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AULA 01 – O Reino de Deus e o Império das Trevas

Leandro Lima
Disciplina - Escatologia

Ao abrir o Novo Testamento, o leitor logo toma consciência de que eventos


escatológicos estão se cumprindo, enquanto que outros estão sendo preditos. A vinda de
Jesus foi uma manifestação escatológica, um verdadeiro ato apocalíptico1, pois quando
veio aqui, Jesus revelou que estava estabelecendo o reino de Deus (Mt 3.2, Lc 17.20-21).
Entender esse conceito inaugural da escatologia no Novo Testamento é essencial para
entender a mensagem escatológica da Bíblia como um todo2.
A vinda de Cristo a este mundo, desde seu nascimento em Belém até seu retorno
na Ascensão, se compôs de eventos que encontram-se diretamente ligados à atuação
maligna neste mundo. A vinda de Cristo foi uma declaração de guerra contra os inimigos.
Porém, não uma guerra convencional. A característica mais notável da guerra que teve
início com o nascimento de Jesus foi a natureza jurídica desta guerra. Não foi uma guerra
com base em “força” ou “número de soldados”, mas uma guerra por “direito”, por
“legitimidade”.
O primeiro dos grandes eventos da batalha escatológica foi justamente o
nascimento de Cristo. O ensino do Novo Testamento é que Deus enviou seu filho para
um mundo perverso, um frágil bebê foi enviado para o meio de um lugar dominado por
demônios. Esse envio foi cercado de elementos paradoxais. Céus e terra entraram em
conflito, enquanto um casal de humildes trabalhadores marchava da Galiléia para Belém.
A maior profecia de todos os tempos estava para se cumprir. Quando o rei nascesse, o
grande tirano seria derrotado, e o mundo nunca mais seria o mesmo.

1. A batalha pelo nascimento do rei

Há um forte envolvimento dos anjos no nascimento de Jesus. Como mensageiros


do céu (anjo significa mensageiro), eles vêm à terra para anunciar aos homens que o rei
vai nascer. A presença deles é uma indicação de que existe algo mais em cena, um conflito
maior, que os olhos humanos não podem ver.
O primeiro dos anjos a entrar em ação é Gabriel. Ele foi enviado para anunciar
tanto o nascimento de Jesus, quanto o de João Batista (Lc 1.18-19, Lc 1.26ss). Para Maria,
especificamente, ele prometeu que um filho seria gerado nela de forma sobrenatural. A
descrição dos atributos e direitos desse filho foram descritos assim: “Este será grande e
será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele
reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim". (Lc 1.32-33).
No capítulo 2 de Lucas, o envolvimento dos anjos no nascimento de Jesus é mais uma
vez descrito:

1 O termo “apocalipse” significa revelação.


2 Devemos nos acostumar a ver a mensagem escatológica em todos os eventos redentivos, e em
todo o processo de revelação divina. Tudo na Bíblia é escatologia, porque desde o início Deus já
anunciou o fim. Van Groningen diz: “As Escrituras do Antigo Testamento revelam-nos que
Deus incluiu o fim no começo” (Gerard Van Groningen. Criação e Consumação. São Paulo:
Cultura Cristã, 2002, Vol 1, p. 30). Nesse sentido, a mensagem de Jesus também foi
essencialmente escatológica, porque apontava para o início e para o fim.
"Naqueles dias, foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a
população do império para recensear-se. Este, o primeiro recenseamento, foi feito
quando Quirino era governador da Síria. Todos iam alistar-se, cada um à sua própria
cidade. José também subiu da Galiléia, da cidade de Nazaré, para a Judéia, à cidade de
Davi, chamada Belém, por ser ele da casa e família de Davi, a fim de alistar-se com
Maria, sua esposa, que estava grávida” (Lc 2.1-5).

Os dados históricos mencionados por Lucas além de apontarem para a


historicidade dos fatos, e localizarem o nascimento de Jesus no tempo e no espaço, têm
também o poder de montar o cenário completo do nascimento do Senhor. Percebe-se que
não se trata de um cenário meramente criado por homens, algo aleatório ou coincidente,
mas de um cenário preparado por Deus. A profecia dizia que Jesus devia nascer em Belém
(Mq 5.2, Mt 2.5-6), mas seus pais moravam na Galiléia. Então, um decreto do imperador
romano possibilitou que a profecia fosse cumprida. Ele ordenou um recenseamento de
seu império, obrigando todos a retornarem às suas cidades natais para se alistarem. E
assim, utilizando-se de instrumentos humanos, como homens comuns ou até mesmo o
imperador de Roma, Deus conduziu os eventos da história humana para se encaixarem à
história de seu Filho que precisava nascer em Belém.
Uma vez instalados em Belém, Lucas continua: “Estando eles ali, aconteceu
completarem-se-lhe os dias, e ela deu à luz o seu filho primogênito, enfaixou-o e o deitou
numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2.7-8). Porém,
essa descrição não parece se encaixar com o nascimento de um grande rei. Não há
anúncios para outros reis, não há festejos, não há canções. Então, mais uma vez os anjos
entram em cena para completar o que está faltando:

“Havia, naquela mesma região, pastores que viviam nos campos e guardavam
o seu rebanho durante as vigílias da noite. E um anjo do Senhor desceu aonde eles
estavam, e a glória do Senhor brilhou ao redor deles; e ficaram tomados de grande
temor. O anjo, porém, lhes disse: Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de grande
alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o
Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto vos servirá de sinal: encontrareis uma criança
envolta em faixas e deitada em manjedoura. E, subitamente, apareceu com o anjo uma
multidão da milícia celestial, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas maiores
alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem” (Lc 2.8-14).

O anjo cumpriu a digna e apropriada função de anunciar o nascimento de Jesus, o


rei do céu, chamando-o pelos três impressionantes títulos de “Salvador, Cristo e Senhor”.
Cada um desses títulos demanda a confecção de tratados teológicos inteiros para que
sejam suficientemente explicados. Em resumo, entretanto, podemos dizer que Salvador 3
é sua missão, Cristo é sua identidade distinta, e Senhor é sua posição. Essa é uma
sequência interessante, pois vista de uma perspectiva invertida, vemos que o soberano foi
escolhido para salvar, o que significa dizer que o soberano foi destinado a morrer.
O anjo ainda advertiu da precária situação humana dele: encontrareis uma criança
envolta em faixas e deitada na manjedoura. Esse foi o modo paradoxal que Deus usou

3
Esse termo (e também o termo Senhor) foi aplicado aos imperadores romanos. Apesar das
origens da linguagem aqui poderem ser satisfatoriamente explicadas em termos de pano de
fundo judaico, Lucas pode ter desejado que seus leitores vissem um contraste com as
declarações estrangeiras sobre reis ( I. Howard Marshall. The Gospel of Luke: a commentary on
the Greek text. New International Greek Testament Commentary. Exeter: Paternoster Press,
1978, p.110). Isso destacaria a pessoa de Cristo sobre os reis e imperadores estrangeiros.
para enviar seu filho ao mundo. O guerreiro celeste, o rei conquistador, nasceu num
estábulo e foi posto em uma manjedoura. Uma simples criança veio a um mundo tomado
por demônios. Um bebê anônimo e aparentemente indefeso, uma criança frágil e pobre
enviada contra o grande usurpador. Porém, a descrição parece não conseguir ocultar
totalmente a identidade da criança, pois assim que o anjo fez seu anúncio, algo súbito
aconteceu, os céus se rasgaram e surgiu uma “multidão da milícia celestial”, que explodiu
em louvores a Deus, em comemoração ao nascimento. Literalmente, Lucas disse que “um
grande exército do céu” (πλῆθος στρατιᾶς οὐρανίου) apareceu ali. A pergunta que fica é:
o que um numeroso exército de guerreiros celestes estava fazendo no nascimento de uma
criança? Podemos dizer que eram os soldados da criança. Quem estava nascendo era, na
verdade, aquele que podia solicitar ao pai para que legiões de anjos lhe fossem enviados
(Mt 26.53). Portanto, o grande general havia nascido. E, muito mais do que um general,
na verdade, o próprio Rei celeste.
A aparição desse grande exército celeste no exato momento do nascimento de
Jesus nos revela a real natureza de seu nascimento. Foi uma ação de guerra. Céus e terra
estavam entrando em rota de colisão. A decisiva batalha escatológica havia começado.
Porém, aquele exército lá em cima, dos guerreiros angélicos que festejaram o nascimento
do grande rei, teria pouca participação nessa batalha. Aqueles guerreiros teriam que se
limitar a assistir seus feitos, e servi-lo algumas vezes (Mt 4.11), porém todas as
esperanças estavam depositadas naquele bebê. Ele teria que lutar sozinho contra todas as
forças das trevas. As legiões jamais seriam chamadas a participar (Mt 26.53).
Apocalipse 12 é o lugar onde a batalha escatológica que teve início com o
nascimento de Jesus está descrita da forma mais extraordinária possível:

“Viu-se grande sinal no céu, a saber, uma mulher vestida do sol com a lua
debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça, que, achando-se grávida, grita
com as dores de parto, sofrendo tormentos para dar à luz. Viu-se, também, outro sinal
no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças,
sete diademas. A sua cauda arrastava a terça parte das estrelas do céu, as quais lançou
para a terra; e o dragão se deteve em frente da mulher que estava para dar à luz, a fim
de lhe devorar o filho quando nascesse. Nasceu-lhe, pois, um filho varão, que há de reger
todas as nações com cetro de ferro” (Ap 12.1-5a).

O capítulo 12 de Apocalipse reverbera, amplia e interpreta a antiga narrativa do


capítulo 3 de Gênesis, a respeito da mulher e da serpente. Os dois textos falam sobre uma
mulher grávida que sofre as dores do parto, e sobre um filho (descendente) da mulher.
Ambos mostram o inimigo (dragão - serpente), e, principalmente, mencionam uma
inimizade. As semelhanças são claras, mas não se pode deixar de notar a ampliação do
sentido dado pelo texto do Apocalipse através de todo o seu simbolismo. A mulher, (que
estivera nua em Gênesis, depois vestida com folhas de figueira, e depois com as vestes
de peles que o Senhor preparou), agora está vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e
uma coroa de doze estrelas. Aqui também é possível ver a sobreposição das interpretações
do Antigo Testamento na visão, pois há outra cena do Antigo Testamento que fala em
sol, lua e doze estrelas. Trata-se do sonho de José. O filho de Jacó relatou seu sonho para
seu pai e irmãos do seguinte modo: “Sonhei também que o sol, a lua e onze estrelas se
inclinavam perante mim” (Gn 37.9). José estava se referindo ao seu pai, mãe e onze
irmãos, sendo ele próprio o décimo segundo, ou a décima segunda estrela, ou seja, o
simbolismo se aplica ao núcleo da família de Jacó com as doze tribos de Israel
representadas por seus patriarcas. Portanto, João está asseverando que a mulher gloriosa
é realmente o povo da antiga aliança (Israel), porém regredindo genealogicamente até
Eva, que foi tentada pela serpente (dragão) em Gênesis. Portanto, é todo o povo santo de
Deus, ao longo de todo o Antigo Testamento. Diversas vezes, no Antigo Testamento, a
nação de Israel é descrita como uma mulher, a esposa da Yahweh, porém, uma esposa
muitas vezes infiel, como Eva de certo modo o foi ( Jr 31.32, Ez 16.1ss, Os 3.1). De
qualquer modo, a cena da mulher grávida é o anúncio divino de que o Messias finalmente
vai nascer e, assim, todas as promessas de libertação vão se concretizar para a mulher
(povo de Deus). Aponta para a expectativa de toda a Bíblia, desde Gênesis 3: a vinda do
Messias que trará a benevolência de Deus para seu povo, e o julgamento sobre os
perversos. Tudo isso, no entanto, está em completa e total relação com o dragão, o qual é
descrito em seguida como se aproximando da mulher para devorar o filho.
Justamente no estado de glória-fragilidade da mulher, aparece o outro grande sinal
também no céu. Nesse ponto, João chama a atenção dos leitores. Ele diz “olhe” (uma
espécie de imperativo4 - καὶ ἰδοὺ), aí está um dragão5, grande, vermelho, com sete
cabeças, dez chifres e sete diademas! E deste modo, João faz a visão do leitor ser
direcionada da beleza radiante da mulher grávida para o poder e repugnância do dragão.
As intenções do dragão são reveladas nesse momento. A criatura gigante e terrível
está diante da mulher com um propósito nefasto: devorar o filho. Ele quer frustrar todas
as expectativas de vida e bênção prometidas ao povo de Deus através do nascimento
daquela criança. Portanto, com esse quadro, João completa o significado da grande guerra
cósmica que alcançou seu ápice com o nascimento de Jesus.
Em Gn 3.15, Deus anunciou à serpente que um descendente da mulher iria lhe
esmagar a cabeça. Levando-se em conta o uso indireto que João faz do Antigo
Testamento, é possível interpretar, que a referência do Apocalipse para o momento em
que o dragão “espera” o nascimento do Filho para o devorar, portanto, tem relação com
a própria promessa-maldição proferida por Deus para a serpente em Gn 3.15. Aqui está o
motivo pelo qual João descreve o dragão, em Apocalipse, diante da mulher com a
intenção de devorar o seu descendente. Afinal, Deus revelou desde o início que o esforço
da serpente seria picar o calcanhar do descendente. É possível que o texto evoque as
diversas vezes que o Antigo Testamento revelou que a continuidade da “semente da
mulher” esteve ameaçada. Como aconteceram nas passagens do Gênesis quando Caim
assassinou seu irmão Abel, ou quando o próprio Deus decidiu destruir o mundo no
Dilúvio. A cada passo, no Antigo Testamento, narra-se que a descendência prometida da
mulher está sob o risco de desaparecer, e sempre está sendo resgatada por uma
intervenção divina6. Como quando Abraão precisava ter um filho, porém Sara era estéril;
ou quando o próprio Deus mandou que Abraão sacrificasse Isaque, mas providenciou um
substituto. Ao longo de todo o Antigo Testamento, o povo de Deus e a descendência
prometida enfrentam riscos, extermínios, fugas, e experimentam o socorro divino por
caminhos inusitados (2Rs 11.1-2). Aí está a razão dos “tormentos” (βασανιζομένη) que a
mulher sofre para dar à luz, ou seja, não se tratam apenas das dores naturais de parto, mas
de uma terrível provação, um grande e custoso esforço para dar à luz7. A ameaça contínua
do dragão é a razão desse esforço.
4
Simon J. Kistemaker. Apocalipse. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 452.
5
No Antigo Testamento, o dragão é a imagem de um grande monstro marinho, que recebe
diversos títulos em hebraico como tannin (Jó 7.12, Is 27.1), raabe (Sl 87.4, 89.10) e leviatã (Jó
3.8, 41.1, Sl 74.14, 104.26, Is 27.1, Jr 51.34). Em alguns momentos, a figura simboliza nações
como o Egito ou Babilônia (Is 51.9, Jr 51.34, Ez 29.3, 32.2). Em Apocalipse, entretanto, ele é
identificado como Satanás, aquele que engana as nações.
6
William Hendriksen. Mais Que Vencedores. São Paulo: Cultura Cristã, 1987, p. 167-171
7
G. K. Beale. The Book of Revelation: a commentary on the greek text. The new international
greek testament commentary. Grand Rapids: Eerdmans, 1999, p. 630
Porém, a derrota do dragão está expressa pelo fato de ele não ter conseguido
impedir isso: “Nasceu-lhe, pois, um filho varão”. Esse filho veio para reinar. Portanto, o
nascimento de Cristo foi o começo da grande derrota escatológica do dragão8. Deus
cumpriu sua antiga promessa de enviar um descendente de Eva ao mundo, porém, agora
sabemos que o "filho da mulher" não seria um mero homem, mas o próprio Filho de Deus.

2. O primeiro confronto com o Inimigo

Com o nascimento de Jesus, Satanás perdeu uma batalha decisiva. Porém, pelas
reações do inimigo depois disso, percebe-se que ele acreditava que ainda poderia vencer
a guerra de alguma forma. Intensas batalhas aconteceram durante toda a vida de Jesus.
O batismo de Jesus marcou o início de seu ministério. Porém, mais do que marcar
o momento em que Cristo começou a proclamar sua mensagem e realizar seus milagres,
o batismo marcou o momento do início do conflito de Cristo com as forças das trevas.
Após receber a unção do Espírito Santo e ouvir a aprovação divina através da voz
celeste (Mt 3.16-17), Mateus relata: “foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser
tentado pelo diabo” (Mt 4.1). É significativo que o texto parece sugerir que Jesus estava
cumprindo uma espécie de “agenda”. Ele se deixou levar pelo Espírito ao deserto, com o
objetivo de que fosse “tentado" pelo diabo. É significativo que tenha acontecido logo após
o batismo. Antes de iniciar sua obra de proclamação, ele teve que passar pelo teste.
Portanto, isso parece marcar um momento reivindicado por Satanás. O inimigo desejava
testá-lo para ver se ele fazia jus a tudo o que aconteceu e foi dito em seu batismo, onde
Deus o reconheceu como “Filho”. Portanto, o inimigo dirá: “se és Filho de Deus…”.
Jesus jejuou por quarenta dias e quarenta noites. Naturalmente estava com muita
fome. A fome enfraquece tanto o corpo, quanto a mente. Satanás não desprezou o óbvio.
Ele agiu com relativa simplicidade. Apenas aproveitou a ocasião, e se manteve dentro de
seu “terreno seguro”, pois sabia que a imensa maioria das pessoas cai no primeiro nível
da tentação, o nível da carne.
As palavras de Satanás foram: "Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se
transformem em pães” (Mt 4.3). Satanás não parece reconhecer o direito exclusivo de
Cristo de ser chamado “Filho de Deus”. Ele não disse “se és o Filho de Deus”, mas “se
és Filho de Deus”, omitindo o artigo definido, quase como a sugerir que Jesus talvez fosse
apenas “um” filho de Deus. Talvez, igualmente, haja aqui uma reminiscência da antiga
dúvida que ele sugeriu à Eva: "Deus é justo?”, que é o que parece estar por detrás da
declaração: “É assim que Deus disse, não podereis comer de nenhuma árvore…”. A
primeira pergunta pode trazer implícito o questionamento: “é justo um filho de Deus
passar fome?”. A dúvida que se tenta semear no coração é: Deus é injusto por não permitir
que você satisfaça seus desejos (tentação de Eva). Ele, sem dúvida, tem usado com
sucesso a mesma técnica ao longo da história.
A resposta de Cristo apontou a tática adotada por ele para vencer Satanás em todas
as ocasiões: confiar na Palavra de Deus. E assim, ele fez exatamente o oposto do que
Adão e Eva fizeram, e também o oposto daquilo que Israel fez no deserto, quando não
acreditou na Palavra de Deus (Jd 6). A vitória de Cristo, portanto, é uma vitória “pela

8
Por fim, sem conseguir impedir que o filho da mulher nascesse, restou ao dragão tentar matá-lo ainda
criança. A matança dos meninos com menos de dois anos em Belém, ordenada por Herodes, por certo
fixou-se na mente dos leitores de João quando leram a descrição da fúria do dragão tentando devorar o
filho da mulher. Nota-se, porém, que o filho fora arrebatado. O Evangelho de Mateus diz que José,
sabendo por meio dos magos que Herodes pretendia fazer algum mal à criança, fugiu para o Egito (Mt
2.13-18).
Palavra”. Ele respondeu: "Está escrito”. Ou seja, ele tem um porto seguro, uma fonte
confiável, uma arma que não falha. Esse é o poder da verdade para libertar do mal.
Diferentemente de Adão e Eva, que caíram nesse primeiro nível de tentação,
Satanás encontrou em Cristo um adversário muito mais poderoso. Porém, o inimigo não
esgotou seu arsenal na batalha da carne. Ele ainda tinha armas poderosas para usar contra
o Filho de Deus.
Satanás subiu o nível do teste quando abandonou as questões relacionadas com a
satisfação dos desejos do corpo, e se encaminhou para tratar de aspectos mais sutis, e
mais difíceis de serem vencidos na natureza humana.
Mateus segue a narrativa dizendo que Satanás conduziu Jesus ao pináculo do
templo, e, citando as Escrituras, o induziu a dar uma prova de ser filho de Deus. Em
resposta à citação de Jesus do Deuteronômio, o diabo o levou até o pináculo do templo e
mostrou que também sabia citar as Escrituras. Ao contrário de citar o Deuteronômio,
entretanto, o diabo citou os Salmos. Se isso tem alguma implicação aqui é difícil dizer.
Mas o fato é que ele contrapôs a afirmação de Jesus com outra afirmação bíblica.
Segundo o diabo, Jesus devia exigir um sinal de Deus. Ao longo de seu ministério,
as pessoas sempre pediram a Jesus que desse um sinal de sua autoridade, pois não estavam
dispostas a crer sem alguma prova palpável (Jo 4.41, 6.30). Mas, o sensacionalismo, os
sinais, os milagres, nunca deram muito resultado. Jesus acusou a multidão de segui-lo só
para ver um sinal. Fez muitos sinais, mas todos o abandonaram na sexta feira da paixão.
Jesus sabe que a fé verdadeira não depende de sinais ou prodígios, mas apenas do que
“está escrito”.
O último nível da tentação relatada por Mateus é o que revela Satanás sem
dissimulações. No deserto Jesus estava em comunhão com Deus através do jejum, no
templo estava no centro da religião judaica, mas no monte alto, Satanás pôde mostrar o
que realmente valoriza: os reinos do mundo e a glória deles. Naquele momento, ele não
usou a Palavra de Deus, antes lutou com suas próprias armas. Ele arriscou o último trunfo.
Opôs seu poder diretamente ao de Deus. A tentativa foi uma só: Apostasia. Sua proposta
a Cristo de lhe dar todos os reinos do mundo e a glória deles em troca de adoração, aponta
para seu esforço último de que os homens, conscientes e decididos, dêem um passo para
longe de Deus. É uma troca definitiva de senhorio: de Deus para nós mesmos, e,
finalmente, para o diabo. C. S. Lewis escreveu a respeito do pecado do diabo: "De acordo
com os mestres do Cristianismo, o pecado principal, o supremo mal, é o orgulho. A falta
de pureza, a ira, a ganância, a embriaguez e tudo o mais, em comparação com ele, são
ninharias. Foi pelo orgulho que o demônio tornou-se o demônio. O orgulho conduz a
todos os outros pecados: é o mais completo estado de alma anti-Deus.”9 Numa palavra:
ele transfere sua queda para nós. Torna-nos cúmplices de seu próprio pecado. O que isso
evoca é autonomia, senso de superioridade, vontade de dominar sobre os outros.
No entanto, a atitude do diabo, de se colocar como “dono" dos reinos deste mundo
merece um pouco mais de atenção da nossa parte. Mateus relata que o diabo mostrou-lhe
todos os reinos do mundo e a glória deles, então declarou: “Tudo isto te darei se,
prostrado, me adorares” (Mt 4.9). Isso soa um tanto quanto farsante num primeiro
momento, pois o diabo não pode ser considerado o “dono deste mundo”, uma vez que o
mundo pertence a Deus (Sl 24.1). Será que Satanás estava blefando com Cristo? Por um
lado, de fato, isso não seria estranho para o “pai da mentira” (Jo 8.44). No entanto, é
estranho que Cristo não tenha desmentido a suposta pretensão maligna. E, certamente,
Cristo não se deixaria enganar pelas mentiras do diabo.

9
C. S. Lewis. Cristianismo Puro e Simples. 2. ed. São Paulo: Abu, 1985. p. 162.
A solução nos é dada no Evangelho de Lucas, onde mais detalhes são
acrescentados: “Disse-lhe o diabo: Dar-te-ei toda esta autoridade e a glória destes reinos,
porque ela me foi entregue, e a dou a quem eu quiser. Portanto, se prostrado me adorares,
toda será tua” (Lc 4.6-7). Ao que parece, Satanás não está dizendo que é o dono dos
“reinos” do mundo, mas que tem “autoridade" sobre eles, e sobre a “glória” deles. A
palavra em destaque no texto de Lucas é “autoridade”. Literalmente, ele disse que recebeu
“toda essa autoridade" (τὴν ἐξουσίαν ταύτην ἅπασαν). Enfaticamente, ele disse: “pois
para mim foi dada” (há um enfático ἐμοὶ - “para mim” - no texto). E, consequentemente,
ele alega ter condições de conceder essa “autoridade" a quem ele quiser. Isso soa coerente
com o restante do ensino das Escrituras, de modo que aí está a razão pela qual Cristo não
o desmentiu. O diabo estava falando a verdade quando disse que havia recebido toda
aquela autoridade sobre os reinos do mundo. Só o próprio Deus poderia ter concedido
aquela autoridade para ele. “Autoridade" é um termo jurídico. Desde o Éden, Satanás
recebeu a “autoridade" de enganar as nações. Porém, logo chegaria o momento quando
essa autoridade lhe seria cassada, e em contrapartida, Jesus diria, praticamente repetindo
cada palavra do diabo, que “recebeu toda a autoridade (ἐδόθη μοι πᾶσα ἐξουσία) nos céus
e na terra” (Mt 28.18). Por esse motivo, percebemos que a verdadeira batalha entre Cristo
e Satanás é de natureza jurídica ou legal. É a batalha por autoridade. Satanás ofereceu um
caminho rápido através do qual Cristo poderia receber a autoridade sobre os reinos do
mundo. Porém, Jesus recusou, primeiramente porque esse caminho significava quebrar a
Lei, e em segundo lugar, porque ele já havia se decidido pelo caminho mais longo e
doloroso. Ao vencer a tentação de Satanás, portanto, Jesus mostrou que estava preparado
para vencer aquele que mantinha o mundo nas trevas, “sua própria resistência a essas
seduções satânicas foi o início da derrota do diabo”10, até que Jesus pudesse “tomar dele”
as nações.

3. A ousadia dos inimigos

Após o batismo, Jesus precisou enfrentar seu primeiro duelo com Satanás, no qual
sagrou-se vencedor. Sua única arma de defesa foi a confiança irrestrita na Palavra de
Deus. Repreendido por Cristo, “apartou-se dele o diabo, até momento oportuno” (Lc
4.13). Isso pode significar que, por algum tempo, forçosamente, o próprio Satanás teve
que se manter à distância, apenas acompanhando os passos de Jesus, até que nova
oportunidade lhe fosse dada. No entanto, seus subalternos não ficaram parados. O general
maligno se viu repreendido e momentaneamente impossibilitado de atacar, porém, enviou
seus soldados para o campo de batalha.
Já nas primeiras páginas do Evangelho de Marcos, tão logo Jesus venceu seu
primeiro teste contra Satanás (Mc 1.12-13), ele anunciou que o tempo estava cumprido e
o reino próximo (Mc 1.14-15), então, precisou enfrentar o atrevimento dos inimigos
espirituais.
Marcos relata que Jesus chamou seus quatro primeiros discípulos junto ao mar da
Galileia, e com eles, se dirigiu para Cafarnaum, uma pequena cidade de pescadores
localizada próxima ao lago de Genesaré (Mc 1.16-21). Ele, então, se dirigiu à sinagoga
da cidade e proclamou sua “doutrina”, ensinando-os de uma forma que mostrava uma
autoridade superior à que os escribas demonstravam (Mc 1.22). É interessante que os
ouvintes de Cristo destaquem justamente essa questão da "autoridade" com a qual Jesus

10
G. K. Beale. A New Testament Biblical Theology: The Unfolding of the Old Testament in the
New. Grand Rapids: Baker Academic, 2011, p. 419-420.
ensinava. Então, um espírito maligno, imediatamente, se dirigiu à sinagoga possuindo um
homem. Ele vai justamente tentar contrapor essa autoridade de Cristo.
Eles claramente estão desconfortáveis com a chegada de Cristo: “Não tardou que
aparecesse na sinagoga um homem possesso de espírito imundo (πνεύματι ἀκαθάρτῳ), o
qual bradou: Que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste para perder-nos? Bem sei
quem és: o Santo de Deus!” (Mc 1.23-24). É interessante observar que esses espíritos
impuros parecem ser bem conhecidos das pessoas, ou seja, a aparição deles ali não causou
admiração, mostrando que era um fenômeno até certo ponto comum naqueles dias. As
pessoas ficaram espantadas pelo fato de Jesus ter autoridade sobre eles, e os expulsar com
relativa facilidade. Não se pode ignorar que no quadro do mundo pintado pelo Novo
Testamento, esses espíritos imundos ou malignos ocupam um espaço considerável.
Mentes modernas, frequentemente, têm dificuldades de entender e aceitar isso. Mas, não
se chega a um entendimento completo da mensagem do Novo Testamento ignorando
esses aspectos.
É interessante notar o modo intrometido e intempestivo desse personagem. Ele
entrou na sinagoga e “gritou” (ἀνέκραξεν) algo contra Cristo. Essa não é a postura de um
fugitivo, ou de alguém que acredita não ter direito de estar ali. Ainda deve ser notada a
interessante “reclamação” que eles fizeram contra Cristo: “que temos nós contigo, Jesus
Nazareno?”. Até esse momento, Marcos não disse se tratar de mais de um espírito. Ele
disse apenas que um homem possesso de “espírito impuro” apareceu lá. Porém, a fala do
espírito é plural. Ele usou o pronome pessoal “nós”. Literalmente, ele disse “o que nós e
tu (τί ἡμῖν καὶ σοί), ó Jesus Nazareno?”. Isso é obviamente um desafio, uma contestação.
No Antigo Testamento, esse tipo de expressão representava uma expressão de
“desassociação”. Quando os soldados de Davi quiseram matar Simei porque estava
amaldiçoando Davi, o rei disse: "Que tenho eu convosco, filhos de Zeruia? Ora, deixai-o
amaldiçoar” (2Sm 16.10). Porém, quando essa expressão foi usada no caso de uma
possível agressão, ela significou algo como “vá embora e deixe-me sozinho” (Jz 11.12,
1Rs 17.18)11. Aqueles demônios, portanto, estavam exigindo que Jesus se retirasse, que
não os atormentasse. Isso fica claro pela próxima pergunta deles: “Vieste para perder-
nos?”. A pergunta parece bem óbvia, e justamente por isso, sugere que eles estavam
questionando esse “direito” dele. Em seguida, o espírito fez uma afirmação
surpreendente: “Bem sei quem és: o Santo de Deus!”. Lucas volta a narrar no singular,
como se apenas um demônio estivesse falando agora. Literalmente o espírito disse: “eu
te conheço, que tu és o santo de Deus” (οἶδα σε τίς εἶ, ὁ ἅγιος τοῦ θεοῦ). Provavelmente,
isso possa refletir a crença judaica de que conhecer o nome de uma entidade espiritual
garante domínio sobre ela12. Por isso, embora a afirmação aponte para o reconhecimento
do senhorio de Cristo, a postura dos espíritos malignos é um desafio à chegada de Cristo,
não um mero desafio com base em força bruta, e sim um desafio em termos “legais”. É a
disputa por "autoridade". É a legitimidade de Cristo de “destruí-los” que eles estão
questionando. Em contrapartida, “Jesus o repreendeu, dizendo: Cala-te e sai desse
homem” (Mc 1.25). E o resultado foi que, apesar de uma aparente resistência, o espírito
imundo teve que obedecer: “Então, o espírito imundo, agitando-o violentamente e
bradando em alta voz, saiu dele” (Mc 1.26). Ainda assim, deve ser notado, que expulsão
não significa “destruição”. O verdadeiro temor daqueles demônios não era o de serem

11
R. T. France. The Gospel of Mark: a commentary on the Greek text. New International Greek
Testament Commentary. Grand Rapids, MI; Carlisle: W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 2002, p. 103.
12
James R. Edwards. The Gospel according to Mark. The Pillar New Testament Commentary. Grand
Rapids, MI; Leicester, England: Eerdmans; Apollos, 2002, p. 57.
“expulsos”, mas o de serem destruídos (vieste para perder-nos?). De algum modo, a
expulsão operada por Cristo aponta para essa realidade final, porém, naquele momento,
isso ainda não poderia ser feito. Cristo tinha legitimidade para estar ali e expulsá-los, mas
ainda não havia conquistado o direito de subjugá-los completamente.
No Evangelho de Marcos, a tensão da narrativa vai aumentando, até que chegará
o momento quando outros espíritos malignos questionarão ainda mais ousadamente a
presença de Cristo ali. O momento mais enfático é o do episódio do Gadareno, narrado
pelos três evangelistas (Mc 5.1-20, Lc 8.26-39, Mt 8.28-34). Portanto, são descrições
complementares. O fato aconteceu logo após eles terem atravessado o mar, na famosa
cena em que Jesus dormiu e os discípulos ficaram nervosos por causa disso. Jesus
repreendeu o mar13 (como quem repreende um demônio), e este se aquietou. Ao chegar
no outro lado, ele enfrentou demônios literalmente. Era a terra dos gerasenos (ou
gadarenos), domínio dos gentios, eles criavam porcos, portanto, não eram judeus. Um
homem possesso veio, imediatamente, ao encontro de Jesus. De fato, se o primeiro
desafiante foi até a sinagoga desafiar Cristo, espera-se da narrativa que esse seja ainda
mais hostil, afinal, Jesus estava na terra dos gentios. A descrição do homem é muito
interessante. Marcos diz:

“Ao desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu encontro, um homem possesso
de espírito imundo, o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém podia
prendê-lo; porque, tendo sido muitas vezes preso com grilhões e cadeias, as cadeias
foram quebradas por ele, e os grilhões, despedaçados. E ninguém podia subjugá-lo.
Andava sempre, de noite e de dia, clamando por entre os sepulcros e pelos montes,
ferindo-se com pedras” (Mc 5.2-5).

Ele veio dos sepulcros (local de impureza para os judeus). Tratava-se claramente
de um demônio violento, que oferecia risco às pessoas e ao próprio possesso, por isso
tentavam prendê-lo com correntes, mas ele sempre conseguia escapar. Era, portanto, um
demônio muito “valente”. E os homens não conseguiam amarrá-lo14.
Porém, se a reação esperada pelo leitor era que esse demônio avançasse contra
Cristo, o que ele fez foi, na verdade, surpreendente: “Quando, de longe, viu Jesus, correu
e o adorou” (Mc 5.6). Sua corrida não terminou num ato de ofensa a Cristo, mas numa
atitude de se prostrar diante dele (προσεκύνησεν αὐτῷ). Portanto, ele sabia quem estava
ali. Reconheceu estar diante de uma autoridade divina. Porém, ainda assim, ele
questionou o direito dessa autoridade divina em estar ali. Ainda prostrado, ele “gritou em

13
Na literatura bíblica o mar representa as forças contrárias a Deus. O mar esteve entre Israel e a
libertação, por isso, precisou ser ferido por Deus, e como que cristalizado quando se abriu ao meio para
que o povo passasse. Os salmos descrevem poeticamente aquele momento em que Moisés feriu o mar e o
povo de Israel passou pelo meio como um ato de ferir um monstro: “Tu, com o teu poder, dividiste o mar;
esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu despedaçaste as cabeças do crocodilo
(Leviatã) e o deste por alimento às alimárias do deserto” (Sl 74.13- 14, 77.18-20). O Salmo 89 descreve o
Senhor soberano e temível, rodeado de seres celestes que compõem a “assembleia dos santos” (Sl 89.5-8).
Na sequência, o Salmo diz: “Dominas a fúria do mar; quando as suas ondas se levantam, tu as amainas.
Calcaste a Raabe, como um ferido de morte; com o teu poderoso braço dispersaste os teus inimigos” (Sl
89.9-10). Raabe é uma espécie de dragão marinho, um monstro marinho muitas vezes identificado com o
Egito. Ou seja, ao abrir o mar e fazer seu povo passar a pé, enxuto, Deus pisou tanto sobre o mar quanto
sobre o Egito Em Habacuque 3.8-15, a descrição do Senhor como um guerreiro formidável que esmaga as
nações e abala o mar corrobora com essa ideia de que o mar representa a junção dos inimigos divinos,
sobre os quais Deus domina.
14
Isso, provavelmente, seja uma descrição intencional, ou seja, ao contrário dos homens, Jesus
podia amarrar o valente.
alta voz”: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus
que não me atormentes! Porque Jesus lhe dissera: Espírito imundo, sai desse homem!
(Mc 5.7-8). Portanto, há um claro desafio por parte dele à chegada Cristo, uma espécie
de acusação.
A primeira expressão é similar à do demônio que foi à sinagoga, expressando tanto
a dissociação entre ambos, bem como seu desejo de que Jesus fosse embora dali. Também
este demônio chamou Jesus pelo nome, mostrando que tal nome certamente corria de
“boca em boca” entre os espíritos imundos. Todos, portanto, estavam advertidos da
presença de Jesus. Porém, o reconhecimento desse demônio foi maior do que o anterior,
ao reconhecer Jesus como “filho do Deus altíssimo”. Entre os atributos que o título
“altíssimo” evoca no Antigo Testamento em relação a Deus está o fato de ele ser o rei de
toda a terra, e aquele que faz justiça (Sl 47.2, Dn 7.22). Talvez por isso, o demônio tenha
feito um pedido tão formal, um pedido em nome do próprio Deus, o altíssimo, que ele
reconheceu como Pai de Jesus. O uso do termo “esconjuro-te” pelo demônio é algo muito
surpreendente, pois isso é geralmente esperado que seja dito pelo exorcista (At 19.13)15.
Portanto, foi como se o demônio estivesse querendo “expulsar” Cristo daquele lugar. E,
mais uma vez, deve ser lembrado que ele chamou Jesus “pelo nome”, ou seja, ele estava
querendo obter controle sobre Cristo, mesmo reconhecendo que Jesus era uma autoridade
superior. O aspecto aqui, sem dúvida, é mais uma vez jurídico. O demônio está usando
todos os recursos “legais” contra Jesus, pois não reconhece a legitimidade de Cristo estar
ali, fora do território judaico. Isso fica ainda mais forte pelo fato de ele ter esconjurado
Cristo “por Deus”. O pedido da esconjuração é para que Cristo não o “atormente”. Isso
provavelmente seja uma alusão ao “tormento eterno” que se seguirá ao julgamento final16.
Isso transparece especialmente no texto de Mateus: “Que temos nós contigo, ó Filho de
Deus! Vieste aqui atormentar-nos antes de tempo?” (Mt 8.29). Há, portanto, uma
consciência por parte desses espíritos de que Cristo veio para atormentá-los, porém, ao
mesmo tempo, eles parecem entender que o tempo determinado para que isso aconteça
ainda não havia chegado, e, que, portanto, Cristo não estava agindo com legitimidade.
Diante disso, Jesus retomou o controle da situação. Quando pediu que o espírito
dissesse qual era o nome dele, talvez estivesse indicando para os demônios que ele não
iria recuar, que estava ali para ganhar terreno, e que os demônios teriam que se submeter:
“E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? Respondeu ele: Legião é o meu nome, porque
somos muitos” (Mc 5.9). Por um lado, percebe-se que o demônio parece estar, de algum
modo, se negando a dizer o nome. Ele continuou tentando resistir a Cristo. Porém, ao
mencionar que seu nome é “legião”, ele estava desafiando Cristo mais uma vez. Uma
legião romana podia ter até seis mil homens. Então, em outras palavras, ele disse que ali
não estava apenas um demônio tentando resistir a Cristo, mas um exército. Porém, que a
batalha não é por força ou violência, mas jurídica, fica revelado pelo pedido “encarecido”
ou formal: “E rogou-lhe encarecidamente que os não mandasse para fora do país” (Mc
5.10). O termo usado (παρεκάλει) denota um apelo urgente e com propriedade17. O que
eles requisitaram de Cristo? Marcos diz que eles pediram que Cristo não os enviasse para
“fora do país”. E, segundo Lucas, eles rogaram a Cristo que não os enviasse para “o
abismo” (Lc 8.31). Essas duas expressões devem ser vistas de maneira complementar.

15
R. T. France. The Gospel of Mark: a commentary on the Greek text. New International Greek
Testament Commentary. Grand Rapids, MI; Carlisle: W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 2002, p. 228.
16
James A. Brooks. Mark. The New American Commentary. Nashville: Broadman & Holman
Publishers, 1991, 23:90.
17
Johannes P. Louw e Eugene Albert Nida. Greek-English lexicon of the New Testament: based on
semantic domains, 1996, 1, 407.
Eles, portanto, pediram “duas coisas” para Cristo. Ser enviado para “fora do país” (ἔξω
τῆς χώρας) representaria ser expulso da área de atuação à qual eles julgavam ter direito
de estar. Talvez, isso seja uma reminiscência do ensino de Daniel de que havia espíritos
que exerciam domínio sobre países como a “Pérsia” e a “Grécia" (Dn 10.13, 20). Aqueles
demônios, portanto, argumentaram com Cristo de que tinham direito de estar ali, pois não
estavam em Israel, e sim no território estrangeiro. Ao mesmo tempo, também
requisitaram que Cristo não os enviasse para o abismo (τὴν ἄβυσσον). Essa expressão,
por certo, aponta para o destino final daqueles demônios 18.
Todas essas expressões apontam para o reconhecimento daqueles demônios de
que está determinado um tempo quando eles perderão completamente o direito de agir
nesse mundo, e serão enviados para o abismo (lago de fogo). Porém, isso só pode
acontecer, no entendimento deles, após o juízo final. Assim, com base nisso, eles
questionam a presença de Cristo ali.
Porém, percebendo que Cristo não permitiria que eles permanecessem no homem,
eles fizeram um pedido intermediário: “E os espíritos imundos rogaram a Jesus, dizendo:
Manda-nos para os porcos, para que entremos neles” (Mc 5.12). Não deixa de ser curioso
o fato de Jesus atender ao pedido deles: “Jesus o permitiu.” (Mc 5.13). Pode parecer
estranho que Jesus atenda a uma solicitação de demônios, porém, isso significa que Jesus
reconheceu, ainda que parcialmente, o “direito” deles. Ele não os enviou para “fora do
país”, nem “para o abismo”, porém, igualmente não permitiu que eles ficassem no
homem. Assim, dois mil porcos receberam o exército de mais de seis mil demônios.
O desfecho da passagem, entretanto, ainda reserva uma surpresa: “Então, saindo
os espíritos imundos, entraram nos porcos; e a manada, que era cerca de dois mil,
precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, onde se afogaram” (Mc 5.13).
Há, sem dúvida, uma ironia na descrição. Os demônios não queriam ser enviados para
fora do país, nem para o abismo, mas acabaram caindo junto com os porcos
“despenhadeiro abaixo, para dentro do mar”. Isso sugere que algo não acabou bem para
eles. Talvez, tenha sido uma indicação divina de que, apesar do temporário “direito" deles
ter sido observado por Jesus, se aproximava o tempo quando eles perderiam todos os seus
direitos. No nosso entendimento, na cruz Jesus os enviou “para fora do país”, e na sua
segunda vinda, ele os enviará "para o abismo”.

18
O termo “abismo", na literatura intertestamentária tem a conotação de um lugar de prisão de
alguns anjos, talvez similar ao termo “tártaro" que Pedro usa em 2Pe 2.4, e que foi traduzido
como “inferno" na ARA. Em Apocalipse, um exército demoníaco parece sair desse lugar para
atormentar os homens incrédulos (Ap 9.1-11). Ver mais informações no Excurso abaixo: “Os
anjos em prisão”.

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