ré impede que
depreciativa, pois os requerentes foram com o intuito deliberado de apontá-los a indenização seja fixada em quantia
exibidos em rede nacional de televisão como pessoas desonestas, e o art. 52 módica, sob pena de exsurgir inócua,
como se tendo apoderado de uma car- estabelece limite à indenização quan- sendo que este critério sofre a influên-
teira que não lhes pertencia, portanto do se trate de ato culposo. Além disso, cia da idéia de que a indenização do
sem intenção de devolvê-la. Portanto, a Constituição não se limita a prever o dano moral tem também a função de
houve deliberada intenção de depreciar dever de indenizar o dano moral decor- desestimular a conduta ilícita, impedin-
os autores; daí decorrendo ofensa à rente do abuso da liberdade de mani- do que a prática abusiva resulte afinal
honra e à imagem dos requerentes, festar o pensamento. Estabelece, no ci- lucrativa para o ofensor (ENÉAS COSTA
dano moral decorrente do exercício irre- tado inciso V, que a indenização, assim GARCIA, op. cit., p. 484).

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É pertinente inclusive considerar o caráter sancionatório Passada esta em julgado, proceda-se à sua publicação,
da indenização do dano moral. Conforme assinala ENÉAS conforme requerido no aditamento de fls. 75/76, às expensas
COSTA GARCIA, invocando lição de MIGUEL REALE, ao lado da da ré (art. 75 da Lei nº 5.250/67).
função reparatória, a responsabilidade civil também atua no P.R.Int.
sentido de punir a conduta ilícita, e, por via de conseqüência, São Paulo, 19 de abril de 2004.
atua como fator inibidor da reiteração de comportamentos ilí- LUIS FERNANDO CIRILLO
citos, uma vez que o interesse social impõe não só a reparação Juiz de Direito. (Grifo nosso)
máxima como tratamento exemplar que previna a ocorrência
de novas lesões (op. cit., p. 493). 2.2.1 PERCURSO GERATIVO DOS SENTIDOS
Neste contexto, não basta que aos autores se conceda Segundo a semiótica de Greimas, o percurso gerativo com-
um benefício econômico qualquer, a pretexto de que não se põe-se de três níveis de significação, que se conjugam para con-
pode negar uma quantia em contraposição aos dissabores ferir sentidos ao texto. São eles: o das estruturas fundamentais
decorrentes do veredicto de “desonestidade” pronunciado (mais abstrato), o das estruturas narrativas (intermediário) e o
em rede nacional de televisão, com base em provas trunca- das estruturas discursivas (mais concreto) (BARROS, 2005).
das colhidas num processo que se desenvolveu sem o conhe- No nível fundamental determinam-se as relações de opo-
cimento dos acusados. É necessário que se inflija à empresa sição, que conduzirão à significação e à interpretação. É o nível
que admite sejam as pessoas instrumentalizadas desta mais simples e abstrato. Contudo a compreensão dessas opo-
forma, e faz disso uma estratégia permanente de atividade sições temáticas faz-se primordial para o exame da coerência e
empresarial, um desfalque patrimonial comparável ao bene- das ideologias presentes num discurso.
fício buscado com a atividade lesiva, que, na verdade, é lesi- No nível narrativo, ou intermediário, destaca-se a simula-
va não só à dignidade das pessoas utilizadas como “bucha ção do fazer do homem que transforma o mundo. A narrativa
de canhão” nesta guerra, mas à sociedade em geral, que organiza-se do ponto de vista do sujeito que transforma a reali-
vê os meios de comunicação, dependentes de autorização dade, suas relações com outros homens e coisas, seus valores.
estatal para funcionamento por serem patrimônio público, No nível das estruturas discursivas, o patamar mais super-
serem desvirtuados de sua função de instrumento de aper- ficial do percurso, demonstram-se as escolhas do sujeito da
feiçoamento cultural do País, mesmo quando o objetivo seja enunciação, que transforma a narrativa em discurso, que nada
proporcionar lazer e entretenimento aos brasileiros. mais é do que a narrativa enriquecida por essas escolhas que
96 Já que o patrimônio moral dos requerentes foi utilizado envolvem recursos de persuasão ou a cobertura figurativa dos
na guerra de audiência, os autores devem ser tratados como conteúdos.
se fossem sócios, ainda que contra a sua vontade, do proveito Neste estudo, optamos por iniciar pelas estruturas narrati-
econômico buscado pela ré com a exibição de suas imagens, vas, continuar o percurso com a análise das estruturas discursi-
até para que a requerida seja compelida a rever, inclusive sob vas e finalizar com as estruturas fundamentais.
a ótica da relação custo/benefício,a conveniência de investir
no aviltamento da dignidade humana como estratégia em- 2.2.1.1 ESTRUTURAS NARRATIVAS
presarial. Considerando-se que a imagem dos requerentes foi Os autos revelam uma narrativa (ou relatório) em que os
veiculada durante trinta segundos, ao que informa o laudo sujeitos narram o ocorrido, os fatos que os levaram a juízo e à
pericial, a indenização é fixada no valor correspondente ao decisão da autoridade julgadora, fundamentada no arcabouço
preço de um minuto de veiculação publicitária no horário e normativo. Identifica-se ainda a existência de testemunhas, agen-
no programa em que as imagens foram exibidas, na época te burocrático, a atuação do órgão julgador etc, com o objetivo
da exibição, a ser apurado em liquidação de sentença, com comum de encaminhar a lide para sua conclusão. A partir disso,
atualização monetária até a satisfação da indenização. torna-se possível identificar diversos programas narrativos (PN)
relacionados a cada sujeito envolvido na relação processual.
Uma narrativa complexa estrutura-se numa No início do relatório, o sujeito-actante “casal” alega que
seqüência, que se compõe de quatro fases: a inadvertidamente participou de um programa que lhe causou
uma exposição vexatória e infamante, porque haviam sido
manipulação, a competência, a performance e identificados como pessoas desonestas, já que teriam sido fil-
a sanção (não necessariamente nessa ordem). mados no momento em que se apropriavam de uma carteira,
supostamente perdida por alguém no passeio público.
Isso posto, julgo procedente a ação, para condenar a Em seguida, o sujeito-actante SBT propõe ao sujeito-actan-
ré TVSBT – Canal 4 de São Paulo S/A a se abster de veicular te casal um contrato de participação no programa, e estes ale-
as imagens dos autores e destruí-las, sob pena de multa de gam que, embora tivessem assinado autorização de exibição
cem mil reais por transmissão, e a pagar a indenização a de sua imagem, não autorizaram a utilização da imagem de
ser apurada em liquidação do julgado, conforme acima es- forma a criar uma situação vexatória e humilhante, em que
pecificado, acrescida de juros de mora desde 16 de novem- aparecessem como paradigmas de pessoas desonestas.
bro de 1997 (data do fato lesivo – Súmula 54 do Superior Assim, após assinarem a autorização, não só são prejudi-
Tribunal de Justiça), bem como ao pagamento das custas, cados – pois passam do estado de conjunção com a “reputação
despesas processuais e honorários advocatícios de 20% de honestos” para o estado de disjunção com ela – como ainda
(vinte por cento) do valor atualizado da condenação. beneficiam o SBT, que entra em estado de conjunção com o ob-

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jeto-valor “comprovação de tese” (o que A manipulação exercida pelo sujeito Distingue-se nitidamente, nos pro-
pode resultar no ganho de maior audiên- SBT ao sujeito-casal, que ficou “tenta- gramas narrativos, a existência de um
cia, proveito econômico), uma vez ser o do” pela perspectiva de aparecer na TV” destinador (enunciador), um destinatário
objetivo da brincadeira provar a tese de – sem saber que estava sendo engana- (enunciatário) e de objetos-valor bem
“honestidade dos pobres” e “desonesti- do (uma vez que a emissora veiculou determinados. No caso do discurso deci-
dade dos ricos”. somente as imagens de seu interesse) sório (BITTAR, 2001), pode-se identificar,
Programas narrativos (PNs): – e a resposta do último (a autorização para cada um dos integrantes do pro-
PN1 F (propor contrato de parti- de divulgação das filmagens), bem como cesso (partes, juiz, burocrata, Ministério
U
cipação) [S1 (SBT) -->S2 (casal) Ov as conseqüências daí advindas, deram Público etc.), uma estrutura de programa
(aparecer na tv)] causa a um quinto programa narrativo, específica. Consideraram-se relevantes
PN2 F (autorizar divulgação de fil- em que os sujeitos-actantes ingressam para o caso em análise apenas as estru-
magem) [S1 (casal) -->S2 (SBT) Ov com uma ação contra o sujeito SBT: (3) turas dos impetrantes e da autoridade
U
(proveito econômico)] “Abrão Couri e Silvia Parisi Couri ajuiza- decisória:
PN3 F (divulgar imagens editadas) ram ação contra TV SBT” – que perde PN dos impetrantes1:
[S1 (SBT) -->S2 (casal) U Ov (boa re- seu status “de inocência”, no sentido de PN impetrante (dor) --> autorida-
putação)] achar-se agora a rede televisiva sujeita a de decisória (dário primário) --> parte
PN4 F (emitir julgamento) [S1 (so- sanção judicial: contrária, sociedade (dários secundá-
ciedade, conhecidos ) -->S2 (casal) U PN5 F (ajuizar ação) [S1 (impe- rios) -->Pretensão atendida (Ov )
Ov (boa reputação)] trantes) -->S2 (SBT) U Ov (inocência)].
U
Símbolos: conjunção, U disjun- Percebe-se que estes programas PN da autoridade decisória2:
ção, Ov objeto-valor , F função, S1 sujeito narrativos focam a relação entre sujeito PN autoridade decisória (dor) -->
do fazer, S2 sujeito de estado (que sofre e objeto. Porém, após o ajuizamento partes interessadas (dários primários)
a ação), --> ação ou transformação. da ação no tribunal, as partes litigantes --> sociedade, instâncias superiores
Para Fiorin (2005), os textos não passam a estar diante de uma autoridade (dários secundários) --> decisão con-
são narrativas mínimas, e sim comple- capaz de emitir uma decisão que pode creta (Ov)
xas, em que uma série de enunciados de alterar seus estados de conjunção ou
fazer e de ser estão organizados hierar- disjunção com os objetos. Em oposição ao PN dos impetrantes,
quicamente. Uma narrativa complexa es- No caso em análise, o juiz decide: existe o antiprograma da parte contrária, 97
trutura-se numa seqüência, que se com- Isso posto, julgo procedente a ação, que se diferencia apenas pelo objeto-
põe de quatro fases: a manipulação, a para condenar a ré TV-SBT – Canal 4 valor pretendido e sua relação com este
competência, a performance e a sanção de São Paulo S/A a se abster de veicu- (CARVALHO, 2002). Assim, enquanto os
(não necessariamente nessa ordem). lar as imagens dos autores e destruí-las, impetrantes visam ao convencimento da
Na fase da manipulação, um sujeito sob pena de multa de cem mil reais por autoridade decisória no sentido de pro-
induz um outro a dever ou querer fazer transmissão, e a pagar a indenização a porcionar-lhes a reparação do dano, pelo
alguma coisa. Há vários tipos de mani- ser apurada em liquidação do julgado, qual irão readquirir o objeto-valor “boa
pulação: intimidação, tentação, sedução, conforme acima especificado, acrescida reputação“, o réu, por sua vez, visa à pre-
provocação etc. Já na fase da competên- de juros de mora desde 16 de novembro servação de seu status quo original, ou
cia, o sujeito que vai realizar a transfor- de 1997 (data do fato lesivo – Súmula seja, a não-condenação.
mação mais importante da narrativa é 54 do Superior Tribunal de Justiça), bem Assim, enquanto o impetrante-des-
dotado de um poder/saber fazer (Idem). como ao pagamento das custas, des- tinador e a ré-destinadora ocupam-se de
Segundo Barros (2005, p. 24), a pesas processuais e honorários advo- um fazer persuasivo (manipulador), a au-
competência é o programa de doação catícios de 20% do valor atualizado da toridade, como destinatária do discurso das
de valores modais ao sujeito de estado, condenação. partes (num primeiro momento), constrói
que se torna, com essa aquisição, capa-
citado para agir. Assim, por exemplo, no A semiótica entende a interpretação do destinatário como
caso em exame, ao autorizar a divulga- uma resposta à persuasão do destinador numa relação de
ção de imagens (PN2), o sujeito do fazer
(casal) dá poderes ao sujeito de estado
comunicação. Tal interpretação estrutura-se a partir da
(SBT) para agir em busca do objeto-va- relação entre as modalidades de ser e parecer [...].
lor, ou seja, para a realização da perfor-
mance. A fase da performance é a ação Assim, têm-se ainda os seguintes um fazer interpretativo dos argumentos e
propriamente dita do sujeito do fazer programas narrativos: das provas apresentadas (Idem).
com vistas à apropriação do objeto-valor PN6 F (julgar procedente a ação) A semiótica entende a interpretação
U
desejado. Por último, na fase da sanção, [S1 (juiz) -->S2 (impetrantes) Ov (re- do destinatário como uma resposta à per-
ocorre o reconhecimento de que a per- paração do dano)] suasão do destinador numa relação de co-
formance se realizou e de quem operou PN7 F (julgar procedente a ação) municação. Tal interpretação estrutura-se
tal transformação. Nessa fase distribuem- [S1 (juiz) -->S2 ( SBT) U Ov (não-con- a partir da relação entre as modalidades
se prêmios e/ ou punição. denação)] de ser e parecer (modalização veridictó-

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ria), de maneira que interpretar, para a semiótica, é examinar a dente a ação, para condenar a ré TV-SBT [...].
aparência (parecer) para se atingir a essência (ser) do sentido das Com o uso da desembreagem enunciva, além de produzir-
práticas textuais. O juiz poderá considerar o texto verdadeiro (pa- se o efeito de verdade objetiva, o enunciatário evita arcar com
rece e é), mentiroso (parece mas não é), falso (não parece e não a responsabilidade do que é dito, já que transmite a opinião do
é) ou um segredo (não parece mas é). Ao reputar um argumento outro, o saber das fontes. Além disso, para construir efeitos de
como verdadeiro, considera-se automaticamente o argumento referente, utiliza-se da ancoragem, tratando de atar o discurso
contrário como uma inverdade (FIORIN, 2005). a datas, ao nome do programa (Domingo Legal), ao nome de
Assim, após o fazer interpretativo, o juiz profere sua de- testemunhas, menção a documentos e ao número das páginas
cisão, e passa a destinador (CARVALHO, 2002), enquanto as constantes nos autos, e ainda utiliza-se de argumentos basea-
partes serão as destinatárias primárias do julgamento, e a socie- dos em normas jurídicas para estabelecer no discurso todo um
dade em geral, a destinatária secundária. Ao juiz cabe agora o dispositivo veridictório.
papel de destinador-manipulador e de destinador-julgador. Os Ademais, há uma única utilização de desembreagem in-
sujeitos (partes) são manipulados pelo juiz mediante os atos terna (ou de 2º grau), isto é, quando, no interior do texto, a
procedimentais, que regulam quando devem se manifestar nos palavra é cedida ao interlocutor, para efeitos de referente, no
autos, comparecer à audiência etc., além de provar que falam caso, uma testemunha, cujas palavras são citadas: Foram apro-
a verdade, a fim de serem sancionados positivamente pelo veitadas apenas as imagens que servem à “demonstração” da
destinador-julgador. Este, por sua vez, detém o poder, isto é, “tese” de que os “pobres” procuravam devolver a carteira, en-
a competência e o saber jurídico para avaliar a performance quanto os “ricos” dela se apoderavam, pois “nem tudo o que
dos sujeitos. é gravado é levado ao ar” (testemunha Alan Eduardo Rapp
– fls. 631/633).
O quadrado semiótico realiza a sintaxe das Assim, o enunciador não disse o que a testemunha de-
relações sistematizadas. Pode-se representá-las clarou, mas tratou de repetir ipsis literis suas palavras, até com
menção das páginas em que constam. A ilusão de realidade foi
e visualizá-las, traduzindo suas relações em
conseguida.
oposições de contradição, contrariedade e Outros artifícios já mencionados, utilizados pelo enunciador
complementaridade. para a concretização dos sentidos, denominam-se “tematização”
e “figurativização”. Segundo Barros (2005, p. 68), os valores assu-
98 A estrutura modal que melhor representa a atuação da au- midos pelo enunciador são, no nível das estruturas discursivas,
toridade decisória configura-se do seguinte modo: poder-fazer + disseminados sob a forma de percursos temáticos e recebem
dever-fazer + querer-fazer + saber-fazer (BITTAR, 2001, p. 294): investimentos figurativos. Note-se porém que todos os textos
Numa situação em que não há um querer-fazer, existe apatia tematizam o nível narrativo, mas este poderá ou não ser figu-
ou inércia, e é um contra-senso diante do dever-fazer; sem o rativizado. Há casos de textos extremamente figurativos e outros
saber-fazer, o texto torna-se inválido ou atécnico; destituída do menos figurativos e mais temáticos. Segundo Fiorin (2005, p. 91),
poder-fazer, a decisão nada significa, pois não foi declarada por os discursos figurativos têm uma função descritiva ou represen-
autoridade competente, além do que se torna incapaz de pro- tativa, enquanto os temáticos têm função interpretativa. Aqueles
duzir efeitos ultra-autos. Como já mencionado, o dever-fazer é são feitos para simular o mundo; estes para explicá-lo.
inerente ao Direito. No caso em exame, existe o tema “desonestidade” atri-
Dessarte, a performance ideal da autoridade decisória num buído pela sociedade e pelo sujeito SBT às pessoas dos sujei-
programa narrativo envolve a presença de todas essas modali- tos-autores após a veiculação de suas imagens. As expressões
dades, pois a falta de uma delas poderá comprometer, confor- “apropriar-se/apoderar-se” de uma carteira”, “serem tachados
me o caso, todo o desenrolar de um processo. (de desonestos)” “comportamento/conduta ilícito(a)”, “veredic-
to de desonestidade, pronunciados em rede nacional de tele-
2.2.1.2 ESTRUTURAS DISCURSIVAS visão” referem-se a esse tema. Ou seja, no afã de provar sua
Segundo Barros (2005, p. 63), é no nível das estruturas dis- tese (a honestidade dos pobres x desonestidade dos ricos), o
cursivas que as relações entre enunciador e enunciatário ficam sujeito SBT prejulgou os sujeitos-autores como “ricos desones-
mais evidentes e em que existem mais pistas da enunciação. tos”, e editou as imagens de modo a comprovar seu ponto de
Enquanto no nível narrativo as estruturas são abstratas, no vista. O enunciador, então, argumenta contra esse fato, dada a
nível discursivo, essas formas são revestidas de elementos que incapacidade do sujeito SBT de provar que os autores foram
lhes conferem concretude. As estruturas narrativas convertem- desonestos, uma vez que o ônus da prova cabe àquele que
se em discursivas ao serem enriquecidas com as escolhas do su- alega: onus probandi incumbit eius quei assertit (BITTAR, 2001.
jeito da enunciação, como, por exemplo, de pessoa, de tempo, p. 275), como demonstra o seguinte trecho: [...] a TV-SBT não
de espaço, de figuras e de temas. trouxe a Juízo nenhum elemento de prova que permitisse re-
No caso em análise, o enunciador (autoridade decisória) op- jeitar a alegação de que a ré ocultou a parte da gravação que
tou, em grande parte do discurso, pelo efeito de distanciamento demonstrava a intenção dos autores de telefonar ao dono da
ao narrar os fatos em 3ª pessoa (desembreagem enunciva), pas- carteira, a fim de providenciar a devolução do objeto.
sando a usar a 1ª pessoa (desembreagem enunciativa) apenas no O enunciador desconstrói, ao longo do texto, a imagem de
penúltimo parágrafo da fundamentação, em que ocorre a sanção “desonestidade” conferida aos sujeitos-autores, mencionando
dos sujeitos, usando o tempo presente: Isso posto, julgo proce- os meios empregados pela emissora em questão na “guerra” de

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audiência: É notório que, nesta guerra, estruturas do texto permite a visualização a direção em que caminha, bem como
foram utilizadas armas que constituíram das relações mínimas que o definem, as categorias tímicas (euforia vs. disforia)
alguns dos episódios mais degradantes o denominador comum de cada texto que o marcam. Assim, estruturas funda-
da história da televisão brasileira, dentre (BARROS, 2005). mentais transformam-se em narrativas,
os quais se podem citar, apenas como O quadrado semiótico realiza a sin- a narrativa transforma-se em discurso,
exemplo, a exibição de pessoa com taxe das relações sistematizadas. Pode-se unindo-se o plano do conteúdo ao da
deformidade física e de uma entrevista representá-las e visualizá-las, traduzindo expressão, conferindo sentidos ao texto.
com falsos integrantes de organização suas relações em oposições de contradi-
criminosa. ção, contrariedade e complementarida- 3 Considerações finais
Pode-se vislumbrar, no trecho acima de. Verdade e mentira mantêm entre si Nesta breve e não-exaustiva análise,
e em outros momentos, algumas figurati- relação de oposição, sendo declarados pôde-se constatar que as etapas propos-
vizações do tema “ganância inescrupulo- termos contrários: tas pela semiótica permitiram detectar no
sa” do SBT, o qual se utiliza dos sujeitos Os termos em oposição mútua (ver- texto desde as unidades fundamentais,
na aquisição do objeto-valor “audiência”,
com a inserção de semas do campo bé- verdade mentira
lico: “guerra” (de audiência), “bucha de (eufórica) (disfórica)
canhão”, “pessoas instrumentalizadas”, não-mentira não-verdade
“armas”, “briga” (pela audiência), “milita
em desfavor...” Revelam-se ainda outros < > relação entre contraditórios
temas a ele relacionados, como “avilta- -------- relação entre contrários
relação entre complementares
mento da dignidade humana”, “prática
abusiva”, exibição de “falsos integrantes
de organização criminosa”, “ofensa à honestidade desonestidade
(eufórica) (disfórica)
honra e à imagem dos requerentes”. não-desonestidade não-honestidade
Identifica-se ainda a presença da te-
mática mentira x verdade, que perpassa
todo o texto. Se inicialmente os autores “pobre honesto” “rico desonesto”
(eufórico) (disfórico)
eram tidos por mentirosos perante a não-rico, não-desonesto não-pobre, não-honesto 99
opinião pública, ao longo da narrativa é
comprovado o contrário pelo enuncia-
dor, isto é, que dizem a verdade. dade/mentira) mantêm entre si uma re- as oposições mentira x verdade, hones-
Por fim, observa-se que a figurativi- lação de contrariedade. Já os termos dia- tidade x desonestidade, até os recursos
zação presente no texto é apenas espo- gonais (honestidade/não-honestidade) utilizados pelo enunciador, para construir
rádica, não chega a constituir percursos são contraditórios. Fiorin (2005) entende a sua narrativa em direção à desconstru-
figurativos completos. Tal se deve às que os termos em relação de contradito- ção da imagem de desonestidade – ante-
características de cientificidade do dis- riedade definem-se pela presença e au- riormente conferida aos sujeitos-autores
curso jurídico, que é mais temático do sência de um dado traço. Ex: não-verda- pela sociedade e pelo próprio sujeito SBT
que figurativo. Nesse texto em particular de é a ausência de verdade, ao passo que – e dar o seu veredicto, julgando a per-
existe inclusive uma isotopia da temática verdade, por exemplo, não é ausência de formance dos sujeitos-autores.
“desonestidade”, que garante a coerência algo, mas contém uma carga semântica Na decisão, os sujeitos-autores são
semântica dos enunciados. específica. Cada um dos contraditórios sancionados positivamente e o réu ne-
implica o termo contrário daquilo que é gativamente; o primeiro recebe a recom-
2.2.1.3 ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS contraditório. Ex: se não-verdade é con- pensa e o segundo, a punição. Assim, os
Examinadas as estruturas narrativas traditório em relação a verdade, então autores resgataram o patrimônio moral
e discursivas, passa-se às estruturas fun- implica mentira. e o réu perdeu parte de seu patrimônio
damentais, primeira etapa do percurso A sintaxe abrange duas operações: material.
de geração do sentido de um discurso, a asserção e a negação. No caso em exa- O discurso jurídico, por natureza,
como proposto pela semiótica. me, os sujeitos-autores foram “tachados estrutura-se a partir de outros discursos,
Neste nível, são consideradas as de desonestos” num momento inicial, como referido anteriormente, o legisla-
categorias semânticas e fóricas, que es- depois sobreveio a dúvida quando isso tivo (ou normativo), o burocrático e o
tão na base da construção de um texto. foi colocado em questão num tribunal e decisório, sendo predominantemente
A categoria fórica é projetada sobre a por último chegou-se a um veredito con- enuncivo e temático, como o são os tex-
semântica, caracterizando a euforia um trário. Assim, temos o seguinte percurso tos jurídicos em geral.
valor positivo e a disforia, um valor nega- dos sujeitos-autores: desonestidade não- Como explicitado, o discurso decisó-
tivo. Portanto, a projeção das categorias desonestidade honestidade. rio tem ainda o poder de mudar o estado
fóricas dá-se segundo o ponto de vista Como se vê, procura-se, no nível jurídico do sujeito, daí a sua característica
de um sujeito. das estruturas fundamentais, construir de performatividade. Tal característica en-
A representação pelo quadrado das o mínimo de sentido que gera o texto, volve também a competência modal de

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poder-fazer + dever-fazer + querer-fazer
+ saber-fazer, considerada ideal, de que
uma autoridade decisória não pode pres-
cindir. Assim, o texto decisório é válido e
competente, pois nessa situação a auto-
ridade agiu no cumprimento de seu de-
ver, sendo competente para tanto, tendo
adquirido os meios corretos de execução,
utilizando-se das formas procedimentais
adequadas, de modo que deu nascimen-
to a um texto decisório aplicável. Essa é
a performance completa da autoridade
decisória num programa narrativo. A
sanção (recompensa, punição) estima-
da, nessa hipótese, será a melhor possível
(BITTAR, 2001, p. 293-294).
Dessarte, espera-se ter contribuído
para demonstrar a possibilidade da inter-
relação semiótica e Direito, as peculiari-
dades do discurso jurídico e a utilidade
da semiótica greimasiana na interpreta-
ção dos sentidos desse gênero textual.

NOTAS
1 Adaptado dos Programas Narrativos de Bittar
(2001, p. 291) e Carvalho(2002, p. 17).
2 Idem.
100

REFERÊNCIAS
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texto. São Paulo: Ática, 2005.
____________. Teoria do discurso: fundamentos
semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
BITTAR, Eduardo G.B. Linguagem jurídica. São
Paulo: Saraiva, 2001.
Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da
Magistratura. Cadernos Jurídicos, São Paulo, v. 5,
n. 21, p. 63-67, maio-jun. 2004. Disponível em
http://www.epm.sp.gov.br/SiteEPM/Publicacoes/
Cadernos+Juridicos/cadernosjurídicosnº21.htm //
Acesso em: 17 dez. 2007.
CARVALHO, Menezes. Análise semiótica do discurso
jurídico decisório: uma crítica ao Laudo do Tribunal
Arbitral ad hoc do Mercosul de 21 de maio de
2002 relativo à aplicação de medidas antidumping.
Disponível em: <http://www.direitogv.com.br/
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FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. São
Paulo: Contexto, 2005.
GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica e ciências
sociais. São Paulo: Cultrix, 1976.
KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela
linguagem. São Paulo: Contexto, 2006.

Artigo recebido em 17/12/2007.

Ariane Emílio Kloth é analista judiciária


do Superior Tribunal de Justiça, lotada no
Centro de Estudos Judiciários do Conse-
lho da Justiça Federal, em Brasília – DF.

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