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Pesquisando crianças e infância: abordagens

teóricas para o estudo das (e com as) crianças


FLÁVIA PIRES1

resumo O artigo tece um painel teórico par- da infância, com os quais me deparei na bus-
cial dos estudos sobre (e com) crianças nas ciên- ca dos meus próprios interesses de pesquisa.
cias sociais – especialmente na antropologia, que Dessa forma, este artigo não pode ser tomado
embora não se pretenda exaustivo, cubra parte da como um panorama geral ou o estado da arte
produção da acadêmica brasileira, norte-americana da disciplina. O artigo deve, outrossim, ser lido
e européia; focando-se principalmente na interse- como um recorte da teoria produzido de acor-
ção dessa literatura com os estudos sobre religião. do com certos objetivos.
A pesquisa bibliográfica que permitiu a realiza- Observa-se, tanto no Brasil quanto no ex-
ção deste artigo foi realizada como parte do meu terior (Reino Unido, Estados Unidos da Amé-
doutoramento em antropologia social e, por isso, rica, Portugal, França, países nórdicos), um
o levantamento bibliográfico leva o recorte desta crescimento do interesse dos antropólogos e
pesquisa. No entanto, o texto pretende levantar sociólogos na criação de um campo de estudos
algumas discussões mais gerais relevantes para a específico para o estudo do tema2. Na França,
pesquisa antropológica, como a definição e os usos os estudos sobre criança estão vivendo uma fase
dos conceitos de cultura e de sociedade. de crescimento quantitativo e de abertura de
palavras-chave Antropologia da infância. An- novas frentes teóricas, tendo sido reconhecidos
tropologia da criança. Religião. pela Associação Internacional dos Sociólogos
de Língua Francesa (AISLF) − apesar de, como
afirma Eric Plaisance (2004, p. 222), ainda ser
Introdução “um campo de pesquisa disperso, mal circuns-
crito, trabalhado por pesquisadores que mal se
O campo de estudos sobre a infância a partir conhecem e têm poucas interações”. Do mes-
de uma perspectiva sociológica ou antropológi- mo modo, no Brasil, a Associação Brasileira de
ca é relativamente recente. Em conseqüência Antropologia (ABA) incluiu em 2006, pela pri-
disso, pode-se dizer que a literatura sobre o meira vez na sua reunião bianual, um grupo de
tema não é extensa. Ademais, os pesquisadores estudos voltados para a temática (GT 41: Por
não estão de acordo em vários pontos, inclu- uma antropologia da Infância).
sive sobre a própria história dos estudos sobre As abordagens que relacionam religião e in-
criança. Neste texto, apresentarei uma seleção fância são ainda mais raras. Consegui localizar
de algumas idéias e algun(ma)s pesquisadore(a) alguns poucos estudos que se concentram em
s da infância e da criança, com o intuito de uma interface entre religião e infância, embo-
realizar um breve (e não completo) histórico ra não se restrinjam à antropologia (Astuti, no
do tema, concentrando-me principalmente na prelo; Coles, 1991; Bovet, 1928; Elkind, 1978;
literatura produzida fora do Brasil. No entan- Garbarino, 1996; Hardman, 1999; Heller,
to, o levantamento não se pretende exaustivo. 1986; Nesbitt, 1993, 2000a, 2000b; Robinson,
Meu objetivo é apenas traçar alguns dos desen- 1977). Segundo Nesbitt (2000), autora que
volvimentos do campo de estudos da criança e vem trabalhando com crianças de origem Sikh

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na Inglaterra, a literatura sobre criança e reli- Goldman não acredita possível realizar tal
gião concentra-se em uma abordagem quan- empreendimento de pesquisa porque, segun-
titativa e altamente psicológica. Os exemplos do ele, as crianças pequenas não teriam ainda
citados por ela são Bushnell (1967), An- conceitos ou percepções religiosas: “o insight
thony (1971), Gates (1976, 1982), O´Keeffe religioso geralmente começa a aparecer entre os
(1986), Bullivant (1987), Francis (1987), doze e treze anos de idade” (Goldman, 1964, p.
Hyde (1990), Lall (1999), Davies (1997) – 226, tradução minha).
sendo os dois últimos direcionados à comu- Além disso, estudar infância, como afirmam
nidade Sikh. Há, no entanto, um campo de Robinson (1977) e James, Jenks e Prout (1998,
estudos sobre educação religiosa ou espiritu- p. 183), apresenta, dentre outros, o problema
al que conta inclusive com alguns periódicos de que muitos sentem-se autorizados a expres-
como Religious Education, British Journal of sar sua opinião, como se o fato de já terem sido
Religious Education, The international Journal crianças os autorizasse a teorizar sobre a infân-
of Children´s Spirituality3. cia. Como se pode observar em outro texto de
Alguns pesquisadores discorreram sobre James, “Eu não simplesmente estudei crianças,
uma impossibilidade de empreender tal projeto mas fui criança e tive crianças!” (James, 1993,
de pesquisa com crianças pequenas. p. 14, tradução minha), ser mãe ou ter sido
criança é, em si mesmo, afirmado como garan-
O trabalho descrito por Edward Robinson em tia de uma boa pesquisa. Outro problema re-
The Original Vision (1977: 11) sugere que as corrente da literatura sobre o tema é considerar
pessoas que se lembram de terem tido alguma a memória, por meio dos relatos sobre infância,
consciência espiritual da sua infância, eram ge- como a própria expressão da voz das crianças,
ralmente incapazes de falar sobre o fato. Além como fez Robinson (1977)4. A memória, como
disso, muitas dessas pessoas também disseram se sabe, é um exercício reflexivo que dota ao
que foi apenas quando elas se tornam adultas passado, valores de acordo com o momento
que reconheceram a importância desses even- presente. Para se estudar as idéias e as expe-
tos. Isso parece sugerir que qualquer tentativa riências infantis, é preciso estudar as crianças
de discutir assuntos “espirituais” com crianças propriamente ditas, e não o que os adultos têm
muito pequenas é infrutífero (McCreery, 1996, a dizer sobre a sua infância ou a dos seus filhos.
p. 197, tradução minha). Não estou dizendo, no entanto, que se devam
excluir os adultos das pesquisas sobre infância
Ronald Goldman vai mais longe e descreve: (ponto a ser discutido adiante).
Meu trabalho de campo foi desenvolvido
Percepções e conceitos religiosos não são ba- no semi-árido nordestino, em uma cidadezinha
seados em dados sensoriais diretos, mas são chamada Catingueira durante catorze meses
formados a partir de outras percepções e (2000-2005). Minha tese de doutorado tem
conceitos de experiência. Os místicos, que como objetivo estudar o processo de tornar-se
afirmam terem sensações divinas diretas, são adulto em Catingueira. Naquela cidade, a re-
exceções, mas como eles são casos extrema- ligiosidade sempre se mostrou um tema pun-
mente raros, ainda mais raros na adolescência gente, abraçando várias esferas da vida social.
e praticamente desconhecidos na infância, nós Minha dissertação de mestrado (Pires, 2003),
não precisamos explorar a sua significância por exemplo, trata da Festa de São Sebastião,
(Goldman, 1964, p. 14, tradução minha). padroeiro da cidade, momento no qual a cida-

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de recebe turistas e se reinventa em tradições e Segundo Prout (2005), os estudos sobre


efervescência social sob as benções do santo e da a infância têm início na modernidade, jus-
igreja católicos. A presença dos chamados “cren- tamente porque somente nesse momento foi
tes” e espíritas kardecistas nesta festa religiosa, a concebida a separação entre a infância e a ida-
princípio católica, é um dos desdobramentos da de adulta. Philippe Ariès (1981 [1962]) é o
dissertação. No entanto, na tese de doutorado, grande representante da teoria moderna nos
trabalhei com crianças dos três aos treze anos de estudos da infância. Como se sabe, ele argu-
idade, adultos e idosos, na tentativa de compor menta pelo “nascimento” da infância na épo-
um quadro tão completo quanto possível sobre ca moderna. Seu trabalho é reconhecido por
o entendimento e a experiência religiosa naque- ter introduzido definitivamente as crianças
la comunidade. Ao fazê-lo, deparei-me com a nas pesquisas acadêmicas e por ter afirmado
existência de seres chamados “mal-assombros” a condição da infância como uma construção
que podem ser, em alguma medida, chamados social. No entanto, a crítica mais corrente ao
de religiosos, uma vez que mantêm relações pri- seu trabalho é que ele padece de um viés et-
vilegiadas com o chamado o “outro mundo”, nocêntrico, na medida em que não reconhece
o mundo após a morte. Para os adultos e os outras formas históricas de infância, a não ser
idosos estes mal-assombros são, basicamente, a aquela da modernidade. Sempre houve crian-
alma de pessoas falecidas. Para as crianças, por ça em todas as épocas históricas; o que não
sua vez, os mal-assombros são uma larga gama havia era criança tal como a concebemos na
de seres e acontecimentos. Interessante notar modernidade (Pollock, 1983). Outra crítica
que o medo dos mal-assombros, altamente en- corrente a Ariès é o seu viés evolucionista, na
fatizado pelos adultos e idosos, não o é pelas medida em que traça as mudanças nas idéias
crianças. Isto se explica pelo fato de que para os sobre organização familiar e sobre a crian-
adultos e, principalmente, para os idosos todos ça desde a idade média até o final do século
os mal-assombros são temíveis, uma vez que XVIII. Apesar de nunca ter afirmado que es-
existe uma relação, a princípio inquestionável, ses estágios de transformação das idéias sobre
entre eles e o diabo. Para as crianças, as coisas família e criança eram inevitáveis, a teoria foi
não se passam desta maneira. O mal-assombro lida dessa forma por alguns pesquisadores.
assusta menos e quando o faz, a razão não pode É praticamente impossível estudar crianças
ser colocada na sua associação com o mal. Cres- e infância sem se referir à psicologia e a alguns
cer em Catingueira implica em entender que o dos seus grandes mestres, como Freud, Piaget e
mal-assombro é assustador pela sua associação Vygotsky. O desafio parece ser como atualizar
ao demônio. Ao mesmo tempo, a pessoa vai se esses autores para a pesquisa antropológica. Ex-
tornando católico ou evangélico ou espírita de periências de pesquisa atuais tentam conciliar a
acordo com as experiências que leva a cabo no herança psicológica com o olhar sociológico e/
decorrer deste processo. É interessante ressaltar ou antropológico, na tentativa de não repetir
que há diferenças na percepção e na etiqueta de erros do passado. Um desses erros fundamen-
relação com os mal-assombros de acordo com tais está expresso na seguinte frase:
as diferentes religiões existentes na cidade. Para
entender melhor o que se passa, convido o lei- [...] a antropologia tem ignorado as crianças
tor a ler a minha tese (Pires, 2007), já que, no na cultura, enquanto os psicólogos do desen-
momento, o espaço é restrito para relatar em volvimento têm ignorado a cultura na infância
profundidade essa pesquisa. (Schwartz, 1981, p. 4, tradução minha).

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Christina Toren (1999), por exemplo, usa Na sociologia, podemos afirmar que
o conceito de esquema de Piaget em paralelo Durkheim (1922, 1925, 1979 [1911]) foi um
ao conceito de autopoiesis cunhado por Ma- dos primeiros a estudar as crianças, a quem ele
turana e Varela. Segundo ela, estes conceitos chamou “o adulto a ser” (1979 [1911], p. 149,
são similares, na medida em que autopoiesis é tradução minha). Preocupado com as questões
uma estrutura dinâmica que permite o rela- da educação, trabalhou o tema da socialização,
cionamento com o mundo, em um processo vista por meio de um modelo vertical, em que
microhistórico. Por sua vez, o esquema permite um traço recorrente em todas as sociedades e
esse mesmo processo de “tornar-se” na história épocas históricas é a ação da geração mais velha
cotidiana no nível cognitivo, que para a autora sobre a geração mais nova. A educação, como
diz respeito à pessoa como um todo em relação todo fato social, é então percebida como uma
aos outros e no decorrer da história5. força de imposição e coerção. A socialização
De acordo com James e Prout (1990), até o culmina, segundo seu argumento, com a inte-
final dos anos 70, os estudos sobre crianças pa- riorização de normas e valores.
deciam de um viés evolucionista altamente in- No Brasil, parece que a primeira contribui-
fluenciado por Piaget e pela sua teoria sobre os ção da sociologia e antropologia, no sentido de
vários estágios de desenvolvimento ou evolução reconhecer a criança como um sujeito huma-
da criança6. As crianças eram tratadas em termos no de pouca idade e um agente de socialização
de simplicidade, irracionalidade e mundo natu- considerável, vem de um trabalho realizado na
ral, em contraposição ao mundo adulto, comple- década de 1940 por Florestan Fernandes, mos-
xo, racional e cultural. Segundo James, Jenks e trando a rua, além da família e da escola, como
Prout, Piaget “nega a agência na criança e o cará- lugares privilegiados da infância. Escrito ori-
ter socialmente construído da infância” (James; ginalmente em 1944 para o concurso Temas
Jenks; Prout, 1998, p. 173, tradução minha). Brasileiros, instituído pelo Departamento de
Porém, concordo com Gates ao afirmar que Cultura do Grêmio da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade
[...] apesar do desenvolvimento psicogenético de São Paulo, esse trabalho foi publicado em
criar certos constrangimentos à capacidade de 1947 sob o título As “Trocinhas” do Bom Re-
entendimento da criança, é evidente que a ra- tiro. Trata-se do registro inédito de elemen-
zão está dada, desde os primeiros anos de vida, tos intrínsecos à vida das crianças, captadas a
no entendimento da fé, fato e fantasia. (Gates, partir de observações sobre grupos de crianças
1996, p. 135, tradução minha) residentes nos bairros operários da cidade de
São Paulo que, depois do período da escola,
Parece-me claro que a obra de Piaget pode juntavam-se nas ruas para brincar. Entenden-
ser utilizada se olhada de uma perspectiva mais do a criança como participante ativo da vida
generosa − como o fez Toren (1990). Além dis- social, o jovem Florestan observa, registra
so, Woodhead, Montgomery e Burr (2003a, p. e analisa o modo como se realiza o processo
25-28) argumenta a favor de Piaget dizendo de socialização das crianças, como constroem
que ele foi um ouvinte atencioso das crianças e seus espaços de sociabilidades e quais as carac-
que seus erros foram o de tratá-las como seres terísticas destas práticas sociais.
ainda em constituição (como potencialidades), O caráter original das “Trocinhas” do Bom
além de enfatizar por demais o que era natural Retiro está no fato de F. Fernandes anunciar a
no processo cultural. linguagem que posteriormente trataria as crian-

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P   :       (  )  | 

ças como atores sociais completos, reconhe- jacente, raramente como tema principal (sal-
cendo agência no mundo infantil. Ele chega a vo raras exceções como Kidd (1906) e Mead
utilizar o termo culturas infantis, e afirma que (1930)). O mais comum era introduzir uma
as crianças, quando estão brincando, não estão sessão no capítulo sobre família, descrevendo o
imitando os adultos, mas estão envolvidas nas nascimento e a socialização infantis. Na década
elaboradas culturas infantis: de 30, porém, Margaret Mead desponta efetu-
ando um grande salto nos estudos sobre crian-
[...] há entre as crianças (até 7 ou 8 anos entre ça na antropologia. Apesar de muito criticada,
os meninos e até mais entre as meninas) brin- a autora teve um papel crucial na descoberta da
quedos cujos motivos são aspectos da vida do infância pelos antropólogos. E embora dispo-
indivíduo adulto, tais como “fazer comidinhas”, nha de uma obra etnográfica bastante avanta-
“brincar de casinha” etc. (...) nos brinquedos, jada e, portanto, ainda aberta a interpretações,
a criança não imita seu pai ou sua mãe. Pai e foi largamente criticada por utilizar uma noção
mãe são entes gerais, representam uma função de cultura constrangedora da agência infantil,
social. As crianças abstraem da pessoa A, B ou enfatizando por demais a socialização infantil
C, para falar de “pai” e “mãe” de modo gené- como ação da sociedade adulta sobre as crian-
rico, desempenhando nas brincadeiras as suas ças. Não é demais mencionar que Mead repre-
funções (Fernandes, 1979 [1961], p. 387)7. senta, junto com Edward Sapir e Ruth Benedict
dentre outros seguidores de Franz Boas, o “Cul-
Ao prefaciar o texto em pauta, Roger Bas- turalismo” na tradição antropológica; corrente
tide (1979) observa o quanto o estudo da vida teórica que se expandiu nos EUA enfatizando
infantil era negligenciado e o quanto era neces- a necessidade crucial de se entender a “cultura”
sário reconhecê-lo. Constata o autor: de um povo. O culturalismo preocupou-se, en-
tre outros, em entender como uma cultura se
[...] há entre o mundo dos adultos e o das crian- reproduz através da socialização das crianças.
ças como que um mar tenebroso, impedindo a A idéia básica de socialização de Mead,
comunicação. Que somos nós, para as crianças tida como via de mão única, na qual o adul-
que brincam ao nosso redor, senão sombras?. to ensina à criança como se tornar social em
determinada sociedade, deslanchou uma forte
Contrariando Durkheim (1922), Bastide crítica por parte dos chamados new social stu-
defende a necessidade de se multiplicarem as dies of childhood, a partir da década de 80 do
pesquisas deste tipo, ressaltando a importân- século XX. O principal objetivo desses estudos
cia de se estudar as representações infantis, de era estabelecer a compreensão dos fenômenos
conhecer o mundo dos brinquedos, das brin- da infância a partir do social, inaugurando,
cadeiras e jogos8. então, a era do construcionismo social nos
estudos infantis. As crianças deixariam de ser
vistas como passivas e dependentes do mun-
Uma cultura ou sociedade das do adulto, para serem pensadas como sujeitos
crianças? plenos, rompendo a relação necessária entre
família-socialização-criança a fim de conceber
Na antropologia, por sua vez, a infância a infância como um objeto de estudos váli-
sempre foi contemplada nas monografias de do em si mesmo. A ênfase voltava-se para a
modelo clássico, porém sempre como tema ad- fenomenologia com Merleau-Ponty, para os

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estudos literários, e privilegia-se o trabalho primeiros anos da vida. Infância, como dis-
de campo e as descrições como métodos mais tinta da imaturidade biológica, não é uma
adequados para o estudo da diversidade das característica natural e nem universal dos
experiências e formas de infância. grupos humanos, mas aparece como um
A partir dos new social studies, na psico- componente estrutural e cultural específico
logia, criticou-se a noção de desenvolvimento em muitas sociedades.
(infantil) tido como excessivamente individual 2. A infância é uma variável da análise social.
e biológico. Na sociologia e na antropologia, Ela não pode nunca ser separada das outras
fortaleceu-se a crítica da noção de socialização, variáveis, como classe, gênero ou etnicidade.
como ação de sujeitos plenos (adultos) sobre Análises comparativas e interculturais reve-
sujeitos incompletos (crianças): lam uma variedade de infâncias e não um
fenômeno único e universal.
Na abordagem sociológica da infância o concei- 3. As relações sociais das crianças são válidas
to central é socialização. Um sinônimo para este como objeto de estudo em si mesmas, inde-
processo poderia ser aculturação, na medida em pendentemente da perspectiva e das preocu-
que este termo implica que na aquisição cultural pações dos adultos.
as crianças não são vistas como indivíduos com- 4. As crianças devem ser vistas como ativas na
pletamente equipados para participar em um construção e determinação de suas próprias
mundo adulto complexo, mas como seres que vidas, na vida daqueles que as cercam e das
têm o potencial para serem trazidos lentamente sociedades onde elas vivem. As crianças não
para o contato com os seres humanos” (Ritchie; são simplesmente sujeitos passivos frente às
Kollar, 1964, tradução minha). estruturas e processos sociais.
6. A etnografia é uma metodologia particu-
Deste modo, como conseqüência larmente útil para o estudo da infância. Ela
permite que a criança participe mais e tenha
de um membro adulto ser considerado natural- uma voz mais direta na produção do dado
mente maduro, racional e competente a criança é social em comparação ao que normalmente
vista, em justaposição, como não completamen- é possível usando estilos de pesquisa experi-
te humano, não acabado e incompleto”(Jenks, mentais ou surveys.
1982, p. 19, tradução minha). 7. A infância é um fenômeno em relação ao
qual a dupla hermenêutica das ciências so-
Os new social studies questionaram estes ciais se apresenta (veja Giddens 1976). Pro-
conceitos de criança e adulto, propondo alter- clamar um novo paradigma para a sociologia
nativas que enfatizassem a agência infantil. da infância é também se engajar no e res-
Alan Prout e Allison James, grandes repre- ponder ao processo de reconstrução da in-
sentantes deste paradigma, também chamado fância na sociedade (James; Prout, 1990, p.
new paradigm in the sociology of childhood, ela- 8, tradução minha).
boraram uma síntese bastante elucidativa deste
período da disciplina, que gostaria de apresen- Woodhead, Montgomery e Burr (2003a)
tar, apesar da extensa citação. prefere usar no lugar de criança socialmente
1. A infância deve ser entendida como uma construída ou estruturada, termo consagrado
construção social. Como tal, ela provê um pelos new social studies of childhood, o termo
quadro interpretativo para contextualizar os criança sócio-cultural ou criança na sociedade,

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já que os primeiros enfatizam por demais a […] antropologia tende ainda a assumir que o
abordagem sociológica. Segundo ele, Prout ponto de chegada da socialização é sabido. Esta
(2005) e outros autores, o campo de estu- suposição está na raiz no desinteresse da antro-
dos da infância é um campo necessariamen- pologia pelas crianças.
te interdisciplinar. O autor condensa os seis
tópicos propostos acima em apenas dois prin- A autora não apenas sugere que a sociali-
cípios. Quais sejam: zação não tem fim no adulto, como também
afirma que o desinteresse da antropologia pelas
O primeiro é sobre infância: a infância é social- crianças pode estar ligado a este mau entendi-
mente construída em todos os níveis e isso tem mento do processo de aprendizagem.
implicações em como ela é estudada e teorizada. Por sua vez, a socialização tal como foi tra-
A segunda é sobre criança: deve-se reconhecer tada pelos antropólogos e sociólogos que ten-
seu status e os seus direitos como o ponto de taram entender a infância de uma perspectiva
partida para a pesquisa, política e prática (Woo- social não dá conta do processo que culmina
dhead; Montgomery; Burr, 2003, p. 16-17, tra- com uma pessoa que crê, por exemplo, na
dução minha). aparição de espíritos, para citar o meu campo
de estudos. Em 1970, J. Briggs lançou o livro
Ele afirma, além disso, que não adianta Never in Anger, no qual ela mostra como a
apenas ouvir as crianças e transcrever suas sociedade Inuit e a infância Inuit são criadas
falas. É preciso que a análise do pesquisa- simultaneamente. Ela afirma posteriormente
dor esteja em sintonia com os interesses das (1992) que os adultos, assim como as crian-
crianças e não com os do pesquisador e da ças, nunca cessam de reelaborar sua cultura e
sociedade adulta (Woodhead; Montgomery; identidade. Daí a afirmação de que também
Burr, 2003, p. 32). a cognição adulta deve ser tratada como flui-
A idéia de socialização, criticada pelos da, em processo e contextualizada, já que os
new social studies, pressupõe um indivíduo adultos também estão reelaborando sua cul-
adulto que impõe sua visão de mundo a uma tura constantemente. Dessa forma, estudar
criança. Hoje em dia essa idéia de socializa- crianças pode levar não apenas a repensar o
ção é considerada ultrapassada. Ao contrário processo de aprendizado, mas aos conceitos
disso, aceita-se que as crianças são agentes da de cultura e ao seu correlato, de sociedade,
sua própria socialização, paralelamente ao incluindo dinâmica na análise de processos
adulto. O problema, nesse caso, é que os new culturais e societais.
social studies tenderam a inverter a balança, Parece-me que os new social studies of chil-
colocando a criança como sujeito pleno da dhood enfatizaram sobremaneira a agência in-
sua própria socialização sem, no entanto, 1) fantil – o que criou um descompasso entre as
reconhecer o papel do adulto neste processo, relações crianças-adultos, esvaziando o poder
e 2) criticar a própria noção de socialização destes sobre aquelas de maneira incoerente.
enquanto aprendizado estático e previsível. Veja esta citação de Corsaro e Molinari (2000,
Como afirmou Mayer “a socialização tem p. 197-8, tradução minha):
lugar durante toda vida, ela não termina na
infância (1970, p. 82, tradução minha)”. To- a socialização não é alguma coisa que aconte-
ren (1993, p. 461, tradução minha) vai mais ce com as crianças, é um processo pelo qual
longe e afirma as crianças em interação com os outros, pro-

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duzem a sua própria cultura e eventualmente das crianças, uma sociedade das crianças que
reproduzem, estendem ou compartilham o existe concretamente em oposição à sociedade
mundo adulto. dos adultos9. Como toda cultura, a cultura in-
fantil teria suas representações, regras, concei-
[…] as crianças são agentes sociais ativos e tos, formas adequadas de ação social, símbolos,
criativos, que produzem a sua própria e única linguagem10. Tendo, no entanto, a concordar
cultura das crianças, enquanto simultanea- com James, Jenks e Prout (1998) no sentido
mente contribuem para a produção de socie- de que as
dades adultas (Corsaro, 2005 [1997], p. 4-5,
tradução minha). [...] abordagens sobre a cultura das crianças são
problemáticas porque de diferentes maneiras
A infância, como afirma Toren (1999), é eles retiram o contexto social da vida das crian-
um espaço de intersubjetividades. Uma crian- ças que não concerne à relação com as outras
ça aprende sobre o mundo que lhe cerca e crianças (James; Jenks; Prout, 1998, p. 82, tra-
toma conhecimento dele nas relações sociais dução minha).
que estabelece com os outros membros da sua
comunidade, sejam eles adultos ou crianças. Do mesmo modo, Mayall (1995) argumen-
O material de pesquisa que coletei está repleto ta que tratar as crianças em separado do mun-
de histórias contadas pelas crianças relatando do adulto é ir em sentido contrário à realidade
experiências de parentes próximos, mãe, pai, da criança, que vive em um mundo cercado
avó, etc., com os mal-assombros. Com isso, também de adultos.
parece que a ênfase deve estar colocada nas re- Falar sobre a cultura das crianças ou as cul-
lações sociais, nas palavras de Strathern (1996) turas das crianças traz alguns outros problemas.
e Toren (1999), na rede de attachement como Primeiro porque a cultura é um conceito chave
quer Latour (2000) ou ainda no rizoma, se- para antropologia, mas passou a ser a causa e o
gundo Deleuze (1980). Essas idéias, embora efeito, quando talvez fosse mais produtivo ser
guardem suas discordâncias, concordam que tida como ponto de partida para investigações.
o lócus da vida social está nas relações que es- Em segundo lugar, na pesquisa que realizei, per-
sas pessoas, adultas ou crianças, estabelecem cebi que não há como tomar as crianças como
entre si e entre os outros elementos da rede. um mundo à parte. Durante o meu trabalho
E Latour deixa claro que estes elementos não de campo, uma menina de doze anos de idade
são apenas humanos, deixando uma brecha uma vez indagou-me por que não ir à sua casa
para incluir as entidades mal-assombradas – conversar com a sua mãe sobre os mal-assom-
no caso do campo de pesquisa específico den- bros. Ela não entendia o motivo de eu priorizar
tro do qual trabalho. a sua versão dos fatos, já que, na sua opinião, a
Baseada nos dados de campo que produ- sua mãe e o seu pai entendiam muito mais do
zi, sugiro que quando estudamos as crianças assunto que ela própria. Não há criança sem
é preciso incluir os adultos. Alguns autores, adulto, e não faz sentido estudar somente as
como Wartofsky (1983), Tammivaara e Enri- crianças como um mundo à parte e fechado
ght (1986), W. Corsaro (1993, 1997, 2003), em si mesmo, simplesmente porque isso não
Thorne (1993), Sarmento e Pinto (1997) e corresponde à realidade. Sabemos muito bem,
Corsaro e Molinari (2000) pensam o contrá- depois de ler Robert Redfield e Levi Strauss,
rio, argumentando nos termos de uma cultura só para citar alguns mestres, que nenhuma so-

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P   :       (  )  | 

ciedade sobrevive de “portas” fechadas. Que a da Criança e do Adolescente, que perpetuam


“cidade” e o “campo” enquanto conceitos são um viés considerado ultrapassado por estes teó-
partes de uma mesma realidade e foram forma- ricos, no qual as crianças eram invariavelmente
dos exatamente no mesmo instante, por meio vistas como excessivamente passivas e depen-
de uma relação de interdependência. As crian- dentes do adulto e à mercê de proteção e tutela.
ças são parte da sociedade e, quando digo isso, No entanto, para além das políticas públicas e
não retiro a agência infantil; pelo contrário, da política acadêmica, parece haver incutido no
afirmo-a. As crianças têm suas particularida- diálogo uma lógica científica muitas vezes pen-
des na forma de conceber e experimentar o dular entre pensamentos que se sucedem no
mundo: é sábio não negligenciá-las. Mas no tempo. O que quero dizer é que uma mudança
mundo, o que opera são as relações entre as de perspectiva dentro dos estudos que enfati-
pessoas, sejam adultos ou crianças. Ambos são zavam as crianças pode ser melhor entendida
parte da sociedade, com inserções diversifica- se referida ao conjunto da produção acadêmi-
das e, portanto, com pontos de vista diferen- ca antropológica; que parece ter influenciado
tes que devem ser explorados para se chegar a mudança do paradigma culturalista para um
a um retrato mais fiel de uma comunidade. paradigma que valorizava mais a agência, ao
Não acredito que a opção teórica que fiz retire mesmo tempo em que, em detrimento da no-
o poder das crianças. A agência, me parece, ção de cultura, passa-se a priorizar o indivíduo
é uma condição do indivíduo em sociedade, inserido nela.
não importa que categoria de indivíduo. Não Nessa direção, vemos ocorrer recentemente
acredito que seja útil, pelo menos para a an- uma crítica interna aos new social studies of chil-
tropologia, estudar as crianças em si mesmas, dhood nos livros de Alan Prout (2000, 2005),
como ambiciona o quarto tópico de Prout e como mostra a citação:
James (1990) citado anteriormente.
Muito esforço foi dispensado no começo [...] nós precisamos descentralizar a agência,
da descoberta da infância enquanto fenômeno perguntando-nos como é que as crianças algu-
social pela antropologia e sociologia, nas últi- mas vezes a exercitam [...]. A observação de que
mas duas décadas do século passado e, no meu as crianças podem exercitar a agência deveria ser
ponto de vista, ocorreu um certo exagero. Tal- um ponto de análise inicial e não um ponto de
vez na tentativa de estabelecer esta área de pes- chegada (2000, p. 16, tradução minha).11
quisa dentro do jogo das políticas acadêmicas,
tendeu-se a enfatizar em demasiado a chamada Allison James também parece rever suas
agência infantil e, com isso, caiu-se em outro próprias afirmações quando menciona que a
extremo, em que as crianças eram vistas como ausência dos adultos – no caso, os pais – nos
um mundo à parte da sociedade adulta, com estudos sobre infância é similar à operação de
regras, linguagem, rituais próprios e indepen- exclusão das crianças dos estudos sobre família
dentes. Para quê? Entre outras coisas, para cor- (James, 1999, p. 184)12. De um lado, a agência
rigir uma injustiça praticada desde sempre na não deve ser levada ao extremo, como também
história da antropologia e da sociologia, para não deve deixar de ser contemplada. É preci-
dar vozes àqueles que mais intensamente que as so, como sugere Prout (2005), pesquisar até
mulheres foram silenciados enquanto sujeitos que ponto ela opera. O exemplo de Palmer e
nas pesquisas. Também para denunciar as polí- Hardman (1999) pode ser interessante. Elas
ticas de proteção às crianças, como o Estatuto organizaram um livro sobre as crianças nas

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 | F P

novas religiões. Dividiram-no em duas partes. família como, por exemplo, não responder às
Na primeira parte, enfatiza-se a agência infan- perguntas sobre o tema ou mentir, dizendo
til, no sentido de como as crianças modificam que uma criança que estava muito doente foi
estes movimentos religiosos. A segunda parte para casa quando, na verdade, havia morrido.
trata de como estes movimentos moldam as Por sua vez, James (1993) elaborou a sua
crianças. É preciso não partir do pressuposto classificação de como as ciências sociais vêm
da agência (ou da construção social), mas ave- trabalhando as crianças, na qual afirma que elas
riguar até que ponto ela está presente (Pires, foram tratadas das seguintes formas:
2004).
t Criança em desenvolvimento. Tratada
como incompleta, sem status e relativa-
Outras classificações mente incompetente.
t Criança tribal. Tratada como competente
Outra maneira de compreender os estudos por ser parte de uma cultura que deve ser
sobre infância é classificá-los como estudos que estudada em si mesma, a cultura infantil,
concebem as crianças como índices13 do mundo mas não pertencendo ao mesmo mundo
adulto e estudos que trataram as crianças como comunicativo do pesquisador. Em parte,
agentes. Como afirmei, os estudos de crianças desenvolveu-se como resposta às aborda-
como agentes tratam de analisar a infância de gens da criança em desenvolvimento (Ja-
uma perspectiva mais interpretativa, fenome- mes; Jenks; Prout, 1998, p. 180).
nológica e literária. O objetivo é compreender t Criança adulta. Vista como socialmente
as crianças segundo elas mesmas, como seres competente da mesma forma que o adul-
ativos e participativos na sociedade envolven- to.
te e mais, com particularidades que requerem t Criança social. É vista de maneira dife-
métodos e teorias apropriadas. Nessa perspec- rente em relação ao adulto, mas não ne-
tiva, há uma ênfase em como as crianças en- cessariamente com competências sociais
quanto agentes criam, interpretam, adquirem inferiores.
e recriam a cultura juntamente com os adul-
tos e com outras crianças. Um bom exemplo a Em livro posterior, juntamente com Jenks
ser citado é o livro de Bluebond-Langner, The e Prout, James (1998) apresenta uma classifi-
private world of dying children, de 1978. Ela cação dos estudos das crianças de maneira am-
demonstra, por meio de uma pesquisa com pliada. Exponho aqui uma elaboração pessoal
crianças portadoras de câncer, como elas são a partir das idéias deste livro paralelamente às
capazes de elaborar seu próprio entendimento idéias do livro de Smart, Neale e Wade (2001).
sobre o mundo em que foram inseridas, sobre De tal modo, estudos que incluíram a infância
o funcionamento do hospital, drogas, morte, poderiam ser divididos entre aqueles que trata-
estágios da doença e nomes médicos, ainda ram a criança como 1) ser pré-social e, poste-
que não tenham sido ensinadas formalmente. riormente, como 2) ser social.
Além disso, a autora assinala como as crian- 1) Os estudos da criança pré-sociológica
ças sabem que vão morrer com certa precisão dividem-se em:
temporal. Mesmo que haja todo tipo de ten-
tativas de esconder a possibilidade da morte t A criança má. A corrupção e a maldade são
das crianças por parte da equipe médica e da os elementos primários da constituição da

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P   :       (  )  | 

criança, de acordo com Hobbes, o Antigo com o relativismo e com o construtivismo


testamento, a criminologia, a prática peda- social, estuda as formas das identidades in-
gógica e a moral pública. As crianças eram fantis.
vistas como pequenos demônios marcados t A criança socialmente estruturada. Infância
com o pecado original. Como resposta a é uma constante e um reconhecido compo-
isso, métodos severos de educação foram nente de todas as estruturas sociais através
desenvolvidos na Europa Puritana nos sé- do tempo e do espaço. Qvortrup é o grande
culos XVI e XVII. Uma variação do modelo representante deste tipo de abordagem mais
é a criança como um pequeno selvagem ou comprometido com um conceito global
bárbaro, em que ela é vista como inciviliza- de infância. A infância, segundo ele, sem-
da, mas não necessariamente má. pre existiu, não concordando, desta forma,
t A criança inocente. Em Rousseau, temos o com a tese da invenção da infância na época
maior exemplar da concepção da criança moderna.
naturalmente boa, pura, inocente e gentil. t A criança tribal. Concentra-se em estudar o
A bondade da criança é um dado da natu- mundo infantil, as brincadeiras, a escola, a
reza, e não social. Ele propunha ao invés da literatura. Teve grande repercussão nos anos
punição, a proteção e a celebração da sua 1950 e 1960 com o casal Iona e Peter Opie,
bondade14. principalmente na antropologia. A ação so-
t A criança em desenvolvimento natural ou cial da criança é estruturada, mas por meio
modelo embrionário. Na psicologia de Jean de um sistema não conhecido pelos adul-
Piaget, tido como um modelo evolucionis- tos; portanto, são necessárias as etnografias.
ta, a criança inicia a vida como um simples Pode ser vista como uma versão poten-
organismo biológico, e termina por alcan- cialmente politizada e empírica da criança
çar os variados estágios de desenvolvimento socialmente construída. Parte de uma visão
através do progresso físico e intelectual. O particularista que vê a criança localizada no
conceito de criança, em Piaget, é a - histó- espaço e no tempo e imbuída de agência.
rico, generalizado e hipotético. “A criança” t A criança enquanto um grupo minoritário. A
representa todas as crianças. Além disso, ela infância é socialmente estruturada. Há uma
era vista como um ser em potencial, não relação de poder entre crianças e adultos que
um ser completo; por isso, o nome modelo necessita ser mudada. A sociologia ou an-
embrionário. tropologia devem existir “para as crianças” e
não apenas “sobre as crianças”. Em relação
2) No modelo da criança sociológica, ela foi aos seus direitos, a infância é uma categoria
tratada em si mesma como lócus de pesquisa universal. É uma abordagem universalista e
e não como intermediária para as questões da global, que vê a criança como ativa e cons-
família ou da escola. Subdivide-se em: ciente. Como se vê, pode ser pensado como
uma modificação mais empírica e politizada
t A criança socialmente construída. A aborda- da criança socialmente estruturada.
gem nasce contra o positivismo da sociolo-
gia britânica nos anos 1970, com inspiração De acordo com a figura abaixo (James;
em Husserl e Heidegger. Acredita que não Jenks; Prout, 1998, p. 206), as abordagens da
há uma criança universal, mas uma plurali- criança socialmente construída e criança como
dade de formas de infância. Comprometida minoria social têm tantas relações entre si,

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 | F P

quanto a criança socialmente estruturada e a meio de dois autores que me parecem interes-
criança tribal. santes para se distinguir entre a antropologia
da criança e a antropologia da infância.
Voluntarismo
Agência
Diferença Antropologia da criança

Criança Criança enquanto William Corsaro, sociólogo norte ameri-


Tribal grupo minoritário
Particularismo Universalismo
cano, vê as crianças como agentes sociais que
Local Glocal contribuem para a reprodução da infância e
Mudança Continuidade
Criança Criança
da sociedade através da negociação com adul-
socialmente socialmente tos mas, principalmente, através da produção
construída estruturada
criativa de culturas de crianças com seus pares.
O autor desenvolveu o conceito de reprodu-
Identidade
Estrutura ção interpretativa, segundo o qual as crianças
Determinismo ativamente contribuem para a preservação ou
reprodução e modificação da sociedade. Este
conceito representa sua tentativa de conciliar
Antropologia da criança / o que ele denominou os modelos deterministas e
antropologia da infância os modelos construtivistas.
O modelo determinista compreende os mo-
Gostaria de esclarecer, já chegando ao fim delos funcionalistas dos anos 50 e 60 que se
deste artigo, o que se acredita ser a diferen- concentraram nos aspectos superficiais da in-
ça entre os estudos das crianças e da infância. ternalização das normas sociais requerida pelo
De maneira geral, a antropologia da infância processo de socialização. Para T. Parsons, um
visa a estudá-la como uma instituição social, dos representantes deste modelo, as crianças
como uma representação cultural, como um são uma ameaça à sociedade e devem ser en-
discurso ou como uma prática. Por sua vez, quadradas nela. Os modelos reprodutivos,
a antropologia da criança atém-se a estudar o incluídos entre os deterministas, foram desen-
crescimento, o aprendizado, o trabalho e as volvidos por Bourdieu, Bernstein, Passeron.
brincadeiras das crianças (Woodhead; Mon- Segundo Corsaro, Bourdieu oferece uma visão
tgomery, 2003, p. 8). Tentei trabalhar na mi- um pouco menos determinista reconhecendo,
nha tese de doutorado tanto na perspectiva da apesar de sutilmente, a agência infantil – sem,
antropologia da criança, que se concentra nas no entanto, conceber a criança como agente
próprias crianças em ação, como também na de nenhum papel ativo na mudança cultural.
perspectiva de uma antropologia da infância, A criança apenas participa e reproduz a cul-
na qual os constrangimentos e as especifici- tura. O modelo determinista concebe a crian-
dades de uma geração em uma determinada ça como um ser passivo que pode contribuir
sociedade ou cultura é que estão em jogo. para a manutenção da sociedade e que deve ser
Acredito que seja mais profícuo tentar pen- controlada pela educação. Segundo Corsaro,
sar, ao mesmo tempo, as duas perspectivas, ou a fraqueza do modelo reside na simplificação
seja, as crianças inseridas em um contexto de demasiada de processos complexos e à falta de
infância específica, que varia historicamente e atenção à importância da criança e da infância
culturalmente. Exemplificarei a distinção por na sociedade.

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P   :       (  )  | 

Por sua vez, os modelos construtivistas conce- São eles: educacional, familiar, comunitário,
bem a criança como agente ativo e como jovem econômico, cultural, religioso, político e ocu-
aprendiz, argumentando que ela ativamente pacional. Para o autor, o desenvolvimento in-
constrói seu mundo social e seu lugar dentro dividual está envolvido na produção coletiva de
dele. Este modelo tem como ícones Piaget e uma série de culturas infantis que, por sua vez,
Vygotsky. O segundo elaborou a teoria do de- contribuem para a reprodução e a mudança no
senvolvimento intelectual como uma progres- mundo adulto. O diagrama espiral torna possí-
são por meio de séries de estágios de habilidade: vel a visualização da participação constante das
desde os primeiros dias de vida, a criança in- crianças em uma rede em que estão envolvidos
terpreta, organiza e usa as informações do am- os adultos e as crianças e, conseqüentemente,
biente para construir as concepções conhecidas a visualização do fato de que as duas culturas,
como as estruturas mentais. Ao contrário de adultas e infantis, estão necessariamente impli-
Piaget, para quem o desenvolvimento humano cadas. Apesar de não concordar com os termos
é primariamente individual, dado em proces- “cultura infantil” e “cultura adulta” tendo a
sos cognitivos e estruturais. Segundo Corsaro, concordar com Corsaro quanto à participação
a debilidade do modelo construtivista reside no necessária das crianças e dos adultos na análise
seu foco central no desenvolvimento indivi- do mundo social. Resulta disso a implicação
dual, com pouca consideração em relação às de que a pesquisa deve ser realizada tanto com
experiências interpessoais no desenvolvimento crianças quanto com adultos. Implicação com
individual. Vygotsky, de outro lado, com uma a qual Corsaro, curiosamente, não comparti-
visão sociocultural do desenvolvimento huma- lha, já que concebe as crianças como consti-
no concebe a criança como tendo um papel tuindo um mundo autônomo em relação aos
ativo do desenvolvimento humano, sendo este adultos e que, por isso, deve ser estudado em
entendido como primariamente coletivo, dado si mesmo16.
na história e no contexto.
A proposta de Corsaro de reprodução inter- Antropologia da infância
pretativa vê a criança como participante ativo
na sociedade e reconhece a importância da co- Por sua vez, Jens Qvortrup (1990, 1993a,
letividade, da relação com os adultos e com os 1993b) do Norwegian Centre for Child Resear-
pares. Para ele, o termo socialização é por de- ch, na Noruega, trabalha com uma perspectiva
mais equivocado e deveria ser abandonado. A diferente da de Corsaro. A infância, nos seus
sua noção captura a idéia de inovação e criati- termos, é um fenômeno social construído so-
vidade na participação em sociedade (interpre- cialmente, mas é também uma categoria estru-
tativa) e, ao mesmo tempo, a sua contribuição tural que deve ser explicada por meio da relação
para a reprodução cultural (reprodução)15. O entre as outras estruturas sociais. Infância não
autor concebe um diagrama do the orb web mo- é uma fase transitória, é sim uma estrutura que
del (1997, p. 25) como metáfora da reprodução se encontra em todas as sociedades.
interpretativa. No centro do diagrama em for-
ma de espiral, vemos a família de origem. À A concepção [de infância] vincula a idéia que
medida que a espiral vai se expandindo, a idade infância é uma estrutura permanente em qual-
vai aumentando, de idade pré-escolar, pré-ado- quer sociedade, mesmo se os seus membros são
lescência, adolescência, até a idade adulta. Todo continuamente substituídos (1990, p. 8, tra-
o diagrama é atravessado por diversos campos. dução minha).

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 | F P

Portanto, sua pesquisa concentra-se na in- reito “natural” de exercer poder sobre as crianças
fância, e não nas crianças em particular. Ele (Qvortrup et al., 1994, p. 3, tradução minha).
argumenta ainda sobre a ausência das crianças
nas estatísticas oficiais sobre política, macroeco- Finalmente, a ideologia da família, que pre-
nomia, bem-estar social. Avançando um pouco ga que a criança é sua propriedade e sua respon-
a discussão, eu diria que não se deve apenas de- sabilidade, constitui uma barreira que impede
senvolver dados estatísticos sobre as crianças, o bem-estar social e os interesses das crianças
mas que a opinião das próprias crianças deve de serem alcançados.
ser levada em conta para o desenvolvimento Podemos dizer que Qvortrup e os outros
de projetos de ação social voltados não apenas pesquisadores que seguem a linha da infância
para a infância, mas para a sociedade abran- como um fenômeno social, como ele mesmo
gente – uma vez dado que a criança também intitula, abordam o tema de uma perspectiva
faz parte da sociedade17. Qvortrup acredita diversa dos new social studies of childhood na
que a infância é uma parte integrante da so- medida em que 1) não concebem o estudo das
ciedade e afeta o mundo social e econômico. crianças enquanto válido em si mesmo, além de
Por exemplo, as crianças, mesmo quando não 2) não conceberem diferença ontológica entre
trabalham, também fazem parte da divisão crianças e adultos. Por fim, estes pesquisadores
social no trabalho, dado que é o seu estudo tecem uma crítica à antropologia e sociologia
que permite aos pais trabalharem. da criança, entendida em contraponto à antro-
Para o autor, não se deve separar infância pologia e sociologia da infância.
de outras variáveis da análise social, como
gênero, classe social, etnicidade – ela deveria
ser vista como uma variável entre tantas. As Conclusões
crianças, segundo Qvortrup (1993), não são
apenas recipientes da cultura dos adultos, mas Como vimos, há uma variedade de inter-
também co-construtoras da própria infância pretações sobre a história do campo de estudos
e da sociedade. Elas estão expostas às mes- das crianças. De outro lado, não há ainda um
mas forças sociais que os adultos, como, por corpus teórico hegemônico ao qual os neófi-
exemplo, a economia e as instituições, mas tos possam se reportar. Em contrapartida, há
de uma maneira específica. Como pertencen- um conjunto de teorias de ciências afins que
tes a um grupo minoritário, em relação ao pode ser utilizado para a elaboração de pesqui-
status e aos privilégios do grupo dominante sas com as crianças. Ao mesmo tempo, como
(os adultos), as crianças estão sujeitas a ten- mostrei, há diferentes maneiras de pesquisar as
dências de marginalização e paternalismo. A crianças, já testadas ou em desenvolvimento, no
autora afirma que não há diferença ontológi- seio da antropologia, o que atesta a vitalidade
ca entre crianças e adultos, e é uma diferença e a pertinência do tema. Além disso, É interes-
construída que permite o uso do poder pelos sante lembrar que a velhice e a juventude têm
adultos (human beings) e não pelas crianças se colocado como temas centrais de pesquisas
(human becomings). acadêmicas e de políticas públicas com as mo-
dificações que a pirâmide etária vem sofrendo
Questionar o princípio das diferenças ontológi- em diversas sociedades, principalmente com o
cas entre os adultos e as crianças é uma objeção ao aumento do número de idosos e a diminuição
argumento ideológico de que os adultos têm o di- do número de jovens e de crianças.

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Studying children and childhood – some quecida com o passar dos anos. Os autores afirmam
theoretical approaches to the study of (and sua filiação a Alister Hardy (1965, 1966, 1979), um
zoólogo darwinista da Universidade de Oxford que
with) children
trabalhou com a “[…] hypothesis that what he called
‘religious experience’ has evolved through the process
abstract: The paper draws a partial theoretical of natural selection because it has survival value to
approach to the studies of (and with) children in the the individual” (Hay; Nye, 2006 [1998], p. 22). Para
eles, “By locating spirituality in the human organism
social sciences – particularly in anthropology. While it places a focus on childhood and on spirituality is
this does not intend to be complete, it is able to cover intrinsic rather than taught” (Hay; Nye, 1996, p.
parts of Brazilian, European and American academic 13). Eles ainda afirmam que “We will thus be able to
production; with a focus on the intersection with move beyond an understanding of children´s spiri-
tuality based on ‘knowledge’ towards a more general
religious studies. This text is based on my doctoral psychological domain of spirituality as a basic form
studies as the research which informs this bibliogra- of knowing, available to us all as part of our biolo-
phical account was undertaken as part of these stu- gical inheritance” (Hay; Nye, 1996, p. 10). E con-
cluem dizendo que “Spirituality is characterized here
dies. However, this paper wishes to raise some generic
as a natural form of human awareness” (Hay; Nye,
anthropologic discussions, such as the definition and 1996, p. 6). Espiritualidade, em seus termos, é algo
use of concepts like culture and society. mais abrangente que a religiosidade, e é encontrada
keywords: Anthropology of childhood. An- em ambientes seculares. A minha pesquisa do douto-
rado distingue-se da pesquisa ora citada, na medida
thropology of children. Religion. em que não estou interessada em pesquisar as origens
da religião ou da experiência religiosa.
4
Para este autor (Robinson, 1977), a experiência re-
Notas ligiosa é uma experiência ordinária que ocorre de
primeira mão e, por isso, de maneira mais completa,
na infância. A esta experiência, ele denomina “a vi-
1
Este artigo é uma reelaboração da segunda parte da
são original”. Como na experiência mística, o sujeito
Introdução da minha tese de doutorado, recentemen-
sente que foi abalado por um poder maior que ele
te defendida no Programa de Pós-Graduação em An-
próprio. Para o autor, essa experiência é essencial para
tropologia Social do Museu Nacional – UFRJ, cujo
o desenvolvimento do entendimento maduro, não se
título é “Quem tem medo de mal-assombro? Reli-
tratando de fantasia, mas sim de conhecimento. “I
gião e Infância no Semi-árido Nordestino”. Gostaria
believe that what I have called “the original vision” of
de agradecer à Wenner Gren Foundation e à CAPES
childhood is no mere imaginative fantasy but a form
pelas bolsas concedidas para a realização da pesquisa
of knowledge and one that is essential to the develo-
bibliográfica que aqui apresento. E aos meus orien-
pment of any mature understanding” (p. 16).
tadores, Otavio Velho e Christina Toren, por todo o
apoio recebido durante os anos da pesquisa.
5
A partir disso, a autora chega a sua definição de mind.
“Mind is a function of the whole person constituted
2
Há espaço para variadas formas de se conceber a in-
over time in intersubjective relations with others in
fância. Uma delas, por exemplo, é a teoria que procla-
the environing world” (Toren, 1999, p. 12).
ma o fim da infância (Buckingham, 2000; Postman,
1994). Neste terreno, os meios de comunicação, como
6
Segundo Piaget, dos três a seis anos predomina na
a televisão e a internet, são considerados os culpados criança o estágio pré-operacional: nele, a criança vê
pela indistinção da fronteira entre idade adulta e idade o mundo segundo termos antropomorfos. Aos seis
infantil. Na contracorrente desses estudos, outros pes- ou sete anos, a criança adquire as operações concre-
quisadores afirmam que as novas mídias eletrônicas são tas que lhe proporcionarão no futuro a possibilidade
responsáveis pela tomada de poder pelas crianças em de uma relação pragmática com o mundo. Aos onze
relação aos adultos, já que os primeiros as dominam ou doze anos, tornam-se possíveis as operações for-
com mais facilidade que os seus pais. mais, com novos modos de pensamento e aquisição
de concepções abstratas a respeito do espaço, tempo e
3
Hay e Nye (2006 [1998]), preocupados em estudar
causalidade.
a educação espiritual, afirmam que as crianças têm
experiências religiosas mais intensas que os adultos
7
Posteriormente, em outras palavras e por uma femi-
porque naturalmente os seres humanos são equipa- nista norte-americana, chegamos a formulações deste
dos com uma consciência religiosa que vai sendo es- tipo: “As interações das crianças não são preparações

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 | F P

para a vida, já são a própria vida” (Thorne, 1993, p. quisou-se como os universais da biologia do desen-
3, tradução minha). volvimento eram mediados por contextos históricos
8
Segundo Bastide, “para poder estudar a criança é pre- culturais e pelos processos sociais cotidianos. Alguns
ciso tornar-se criança. Quero com isso dizer que não teóricos: Dasen, Shildkrout, Levy, Goodman.
basta observar a criança, de fora, como também não e) Papéis (role play): explorando a natureza relacional
basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, da vida social, teríamos a natureza relacional do papel
além do círculo mágico que dela nos separa, em suas do adulto e do papel da criança, que só fazem sentido
preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinque- se remetidos um ao outro. Harkness, Super, Goody,
do” (Bastide, 1979, p. 154, tradução minha). Carsten são pesquisadores tidos como representantes
9
Sylvia Anthony (1971, p. 78) fala de uma “sub-cultu- desta abordagem.
ra” de crianças. f ) Autoconsciência: como as crianças movem-se de
10
Para Corsaro, a cultura simbólica infantil alimen- uma inconsciência primitiva a uma reflexividade
ta-se da mídia e da literatura dirigida às crianças e adulta, paralelamente a humanidade, com a suces-
das figuras míticas e lendas (1997, p. 100), como a são de gerações, tem maiores condições de controlar
língua do Pê. a consciência em relação ao cosmos e a si. Ong é a
representante desta abordagem.
11
Citação completa: “[...] we need to decentre agency,
asking how it is that children sometimes exercise it, g) Política social: foca-se as vidas das crianças como
that is bring about some effect in the relationships in marcas dos níveis de bem-estar social de uma sociedade
which they are embedded, [whilst on other occasions com privações ou desvantagens na contemporaneida-
they do not]. The observation that children can exer- de. Alguns teóricos que desenvolveram essa abordagem
cise agency should be a point of analytical embarka- são Ennew, Lacey, Heath, Weisner, Qvortrup.
tion not a terminus”. h) Crítica social: as crianças são peças-chave na re-
12
“[...] somewhat ironically, therefore, this new exclu- produção dos discursos hegemônicos sobre desigual-
sion of parents from childhood studies mirrors the dade social e cultural, na mesma linha dos trabalhos
somewhat longer exclusion of children from studies de Gramsci e Bourdieu. Jenkins, Hebdige, Scheper-
of family where, traditionally, children’s interests Hughes, Willis são exemplos de pesquisadores que
were assumed to be congruent with those of the fami- abordaram a infância a partir deste paradigma.
ly represented, in turn, as being the interest of their 14
Apesar de incorrer no sentimentalismo, a abordagem
parents” (James, 1999, p. 184). de Rousseau foi importante na medida em que con-
13
Segundo a classificação de N. Rapport e J. Overing cebeu características positivas aos pequenos, abrindo
(2000, p. 29-32), as crianças foram estudadas enquan- espaço para outras abordagens mais generosas para
to índices do mundo adulto por diversas correntes: com as crianças.
a) Relativismo cultural: a infância e a juventude fo-
15
“[...] as crianças e suas infâncias são afetadas pelas
ram usadas como argumento para provar o privilégio sociedades e culturas das quais elas são membros.
da influência da cultura sobre a biologia. Mead e Be- Estas sociedades e culturas, em contrapartida, têm
nedict são apresentadas como exemplos neste tipo de sido moldadas e afetadas pelo processo de mudança
abordagem. histórica” (1997, p. 18, tradução minha) do qual as
crianças são parte ativa.
b) Neo-freudianismo: diversas práticas e cuidados
infantis foram analisados em várias sociedades e es-
16
“[...] children’s peer cultures have an autonomy that
tudadas em termos freudianos, esclarecendo que as makes them worthy of documentation and study in
características adultas são reflexões de conflitos na their won right” (1997, p. 41).
infância. Erikson, Du Bois, Spiro, são tidos como te- 17
Como exemplo, vide Vogel (1995).
óricos importantes desse tipo de análise.
c) Neodarwinismo: as práticas de educação infantil
foram estudadas em relação às pressões do ambiente,
cujo representante teórico é Le Vine. Referências bibliográficas
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autor Flávia Pires


Professora do Departamento de Ciências Sociais/UFPB

Recebido em 15/03/2007
Aceito para publicação em 12/11/08

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