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Coletivo de Filosofia

In vias sapientiae
José Aristides da Silva Gamito (Org.)

ANAIS DA SEMANA DA FILÓSOFA


E DO FILÓSOFO
Os esquecimentos e os silenciamentos na
história da filosofia

+artigos:
temática diversa

2020
Coletivo de Filosofia
In vias sapientiae
José Aristides da Silva Gamito (Org.)

ANAIS DA SEMANA DA FILÓSOFA


E DO FILÓSOFO
Os esquecimentos e os silenciamentos na
história da filosofia

2020
02
ORGANIZAÇÃO
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO
Conferencistas:
Profª Drª Adna Cândido de Paula - UFVJM
Prof. Espta. Flávio Gonçalves de Oliveira - SEME - Cariacica/ES
Profª Drª Katarina Ribeiro Peixoto - pós-doc. UERJ/RJ

Organizadores:
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito
Prof. Msc. Luís Carlos Pinto
Prof. Espta. Romildo Alves

Equipe do Coletivo:
Prof. Espta. Eldécio Luiz Silva
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito
Prof. Msc. Luís Carlos Pinto
Prof. Espta. Romildo Alves
Prof. Mndo. Vinícius de Oliveira Melo

Citação desta obra:


GAMITO, José Aristides da Silva (org.). Anais da Semana da
Filósofa e do Filósofo: Os esquecimentos e os silenciamentos da história da filosofia.
Conceição de Ipanema/MG: Edições Concipa, 2020.

Realização:

Coletivo de Filosofia Associação Sociocultural Concipa


In vias sapientiae CNPJ: 35.996.999/0001-55
Rua Pastor Benjamim, 142, Centro,
CEP 36947-000 - Conceição de Ipanema -MG
E-mail: assoc.socioculturalconcipa@gmail.com

www.concipa.com.br

03
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO
PROGRAMAÇÃO:
Dia 13/08, quinta-feira, às 19 horas – “A existência e a
legitimidade de uma Filosofia Brasileira”, com prof. espta.
Flávio Gonçalves, professora da SEME - Cariacica/ES.

Dia 14/08, sexta-feira, às 19 horas – “Epistemicídio: o caso


da Filosofia Africana”, com prof. dra. Adna Cândido de Paula,
professora da UFVJM.

Dia 15/08, sábado, às 19 horas – “Os desafios de método na


recuperação de mulheres na história da filosofia: analisando
o caso de Elisabeth da Bohemia.”, com prof. dra. Katarina
Peixoto, pós-doc. UERJ.

VIDEOCONFERÊNCIAS:

Os vídeos das conferências estão disponíveis no Youtube:

1ª - A existência e a legitimidade de uma Filosofia Brasileira:


https://www.youtube.com/watch?v=P-pjfYxIO4I&t=2s

2ª - Epistemicídio: o caso da Filosofia Africana:


https://www.youtube.com/watch?v=nem9fvhYsxM&t=68s

3ª - Os desafios de método na recuperação de mulheres na


história da filosofia: analisando o caso de Elisabeth da
Bohemia:
https://www.youtube.com/watch?v=fXHGs4glZvk&t=7366
s

Mais informações:
assoc.socioculturalconcipa@gmail.com

04
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO SUMÁRIO

Parte I: Resumos e artigos ......................................................................6

1. Os desafios de método na recuperação de mulheres na história


da filosofia: analisando os casos de Elisabeth da Bohemia
.............................................................................................................7
2. Epistemicídio: o caso da Filosofia Africana ..................................8
3. Os esquecimentos e os silenciamentos da história da filosofia:
um destaque para a Filosofia Africana .........................................11
4. A existência e a legitimidade de uma Filosofia Brasileira .........21

Parte II: Temática diversa ......................................................................33

1. Por dentro do filme o Poço: O poder disciplinar ........................34


2. Imaculada Bakhita, escrava que se tornou santa .......................37
3. Filosofia no Brasil: Conceitos, ensino e aplicações
contemporâneas ..............................................................................40
4. Minha mãe Filosofia, quantas filhas que tu tens? ......................48

05
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Parte I
Resumos e artigos
do evento

06
A recuperação de mulheres na filosofia:
o caso de Elisabeth da Bohemia
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Profª Drª Katarina Ribeiro Peixoto


Professora pesquisadora de pós-doutorado UERJ

Resumo
A pensadora de Elisabeth da Bohemia (1618-1680) teve um papel
importante na formação do racionalismo e do empirismo do início da
modernidade. As fontes para conhecimento do pensamento de Elisabeth
são a correspondência que manteve com Descartes. O objetivo aqui é
apontar caminhos de investigação filosófica a partir da apresentação de
uma das filósofas mais determinantes do pensamento seiscentista. Para
se ter uma noção da importância da figura de Elisabeth, basta anotar que,
em um período de intensa troca epistolar, no qual a troca de cartas
veiculou em larga medida a nova filosofia (tanto do racionalismo como
do empirismo), o problema da interação entre mente e corpo foi pela
primeira vez, questionado por ela.

Palavras-chave

Modernidade. Elisabeth da Bohemia. Descartes.

*O tema da exposição será publicado como verbete na internet.

07
Epistemicídio: o caso da Filosofia Africana
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Profª Drª Adna Cândida de Paula


Professora associada da UFVJM
e coordenadora do NUPED

Resumo

A partir do reconhecimento do epistemicídio imposto ao


continente africano pelo Ocidente, interessa a esse debate analisar a
“resposta” africana ao epistemicídio, a partir da filosofia. Nesse sentido,
pretendemos, guardadas as limitações de uma conferência, analisar a
filosofia africana de dentro para fora, ou seja, a partir da metafilosofia
produzida pelos filósofos africanos. O objetivo é mostrar que, para além
do ganho que se têm em conhecer as reflexões filosóficas africanas, há,
ainda, a importante contribuição de uma metafilosofia africana para os
filósofos brasileiros, que podem, ao acompanhar essa reação da filosofia
africana, buscar estabelecer um conhecimento para além e em diálogo
com o Ocidente, além de pensar sua própria atuação enquanto filosofia
brasileira.

Palavras-chave
Epistemicídio. Metafilosofia. Filosofia africana.

Epistemicídio: o caso da filosofia africana

O epistemicídio, para tratar do tema dos silenciamentos, como se


propôs neste evento, foi a produção deliberada de afirmações racistas
produzidas por teóricos, cientistas, religiosos, historiadores, etnólogos,
antropólogos, e, com ênfase, por filósofos que negaram os feitos, as
ciências, os conhecimentos, as tecnologias, os saberes, as organizações
sociais, em resumo, as epistemologias produzidas pelos africanos ao
longo de milênios. Conhecimentos dos quais se beneficiaram, e ainda se
beneficiam, toda a humanidade.

08
Epistemicídio: o caso da Filosofia Africana
Profª Drª Adna Cândida de Paula
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

A noção individual do racismo não é suficiente para se compreender


a profundidade do epistemicídio orquestrado pelo Ocidente para negar
aos africanos seus referenciais históricos, culturais e epistemológicos,
negando, portanto, sua própria condição humana. Esse processo de
desumanizar os povos negros tem origem em uma história muito remota
de conflito e dominação - anterior ao escravismo colonialista ocidental dos
últimos quinhentos anos, ao escravismo árabe
dos séculos VIII e IX e, inclusive, anterior ao Império Romano, mas se
intensificou como projeto de dominação e aniquilação no século XIX.
Chegaram, inclusive, a esquartejar o continente africano a fim de "retirar"
as civilizações clássicas africanas do continente e tratá-las como
civilizações orientais. Afirmaram que o Egito Antigo não pertenceria à
África, mas ao Oriente Médio e, como geograficamente isso é impossível de
se fazer, esses pensadores esclarecidos difundiram, através de suas teorias,
que o norte da África seria oriental ou asiático, enquanto a região
subsaariana seria reconhecida como a verdadeira África, negra e destituída
de civilização.
Friedrich Hegel, por exemplo, na obra A razão da história, no
capítulo sobre a África, que não aparece na versão traduzida para o
português, mas pode ser conferida da edição original, em alemão, divide o
continente africano em três partes: uma "África própria" (ao sul do Saara),
uma "África europeia" (ao norte do Saara) e uma “África asiática" (região
egípcia e etíope)”. O que foi construído a partir do epistemicídio? Um
imaginário social que desenha a ideia de uma África branca e civilizada ao
norte do continente, notadamente, a região do Egito Antigo, da Núbia, e de
uma África negra e selvagem ao sul do Saara.
Não bastava esquartejar teoricamente o continente africano para
negar que foi com o povo negro africano que surgiu a civilização humana,
eles também branquearam a população dessa “mítica África asiática”
formulando a teoria da civilização «hamítica» ou «vermelho-escura», que
teria dado origem às civilizações clássicas da Núbia e do Egito antigos. Mas
todas essas afirmações foram amplamente desmentidas, em especial,
graças aos trabalhos do egiptólogo, historiador e linguista Cheikh Anta
Diop. Contudo, é preciso que se compreenda que negar deliberadamente o
progresso civilizatório da África do Norte equivale a negar à África
subsaariana seu papel na construção de civilizações e seus avanços
científico-tecnológicos. É negar ao povo africano o protagonismo de trinta

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Epistemicídio: o caso da Filosofia Africana
Profª Drª Adna Cândida de Paula
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

e cinco séculos de uma rara humanidade, afinal, o Egito Antigo teve


aproximadamente 33 dinastias há mais de 3000 mil anos, com reinados
conduzidos por aproximadamente 300 faraós. O Vale do Nilo foi o local de
florescimento humano, social, tecnológico, científico, filosófico, entre
tantas outras conquistas das quais nos beneficiamos até hoje. O
epistemicídio teve por objetivo apagar das páginas da história humana a
memória dos autores negros de grandes centros urbanos, caracterizados
pela erudição e pela sofisticada organização política de Estados e impérios
soberanos, tais como, o Império do Mali, o Império Songai (Sonrai), o
Império de Gana, o Império Quíloa, o Império Zimbábue e tantos outros.
As consequências desse epistemicídio têm sido vividas há séculos pelo
povo negro africano, que teve sua autoestima profundamente
comprometida.
Mas o continente africano tem respondido ao epistemicídio com
criticidade e tem desvelado para todo o mundo o crime que sofreu,
recuperando suas origens e recontando sua história, agora, por eles
mesmos. É nesse sentido de resposta que se configura a filosofia africana,
que tem um papel fundamental nesta luta. A fim de apresentar o
nascimento da filosofia africana como projeto de reação do continente
africano, abordou-se a polêmica em torno da etnofilosofia indicando como
este episódio foi responsável pela configuração da história da filosofia
africana, que hoje, se divide, de acordo com o filósofo queniano Henry
Odera Oruka, em: (i) a etnofilosofia (que passa, depois de 1978 a ser
integrada ao sistema filosófico africano), (ii) a sabedoria filosófica, (iii) a
filosofia ideológica nacionalista, (iv) a filosofia profissional, (v) a filosofia
literária/artística e a (vi) filosofia hermenêutica.

Referências:

NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008.

KODJO-GRANDVAUX, Séverine. Philosophies africaines. Paris : Présence Africaine Éditions,


2013.
.

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Os esquecimentos e os silenciamentos da história da filosofia:
um destaque para a Filosofia Africana
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito


Professor de filosofia e
mestre em Ciências das Religiões (FUV)

Resumo
O ensino tradicional de filosofia no Brasil traz três ausências
marcantes: a mulher filósofa, o filósofo africano e o filósofo brasileiro. A
partir de uma breve explanação sobre esses esquecimentos e
silenciamentos da historiografia, introduzimos nomes e temas da filosofia
africana de modo sintético e introdutório para demonstrar a existência de
uma filosofia africana bem como estimular novas leituras e novas
pesquisas.

Palavras-chave
Esquecimentos. Historiografia. Filosofia africana.

1.Introdução

Os manuais didáticos de filosofia utilizados até recentemente no


Brasil possuem uma característica comum e evidente, eles elencam apenas
filósofos europeus, brancos e masculinos. A filosofia, com raras exceções, é
apresentada como uma atividade, orginalmente, aristocrática e europeia. A
historiografia oficial utilizada por séculos no ensino de filosofia traz
esquecimentos e silenciamentos de classes, de gênero e de etnias. Mesmo as
tradições mais libertárias não conseguiram filosofar de modo plural. E qual
é o maior problema?
Por trás dos esquecimentos e dos silenciamentos da história da
filosofia existe o esquecimento do corpo. Quem filosofa não é uma entidade
metafísica, desenraizada no espaço e solta no tempo. Quando a atividade do
filósofo acontece levando em conta o corpo, você percebe que há gênero, há

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Os esquecimentos e os silenciamentos da história da filosofia:
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etnia, há uma diversidade de corpos que pensam, categorizam e se


posicionam no cenário das ideias. Em nosso ensino de filosofia no Brasil,
particularmente, há três esquecimentos fundamentais que provocam três
perguntas: a) Onde estão as mulheres na história da filosofia? b) Há uma
filosofia africana e negra? c) Existe uma filosofia nacional, brasileira? São
graves problemas de historiografia. Essas questões passaram séculos sem a
merecida atenção.
Os textos e as teorias canonizadas na filosofia trazem como autores
apenas homens como Platão, Aristóteles, Descartes, Locke, Kant etc. As
mulheres estão completamente esquecidas nessas referências. Desde minha
graduação em filosofia que isso me inquietava e fiz a minha primeira
incursão no tema para produzir o TCC “Esboço da História das Filósofas:
Resgatando a tradição filosófica feminina” (2010). Então, descobri que nos
mesmos espaços onde estavam Pitágoras, Sócrates e muitos ouros nomes,
estavam Temistocleia, Esara de Lucânia, Areta de Cirene, Diotima de
Mantineia e tantas outras mulheres que foram filósofas na antiguidade. E
assim, em todas as eras da história da filosofia, elas estavam presentes
(WAITHE, 1989). Porém, não eram citadas na historiografia tradicional. Uma
das pioneiras no resgate desta tradição foi a professora Mary Ellen Waithe
com sua obra em quatro volumes, A History of Women Philosophers.
Finalmente, o interesse pelo tema cresceu consideravelmente nas últimas
três décadas. Hoje há uma bibliografia que cresce cada dia mais,
comprovando que existiram e existem mulheres filósofas.
O segundo esquecimento da história da filosofia está no fato de ela ser a
história apenas de brancos europeus. Quando estudamos filosofia, os
africanos do Egito são apresentados como se fossem europeus ou gregos
vivendo no continente africano. Mal enxergamos que a Escola Cirenaica, por
exemplo, é marca da presença da filosofia no continente africano desde a
antiguidade. Os filósofos egípcios de Alexandria não são vistos como
africanos, nem os pensadores cristãos de Cartago e nem os de Hipona. Um
silêncio total impera sobre a África Negra. A África do centro e do sul é
totalmente desconhecida nos nossos textos didáticos. O pretexto usado está
na consideração de que essas sociedades ágrafas são incapazes de
pensamento racional e de que o predomínio da oralidade justifica o
desinteresse pela filosofia africana. Alguns termos das discussões
contemporâneas de filosofia na África como nyerereísmo, nkrumahismo,
filosofia ubuntu e filosofia yorubá (MAWERE; MUBAYA, 2016) são

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estranhos para nós.


A visão eurocêntrica da filosofia reina na nossa desconfiança também
sobre a existência de uma filosofia latino-americana, de uma filosofia
indiana, chinesa ou japonesa e, principalmente, brasileira, nacional. O seu
ensino está no Brasil desde a chegada dos jesuítas. Em 1572, iniciou-se o
ensino de filosofia no Colégio da Bahia (CERQUEIRA, 2011, p. 163-192).
Muitos brasileiros se dedicaram a ensinar e a escrever no campo da filosofia.
São pouco conhecidos nomes como Silvestre Pinheiro Ferreira, Antônio
Pedro de Figueiredo, Eduardo Ferreira França, Escola de Recife, Nísia
Floresta, Maria Firmina dos Reis. Antônio Paim resgatou muitas riquezas da
filosofia nacional na sua obra História das Ideias Filosóficas no Brasil (PAIM,
2007). O resgaste dessa tradição precisa recuperar o filósofo brasileiro em
toda sua diversidade, pensando em homens, mulheres, negros e indígenas.
Portanto, desponta-se como dever das novas gerações de professores e
de pesquisadores do campo da filosofia adotar um ensino da história da
filosofia que seja mais inclusivo, realista. Isso exige reaprendizagem e
precisamos aproveitar os espaços já existentes para um novo olhar para a
história da filosofia. Esta reaprendizagem enfrenta a escassez de bibliografia.
E ela deve ser superada através do estímulo à pesquisa. Seguindo este
propósito, me propus a editar uma síntese que sirva de motivação para
começar a estudar filosofia africana. Ainda é um texto incipiente que carecerá
de revisões. Por isso, tenho um objetivo unicamente de despertar o desejo de
leituras sobre a temática. Espero que ele não cometa outros esquecimentos e
silenciamentos.

2.Uma breve incursão na Filosofia Africana


2.1.As tendências e métodos da filosofia africana

No período pós-colonial, foram praticadas algumas metodologias


filosóficas com o propósito de encontrar uma filosofia original do continente
africano. Todo esforço de reflexão visava à recuperação de uma identidade
africana que fora sufocada pelo colonialismo europeu. Identificamos nesse
período duas metodologias com esse propósito: a etnofilosofia e a filosofia da
sagacidade. A etnofilosofia representa uma abordagem de tendência cultural
de temas filosóficos. O termo foi cunhado pelo ganês Kwame Nkrumah
(1909-1972). Os pensadores Paulin Hountondji e Marcel Towa retomaram
esse termo ao estudar a obra de Placide Tempels. Já a filosofia da sagacidade

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de Henry Odera Oruka se baseia nos saberes tradicionais, abordando-os de


forma crítica.
Esses métodos procuraram produzir uma filosofia não-europeia a
partir dos saberes tradicionais africanos. Kibujo Kalumba utilizou o método
de entrevista a pessoas consideradas sábias. Outros buscaram as raízes da
tradição filosófica na antiguidade, como fizeram o senegalês Cheikh Anta
Diop (1923-1986) e o guineense Eugênio Nkogo Ondo (1944-). As filosofias
tradicionais são de três culturas: egípcia, bantu e yorubá. Esses pensamentos
tradicionais enfatizam uma grande diferença entre pensamento africano e o
europeu: a valorização do coletivo.
A filosofia ma'at é uma antiga tradição egípcia e sudanesa. Trata-se de
uma tradição ética que valoriza a verdade e a justiça. Seus princípios se
baseiam num código registrado 1.500 anos antes da Lei Mosaica e prescreve
preceitos semelhantes como não cometer injustiça, não roubar, não usar
violência, respeitar o cônjuge do outro (MAWERE; MUBAYA, 2016, p. 82).
Quando Moisés promulga seu decálogo, devemos nos lembrar de que ele é
um egípcio que leva essa sabedoria para a terra de Canaã.
A filosofia bantu se fundamenta nos saberes tradicionais do povo
bantu. É uma ética que incentiva valores como a humanidade, o espírito de
partilha, a unidade e o cuidado. É chamada de unhu no Zimbábue. Uma obra
de referência é Hunhuísmo e Ubuntuísmo: uma filosofia política autóctone
zimbabuana de 1980. Esses valores propostos levam para o campo político o
coletivismo, a coesão social, a consideração pelo outro e pela natureza
(MAWERE; MUBAYA, 2016, p. 78-79).
A filosofia yorubá provém dos antigos saberes do povo yorubá. Esse
povo se encontra na Nigéria, Gana e fronteiras de Camarões. O resgate deste
pensamento foi realizado através de provérbios. Os elementos de valores
morais e sociais que aparecem nesses provérbios são: a sabedoria associada à
velhice, a valorização da vida comunitária, a verdade como a melhor opção, a
imperfeição do ser humano, não julgar pelas aparências (MAWERE;
MUBAYA, 2016, p. 83-84).

2.2.Filosofia pré-colonial e colonial

A presença da filosofia no norte da África remonta ao tempo dos gregos


antigos e o patrimônio cultural grego deve muito às ciências do Egito Antigo.
O pensamento ético egípcio é muito anterior ao período da filosofia grega. A

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tradição moral da Maat de origem egípcia e sudanesa e a matemática egípcia


representam conhecimentos que foram levados do continente africano para a
Grécia. O raciocínio matemático e a tradição moral dos egípcios
contribuíram para o desenvolvimento da filosofia grega. Os estudos do
pensamento racional egípcio da antiguidade revelam uma herança africana
na origem da filosofia grega.
As próprias tradições filosóficas da Grécia antiga não eram
exclusivamente europeias. Através do comércio e de viagens, muitos gregos
tiveram contato com várias tradições de sabedoria. Mas se satisfaz ao leitor
ouvir sobre a tradição grega, na antiguidade, encontramos também filósofos
dessa tradição na África. A primeira menção que podemos fazer é sobre a
presença de filósofos em Cirene, na Líbia. Era uma cidade muito rica e com
poder militar fundada em 631 a. C. A Escola Cirenaica floresceu no século IV.
Depois da morte de Sócrates, alguns de seus discípulos que eram oriundos da
África retornaram para as cidades natais. Aristipo retornou para Cirene e
iniciou uma escola que ficou conhecida por defender uma ética hedonista.
As principais personalidades da Escola Cirenaica foram Areta de Cirene,
Epitimides, Antípatro, Parebates, Metrodidacto e Aristóteles. Aristipo, um
discípulo de Sócrates, foi a inspiração para o surgimento da escola. Sua filha,
Areta de Cirene, o sucedeu na direção da escola. As principais doutrinas da
escola foram escritas pelo neto de Aristipo, filho de Areta. Seu nome era
Aristipo Metrodidacto. O epíteto “Metrodidacto” chama a atenção por
significar “ensinado pela mãe” (WAITHE, 1989, p. 198). A escola foi sucedida
por três escolas: hegesíacos, teodorianos e anicerianos. Há registro de 15
filósofos da escola cirenaica que eram naturais de Cirene, portanto, filósofos
africanos.
No século II da Era Comum, desenvolveu uma forma de platonismo
cristão em Alexandria, no Egito. A cidade de Alexandria se desenvolveu
culturalmente chegando a ultrapassar Atenas. As suas origens estão no
médio-platonismo que se iniciou com Antíoco de Ascalão (130-67 a. E.C.) e se
difundiu por todo o mundo mediterrâneo (HÄGG, 2006, p. 75). Viveram em
Alexandria filósofos estoicos, neopitagóricos, peripatéticos. A tradição
judaica teve como representante Fílon de Alexandria. Na época do
cristianismo, foram destaques da escola de filósofos cristãos: Panécio,
Clemente e Orígenes de Alexandria (HÄGG, 2006, p. 77). Vários pensadores
cristãos se destacaram na África do Norte como Tertuliano, Agostinho,
Cipriano de Cartago, Lactâncio e Arnóbio de Sica. Entre os platônicos não-

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cristãos, temos Plotino (204-270) e Hipácia de Alexandria (370-415). São


filósofos vinculados à tradição grega, mas são todos africanos. Até mesmo
essa origem tornou-se esquecimento na histografia tradicional.
O encontro entre filosofia grega, cristianismo e tradições milenares
autóctones produziram ricas manifestações culturais no Egito. O
cristianismo do Norte da África produziu uma rica literatura que teve o
platonismo e o estoicismo como filosofias de referência. Além do Egito, a
Etiópia desenvolveu uma rica tradição filosófica e moral. Mais tarde, com o
advento do islamismo, a filosofia aristotélica será introduzida no mundo
árabe. Os estudos aristotélicos tiveram grandes nomes da África do Norte e
na África Sub-saariana. No período do século X ao XVI, encontramos uma
produção filosófica na Universidade de Tombuctu, no Mali. Ahmad Bâbâ foi
um grande representante da escola de Tombuctu no século XVI. Abd ar-
Rahmân Al-Akhdarî (1514-1546) ensinou lógica tanto em escolas islâmicas
do norte quanto da região sub-saariana. Essas escolas tinham dentre seus
temas de debates a jurisprudência das leis islâmicas (DIAGNE, 2004, p. 68-
71).
Posteriormente, no século XVII, houve o etíope Zera Yakob (1599-
1692). Do ponto de vista religioso, Zera era cristão copta. No século XVIII, o
ganês Anton Wilhelm Amo (PESSANHA, p. 359-378). A filosofia etíope
representa uma grande contribuição para a filosofia africana. Meraw destaca
em um artigo a contribuição de Yakob para uma crítica da religião que busca
um fundamento racional para o problema da verdade e do conhecimento. A
obra tem o título de Hatata (Inquérito). Ela representa uma crítica semelhante
ao que ocorreu no início da modernidade europeia, porém, totalmente
independente da Europa (MERAW, 2017, p. 1-10). A presença do
racionalismo na África pode ser percebida no pensamento de Yakob.
Walda Heywat, como discípulo de Yakob, continuou sua crítica
racional à religião. Ele deixou um tratado que expõe as ideias de seu mestre e
acrescenta a sua contribuição. A diferença entre Zera Yakob e Walda Heywat
é metodológica. Yakob é mais sistemático, crítico, enquanto, Heywat traz
uma abordagem moral e parenética. Além da ocupação do problema da
teodiceia, os pensadores etíopes tratam também de assuntos éticos
(WIREDU, 2004, p. 176-178). É digno de menção o fato de que esses autores
etíopes eram cristãos, porém, produziram um pensamento totalmente
distinto da filosofia europeia. As convergências temáticas, principalmente,
de Zera Yakob com Descartes, são coincidências.

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Os esquecimentos e os silenciamentos da história da filosofia:
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No século XVIII, pode ser citado o ganês Anton Wilhelm Amo. Ele foi o
primeiro africano a estudar filosofia na Europa na era moderna e ensinou na
Alemanha. O próximo africano a seguir essa iniciativa foi Patrick Francis
Healy, em 1865. Eles iniciam a saga de muitos filósofos africanos que tiveram
sua formação em universidades europeias (LEWIS, 2020). Este procedimento
será criticado no período pós-colonial, quando alguns filósofos procuraram
estabelecer uma filosofia africana diversa dos conceitos europeus. Enfim, o
propósito nesta seção é mostrar que tanto tradições filosóficas de inspiração
europeia quanto autóctones estiveram ativas nas África desde antiguidade.

2.3. Filosofia pós-colonial

Um grande número de textos filosóficos foi produzido no continente


desde os anos 40. Nas universidades africanas, o estudo do tema filosofia
africana está integrado aos Estudos Africanos. Quando se fala em filosofia
africana, alguns tratam de especificar que a filosofia africana é o tratamento e
respostas específicas de questões filosóficas por pensadores africanos. Assim
como enfrentamos no caso da filosofia brasileira, para a África, a maior
exigência externa para uma filosofia autóctone é a originalidade. E existe esta
originalidade. Uma das características da filosofia africana que se difere da
europeia é a ausência de dualismo. O pensamento africano é inclusivo e
integrador. Chimakonam compara também as diferenças de formulação da
lógica (MAWERE; MUBAYA, 2016, p. 48-49). Além disso, o coletivismo está
acima do individualismo. Portanto, as comparações precisam levar em conta
as diferenças culturais e a filosofia europeia não pode servir de critério
exclusivo para canonizar outros pensamentos como epistemicamente
válidos,
Um dos esforços que os pensadores africanos fizeram nas últimas
décadas foi o de retornar aos seus próprios valores, reavaliando a herança
colonial. Esse resgate foi realizado pela etnofilosofia e pela filosofia da
sagacidade. Já tratamos delas acima. Os saberes tradicionais africanos foram
acolhidos como fontes do pensamento original do continente. Com esse
propósito, foram exaltados valores morais como Ubuntu e Maat. O
ubuntuísmo é uma tradição humanista altruística originariamente dos povos
africanos. Ela enfatiza a vida em comunidade e o respeito entre os seres
humanos. Maat introduz a noção de justiça na vida social (MAWERE;
MUBAYA, 2016, p. 52). Todos esses valores e conceitos serão acolhidos no

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processo de recuperação da identidade africana.


A primeira fase da filosofia africana moderna se ocupou da
reconstrução da identidade cultural. O colonialismo quis transformar os
africanos em cidadãos franceses ou britânicos. Depois das independências,
houve necessidade de se redescobrirem como africanos. A sensação de perda
de identidade advinha das grandes tragédias promovidas pelos europeus
contra os africanos: escravidão, colonialismo e racismo. O filósofo camaronês
Achille Mbembe assim avalia esse acontecimento: “Há meio século, a maior
parte da humanidade vivia sob o jugo colonial, uma forma particularmente
primitiva da supremacia racial. A sua libertação constitui um momento-
chave na história da nossa modernidade.” (MBEMBE, 2014, p. 13).
A obra de G. M. James de 1954, Stolen Legacy, levanta a tese de que os
verdadeiros iniciadores da filosofia seriam os egípcios. Para vencer
preconceitos, alguns autores buscaram nas antigas tradições, conceitos e
valores do ponto de vista filosófico. É com este intento que Tempels
recuperou a filosofia bantu em 1949. Ele procurou demonstrar a
racionalidade das tribos africanas a partir da sabedoria bantu. Alexis
Kagame segue a mesma direção em The Bantu-Rwandan Philosophy de 1956.
Em 1969, John Mbiti procurou demonstrar também a racionalidade da
religião e das culturas africanas em sua obra African Religions and Philosophy.
Ele se concentrou nas tribos Kikamba e Gikuyu e defendeu que a identidade
africana pode ser reencontrada em suas tradições religiosas. A vida
comunitária é um dos traços dessa identidade. Segundo William Abraham,
muitas tribos africanas compartilham semelhanças culturais. Esta cultura
autóctone preserva as raízes da identidade africana.
A outra fase da filosofia no continente africano se ocupou de uma
variedade de temas. Dois movimentos sociais tiveram implicações
filosóficas: Negritude e pan-africanismo. O movimento da Negritude teve
início entre estudantes de países francófonos na década de 30. Foram seus
pioneiros Aimé Cesaire, Leopold Sedar Senghor. Era um movimento de
resistência ao colonialismo francês de inspiração marxista e buscava a
cooperação entre os povos africanos. Por isso, valorizava a vida comunitária
e a colaboração mútua. O pan-africanismo encorajava a unidade e a
solidariedade entre os africanos. Sua fase moderna começou em 1897 e
surgiu como reação à partilha europeia da África. Vários líderes políticos e
intelectuais participaram de sua difusão. Esses movimentos tiveram impacto
no processo de independência dos países africanos (MAWERE; MUBAYA,

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Os esquecimentos e os silenciamentos da história da filosofia:
um destaque para a Filosofia Africana
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

2016, p. 85-89).
De modo geral, dentre os nomes que contribuíram para o
fortalecimento e difusão da filosofia africana foi o queniano Henry Odera
Oruka. Sua produção inclui, praticamente, todos os campos da filosofia
(MAWERE; MUBAYA, 2016, p. 56). Achille Mbembe desenvolve uma crítica
importante sobre o processo de descolonização da África e sobre
necropolítica. No campo da teoria política, o pan-africanismo deu destaque
a Mwalimu Nyerere (1922-) e a Kwame Nkrumah (1909-1972). Os dois
defendiam a unidade africana e a liberdade dessas nações. O pensamento
político de Nyerere é nomeado de socialismo ujamaa (MAWERE; MUBAYA,
2016, p. 141-164).
Há filósofos que estudaram e desenvolveram suas pesquisas em
universidades europeias, assim como aqueles que pensaram a partir dos
próprios países africanos. São esses filósofos: os argelianos Albert Camus,
Louis Althusser e Jacques Derrida, o camaronês Achille Mbembe,
marroquino Alain Badiou, guineense Eugênio Nkogo Ondó e muitos outros
nomes. Eles discutiram o método e conteúdo de uma filosofia africana.
Alguns o fizeram a partir da tradição europeia porque estudaram em
universidades daquele continente, enquanto, outros procuram pensar a
filosofia a partir dos próprios africanos. Enfim, muitos outros nomes podem
ser acrescentados a essa lista para demonstrar a atividade e a vivacidade da
filosofia africana.

Referências

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de Coimbra, n. 39, p. 163-192. 2011.

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Os esquecimentos e os silenciamentos da história da filosofia:
um destaque para a Filosofia Africana
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A existência e a legimitidade de
uma Filosofia Brasileira
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Prof. Espta. Flávio Gonçalves de Oliveira


Professor de filosofia na SEME - Cariacica/ES

Resumo

Discute-se neste artigo a existência de uma filosofia brasileira a partir de


três eixos: primeiro, problematizaremos os “esquecimentos e os
silenciamentos” sob o argumento de que esses dois processos foram,
logicamente, constituídos como processos históricos planejados e
articulados, visando atingir um objetivo específico: esquecer para silenciar
ou silenciar para esquecer, dependendo da leitura que se faça; segundo,
pretendemos expor alguns elementos que podem dar consistência à tese de
que há, sim, uma filosofia brasileira original e legítima e, terceiro, dentro de
um recorte específico, apresentar algumas possibilidades do que
efetivamente se constituiu numa filosofia brasileira.

Palavras-chave
Filosofia brasileira. Legitimidade. Originalidade.
Se farinha fosse americana e mandioca importada, banquete
de bacana era farinhada.
Juraildes da Cruz

Tudo o que eu digo, acreditem, teria mais solidez se, em vez


de carioquinha, eu fosse um velho chinês.
Millôr Fernandes

1.Provocações introdutórias

É possível admitir a existência de uma filosofia brasileira? Se sim, o


que garante sua originalidade e legitimidade? Ainda, se essa possibilidade
se apresenta como evidência, por que ela tem sido esquecida e silenciada
constantemente, inclusive em alguns espaços acadêmicos? À título de
organização didática, estabeleceremos três eixos para o debate, a saber:

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A existência e a legimitidade de
uma Filosofia Brasileira
Prof. Espta. Flávio Gonçalves de Oliveira
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

primeiro, problematizaremos os “esquecimentos e os silenciamentos” sob o


argumento de que esses dois processos foram, logicamente, constituídos
como processos históricos planejados e articulados, visando atingir um
objetivo específico: esquecer para silenciar ou silenciar para esquecer,
dependendo da leitura que se faça; segundo, pretendemos expor alguns
elementos que podem dar consistência à tese de que há, sim, uma filosofia
brasileira original e legítima e, terceiro, dentro de um recorte específico,
apresentar algumas possibilidades do que efetivamente se constituiu numa
filosofia brasileira. Essa panorâmica, por si mesma já nos impõe um
caminho de discussão: falar dos esquecimentos e dos silenciamentos, de
certa maneira, é falar de uma opção metodológica que fora feita ao longo da
história das ideias, aqui no Brasil. Numa rápida lembrança, é preciso
considerar que o processo de (des) cobrimento dessas terras se deu dentro
da lógica expansionista europeia, comandada por portugueses e espanhóis,
no século XVI, com finalidades muito claras, entre elas, a obtenção de
riquezas, novas rotas comerciais e pretensão de expansão territorial. Falar
dessa parte da história, a nossa história, é, também, falar das escolhas ou dos
recortes que foram propostos com objetivos bastante específicos, isto é,
esquecer para silenciar, esquecer como forma de não deixar vir à tona,
esquecer como mecanismo de dominação. Sobre esse período, Saviani em
sua História das Ideias Pedagógicas no Brasil (2010, p. 29) sustenta que
houve uma articulação, ainda que não homogênea ou harmônica, entre
exploração da terra, dominação de povos nativos, aculturação e um
conjunto de práticas, técnicas, símbolos e valores próprios do colonizador
que, foram, impostos sem nenhuma mais efetiva de recusa por parte do
colonizado. Poderíamos, caso fosse o foco, abordar as infinitas
potencialidades na história humana que, pela via do esquecimento, não
puderam ser manifestas, portanto não se concretizaram como alternativas.
Nesse sentido, produzir o esquecimento é uma metodologia para ocultar a
verdade e impedir sua manifestação e latência. E isso tem uma profunda
relação com a questão da verdade. Aliás, na perspectiva grega antiga,
verdade pressupõe desvelamento, fazer aparecer, trazer à tona. A palavra
que os gregos usavam para definir verdade era aléthea que pode ser
entendida dentro dessa dinâmica de “sair do esquecimento”. O
esquecimento encobre a verdade. Ofusca a evidência do real que, está aí,
bem na sua frente, existe como possibilidade, mas não aparece justamente
porque está encoberto. Talvez, já que estamos falando mais à nível de bate

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A existência e a legimitidade de
uma Filosofia Brasileira
Prof. Espta. Flávio Gonçalves de Oliveira
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papo, de provocação, Platão, na sua tese da reminiscência, concordasse com


esse meu argumento: Conhecer é recordar. É lembrar do que fora esquecido,
coberto, velado. Conhecer é trazer à luz aquilo que foi ofuscado, impedido
de aparecer. Por isso mesmo, pela sua própria potência, o conhecimento
rompe com os silenciamentos. Talvez (de novo talvez) a grande busca
platônica pela verdade se impõe hoje, agora, nesse contexto, nesse
momento, como alternativa, como ferramenta para quebrar os
'esquecimentos' que a história, proposital e metodologicamente, fez, a fim
de que outras potencialidades fossem silenciadas. Está posta uma primeira
provocação para nosso início de conversa: recordar o que fora esquecido
para, nesse movimento, que é dialético, permitir que os 'silenciamentos' e os
'silenciados' falem, gritem, vibrem, mostrem sua potência criativa e
criadora. Exponham sua originalidade. Se me deixarem falar, se
reconhecerem meu lugar de fala como possível, verão o que tenho a dizer.
Se me silenciam, apenas me analisarão com a sua métrica, com os seus
conceitos e tirarão de mim (apenas) suas conclusões.

Sendo esse movimento - ocultar/revelar, esquecer/recordar,


silenciar/deixar falar – inerente à própria dialética da história e apropriação
de uma das faces acaba sendo uma questão de escolha, uma metodologia,
como suspeitamos que seja, a história que chegou até nós veio recortada e,
por vezes, esses recortes não estavam muito bem relacionados com o todo
dela. Pensem: uma colcha de retalhos possui sua beleza e sua utilidade
porque os pedaços de tecidos que são usados em sua configuração são
muito bem alinhavados pelas mãos ágeis da costureira (ou costureiro), da
artesã (ou do artesão). Justamente essa é a etapa do processo que vai
garantir à colcha beleza e utilidade. Fora isso, seria um amontoado de
retalhos soltos que de nada serviria. Que de que forma chegaram a nós os
recortes da história? Com qual intenção eles foram alinhavados? Há quem
defenda a tesa (com a qual concordamos) de que temos uma história
contada do ponto de vista dos vencedores e dominadores. Vencidos e
dominados foram silenciados. E quando rebelaram e insistiram em falar,
foram anulados e aniquilados. Portanto perguntar pela “existência de uma
filosofia brasileira” e, mais ainda, questionar a sua “legitimidade” é preciso,
qual habilidoso costureiro ou artesão (costureira ou artesã) 'desalinhavar'
essa costura, reorganizar os retalhos, fazer uma opção diferente na ciranda
das cores e formas e, depois, cuidadosamente, costurar de novo. Os retalhos

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A existência e a legimitidade de
uma Filosofia Brasileira
Prof. Espta. Flávio Gonçalves de Oliveira
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

continuarão aí, permanecerão sendo tecidos e linha, a diferença está na


forma com que, agora, sob outro olhar, foram dispostos, organizados e
alinhavados. É isso que tentaremos fazer: Um breve exercício de
descosturar, 'bagunçar' a ordem dos retalhos e deixar aí como provocação.
Se vamos conseguir costurar de novo, quem sabe.

2.A questão da existência e da legitimidade de uma filosofia brasileira e


latino-americana

2.1.O problema da legitimidade

Numa conferência intitulada “Nós e os gregos”, pronunciada, na


década de 90, num simpósio nacional de filosofia antiga, realizado pela
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, o brilhante professor Gilvan
Fogel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao defender a tese de que
a filosofia é grega, faz uma colocação – ou ressalva - interessante de ser
pensada: “não foi o grego que descobriu ou inventou a filosofia, mas ao
contrário, mais parece que foi a filosofia que inventou, definiu e perpetuou o
grego” (cf. Fogel, 1997. p. 93). E nas fundamentações para tal proposição ele
argumenta que a filosofia é “começo dela própria” e se explica por ela
mesma. Insistindo nesse raciocínio, o autor, por ora citado, adverte que a
filosofia é a expressão do 'logos', grosso modo entendido como razão, aquilo
que permite uma compreensão mais estruturada do mundo, portanto, o que
dá sentido ao real e, por isso mesmo, orienta a interpretação da realidade
quando conceitua e diz algo sobre ela que faça sentido. Já temos, então, um
aspecto interessante para se pensar a questão da legitimidade, dentro desse
recorte que estamos fazendo. Se a filosofia é a expressão do 'logos', do que
exatamente estamos falando? Seria o logos propriedade de um povo, uma
cultura, um tempo histórico ou ele perpassa a humanidade como um todo?
Não seria o 'logos' aquilo que fez com que o homem fosse capaz de tomar
consciência de si e do mundo e, justamente por isso, se viu em condições de
conceituar a realidade a sua volta, na tentativa de compreendê-la e dialogar
com ela? Poderíamos, nessa linha de raciocínio, aventar várias
interrogações e possibilidades. Entretanto, só para fundamentar esse
caminho, parece-nos que definir a filosofia como produção específica dos
gregos (e somente os gregos poderiam ter inventado a filosofia) é uma via
bastante íngreme de ser percorrida. Se a filosofia é uma das expressões do

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A existência e a legimitidade de
uma Filosofia Brasileira
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'logos' resta-nos concluir, a partir dessa afirmativa, que ela é patrimônio do


humano, em sentido geral, e não somente de um povo específico. Portanto,
o que confere legitimidade à filosofia é quando, como movimento de
pensar. É claro que não se pode negar toda uma tradição que fora
construída, herdada e transmitida na relação do homem consigo próprio
que, em síntese, é a própria História. Em coro com Guimaraes Rosa: “mestre
não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.

Partindo dessas prerrogativas, é possível requerer a legitimidade de


uma filosofia originalmente brasileira, já que ela, a filosofia, como
manifestação do 'logos' humano e enquanto movimento de pensar, não se
poderia enclausurar apenas em um tempo histórico delimitado e em uma
cultura específica. Em qualquer lugar (histórico, temporal e existencial) em
que o pensamento se faz movimento, estabelece conexões nele enraizadas e
busca interpretar e dar sentido ao real, ali se faz filosofia na sua inteireza
original. Nesse caso, originalidade não é, somente, uma característica
daquilo que nunca existiu e passa a existir em um dado momento, mas pode
ser pensada a partir da capacidade criativa de se reinventar ou até mesmo
ressignificar alguns conceitos no sentido de se compreender enquanto 'ser
no mundo'. Quando, em um dado contexto, o homem se volta para ele
mesmo, nesse movimento de compreensão de si e de questionamento do
real à sua volta, ainda que se utilize de ferramentas herdadas da tradição,
está posta a originalidade. Nesse caminho é possível pensar uma filosofia
brasileira legítima e original.

2.2.O problema da originalidade

Herdamos da tradição filosófica o viés eurocêntrico que se cristalizou


entre nós, canonicamente, como possibilidade, quiçá, como única
possibilidade. Nesse unilateralismo, tanto do ponto de vista conceitual
quanto do autoral, enveredamos pela via da repetição de ideias e de autores
sem, em boa parte delas, sequer nos propor a fazer uma releitura desses
conceitos, articulando-os com a realidade concreta, vivida e sentida em
nosso contexto histórico. Outra questão fundamental nessa discussão é a
constatação de uma espécie de academicismo, quase dogmático, que toma a
filosofia como saber para poucos, enclausurada dentro dos centros

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uma Filosofia Brasileira
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universitários, elaborada por intelectuais e destinada a um público mais


escolarizado e especializado. Com isso, polir as categorias conceituais, dar a
elas uma certa leveza e torná-las mais palatáveis ao grande público é visto
como descaracterização do que é próprio da filosofia. Problematizar esse
duplo aspecto da nossa relação com a filosofia é um dos caminhos possíveis
para fundamentar a originalidade dela como “filosofia brasileira”. A nosso
juízo, o grande dilema que se coloca quando argumentamos acerca da
originalidade de um pensamento propriamente brasileiro está na
dificuldade que temos de nos conectar com a nossa própria história, aquilo
que nos constitui como povo, a nossa 'brasilidade'. Com isso, os
academicismos rebuscados de arranjos retóricos encontram terreno fértil
para sua proliferação. Eles dizem muito pouco de nós e para nós, mas soam
bem aos ouvidos. É comum ouvirmos a expressão: “não entendi nada, mas
falou muito bonito”. Acreditamos que é impossível (ou no mínimo
contraditório) pensar a originalidade desconectada da nossa historicidade e
do concreto vivido em cada tempo histórico. Afirmar nossa originalidade e
a autenticidade da nossa filosofia se faz necessário justamente porque é
essencial que se diga que existiram e existem intelectuais que se
propuseram e se propõe a pensar o Brasil e a América Latina, fora do recorte
europeu e em constante diálogo com as nossas questões cruciais; esquecidos
ou silenciados, mas existem.

Em linhas gerais, a questão da originalidade e da legitimidade de uma


filosofia fora do viés eurocêntrico fora colocada no âmbito do pensamento
latino-americano, já no século passado, por figuras de grande relevância
nos círculos intelectuais, como Leopoldo Zea1 e Enrique Dussel2, por
exemplo. Zea, em um belíssimo ensaio de 1966, intitulado El problema de la
originalidade en latinoamerica, quando discorre sobre a necessidade de
uma filosofia que leva em consideração aquilo que nos constitui enquanto
povo, defende que originalidade deve ser pensada a partir da
universalização das nossas questões essenciais que, de certa forma, também
são questões pertinentes a outros povos, pois são da própria humanidade
no seu movimento histórico. Para ele, “o original é a expressão do concreto
que, por sua vez, constitui naquilo que é universal, que os povos têm em

Filósofo mexicano (1912 – 2004) é um dos maiores intelectuais latino-americano com uma vasta
1

obra no campo da filosofia da cultura e da realidade do homem americano. É, sem dúvida


alguma, um dos principais pensadores que se propôs a problematizar a originalidade de uma
filosofia latino-americana.

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uma Filosofia Brasileira
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comum. Ao concluir sua argumentação, Zea salienta que pensar a questão


da originalidade é o ponto de partida para a compreensão de nós mesmos
enquanto seres históricos, dentro das circunstâncias históricas. Em linha
semelhante, ao reclamar o lugar de um pensamento genuíno, legitimo e
original, Dussel indica a história como ponto de partida para a compreensão
do nosso lugar no mundo e é enfático ao dizer que se continuarmos a viver
“fora da história” estaremos fadados à inautenticidade. (cf. 1980. p. 18). A
autenticidade da nossa filosofia, então, está na nossa própria história,
naquilo que nos constituiu enquanto povo, nas contradições que fizeram
parte da nossa formação cultural e social. Somente a compreensão da nossa
história é capaz de delimitar o nosso lugar no mundo, de mapear o que é
propriamente nosso e de afirmar a nossa identidade enquanto povo
específico. Posta essa argumentação, ele conclui afirmando que a mera
repetição da história, e na maior parte, da história dos outros, sem nenhuma
incursão na realidade na nossa concreta, contribui mais para o
encobrimento daquilo que é parte de nós mesmos. Em diálogo com essa
linha de argumentação, reivindicar a originalidade de uma filosofia latino
americana e brasileira é, sobretudo, ser capaz de pensar sobre a nossa
própria realidade. Em coro com Dussel (1980. p. 19), se impõe como tarefa,
portanto, chegar à autoconsciência histórica, capaz de nos definir –ou
redefinir – nosso lugar e papel no mundo. Na síntese dessas considerações
gerais sobre a legitimidade e a originalidade num viés latino-americano, é
possível concluir, em diálogo com os pensadores já citados, que elas – a
legitimidade e a originalidade – passam pelo reconhecimento da nossa
historicidade, do nosso lugar no mundo e das questões que marcaram e
marcam a nossa existência enquanto seres concretos. A originalidade é a
história do nosso povo e é ela que confere legitimidade à nossa filosofia.

2.3.O caso específico do Brasil

A tese posta em discussão e que aponta para a possibilidade da


existência e da legitimidade de uma filosofia brasileira deve ser analisada
sob duas interrogações: houve aqui, no Brasil, pensamento original? Quais

Filósofo argentino (1934) é radicado no México desde 1973, dono de uma vasta obra sobre o
2

pensamento latino-americano nos campos da política, ética e teologia e conhecido como um dos
maiores expoentes da chamada filosofia da libertação. Dussel é um grande crítico do pensamento
eurocêntrico contemporâneo e afirma a necessidade de uma filosofia que parta da história
concreta do povo latino no sentido de afirmar qual é o seu lugar no mundo.

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autores podem ser classificados como porta-vozes de um pensamento


filosófico brasileiro? Essas duas questões, embora sejam intimamente
ligadas, nos fornecem chaves de leituras diferentes. Poderíamos
argumentar, por exemplo, que não há a necessidade de sermos
propriamente filósofos ou intelectuais para fazermos filosofia. Assim, em
relação à primeira pergunta, poderíamos extrair aquilo que é próprio da
nossa brasilidade por meio das expressões culturais, da arte, da música
popular brasileira, da literatura, da religiosidade, dentre outras fontes.
Essas expressões, quando manifestadas, revelam a alma do nosso povo, sua
originalidade, expõe valores basilares na nossa formação moral ou a
ruptura com eles, traduzem os sentimentos de uma determinada época,
denunciam as contradições de um determinado contexto e apontam
determinadas idealizações. Nesse sentido, ouvir e dialogar com as
potencialidades advindas desses saberes é, de certa forma, movimento de
pensar sobre aquilo que nos caracteriza enquanto povo e, por isso mesmo, é
autêntico. Essa possibilidade é interessante de ser explorado, pois oferece
um diagnóstico bem próximo daquilo que chamamos acima de concreto
vivido. No que tange ao segundo ponto da nossa interrogação, ele nos
direciona para a questão autoral, isto é, para o reconhecimento de que
houve (e ainda há) vários autores que se debruçaram sobre a realidade
brasileira buscando interpretá-la e compreendê-la. Assim, é perfeitamente
possível afirmar a existência de filósofos brasileiros e que forneceram,
cinscunscritos dentro de um tempo histórico, elementos que deram conta de
problematizar o nosso lugar no mundo. Desse modo, o pensamento
filosófico brasileiro se confunde com a própria realidade brasileira, pois
muito embora a filosofia está totalmente aberta para pensar realidades
atemporais, a maneira com que isso é feito não está desconectada da história
e os filósofos como seres históricos são, o tempo todo, perpassado por essa
dinâmica. Como não nosso objetivo fazer uma história das ideias filosóficas
no Brasil, mas pensar a existência de uma filosofia brasileira analisar até
onde ela é original e legítima, apenas faremos alguns apontamentos gerais
desse panorama histórico.

No curso do desenvolvimento histórico das ideias filosóficas


desenvolvidas no Brasil, há de se levar em conta, e isso é fundamental para
essa nossa discussão, o fato de que elas vieram atreladas à catequese
jesuítica, nos idos do Período Colonial. Nesse contexto, verifica-se a

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A existência e a legimitidade de
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presença de conteúdos filosóficos de caráter tomista, expressos na Ratio


Studiorum, guia do modelo de educação usado no Brasil, nesse contexto.
Essa filosofia, portanto, reunia elementos do aristotelismo, sobretudo da
lógica e da metafísica aristotélica, já reinterpretados pela escolástica à luz
dos escritos de Tomás de Aquino. Em nenhum momento, portanto, houve
uma preocupação com a questão brasileira, muito pelo contrário, todo esse
movimento estava dentro de uma proposta colonialista e de expansão do
Cristianismo nas terras recém dominadas. Portanto, houve apenas a
repetição de ideias já cristalizadas na tradição filosófica, com objetivos
muito específicos e em nenhum momento se cogitou a possibilidade de uma
leitura a partir da realidade histórica dos povos que aqui viviam, dentro de
uma organização política própria, com traços próprios de religiosidade e
inseridos dentro de suas manifestações culturais. Ao contrário disso, houve
a subordinação desses povos e de todos os seus valores à empresa colonial.
Saviani (2010) afirma que aqui já havia um povo que se compreendia
enquanto tal, inserido em sua singularidade cultural, estruturado dentro de
uma organização política, com leis, normas e códigos morais, com divisão
de funções e tarefas bem específicas e, absolutamente, nada disso foi levado
em consideração dentro do projeto colonial. Ele salienta, ainda, que toda
essa engenharia que predominou por durante, aproximadamente, dois
séculos e só começa a ruir após a expulsão dos jesuítas, em 1759, pelo
Marquês de Pombal (cf. Saviani, 2010. p. 59). Essa lógica, entretanto, já
estava tão enraizada que toda a organização da sociedade brasileira, nos
períodos subsequentes, quando não a repetia inteiramente, utilizada se seus
instrumentais. Os resquícios dela podem ser percebidos na maneira com
que a sociedade brasileira ainda se comporta (patriarcalista, paternalista e
patrimonialista), nos modelos de educação que, mesmo com inúmeras
rupturas, ainda preservam traços do tomismo e da lógica formal, nas
relações de compadrio no universo da política e na dificuldade de auto
legitimar aquilo que é nosso, que faz parte da nossa história, que constitui a
nossa identidade. Essa mesma lógica, a da repetição, se verifica durante o
Período Imperial, agora sob o curso das ideias iluministas e cientificistas
que vem chegando da Europa e influenciando no nosso modo de ver o
mundo e, mesmo depois da queda do Império e a instalação da República,
continuaremos com a predominância do modelo europeu em solo
brasileiro. No curso histórico de nossa constituição enquanto 'povo
brasileiro' fomos tão subordinados, tão alienados a um 'outro' que

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A existência e a legimitidade de
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precisamos daquilo que vem de fora para justificar e legitimar o que deveria
ser nosso. Talvez isso seja o principal dificultador quando se fala em pensar
um projeto nacional de caráter afirmativo e emancipatório.

3.A existência de uma filosofia brasileira: autenticidade e legitimidade

Na esteira do que argumentamos até aqui, é possível falar de uma


filosofia brasileira que seja autêntica e legítima. Autêntica, porque debruça
sobre a nossa própria realidade histórica no sentido de descobri-la e trazê-la
à mostra. Descortiná-la como ela é e evidenciá-la enquanto possibilidade
concreta a se pensar. Legítima, porque está inserida nessa realidade e, numa
escuta atenciosa, problematizá-la a partir dela mesma. Esses dois
movimentos, a nosso juízo, são fundamentais para se pensar a existência de
uma filosofia brasileira voltada para nós mesmos, para a nossa brasilidade,
para aquilo que nos constitui enquanto povo e que representação genuína
do nosso lugar no mundo. A sensibilidade para se pontuar tais questões
parece começar com a chamada “Escola de Recife”, no âmbito da Faculdade
de Direito de Recife, entre os anos de 1860 e 1890, tendo como figuras
importantes Tobias Barreto e Sílvio Romero. Esse movimento se destaca
justamente pelo caráter considerado na época como emancipatório ao
propor um debate, no campo do pensamento brasileiro, que desse conta das
questões sociológicas, jurídicas e, principalmente culturais, inclusive
abrindo espaço para a dimensão folclórica da cultura. Temos, com isso,
uma primeira tentativa de se problematiza o Brasil em termos sociais e
culturais. Abre-se, assim, a possibilidade de se pensar a realidade nacional,
com o olhar fixo nela mesma. Parece-nos que a Escola de Recife abre um
importante caminho que, depois, será percorrido por outros intelectuais,
cujo pensamento emerge da própria realidade brasileira, no sentido de
pensá-la na sua concretude. Prova disso, por exemplo, é a forte oposição às
ideias positivistas, (que ainda eram muito enraizada na sociedade brasileira
no início do século XX), pelo que ficou conhecido como culturalismo, tendo
Farias Brito como seu principal expoente. A obra desse pensador,
profundamente enraizada na realidade histórica de seu tempo, está
permeada de ideais abolicionistas, de críticas às injustiças sociais e de um
grande esforço pessoal na busca de significado para a dor humana
provocada pelo desamparo existencial, produto de relações injustas. Mais
uma vez, temáticas vivenciadas no chão da história são problematizadas de

30
A existência e a legimitidade de
uma Filosofia Brasileira
Prof. Espta. Flávio Gonçalves de Oliveira
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

maneira profundamente encarnada.

3.1.E agora, por onde seguir com tudo isso?

A questão da existência e da legitimidade de uma filosofia brasileira,


no bojo da condução que fizemos até aqui, perpassa necessariamente pela
crítica a ela, ou seja, é bastante controversa e contraditória e, sem dúvida, é o
primeiro problema a ser enfrentado para aqueles que se propõem a
enveredar por esses caminhos. Paira sobre ela uma certa desconfiança e,
como já evidenciamos acima, essa necessidade de legitimação está nos
resquícios de uma mentalidade colonial que, ainda, nos assombra. Romper
com ela requer decisão, em primeiro lugar, e coragem para dar as
'explicações' que, constantemente, são exigidas. Os gregos não precisaram
explicar a originalidade e a legitimidade da filosofia grega, a Igreja
Medieval não precisou explicar a Patrística e a Escolástica, os brilhantes
acadêmicos alemães muito menos, a escola francesa tão pouco, os filósofos
estadunidenses jamais se prestariam a esse papel. E quando adentramos as
brilhantes e belíssimas obras que por eles foram produzidas sempre, ainda
que de relance, aparece uma ou outra referência ao que veio antes quer seja
para afirmar, quer seja para negar, quer seja para propor algo novo. Jamais
colocaremos em xeque a originalidade e a legitimidade de Platão, de
Aristóteles, de Epicuro, de Tomás de Aquino, de Descartes, de Kant, de
Heidegger. E, cá para nós, cada um em seu tempo, com seu estilo, foram
esplêndidos. Em hipótese alguma podemos negá-los, silenciá-los e
escondê-los. Mas por que será que ao propormos a possibilidade da
existência de uma filosofia latino-americana e, sobretudo, brasileira a
primeira questão que se coloca é a da originalidade e da legitimidade? É
uma interessante pergunta para nos provocar. Sem querer ter a prerrogativa
da resposta, pode ser que seja pelo fato de, poucas vezes, nos dispormos a
enfrentá-la. Falamos, anteriormente, que é uma questão de decisão e isso
implica escolhas, opções. É mais cômodo repetir o mesmo do que pensá-lo
outra vez. Pode ser que esteja aí a originalidade dos gregos: a disposição em
pensar. Se a filosofia se caracteriza, essencialmente, pelo movimento de
pensar debruçar sobre essa questão já filosófico. Se ela é uma expressão do
logos, da razão que se volta para si mesma num árduo e contínuo esforço de
reflexão e, ainda, se é justamente esse movimento que confere a
legitimidade da filosofia, quando essa mesma razão se debruça sobre as

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A existência e a legimitidade de
uma Filosofia Brasileira
Prof. Espta. Flávio Gonçalves de Oliveira
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

grandes questões que perpassam a nossa historicidade, suas dimensões e


contradições, estamos sendo originais e legítimos. Esse esforço, a que nos
referimos, está presente em importantes setores da intelectualidade
brasileira e tem gerado obras expressivas questionando os vários
silenciamentos que foram estabelecidos ao logo do nosso percurso
histórico, da nossa constituição enquanto povo e daquilo que propriamente
compõe a nossa brasilidade, bem como a necessidade de enfrentarmos e
superarmos antigas contradições e dilemas sociais, econômicos e políticos.
Junto a essas preocupações, e de igual importância, surgem as questões em
torno da afirmação de uma identidade nacional, do resgate das
especificidades da nossa cultura, de uma compreensão mais antropológica
acerca da formação do povo brasileiro, da necessidade de se pensar uma
ética ligada à terra e em constante atitude de respeito e cuidado aos
distintos biomas que compõe a rica diversidade de nossa fauna e flora, a
questão étnico racial e o debate sobre o racismo estrutural, a questão de
gênero e, sobretudo, a necessidade de problematizar o sentido de ser
brasileiro, o sentimento de pertencimento e de nacionalidade, entre outras.
Muito embora várias dessas questões estejam interligadas, aqui reside,
portanto, uma infinidade de caminhos a serem trilhados. O rumo a ser
tomado é uma questão de decisão e de escolha.

4.Algumas referências
CERQUEIRA, Luiz Alberto. A ideia de filosofia no Brasil. Revista Filosófica
de Coimbra, n. 39, p. 163-192. 2011.

DUSSEL, Enrique. Caminhos de libertação latino-americana. Edições


Paulinas. São Paulo. 1984.

GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. Editora FTD, São Paulo.


1990.

PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 6ª edição.


Londrina: Edições Humanidades, 2007.

SAVIANNI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Autores


Associados LTDA. 3ª edição revista. Campinas. São Paulo. 2010.

ZEA, Leopoldo. El problema de la originalidade em latino américa. Diánoia,


vol. 12, nº 12, 1996.

32
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Parte II
Textos de temática
diversa

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Por dentro do filme O Poço: O poder disciplinar
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Prof. Msc. Luís Carlos Pinto


Professor de filosofia e
mestre em Educação (UFVJM)

Depois de assistir ao filme O Poço, lembrei-me imediatamente de


Michel Foucault, filósofo francês do século XX. Em todo o tempo de exibição
do longa-metragem, o conceito de sociedade disciplinar pulava em meus
pensamentos. Decidi então pegar o livro Vigiar e Punir, de 1975, e ler a
Terceira Parte, na qual Foucault aborda o tema da disciplina. Dividida em
três capítulos, essa seção expõe o modo como o poder atua para produzir
indivíduos disciplinados. Tudo o que eu escrever daqui para frente, faço
com um olhar no filme e outro na obra do pensador francês. Então vamos à
análise.
O poder é o principal instrumento de uma sociedade disciplinar. Ele
fabrica indivíduos. Não o faz pela força nem pela coerção. Mas sim de
maneira arquitetada. Utiliza-se para isso de estratégias bem claras. O poder
se vale da disciplina para garantir o intento: formar corpos dóceis, conforme
definição de Foucault. A disciplina é a principal ferramenta do poder; forma,
deforma, informa; atua sem que seja notada, sem causar incômodo. Sem se
dar conta, o indivíduo reprimido foi arquitetado pelo poder disciplinar. Ele
não consegue mais se livrar da condição sobre a qual recaiu.
A disciplina, segundo Foucault, opera em 4 etapas. 1ª) Organiza os
espaços: o poder disciplinar exige a cerca, o cerceamento, tudo tem de estar
bem localizado; age a partir do princípio do quadriculamento, isto é, as
localizações de cada coisa e pessoa colaboram para a organização do lugar.
Não há lacuna para a confusão. Os elementos são facilmente intercambiáveis
sem que suas dimensões e posicionamentos se alterem à revelia. 2ª) Controla
as atividades: os horários administram o tempo. As ações são medidas pela
temporalidade fiscalizada. Corpos e gestos se articulam para obedecer ao
ditame do tempo prescrito. Corpo e objeto se confundem até se tornarem um
só. O tempo é o da exaustão, do cansaço, tudo se faz sob o domínio dos
prazos.
A terceira e a quarta etapas estão relacionadas com a capitalização do
tempo e com o controle dos comportamentos. Sigamos com a análise. 3ª)
Rege as relação de tempo: tempo é dinheiro. Os indivíduos, na sociedade

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Por dentro do filme O Poço: O poder disciplinar
Prof. Msc. Luís Carlos Pinto
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

disciplinar, possuem uma utilidade econômica, estão a serviço da produção,


do crescimento/desenvolvimento do capital. Não se pode perder tempo.
Quem perde tempo não aproveita as oportunidades, não cresce
profissionalmente, não evolui, fica estagnado. Se puder chegar mais rápido,
chegue! Apresse-se no trabalho, na escola, produza em grande escala para
atender as demandas de consumo, de sobrevivência e de sucesso. 4ª)
Compõe forças: nesse cenário há um comportamento adequado. A
transgressão é um mal. O corpo político é submetido à disciplina até o
desaparecimento. Quem reage aos recursos do poder disciplinar, enquadra-
se na prisão, no hospital psiquiátrico, na igreja, na escola, até o corpo ser
docilizado.
Mas a disciplina não atua sozinha. Ela se vale de táticas, de programas
bem executados. Já ficou claro para nós que o poder disciplinar fabrica
indivíduos. Para isso, utiliza variados recursos. O primeiro é chamado de
vigilância hierarquizada, isto é, a hierarquia vigia. O poder subordina os
indivíduos. Não se sabe de onde ele vem, não há ordens explícitas, não se
enxergam os mandatários, o poder se movimenta em todos os espaços, cria
sujeitos subordinados. O segundo é a sanção normalizadora: a lei não pune
severamente, mas orienta, corrige, o problema está sempre em quem a
descumpre. A norma avilta os corpos. A princípio, não os mata, mas os
deteriora. O terceiro recurso usado pela disciplina é o exame. Quem o
suporta? O exame qualifica, classifica e pune. Ninguém passa por ele ileso. O
exame é a assinatura do poder disciplinar sobre os corpos politicamente
submissos.
Quero ainda ressaltar, no final desta exposição, que o poder disciplinar
produz uma estrutura organizacional chamada panoptismo. Foucault
também a avaliou no capítulo 3, na Terceira Parte, do livro Vigiar e Punir.
Pretendo concluir minha participação neste evento com uma breve análise
sobre esse modelo de vigilância dos indivíduos. Considero que a prisão na
qual o Goreng se meteu segue uma estrutura panóptica.
O que é o panoptismo? “O panoptismo organiza o poder, torna mais
forte as forças sociais, aumenta a produção, desenvolve a economia, espelha
a instrução, aumenta o nível da moral pública”, segundo Foucault. O
panoptismo é a base de ordenação da sociedade. A disciplina forjada por
essa estrutura social funciona como técnica de fabricação de indivíduos
úteis. Esse método logo se dissemina pela sociedade. Há discursos, saberes e
narrativas que o legitimam. A ciência, a filosofia, as artes, a religião podem

35
Por dentro do filme O Poço: O poder disciplinar
Prof. Msc. Luís Carlos Pinto
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

contribuir para a transmissão dos procedimentos disciplinares. O poder


político também se apropria dos mecanismos de disciplina, vigiando e
controlando permanentemente os cidadãos. O panoptismo se configura
como um tipo de poder, uma tecnologia, que assegura que as
multiplicidades não se perpetuem, mas que as singularidades, identidades,
se acentuem. O poder disciplinar é eficaz na formação de sujeitos. O sujeito
moderno é resultado da disciplina. Reprodução: divulgação Netflix

Para saber mais:

O Poço (2019) é um filme de ficção científica e suspense dirigido por Galder Gaztelu-
Urrutia e protagonizado por Iván Massagué, Antonia San Juan, Zorion Eguileor, Emilio
Buale y Alexandra Masangkay.

Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão (em francês: Surveiller et Punir: Naissance de la


prison) é um livro do filósofo francês Michel Foucault, publicado originalmente em 1975 e
tido como uma obra que alterou o modo de pensar e fazer política social no mundo
ocidental. Só foi publicado no Brasil traduzido em 1987.

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Imaculada Bakhita, escrava que se tornou santa

Prof. Mndo. Wanderson Fernandes de Oliveira


SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Professor de filosofia
e mestrando em Ciências das Religiões (FUV)

Josefina Bakhita nasceu no ano de 1869 em Olgossa, no Darfur,


Sudão, um dos países mais pobres do Continente Africano. É um dos
países com as maiores taxas de mortalidade materna por diversas razões:
falta de serviços sanitários, infraestrutura deficiente e tradições que fazem
com que muitas mulheres comecem a ter filhos muito jovens e com
assistência caseira. Assim, é mais difícil superar complicações durante a
gravidez e o parto. Menos de 1/3 da população é alfabetizada. Na
verdade, 85% da população não sabem ler. Motivos: falta de recursos e
situações de migrações por causa dos conflitos.
As principais religiões do Sudão do Sul são o cristianismo e diversas
crenças animistas. No Sudão, o islã é a religião predominante. Esta
diferença também é uma das causas dos conflitos. No entanto, “nos
momentos de guerra, as religiões podem oferecer muitos espaços de
encontro e de construção da paz”, explica Paul Vidal, religioso jesuíta que
está trabalhando no campo de refugiados de Maban (Sudão do Sul), em
entrevista a um programa da TV da Catalunha.
O missionário conta como as pessoas de lá vivem a religiosidade
com alegria: “é um elemento de esperança, que articula a vida cotidiana.
As Missas acontecem a cada duas horas. São os momentos de encontro, de
celebração. Apesar das dificuldades, são a prova de que ainda vivemos
com sentido e celebramos a vida”, assegura.
O jesuíta Vidal, além de ser formado em Arquitetura e Teologia, fez
mestrado em Teologia das migrações, uma disciplina recente, que tenta
investigar a experiência de Deus que se revela naqueles que vivem como
refugiados. “Trata-se de conhecer Jesus naquele que bate à porta”, destaca
na entrevista.
Para ele, “o momento é complexo e com pouca esperança. Estamos
na noite escura, acompanhando o povo em um momento difícil”, afirma,
referindo-se tanto aos refugiados quanto aos habitantes da região. A ação
jesuíta no loca se baseia na educação, pastoral e no trabalho social. “Se não
prepararmos engenheiros, professores ou médicos agora, embora
estejamos em conflito, o futuro nunca chegará”, destaca.

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Imaculada Bakhita, escrava que se tornou santa
Prof. Mndo. Wanderson Fernandes de Oliveira

Bakhita era chamada pelas irmãs e os fiéis carinhosamente de


SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

“irmã morena”. Ela era admirada pela sua bondade, generosidade, e


pelo seu grande ardor missionário de fazer com que, Jesus fosse cada vez
mais conhecido. Ela sempre dizia: “Eu gostaria de chegar a todos, para
iluminá-los na fé, porque os missionários são poucos e a África é
grande”. "Sede boas, amem a Deus, rezai por aqueles que não O
conhecem. Se soubésseis que grande graça é conhecer a Deus!".
Bakhita, que significa “afortunada”, não foi o nome dado a ela
pelos pais, mas por uma das pessoas que, certa vez, a comprou. Teve
uma vida sofrida no princípio, sendo arrancada de seu povoado, ainda
criança, raptada pelos traficantes de escravos, espancada barbaramente
e vendida várias vezes nos mercados do Sudão. Sob a força de patrões foi
diariamente chicoteada até ao sangue; resultado disso, foram as 144
cicatrizes que lhe ficaram para toda a vida. Depois de patrões tão
terríveis que a tiveram como sua propriedade, Josefina acabou por
conhecer um patrão totalmente diferente – no dialecto veneziano que
agora tinha aprendido, chamava “paron” ao Deus vivo, ao Deus de Jesus
Cristo. Até então só tinha conhecido patrões que a desprezavam e
maltratavam ou, na melhor das hipóteses, a consideravam uma escrava
útil. Mas agora ouvia dizer que existe um “paron” acima de todos os
patrões, o Senhor de todos os senhores, e que este Senhor é bom, a
bondade em pessoa. Soube que este Senhor também a conhecia, tinha-a
criado; mais ainda, amava-a.
Bento XVI na Encíclica Spe Salvi referindo a Josefina, reflete:
O núcleo da resposta encontra-se no trecho da Carta aos Efésios já citado: os
o núcleo da resposta encontra-se no trecho da Carta aos Efésios já citado: os Efésios, antes do
Efésios, antes do encontro com Cristo, estavam sem esperança, porque estavam
encontro com Cristo, estavam
“sem Deus no sem esperança,
mundo”. Chegarporque estavam
a conhecer Deus,“sem Deus no Deus:
o verdadeiro mundo”. isto
Chegar a conhecer significa
Deus, o verdadeiro Deus: isto
receber esperança. significa
A nós, receber
que desde esperança.
sempre A nós,
convivemos comque o
desde sempre convivemos com o conceito cristão de Deus e a ele nos habituamos,
conceito cristão de Deus e a ele nos habituamos, a posse duma tal esperança quea posse
duma tal esperança que provém
provém do encontrodo real
encontro real
com este Deuscom estenos
quase Deus
passaquase nos passa
despercebida. O
despercebida. O exemplo
exemplo dedeumauma santa
santadadanossa
nossaépoca
épocapode,
pode,dedecerto
certomodo,
modo, ajudar-nos
ajudar-nos aa
entender
entender o que significa o que significa
encontrar pela encontrar
primeira pela
vezprimeira vez e realmente
e realmente este Deus.esteEm
Deus. Em
várias
várias viagens pela Itália procurou sobretudo, incitar à missão:
viagens pela Itália procurou sobretudo, incitar à missão: a libertação recebida através do a libertação
encontro com o Deus recebida
de Jesus através
Cristo,dosentia
encontro
que com
deviao estendê-la,
Deus de Jesus Cristo,
tinha sentia
de ser dadaque devia
também
a outros, ao maior número possível de pessoas. A esperança, que nascera para ela edea
estendê-la, tinha de ser dada também a outros, ao maior número possível
pessoas. A esperança, que nascera para ela e a “redimira”, não podia guardá-la
“redimira”, não podia guardá-la para si; esta esperança devia chegar a muitos, chegar a
para si; esta esperança devia chegar a muitos, chegar a todos.
todos.

Em Schio, no Vêneto, Itália, em 08 de fevereiro de 1947, como irmã


canossiana, aos quase 78 anos de idade entregou sua doce alma ao

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Imaculada Bakhita, escrava que se tornou santa
Prof. Mndo. Wanderson Fernandes de Oliveira

Senhor, nas suas últimas palavras, “estou tão contente...Nossa Senhora...


SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Nossa Senhora!”.
É a primeira Santa do Sudão. Na visita a Cartum, em 10 de fevereiro
de 1993, do papa João Paulo II, antes de sua canonização no ano 2000,
apresentou Bakhita como modelo de virtude e santidade, exaltando o que
me parece o aspecto mais atual da mensagem desta filha da África: o
perdão em seu coração e o amor que a fez superar todo sentimento de
rancor para com aqueles que a fizeram sofrer tanto.
Que tenhamos a simplicidade, humildade e o sorriso constante de
Bakhita, que conquistava o coração de todo tipo de gente que a conhecia.
Apesar, de todos os sofrimentos dolorosos, continuou firme no seu
sorriso, oferecendo seu precioso testemunho de fé. Que ao final de nossas
vidas possamos dizer, assim como Ela dizia: "Vou devagar, passo a passo,
porque levo duas grandes malas: numa vão os meus pecados, e na outra,
muito mais pesada, os méritos infinitos de Jesus. Quando chegar ao céu
abrirei as malas e direi a Deus: Pai eterno, agora podes julgar. E a São
Pedro: fecha a porta, porque fico".

Representação iconográfica
de Josefina Bakhita

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Filosofia no Brasil: conceitos,
ensinos e aplicações contemporâneas

Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito


SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Coautores:
Prof. Espta. Eldécio Luiz da Silva
Prof. Mndo. Vinícius de Oliveira Melo

Resumo

A longa tradição da filosofia abre espaços para múltiplas definições do que é a filosofia.
Quanto mais objetos são estudados, tanto mais conceituações aparecem. Segundo
Nicola Abbagnano, a conceituação mais básica engloba a pretensão de se produzir um
conhecimento mais universal possível. A instabilidade do ensino de filosofia no Brasil
contribui para a ausência de uma tradição da disciplina na vida de várias gerações. Os
preconceitos com a disciplina são advindos desta inconstância dela no currículo.
Diferentemente do que pensa a maioria que não tem contato com esta área, a filosofia
tem atualmente várias aplicações. Diversas correntes filosóficas podem ser utilizadas
para interpretar e propor mudanças em vários âmbitos da sociedade. Além de
contribuir com as outras ciências para melhorar a vida da sociedade.

Palavras-chave: Filosofia. Ensino de Filosofia. Brasil. Currículo. Aplicações

1.Conceitos e a pluralidade de definições da filosofia

Segundo o dicionário Abbagnano, a pluralidade de aplicações da


filosofia ao longo de dois milênios e meio gerou também uma variedade de
definições. Comecemos pelo conceito que Nicola Abbagnano considera o
mais abrangente, segundo o qual a filosofia é a “posse ou aquisição de um
conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais válido e o mais amplo
possível; uso desse conhecimento em benefício do homem”
(ABBAGNANO, 2007, p. 442). A filosofia pretende produzir um
conhecimento mais universal possível.
Descartes pretendia desenvolver um método de pesquisa, baseado
na razão, que alcançasse um conhecimento seguro que servisse tanto para
a conduta moral quanto para a invenção científica e como para a
conservação da saúde. Em muitos momentos da história da filosofia, o
estudo metafísico, o moral e o da natureza andaram juntos. A filosofia ao
lado da matemática foi a precursora de todas as ciências que conhecemos
atualmente. Por exemplo, a filosofia natural é a precursora da física. E
assim segue.
Quando concordamos com Cícero de que a philosophia vero ómnium

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Filosofia no Brasil: conceitos,
ensinos e aplicações contemporâneas
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito / Prof. Espta. Eldécio Luiz da Silva / Prof. Mndo. Vinícius de Oliveira Melo

máter ártium (a filosofia é verdadeiramente mãe de todas as artes), estamos


SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

dizendo que até o século XVI, ela reunia em si o estudo de todas as ciências.
Depois houve uma ruptura, e a filosofia se tornou um campo de estudos
especializados. Mas quais são as principais definições da filosofia? Iremos
enfrentar a questão da pluralidade de definições, elencando os diversos
empregos que podem ser dados à filosofia. Eles correspondem a cada área
de especialização dessa ciência. Vejamos:

a)Emprego metafísico: a filosofia serve para compreender o sentido


último da realidade, refletindo sobre a identidade e o sentido de Deus, do
homem e do mundo. Exemplo: Platão, Tomás de Aquino, Descartes.
b)Emprego moral: a filosofia possibilita o homem discutir sobre os
valores que devem reger a sociedade, questionando a validade da moral
vigente ou procurando seus fundamentos racionais. Neste sentido, faz
também uma crítica à cultura. Exemplo: Epicuro, Zenão de Cítio, Kant,
Lévinas.
c)Emprego epistemológico: como aliada da ciência a filosofia analisa
os fundamentos das teorias científicas e de seus resultados, avalia
logicamente a linguagem científica e procura entender o processo do
conhecimento. Exemplos: Descartes, Locke, Kant, Thomas Kuhn.
d)Emprego político: a filosofia discute teorias políticas, o
funcionamento do Estado e como avaliar e melhor conduzir os assuntos
públicos. Exemplo: Habermas, Rawls.
e)Emprego terapêutico: a filosofia ensina técnicas para o
autoconhecimento, sobre como alcançar a felicidade. Este emprego difere
da autoajuda porque emprega métodos racionais. Exemplo: Epicuristas,
estoicos e cínicos.

Portanto, a filosofia inclui problemas especulativos, problemas


morais, terapêuticos, cognitivos e políticos. Está preocupada com a
produção do conhecimento e sua aplicação para compreensão e
transformação do mundo. O método da filosofia é crítico e avaliativo. Não
podemos nos esquecer de que a conceituação de filosofia como a “posse ou
aquisição de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais válido e
o mais amplo possível; uso desse conhecimento em benefício do homem”
(ABBAGNANO, 2007, p. 442) é um conceito formulado a partir do modo
de produzir filosofia da tradição grega e ocidental.

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Filosofia no Brasil: conceitos,
ensinos e aplicações contemporâneas
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito / Prof. Espta. Eldécio Luiz da Silva / Prof. Mndo. Vinícius de Oliveira Melo

Contudo, diversos povos produziram conhecimentos com conceitos


SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

e métodos diferentes com o mesmo objetivo. De modo geral, o saber


produzido por um povo é utilizado em benefício do homem. São
ferramentas adquiridas pelos sentidos e pela razão para o homem se
arranjar no mundo. Os saberes fornecem uma explicação sobre o mundo,
seu sentido e como estar nele. Partindo desse pressuposto, muitas outras
culturas além dos gregos produziram filosofia. Depois de muita
resistência acadêmica, hoje falamos de filosofia africana, indiana, chinesa,
latino-americana dentre outras.
O descaso da filosofia na educação no Brasil tem, em partes, sua
origem na desconfiança e no desconhecimento da existência de uma
filosofia brasileira. Quando o estudante sente que um determinado
conhecimento tem mais conexão com sua realidade, tende a ser mais
receptivo. Mesmo renomados acadêmicos nunca sentiram que o que se
produziu de filosofia no Brasil é suficiente para atender o critério greco-
ocidental de verdade original e válida. A desconsideração pela jovem
tradição filosófica brasileira nos conduz ao próximo problema: a
instabilidade da sua presença no currículo.

2.Ensino de filosofia no Brasil

A razão pela qual o brasileiro tem preconceito com a filosofia é a


instabilidade do ensino desta disciplina. O ensino de filosofia no Brasil foi
introduzido pelos jesuítas no Colégio de Olinda, em 1572. Ele continuou
durante toda a história com raríssimas interrupções. Mas foi proibido em
1971 pela Lei nº 5.692. Foram 37 anos sem a disciplina na educação básica.
Tivemos três gerações de brasileiros sem formação filosófica. Ela ficou
restrita aos seminários e às universidades. Portanto, não conseguiu criar
uma tradição de se estudar filosofia no país. O mesmo não ocorreu na
Europa e nos Estados Unidos. Mas isso não quer dizer que a filosofia não
fizesse parte da tradição intelectual brasileira. O problema está com as
concepções de currículos:
Alves (2002) divide em três momentos a história do ensino da filosofia
Alves (2002) divide em três
no Brasil. Domomentos a história
período colonial até do ensino da afilosofia
a República, filosofiano Brasil. Do
é “presença
período colonial até a República,
garantida”an
filosofia é “presença
os currículos; garantida”
da Primeira nos currículos;
República da Primeira
ao Golpe Civil Militar
República ao Golpe Civil Militar
de 1964, ela éde“presença
1964, elaindefinida”;
é “presençapor
indefinida”; por fim,
fim, o período o período
ditatorial (pós-
ditatorial (pós-1964) é caracterizado por uma “ausência definida” (SARDÁ, 2018, p. 187-206).
1964) é caracterizado por uma “ausência definida” (SARDÁ, 2018, p.
187-206).

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Filosofia no Brasil: conceitos,
ensinos e aplicações contemporâneas
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito / Prof. Espta. Eldécio Luiz da Silva / Prof. Mndo. Vinícius de Oliveira Melo
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

O momento atual poderia ser chamado de “presença em


consolidação” (terminologia nossa). O retorno do ensino de filosofia no
Brasil ocorreu pela Lei Federal nº 11.684, em 2008. A partir daquele ano, a
disciplina foi incluída nos três anos do Ensino Médio. Esta inclusão
encontrou muitos desafios. Havia poucos professores formados para
ensinar a disciplina na educação básica. Houve práticas “ingênuas” como
se filosofia fosse apenas exercícios de interpretação de textos de cunho
moral ou reduziram a filosofia a mera crítica social. São tarefas que
poderiam ser encargos de outras disciplinas. Quando tentaram estudar os
autores da filosofia o fizeram de maneira enciclopedista. Muitos
professores licenciados na área formados no método historiográfico.
Portanto, todas as experiências mal sucedidas dificultaram mostrar aos
estudantes a especificidade da filosofia, em muitos casos.
De qualquer modo, a experiência possibilitou melhorar a
capacidade crítica e argumentativa dos alunos. Mesmo com o aumento do
número de professores licenciados em filosofia atuando nas redes públicas
de ensino, a situação ainda está aquém do desejado. Dados de 2017
demonstravam que apenas 21,2% dos docentes que atuavam no Ensino
Médio tinham formação específica em Filosofia (GONTIJO, 2017, p. 3-17).
O momento é de intensificar e consolidar a prática pedagógica e não
excluir a filosofia novamente. Para isso, precisamos de políticas que
valorizem as ciências humanas. A nova fase de popularização da filosofia
ainda encontra muitos preconceitos e visões reducionistas.
O ensino de filosofia precisa levar em consideração o patrimônio
filosófico brasileiro. A disciplina não pode ser apresentada a alunos de
Ensino Médio como se não fizesse parte da tradição intelectual deste país.
Nos últimos anos, uma bibliografia especializada tem sido produzida para
demonstrar a existência de uma filosofia nacional. Operaram em prol
deste regaste Antônio Paim com a publicação de História das Ideias
Filosóficas no Brasil (1967), Jorge Jaime e a publicação dos três volumes da
História das Filosofia no Brasil e Paulo Margutti com História da Filosofia
no Brasil - O Período O período Colonial (1500-1822). Para uma rápida
ilustração: as primeiras experiências com o ensino de filosofia no Brasil
aconteceram já no século XVI com os jesuítas. Eles introduziram o ensino
de filosofia no Colégio da Bahia, em 1572, e no Colégio de Olinda, em 1580.
No século XVII, o Colégio do Rio passou a ensinar filosofia em nível

43
Filosofia no Brasil: conceitos,
ensinos e aplicações contemporâneas
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito / Prof. Espta. Eldécio Luiz da Silva / Prof. Mndo. Vinícius de Oliveira Melo

superior. Embora, o ensino de filosofia estivesse sempre na colônia, mas


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somente no século XIX, tivemos produções que ganharam atenção na área.


Em 1878, Sílvio Romero lamentava assim: “Nos três séculos que nos
precederam nem um só livro, dedicado às investigações filosóficas saiu da
pena de um brasileiro” (ROMERO, 1878, p. 1). De fato, obras
especificamente de cunho filosófico surgiram naquele século. Porém,
antes disso, diferentes textos produzidos na colônia servem de fontes para
reflexão filosófica.
A filosofia brasileira ganhará uma explosão de entusiasmo e
produção na segunda metade do século XIX. Na década de 1870, o
movimento conhecido como “surto das novas ideias” envolveu grandes
nomes em diversos temas filosóficos. As ideias do positivismo e do
darwinismo encheram os nossos intelectuais de entusiasmo. A Escola de
Recife marcará profundamente essa fase com dois pensadores, Tobias
Barreto (1839-1889) e Sílvio Romero (1851-1914) (PAIM, 2007, p. 153). A
partir desse movimento, sem dúvida, a filosofia brasileira ganhou uma
identidade própria.
Além desses episódios citados, muitos nomes e temas da história das
ideias filosóficas ainda estão sendo descobertas. Ultimamente, duas
pensadoras estão sendo redescobertas para suprir esta lacuna feminina no
nosso rol androcêntrico de filósofos: Nísia Floresta (1810-1885) e Maria
Firmina dos Reis (1822-1917). Nísia teve o mérito de iniciar o debate sobre
o direito das mulheres em terras brasileiras. Maria Firmina inaugurou a
literatura afro-brasileira feminina e suscitou debates em torno da causa
abolicionista. Suas obras estão repletas de temas que provocam discussões
filosóficas. Aliás, a literatura brasileira é um campo ainda pouco explorado
para a compreensão das ideias filosóficas. A aproximação entre literatura e
filosofia é uma via bastante aconselhável também de iniciação dos
estudantes à filosofia.
No campo didático, estabelecer essa conexão do estudante de Ensino
Médio com a história da filosofia dentro de seu país pode gerar mais
confiança. Cada estudante deve se sentir capaz, dentro de sua realidade,
de filosofar. Por quê não? Se tantos outros brasileiros o fizeram! Todos
precisam sentir-se representados nessa história. As abordagens exclusivas
somente da historiografia ocidental nem sempre são atraentes. O elemento
principal que falta nessas práticas é o contato direto com as fontes
filosóficas. O texto do filósofo precisa ocupar o espaço da leitura dos

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Filosofia no Brasil: conceitos,
ensinos e aplicações contemporâneas
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito / Prof. Espta. Eldécio Luiz da Silva / Prof. Mndo. Vinícius de Oliveira Melo

manuais em sala de aula. É necessário explorar outras formas de ensino


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que possibilitem aos estudantes a experiência fundadora da filosofia: o


espanto e a admiração diante da realidade. Talvez não seja simples
conseguir uma adesão entusiástica dos alunos pela filosofia como obtém o
personagem Merlí na série homônima da Netflix, mas uma abordagem
temática, vivencial, poderá trazer bons resultados. As experiências
pedagógicas parecem apontar que o ponto de partida do ensino-
aprendizagem é a realidade e a ambiência do discente.

3.Aplicações do saber filosófico na atualidade

Nesta exposição, perseguimos a pertinência e as aplicações do saber


filosófico. É importante ressaltar que cada ciência tem a sua
especificidade. Há várias vantagens e aplicações da filosofia. Elas
envolvem várias habilidades e campos, desde os mais teóricos até os mais
práticos:
Como conhecimento técnico a filosofia fornece uma excelente
preparação para as demais ciências, possibilitando a argumentação e a
formulação sistemática de problemas. Principalmente, através do estudo
da lógica e de teorias da linguagem. A formulação de hipóteses e o uso do
método científico para serem bem realizados dependem de um
treinamento no uso da lógica e da linguagem. A expressão formal dos
problemas a serem investigados e a justificativa de um procedimento de
pesquisa são dependentes dessas habilidades. Além disso, a lógica é
utilizada nas tecnologias de informação.
Como conhecimento crítico, ela possibilita analisar e repensar a
cultura, a sociedade e a política, propondo transformações positivas e
eficazes. A adoção de um método eficiente para interpretar a cultura, a
sociedade e os sistemas políticos precisa passar pelo crivo da razão.
Atualmente, muitos filósofos se ocupam da crítica da cultura, do uso das
mídias sociais. As importantes teorias de John Rawls e de Habermas
influenciam a visão política de muitos homens públicos do direito, das
ciências sociais e do mundo dos negócios.
Como conhecimento motivacional e terapêutico, os filósofos clínicos
utilizam teorias filosóficas como possibilidade de cura. As filosofias
morais ajudam a educar as emoções para dar mais qualidade à vida das
pessoas. Essas aplicações práticas são muito utilizadas nas grandes

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Filosofia no Brasil: conceitos,
ensinos e aplicações contemporâneas
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empresas. Há atualmente um tipo de literatura sobre a felicidade muito


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presente no mercado editorial. Existe a proposta de uso terapêutico da


filosofia por parte dos defensores da filosofia clínica.
Como conhecimento epistemológico, a filosofia possui parceria com
as ciências naturais, com as ciências cognitivas e com a neurociência. A
filosofia da mente pesquisa sobre a identidade e relação corpo e cérebro.
As relações entre mente e corpo que ultrapassam a mera materialidade da
qual se ocupam as ciências naturais são discutidas neste campo. A
epistemologia juntamente com a lógica possui uma precedência no estudo
filosófico por tratar da gênese, dos limites e dos fundamentos do
conhecimento antes da afirmação de qualquer proposição com
conhecimento. Esta precedência deveria ocupar um lugar propedêutico
também no estudo das demais ciências.
Portanto, a educação filosófica une saber teórico e prático. Ela atua
de modo interdisciplinar criticando a estrutura das outras ciências e
interpretando seus resultados e melhorando a compreensão que o homem
tem se si mesmo e do mundo. Um exemplo prático de que o investimento
em filosofia pode trazer resultado prático é o trabalho do brasileiro
Newton da Costa (1929). Ele desenvolveu a Lógica Paraconsistente. Seus
princípios são utilizados para: a) utilização em programas de
computadores da área de serviços, b) para organização interna de
empresas; c) gerenciamento de conhecimento e inteligência artificial; d)
resolução de conflitos éticos.
Por meio de áreas como a filosofia da matemática e a filosofia da
mente, a filosofia pode auxiliar na construção de modelos para resolver
problemas práticos. Quando você começa a estudar a fundo, descobre que
a filosofia é tão importante quanto as outras ciências. A teoria e a prática
travam uma relação dialética no conhecimento. A oposição entre elas é
ilusória. Assim como é também a oposição que a educação tecnicista faz
entre ciências práticas (tecnologia) e ciências teóricas (ciências humanas).
Uma educação integral prepara igualmente o estudante para o mundo da
vida e para o mundo do trabalho. Portanto, uma concepção de educação
que se preocupa com todas as dimensões humana nunca fará descaso das
ciências humanas.

Referências

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Filosofia no Brasil: conceitos,
ensinos e aplicações contemporâneas
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito / Prof. Espta. Eldécio Luiz da Silva / Prof. Mndo. Vinícius de Oliveira Melo

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo Martins Fontes,


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2007.

GONTIJO, Pedro. O ensino de filosofia no Brasil: algumas notas sobre


avanços e desafio. Perspectivas, Vol. 2, n. 1, p. 3-17, 2017.

PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 6ª edição.


Londrina: Edições Humanidades, 2007.

ROMERO, Sylvio. A filosofia no Brasil: ensaio crítico. Porto Alegre:


Typographia da Deutsche Zeitung, 1878.

SARDÁ, Daniela Nienkötter. A história do ensino da filosofia no sistema


escolar francês e brasileiro. Hist. Educ., v.22, n. 56, Santa Maria Sept./Dec.,
p. 187-206, 2018.

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Minha mãe Filosofia,
quantas filhas que tu tens?
Prof. Espta. Romildo Alves
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Professor de filosofia,
técnico em Contabilidade e Psicanalista Clínico

Filosofia... Filosofia...
Por onde andas?
Onde estás que não respondes?
Mãe amada, mãe querida, quantas filhas que tu tens?
Respondes, minha querida,
Onde estão as tuas filhas?
Seja branca ou morena,
Seja parda ou amarela,
Seja negra bem singela,
Estrangeira ou brasileira,
Estampada ou cara pintada...
Mãe amada e mãe querida,
Nos recantos dessa vida,
Onde estão as tuas filhas?
Quantas filhas que tu tens?
Na Europa ou na América,
Na do Norte ou na Latina,
Pode ser que em outras terras,
Ou em outros continentes,
Se encontram suas filhas?
Não importas onde estão,
Não importas de onde vens!
Minha mãe filosofia,
Minha amada disciplina,
Quantas filhas que tu tens?
Não aparecem na história
Na geografia também!
Na matemática muito menos...
Mais se és mãe de todas elas,
Quantas filhas que tu tens?
Nas exatas ou nas humanas,
Nas linguagens do além...

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Minha mãe Filosofia, quantas filhas que tu tens?
Prof. Espta. Romildo Alves
SEMANA DA FILÓSOFA E DO FILÓSOFO

Filosofia... Filosofia...
Por onde andas?
Onde estás que não respondes?
Mãe amada, mãe querida, quantas filhas que tu tens?
Respondes, minha querida,
Onde estão as tuas filhas?
Seja branca ou morena,
Seja parda ou amarela,
Seja negra bem singela,
Estrangeira ou brasileira,
Estampada ou cara pintada...
Mãe amada e mãe querida,
Nos recantos dessa vida,
Onde estão as tuas filhas?
Quantas filhas que tu tens?
Na Europa ou na América,
Na do Norte ou na Latina,
Pode ser que em outras terras,
Ou em outros continentes,
Se encontram suas filhas?
Não importas onde estão,
Não importas de onde vens!
Minha mãe filosofia,
Minha amada disciplina,
Quantas filhas que tu tens?
Não aparecem na história
Na geografia também!
Na matemática muito menos...
Mais se és mãe de todas elas,
Quantas filhas que tu tens?
Nas exatas ou nas humanas,
Nas linguagens do além...
Nas ciências da natureza...
Quero saber com certeza,
Quantas filhas que tu tens?

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