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Latusa digital – ano 2 – N° 14 – maio de 2005

Dos novos sintomas ao sintoma analítico

Elizabeth Karam Magalhães

Na contemporaneidade, a prática clínica confronta o analista com novas formas


do sintoma, que têm sido denominadas por vários autores, dentre os quais
J.-A. Miller, Éric Laurent, Hugo Freda, Bernard Lecoeur e Maurício Tarrab, de
novos sintomas. Ora, o sintoma situa-se em relação ao discurso do mestre1.
Assim, para estudar os novos sintomas, precisamos estar atentos à mudança
dos significantes-mestres que ordenam o social e aos modos de gozo que
respondem a estes. Isto implica em voltar-se para o discurso do mestre
contemporâneo e nele buscar o lugar da psicanálise.

Um percurso do conceito de “novos sintomas”

Desde quando se começou a fazer referência aos novos sintomas no Campo


freudiano? O que se buscava definir com esta expressão?

Minhas leituras indicam que os autores citados começam a falar em novas


formas do sintoma para apontar a proliferação dos gozos fora do discurso. O
adjetivo novos, referido a sintomas que se apresentam na clínica, tem sido
utilizado para abordar a bulimia, a anorexia, a doença do pânico, a
toxicomania, etc. que expressam gozos não regulados pelo sintoma, tal como
entendido até então. Os novos sintomas não são sintomas no sentido clássico,

1
MILLER, J.-A. “Percurso de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987, p. 97.

1
pois não têm como função ordenar o gozo. Eles expressam um gozo solto, sem
sintoma. Se, no sentido clássico, o sintoma traz uma satisfação inconsciente,
nos novos sintomas não há enigma: o sujeito sabe do que goza.

No sentido clássico, o sintoma é pensado como barreira ao gozo, mantendo a


busca de satisfação dentro dos limites do princípio do prazer. É pela via da
palavra que o sujeito confere ao objeto e ao gozo deste seu caráter mítico,
pois o objeto é perdido desde sempre, o que abre a possibilidade de objetos e
gozos substitutos, inscritos na lógica fálica. De acordo com Soler “É isto que o
sintoma faz: dada a falta do parceiro adequado de gozo, um sintoma coloca
alguma outra coisa no lugar; um substituto, um elemento adequado para
encarnar o gozo”. Essa operação de substituição fixa o modo de gozo do
sujeito.2

Se a concepção de sintoma, que vigorou até recentemente, está


fundamentalmente articulada, em Freud e Lacan, à palavra, as novas formas
de sintoma se apresentam mudas, segundo Miller3. Estas se fazem presentes
no corpo de forma mais direta, podendo causar-lhe danos, pois estão referidas
ao corpo fisiológico e não ao corpo pulsional.

Miller vai refletir sobre o que denomina de “novas formas do sintoma” no curso
O Outro que não existe e seus comitês de ética, em que ele e Laurent se
debruçam sobre a inexistência do Outro e suas conseqüências. Aborda essa
questão em outros textos, tais como: “O sintoma e o cometa” e “A teoria do
parceiro”, que são versões revistas de aulas deste seminário. Tais dados
parecem indicar que este curso concentra as primeiras formulações de Miller
sobre as novas formas de apresentação do sintoma.

A contemporaneidade é marcada pela obsolescência do novo, pela troca


constante de objetos, e nela o próprio sujeito passa a ocupar a posição de
objeto. Miller localiza uma fonte de “novos sintomas” naquilo que “nutre a

2
SOLLER, C. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra Capa livraria, 1998, p. 17.

3
MILLER, J.-A. “O sintoma e o cometa”. Opção Lacaniana, n° 19. S. Paulo: Edições Eólia, 1997,
p. 9.

2
inquietude de cada um de nós [...] de talvez não ser mais tão novo assim [...]
E o culto do novo, de modo inexorável, faz do próprio sujeito um objeto
obsoleto, um dejeto”4. Desta forma, “a única coisa que resistiria ao caráter
sintomático do sempre novo é um novo sintoma”5. Não por acaso estamos na
época da invenção do objeto a e de sua subida ao zênite da civilização, na qual
o novo aparece como “forma contemporânea da pulsão de morte”.6

Do sintoma freudiano ao novo sintoma

Freud formula duas abordagens do sintoma. A primeira é construída a partir do


modelo da histeria, na qual o que sofre recalque é o desejo. Neste modelo,
aquilo que, do desejo, é recalcado aparece no corpo como mensagem ao
Outro, o que localiza esta operação no registro simbólico7. A outra concepção
do sintoma é baseada no modelo da neurose obsessiva. Nela, a pulsão aparece
como objeto de recalque. Ou seja, aqui está em causa uma satisfação pulsional
da ordem do excesso, marcada pela repetição do que retorna sempre ao
mesmo lugar, que aponta para um gozo excessivo e fixo.8

O modelo histérico de sintoma foi concebido como possível de ser interpretado


devido à incidência da palavra sobre o sintoma, conferindo-lhe um sentido,
como Freud nos mostrou desde os “Estudos sobre a histeria”. No modelo da
neurose obsessiva, a palavra não tem o mesmo efeito sobre o sintoma, uma
vez que a pulsão não é da ordem da palavra, mas do real. Aí está sempre

4
MILLER, J.-A &. LAURENT, E. Curso de Orientação Lacaniana (1996-97), L’Autre qui n’existe
pas et ses comités d’ethique. Aula de 5 /03/1997. Inédito. Tradução da autora.

5
MILLER, J.-A. “O sintoma e o cometa”. Em: Opção Lacaniana, op. cit., p. 6.

6
MILLER, J.-A &.Laurent, E. Curso de Orientação Lacaniana (1996-97). Aula de 5/03/1997.

7
FREUD, S. “Estudos sobre a histeria” (1895). Em: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago,
1976, vol.II.

8
FREUD, S. “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (1909). Em: Obras completas, Rio de
Janeiro: Imago, 1976, vol X.

3
presente, como se depreende de “Inibição, sintoma e angústia”9, a busca
permanente e insistente de satisfação, a compulsão à repetição de uma
primeira satisfação marcada por um excesso, em que o sintoma aparece como
solução satisfatória substituta: o gozo na prática obsessiva.

Os novos sintomas inscrevem-se no modelo obsessivo, enquanto marcados


pelo real da pulsão, refratários à palavra. Não são sintomas estruturados como
linguagem, não se dirigem ao Outro; eles se referem, pelo contrário, a um
gozo que se presentifica no corpo de forma surda e repetitiva.

As práticas ligadas à palavra, as psicoterapias e a psicanálise, têm como efeito


este fenômeno novo, fruto da cultura contemporânea e da demanda de que o
sujeito fale do seu gozo. É neste contexto que Miller situa o aparecimento de
sintomas mudos.10

Os novos sintomas poderiam ser apontados como fruto da predominância e do


incremento do modelo dos sintomas obsessivos, inclusive na histeria. Ou, indo
além, portadores de uma transestruturalidade, que permite que se apresentem
tanto na histeria, na neurose obsessiva como na psicose.

Segundo Miller, “somente o último ensino de Lacan privilegia [...] o modelo


obsessivo de sintoma”, no qual “o sintoma aparece como real, aquele que
resiste ao dizer”11. Essa concepção permite pensar a toxicomania, em que o
objeto é incorporado, como um gozo auto-erótico que tenta provar a
inexistência do Outro. Por isso, diz Miller, “o gozo toxicômaco tornou-se
emblemático do autismo contemporâneo do gozo”12. O sujeito, na toxicomania,
estaria preso à satisfação paradoxal própria do gozo, articulada tanto ao prazer

9
FREUD, S. “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926). Em: Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1976, vol. XX.

10
MILLER, J.-A. “O sintoma e o cometa”, op.cit., p. 9.

11
Idem, Ibidem.

12
MILLER, J.-A. Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa livraria,
2000, p.172. Ver: ”A teoria do parceiro”.

4
como ao desprazer, e que se apresenta de forma repetitiva, compulsiva e
inadiável. O sujeito está preso a um objeto único, insubstituível, o objeto
droga.

Ao falar sobre a época de Freud, e de como ela propiciou o surgimento da


psicanálise, Miller comenta a importância do conceito de repressão na
estruturação da sociedade, enquanto a interdição que veicula é capaz de
apontar para a falta como condição do desejo. Neste contexto, regulada pela
função paterna, a opção do sujeito moderno vai se dar predominantemente
pela via do desejo. Já na contemporaneidade, nos defrontamos com um visível
aumento da escolha da via do gozo, do sem palavras, da ausência de laço
social, que tem como decorrência os novos sintomas silenciosos.

O declínio do pai na contemporaneidade tem como conseqüência a diluição da


lei e dos ideais morais. Na ausência da prevalência do simbólico ocorre uma
equivalência deste com os registros imaginário e real, o que vai ter
repercussão sobre a forma do sujeito contemporâneo se constituir e sobre a
definição de seus objetos de desejo. Como se constituir sem situar-se em
relação ao Outro que agora não existe?

A queda do Outro paterno aponta para uma fusão, para uma ausência de
intervalo entre o sujeito da contemporaneidade e os objetos que lhe são
oferecidos pela ciência. Eles estão à disposição para seu puro gozo, sem que
seja necessário passar pelo desejo, como se não houvesse defasagem entre o
buscado e o encontrado, ou, em outras palavras, como se a relação sexual
fosse possível. Aqui fica foracluída a questão de que é, justamente, a recusa
da demanda que produz insatisfação, então transformada em desejo, que
conduz ao ideal do eu.13

A quebra da hegemonia da regulação do gozo via função paterna levaria hoje


à pretensão de eliminar tudo que se liga à falta, que, não podemos esquecer,

13
LACAN, J. O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-58). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998, p. 344.

5
sempre foi uma promessa do capitalismo e da ciência. Aliás, o discurso
capitalista incrementa o desregramento das pulsões pela oferta compulsiva de
objetos, criando necessidades e ofertando-se para tamponá-las. Diante deste
Outro não barrado, que se apresenta sem falta, o sujeito materializa o objeto a
na comida, na droga, no corpo, etc. Diante da fragilidade da castração, o
sujeito faz sintomas que lhe afirmam que a falta existe.

O exemplo princeps das novas formas do sintoma são as toxicomanias, pois


permitem isolar as características principais que circunscrevem a nova
concepção do termo: não ser um sintoma analítico, constituir uma prática de
gozo, estar voltado para um gozo sem limites, que prescinde do Outro e,
portanto, da palavra.14

Na obra de Lacan, Freda destaca a definição de droga em sua articulação com


a castração, como o que encontra seu sucesso quando “permite romper o
casamento com o peruzinho”15. Ou seja, a droga como recurso do sujeito para
romper com a função fálica. Assim, o toxicômaco se nomeia pelo uso da droga,
ou seja, por uma prática ancorada num objeto específico, e não por seu
sintoma.16

Miller define os novos sintomas como uma ampliação da noção de sintoma. Diz
ele: “o que chamamos de novos sintomas diz respeito sobretudo a que a
psicanálise se apodere de novos dados, se estenda e que ela estenda o
sintoma”17..” Essa extensão seria necessária para incluir a nova versão do
sintoma enquanto prática que não se dirige ao Outro: “a extensão da
psicanálise à toxicomania participa deste empuxo ao dizer [...] enquanto “o
toxicômano pode muito bem se arranjar com o não dizer [...]”. Temos então

14
MILLER, J.-A. “O sintoma e o cometa”, op. cit., p. 9.

15
LACAN, J. “Intervenção no encerramento das jornadas de cartéis” (1975) Em: Documentos
para uma Escola, n° 0. Rio de Janeiro: Letra Freudiana, p.113.

16
MILLER, J.-A & Laurent, E. Curso de Orientação Lacaniana (1996-97). Aula de 2/04/1997.
Inédito, tradução da autora.

17
Idem, ibidem.

6
nos novos sintomas um conflito: “o empuxo ao dizer social e o não dizer
subjetivo entram em conflito direto”.18

Miller destaca como uma referência importante deste seminário a indicação de


Lacan de que o “modo de gozar contemporâneo depende essencialmente do
mais-de-gozar [...]”. Isto quer dizer que o sujeito pode viver sem ideal, sem
as pessoas, sem o Outro, “por um curto circuito que faz a entrega imediata do
mais-de-gozar”. É desta ligação direta com o mais-de-gozar que é feito o
cinismo contemporâneo, “permissão de prescindir da sublimação e obter, na
solidão, um gozo direto”.19

Isto permite dizer, segundo Miller, que os novos sintomas não são sintomas
freudianos, por não se referirem a um disfuncionamento subjetivo que toma
como parâmetro o Ideal. Na ausência do Ideal, eles se tornam uma forma de
funcionamento do sujeito, uma prática adotada pelo sujeito, sem queixa .20

Aqui, segundo Miller, cabe introduzir uma dimensão do sintoma essencial para
Lacan conforme abordado em RSI: “é preciso acreditar nisso para que aí haja
21
sintoma”.

A razão da resistência do sujeito em buscar o sentido de seu sintoma estaria


em que este não lhe parece conter um sentido, e para Miller é essa crença que
pode levar o sujeito a pensar que o sintoma seja capaz de dizer: “O fenômeno
dessa crença constitui o sintoma como analítico; um sintoma existe como
analítico se quer dizer algo”.22

18
Idem, ibidem.

19
Idem, ibidem.

20
MILLER, J. -A. Os circuitos do desejo na vida e na análise, op. cit., p.174.

21
MILLER, J.-A. & LAURENT, E. Curso de Orientação Lacaniana (1996-97). Aula de 2/04/1997.
Inédito. Tradução da autora.

22
MILLER, J.-A. “O sintoma e o cometa”, op. cit., p. 9.

7
Os novos sintomas, apesar de seu mutismo e autismo, ou seja, embora
práticas que não se dirigem ao Outro, são acessíveis de alguma forma pela
palavra. Daí a crença do psicanalista na possibilidade de transformar um novo
sintoma num sintoma analítico. É isso que está em causa na clínica da
contemporaneidade. Miller chama atenção para a questão do consentimento do
sujeito a que se cole nele um sintoma.

Como dos novos sintomas chegar ao sintoma analítico?

O que fazer para que um sujeito que acredita ter encontrado a “solução feliz”
para elidir as questões mais cruciais do humano – a não relação sexual, a
divisão subjetiva, questões que, não cessando de se escrever, tensionam
exigindo significação – abandone tal panacéia para deixar aparecer seu
sintoma?

Miller responde a essa questão, afirmando que é preciso ”criar-lhe um sintoma


quase freudiano”, “fazê-lo amar, de uma maneira ou de outra, a palavra”,
”introduzi-lo no gozar pela palavra”23. Aqui a aposta seria de que a fixidez dos
modos de gozo presentes nos novos sintomas possa ceder algo ao gozo fálico.
Para tocar a satisfação pulsional é preciso que a intervenção do analista vá
além da interpretação, apontando o gozo.

Tarrab considera que para ”mover algo desta fixação é preciso reconstruir o
Outro, para que surja o efeito sujeito, como resposta do real, [...] ali onde a
resposta da época é a de pôr um objeto do mundo no lugar da inexistência do
objeto”.24

Para Miller, a perspectiva obsessiva do sintoma é tão discrepante daquela das


outras formações inconscientes por estar “tão distante de um querer dizer, que

23
MILLER, J.-A & Laurent, E. Curso de Orientação Lacaniana (1996-97). Aula de 2/04/1997.
Inédito. Tradução da autora.

24
TARRAB, M. “Produzir novos sintomas”. Em: Correio, n° 52. Em: Belo Horizonte: EBP, março
de 2005, p. 37.

8
pode passar desapercebido ao sujeito”. Assim, apenas num segundo momento
da análise, o sujeito teria condições de se perguntar pelo sentido de seu
sintoma.25

Quem é este Outro diante do qual o sujeito não tem nada a dizer? Parece que
estamos diante da questão da presença constante deste Outro sem falta, o
Outro da ciência, portador de todas respostas, que se estende como uma rede
que aprisiona, não obstante seus furos, e ao qual Miller se refere como “pas-
tout partout”. Ou seja, o nãotodo em todos os lugares, por não haver todo
universal, nem existência do Um26. Diante deste Outro, o analista opera no
sentido de extrair algo deste Outro não barrado para que o sujeito possa
advir.Transformar um novo sintoma em sintoma analítico é apostar na
transformação de uma prática de gozo num sintoma clássico, num sintoma
interpretável, inscrito na estrutura da linguagem. Para tanto é preciso,
segundo Miller, convencer o viciado, a anoréxica, o doente do pânico de que é
possível conferir um sentido a seu sintoma.27

O que temos, como psicanalistas, a dizer aos que sofrem dos novos sintomas é
que continuamos a acreditar que a aposta na psicanálise é válida. Cabe
inventar, no caso a caso, como pô-la em prática.

25
MILLER, J.-A. “O sintoma e o cometa”, op. cit., p. 9.

26
MILLER, J.-A & LAURENT, E. Curso de Orientação Lacaniana (1996-97). Aula de 4/12/1996.
Inédito. Tradução da autora.

27
MILLER, J.-A. “O sintoma e o cometa”, op. cit., p. 9.

9
10

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