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MEMÓRIA E JUVENTUDE:
RE-DESCOBRINDO A ÁFRICA NA METRÓPOLE LISBOETA
SÃO PAULO
2001
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Memória e Juventude:
Re-descobrindo a África na Metrópole Lisboeta
Este relatório corresponde aos sete meses de pesquisa que desenvolvemos acerca
do tema memória e juventude cujo foco central foram os filhos de imigrantes africanos
que vivem nos dias de hoje na cidade de Lisboa. Nossa meta era a de buscar reconstruir
notas biográficas desses jovens através de entrevistas realizadas em solo português pela
orientadora do presente projeto.
Antes de avançarmos na apresentação dos resultados da pesquisa, por se tratar de
um relatório único e final, procuraremos retomar algumas informações contidas no
projeto original e os desvios que a pesquisa tomou ao longo desses sete meses, de modo
a consolidar um texto único de acordo com as premissas do projeto sobretudo
abrangendo o universo pesquisado. Deste modo, este relatório divide-se da seguinte
forma:
- na primeira parte apresentamos Portugal no contexto das migrações internacionais
contemporâneas do ponto de vista dos conflitos de identidade e da socialização dos
imigrantes oriundos dos PALOP - Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa1;
- na segunda parte discutimos o jovem negro português, também chamado de luso-
africano, destacando a percepção que a sociedade portuguesa tem desses jovens e a
repercussão do tema juventude e imigração nos meios de comunicação e acadêmico;
- na terceira parte discutimos as perspectivas teóricas de diferentes autores dialogando
com os sujeitos e seu universo sobretudo no trânsito dos temas memória e
juventude;
- na conclusão retomamos os pontos centrais de cada capítulo buscando responder
algumas questões que ficaram em aberto.
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Nomeadamente: Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
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Os dados do presente projeto constam do Processo FAPESP nº 2000/12669-2.
3 Projeto de Pesquisa Integrado: “Biografias de imigrantes: trajetórias em diferentes contextos” –
NAP/CERU-USP – UNICAMP. Sub-projeto: “Biografias de luso-africanos: trajetórias em metrópole
lisboense” – período fev. de 2000 / fev. de 2002, desenvolvido com o apoio do CNPq.
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2001, embora a conclusão do curso esteja programada para primeiro semestre de 2002,
conforme a seção acadêmica de graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo atesta.
Em segundo lugar, o trabalho de campo que seria realizado pela orientadora nos
meses de junho e julho em Lisboa só foi realizado nos meses setembro e outubro por
conta do atraso na liberação do financiamento de sua viagem pelo CNPq. Muito do
material bibliográfico recolhido em Lisboa durante esse período, que certamente
possibilitaria uma compreensão melhor da realidade por nós estudada, não pôde ser
incorporado ao trabalho com exceção de algum livro e observações feitas pela
orientadora. Como o prazo da entrega do relatório final seria um mês após a chegada
desse material, o processamento e a análise das entrevistas gravadas, do material de
imprensa, das anotações de campo e da literatura produzida recentemente que traz
importantes contribuições para o debate sobre a presença de imigrantes e filhos de
imigrantes africanos em Portugal foi inviabilizado por conta do tempo. Isto não
significa que todo esforço tenha sido em vão, nos comprometemos, mesmo sem auxílio
de financiamento, a elaborar um banco de dados com todo esse material que ficará
disponível no acervo da biblioteca do CERU para os interessados e para novas
propostas de trabalho sobre essa temática a serem desenvolvidos no futuro.
Portanto, o que se apresentará ao longo deste relatório é uma discussão acerca
dos principais temas norteadores desta pesquisa, a saber, memória e juventude, além de
outros temas que se agregam a essas questões como: imigração, cultura, identidade e
oralidade. Este trabalho apóia-se, ainda, em dados obtidos através da Internet nos sites
dos principais jornais portugueses, como o Expresso (www.expresso.pt), o Diário de
Notícias (www.dn.pt) e, principalmente, o Público (www.publico.pt) que preparou e
disponibilizou um notável dossiê sobre a situação dos estrangeiros em Portugal.
Metodologicamente, optamos por um trabalho essencialmente qualitativo, raro
foi o uso de dados quantitativos por acreditarmos que nosso problema não pode ser
mensurado por números nem exposto em gráficos e tabelas. Como procedimento de
análise partimos do conhecimento sociológico e antropológico já produzido articulando
diversas tendências do pensamento, apontando eventuais equívocos e propondo algumas
questões. Importante salientar que o conhecimento produzido fora do âmbito acadêmico
foi importante para o presente trabalho. O senso comum e os meios de comunicação nos
dizem muito sobre a realidade estudada, de modo que todo conhecimento produzido
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acerca do jovens luso-africanos contribui para aquilo que chamamos “uma inversão do
olhar”, que consiste justamente em focar a problemática da memória socialmente
construída pelos jovens negros filhos de imigrantes africanos em Portugal a partir do
seu alicerce cotidiano, a sociedade portuguesa, a metrópole lisboeta concretamente
falando. Cabe lembrar, ainda, que este trabalho situa seu campo de análise num espaço
delimitado, a cidade de Lisboa, e num tempo histórico sociologicamente datável, a
sociedade contemporânea portuguesa na passagem do século XX para o XXI, no limiar
da introdução do euro como moeda nacional européia.
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PARTE I
concreta do processo de globalização. Restaria então aos excluídos buscar novas formas
de inserção, numa sociedade onde tais fronteiras do Estado-nação estariam
desaparecendo para dar lugar aos blocos regionais, onde os rígidos contornos territoriais
precisam ser necessariamente repensados”.
O problema da inserção dessa parcela global excluída deve ser discutido a partir
de uma conjuntura econômica que produz uma nova desigualdade. Segundo Martins,
essa nova desigualdade surge das transformações que o capitalismo sofre atualmente
com o processo de globalização, que geram uma “reinclusão” precária na sociedade; os
trabalhadores podem e até são reincluídos economicamente, de forma cada vez mais
precária, mas em função desta precariedade a reinclusão não ocorre no plano social. “A
reintegração não se dá sem deformações no plano moral; a vítima não consegue se
reincluir numa moralidade clássica, baseada na família, num certo tipo de ordem”.
(Martins, 1997, p.33)
Segundo Sayad (1998, p.54), “um imigrante é essencialmente uma força de
trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito”. Neste sentido,
um imigrante é um trabalhador, portanto, pensar um imigrante desempregado (excluído
do trabalho) é um paradoxo.
O problema que encontramos hoje é que a exclusão vivida pelos trabalhadores
(imigrantes) anteriormente era apenas um momento de passagem para uma nova
inclusão em outras condições, isto é, um camponês expulso, ‘excluído’, logo era
incluído numa fábrica na cidade, mas hoje esse período de passagem tornou-se uma
condição estrutural ao invés de um período transitório.
Na verdade, o que denominamos como um processo de exclusão (ou reinclusão
precária) é um processo de privação pelo qual passa o indivíduo: privação do emprego,
da família, do consumo, dos direitos, das liberdades, da esperança.
O mínimo que um trabalhador imigrante precisa é de um alojamento, ele é
alojado de acordo com sua condição, ou seja, temporário, provisório. O fato de ter um
lugar para ficar determina e facilita as estratégias que inclusão na estrutura de trabalho.
A hospedagem “é a condição para se encontrar um emprego, posto que para encontrar
um emprego requer a hospedagem” Sayad (1998, p.74). Deste modo, trabalho e
habitação (hospedaria, alojamento ou albergue), tem uma relação mútua. A hospedagem
e o emprego oficializam a condição do imigrante.
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A questão da exclusão social no que diz respeito aos imigrantes deve ser
criticamente analisada. Para Martins (1997, p.14) “não existe exclusão social: existe
contradição, existem vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes”.
O que muitos tentam fazer é discutir formas de exclusão que podem ser vistas
separadamente mas que acabam gerando equívocos quanto a sua análise, um
afastamento do que seria central na discussão. O que chamamos de exclusão se trata de
um conceito vago, indefinido e ideologicamente esvaziado. Explica tudo sem explicar
nada. Este conceito vazio, segundo Martins (1997, p.16) “substitui a idéia sociológica
de processos de exclusão” (grifo do autor).
A idéia de exclusão lança-nos numa cilada, visto que na sociedade
contemporânea o indivíduo busca, de alguma maneira, se “incluir” e é nesta inclusão
que está o problema: ela ocorre da pior forma possível, em condições sociais precárias e
marginais. Para Martins (1997, p.26) os teóricos “chamam de exclusão aquilo que
constitui o conjunto das dificuldades, dos modos e dos problemas de um inclusão
precária, instável e marginal. A inclusão daqueles que estão sendo alcançados pela
nova desigualdade social produzida pela grande transformações econômicas e para os
quais não há senão, na sociedade, lugares residuais” (grifo do autor).
Todo este problema da exclusão reside no seio da sociedade capitalista. Uma
“sociedade que tem como lógica própria tudo desenraizar e a todos excluir porque tudo
deve ser lançado no mercado; para que tudo e todos sejam submetidos às leis do
mercado” (Martins, 1997, p.30). O causador deste “mal”, sem dúvida, é o sistema
capitalista, dado que o desenraizar é “uma regra estruturante: todos nós, em vários
momentos de nossa vida, e de diferentes modos, dolorosos ou não, fomos desenraizados
e excluídos. É próprio dessa lógica de exclusão a inclusão. A sociedade capitalista
desenraíza, exclui, para incluir, incluir de outro modo, segundo suas próprias regras,
segundo sua própria lógica” (Martins, 1997, p.32). O problema está na inclusão que se
dá apenas no plano econômico, nunca no plano social. As maiores vítimas deste
processo perverso, sem dúvida, são os imigrantes que sofrem deformações morais, são
lançados para uma condição de sub-humanidade.
A presença de imigrantes em Portugal, provenientes dos países do Terceiro
Mundo, ocorre desde meados da década de sessenta e setenta. No entanto, somente a
partir dos anos oitenta que esta começa a ser “socialmente visível”. Para Santamaría
(1998), países que anteriormente eram marcados pela emigração e por terem menos de
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No dia 1 de janeiro de 2002, entrarão em circulação em 12 Estados-membros da União Europeia as
notas e moedas de euros. A transição para o euro, no entanto, significa muito mais do que uma simples
mudança de moeda. Envolve indivíduos e empresas não só nos países que aderiram à moeda única, mas
também em todo o mundo. Os 12 Estados-membros são: Bélgica, Alemanha, Grécia, Espanha, França,
Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Áustria, Portugal e Finlândia. Ver site oficial do Euro em
português: http://www.euro.ecb.int/pt.html
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assim equacionada abstratamente, fora dos contextos históricos e sociais em que ela é
ou não efetivamente tomada por indivíduos, famílias ou categorias mais alargadas,
tendo em conta diversas circunstâncias, recursos e condicionantes próximos. Contudo,
esse modelo clássico, contando agora com alguns aperfeiçoamentos, continua a ser
utilizado na explicação macro do processo migratório, no que diz respeito às condições
sociais, econômicas e políticas que favorecem tais movimentos.
Numa outra análise dos fenômenos migratórios, temos os marxistas e teóricos da
dependência cuja influência foi exercida na década de 70 e início dos anos 80, que
apontam como principal fator migratório as desigualdades econômicas e sociais criadas
pelo sistema capitalista de produção.
Nesta perspectiva, a escolha é conduzida pelas situações de fome, miséria e
guerra pelas quais passa o país. Os indivíduos migram em busca de melhores condições
de vida, num movimento que leva a população de países periféricos para os países
centrais do sistema capitalista, que determinam e regulam os fluxos de acordo com suas
necessidades. Como as sociedades industrialmente mais desenvolvidas têm necessidade
de um proletariado externo, elas induzem os movimentos migratórios, cuja mão-de-obra
é barata e não-qualificada. Estabelece-se, diz Piselli (1997, p.2), uma correlação entre
emigração e miséria, entre emigração e proletarização. Ao contrário da matriz clássica,
este modelo não veicula a idéia de que a migração é livre, mas condicionada por
necessidades de ordem econômica.
Nos anos recentes os paradigmas de ambas as teorias têm sofrido revisão, pelo
fato de possuírem explicações insuficientes e/ou inadequadas dos fenômenos
migratórios. É o que ocorre com os fluxos realizados durante os anos 80 e 90 que
apresentam características diferentes daquelas dos fluxos anteriores, contando com uma
nova tendência migratória para países que antes possuíam tradição emigratória, tais
como Portugal, Espanha, Itália e com a extensão das migrações temporárias e
clandestinas, que não têm explicações satisfatórias se forem restringida às análises
neoclássicas.
A nova abordagem sustenta que não há um único fator responsável pela
emigração, mas um conjunto de fatores - sociais, econômicos e políticos - conduzindo à
decisão de migrar.
No que tange ao fator de natureza política tem-se, entre outras coisas, a posição
que o Estado receptor adota em relação à emigração (principalmente no que se refere
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aos mecanismos de controle adotados pelo país a fim de restringir a entrada dos
estrangeiros) os laços existentes entre os países em questão (país de origem e país de
destino), etc. O fator econômico corresponde aos incentivos existentes no país receptor
em relação ao mercado de trabalho, mais especificamente à demanda de empregos.
Nossa perspectiva acerca das migrações internacionais neste momento apoia-se,
sobretudo, no trabalho de Santamaría (1998). O fenômeno imigratório sempre foi
pensado a partir da condição do próprio migrante e do seu desejo motivado por razões
econômicas em emigrar, porém, quando as migrações na Europa atingem um grau
elevado de marginalização, clandestinidade etc., é necessário fazer uma crítica do
conhecimento acumulado de modo a produzir um conhecimento crítico de outra ordem,
mas para isso é preciso inverter o olhar. Ou seja, não mais centrar o olhar no migrante
como objeto, mas olhar tudo o que se fala e quem fala sobre ele – desde o conhecimento
acadêmico, passando pela imprensa até o senso comum – e que constrói as categorias
(como a própria categoria imigrante que é construída socialmente a partir do contato
com o outro, a fim de distinguir o que julga-se diferente). Ninguém é imigrante por
natureza, as pessoas tornam-se imigrante quando estabelecem-se em um lugar diferente
do seu.
A leitura do texto do Santamaría (1998) contribui na medida em que não
fiquemos presos nele em si, pois suas reduzidas linhas não dão conta de várias questões
que se colocam atualmente na análise dessa pesquisa. No entanto, o que devemos
valorizar é a discussão que o texto suscita com relação ao tema imigração e a busca de
informações que ele instiga no que diz respeito à mudança de olhar sobre o imigrante,
no nosso caso, os jovens luso-africanos em Portugal.
Deste modo, significa olhar para os imigrantes e seus descendentes não a partir
dos fluxos pura e simplesmente (pois não se pretende descrever o perfil do imigrante
detendo-se ao mero registro de dados, nem tampouco se restringir a denúncias sobre
suas condições de vida, pela ausência de condições de bem-estar etc), mas compreendê-
los a partir da sociedade na qual eles estão. Isto é, ver como as abordagens, como as
referências no discurso desta sociedade de acolhimento são construídas de alguma
forma a levar que se pense sempre o imigrante na sua condição de falta, o que numa
postura positiva resulta em denúncias, que levam ao planejamento de políticas públicas
que visam sanar os problemas em questão.
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para as colônias africanas, com o objetivo de “se livrar dos excedentes de mão-de-
obra”5.
Neste século as migrações de africanos para Portugal iniciaram-se na década de
sessenta com a entrada de cabo-verdianos que vieram para trabalhar na construção civil
e em obras públicas. Entretanto, o número de estrangeiros ainda era reduzido nesse
período, destacando-se pequenos grupos de origem européia, alguns com atividade
econômica como o comércio do vinho do Porto e a exploração de minas. Assim,
Portugal ainda era nessa época predominantemente um país de emigração. A imigração
que recebia era de caráter temporário, pois funcionava como porta de entrada para
outros países da Europa, como ocorreu com muitos cabo-verdianos.
O período que vai de 1960 a 1974 é marcado pela adesão de Portugal à EFTA
(European Free Trade Association), pela industrialização, pela entrada de profissionais
qualificados oriundos da Europa desenvolvida e pela saída de portugueses em direção
aos países do centro europeu. Diante deste contexto observa-se a imigração de cabo-
verdianos para Portugal, pelo fato de as ilhas estarem sofrendo com a seca e como
resultado da convocação do governo português que vivenciava uma crise de mão-de-
obra, corolário das imigrações e do alistamento dos jovens para a guerra. Trata-se,
então, de uma imigração de substituição.
Um segundo período diz respeito aos anos 74 e 75 que marcam a independência
das ex-colônias africanas e, em conseqüência, o regresso de milhares de imigrantes
africanos que lá viviam. Grande parte desse novo fluxo foi composto por indivíduos e
famílias que haviam fugido das guerras de independência, ou seja, eram refugiados. As
pessoas que migraram nesse período eram de origem africana com nacionalidade
portuguesa que advinha de duas condições: ascendência portuguesa ou exercício de
atividade em órgãos administrativos da colônia. “Trata-se, portanto, de retornados não-
brancos, que, num contexto de mudança social e política em larga escala” (Machado,
1997, p.113) optaram pela transferência para Portugal a fim de manter o nível social
alcançado no momento anterior.
Somente na década de 80 a imigração assume o caráter eminentemente laboral,
isto é, dirige-se com vistas ao trabalho sendo a indústria da construção civil a que mais
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Aqui há uma clara referência à obra de Tinhorão, José Ramos. Os negros em Portugal: uma presença
silenciosa. Lisboa: Caminho, 1988. Tinhorão demonstra a presença significativa de negros em Portugal
anterior ao século XVI e, revela que, muitos escravos negros serão posteriormente reconhecidos como
nascidos em Portugal.
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emprega esse contingente, vindo dos PALOP, sobretudo Cabo Verde, Angola e Guiné-
Bissau, detentores de mão-de-obra barata e não qualificada. No mesmo período registra-
se a imigração brasileira que apresenta um perfil sócioprofissional mais elevado,
aproximando-se com o dos europeus e distinguindo-se com o dos africanos.
Com isso, levando-se em consideração os fatores de natureza econômica, social
e política no que se refere aos atrativos representados por Portugal neste momento,
pode-se concluir:
- no que se refere ao mercado de trabalho ocorreu um incentivo ao trabalho em obras
públicas ao mesmo tempo que intensificou-se a imigração proveniente dos PALOP.
Machado comenta a dependência que este setor criou em relação à mão-de-obra
imigrada e que deve perdurar por muitos anos, o que é confirmado pela marcante
presença africana neste ramo de atividade;
- com respeito ao fator de ordem política, pode-se dizer que durante os anos 80
manteve-se a ausência de mecanismos de controle o que favoreceu a entrada de
imigrantes. Porém, ao invés de trazer benefícios para a comunidade imigrante essa
omissão do governo português desfavoreceu a politização dos imigrados que ficaram
com a discriminação no mercado de trabalho. Entretanto, com a inclusão de Portugal a
U.E. esta exigiu que criasse leis de restrição, a fim de que países como Portugal,
Espanha e Grécia, não se permanecessem como plataforma para os países europeus de
tradição imigratória, como França e Alemanha. Mas, tais medidas resultaram num
crescente número de imigrantes clandestinos nestes países;
- o fator social tem a ver com as redes migratórias, fundamentais no processo de
mudança, devido a intermediação que estabelecem entre o migrante recém-chegado e
a sociedade receptora. Como for apresentado anteriormente estas redes contribuem
para a (re)construção da identidade dos indivíduos, transformando-se em associações
de cunho étnico e político, visto o trabalho que fazem junto aos órgãos públicos. Em
Portugal a rede migratória que já se consolidou foi a dos cabo-verdianos, que
compuseram os primeiros fluxos migratórios e se apresentam em maior número
atualmente.
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Por meio do quadro geral das imigrações para Portugal, elaborado pelo Serviço
de Estrangeiros e Fronteiras, correspondente ao período 1986-19966, pode-se retirar
algumas informações sobre os fluxos migratórios para Portugal, vejamos:
- o total de estrangeiros residentes em Portugal quase duplicou neste período, passando
de 86.982 para 170.962. Deste total sabe-se que o número de africanos oriundos dos
PALOP aumentou o contingente em 113%, passando de 37.829 para 80.509, o que
corresponde a 47,1% do total. Os asiáticos e sul-americanos sofreram uma variação de
136 e 105% respectivamente, não alcançando em número efetivo a quantidade de
europeus, que é de 46.033 imigrantes. De um modo geral, a variação de imigrantes no
presente período ficou na casa dos 97%.
A imigração recente em Portugal deve ser vista no quadro das dinâmicas
internacionais de migração em curso no espaço europeu. Portugal, além da fixação,
funciona como plataforma de passagem para outros destinos. Esse processo ocorre
desde os anos 50, com a entrada de cabo-verdianos que se dirigiam a países europeus
mais desenvolvimentos, antes de começarem a se fixar em Portugal. No entanto,
segundo Machado (1997, p.14) observando diretamente a imigração portuguesa, deve-
se destacar, que ela surge num quadro que se reveste de acentuada especificidade no
contexto europeu. Nas duas últimas décadas, a imigração é um entre quatro fluxos
externos, sendo os outros três a emigração, o regresso de emigrantes e o retorno das ex-
colônias.
Portugal reconhecidamente sempre foi um pais de emigrantes, embora a
imigração possa já ser um fato consolidado, não se pode dizer que Portugal deixou de
ser um país de emigração para se tornar um país de imigração, ou seja, embora em
termos de tendência pode-se esperar que a imigração venha suplantar a emigração, o
número atual de saídas e ainda superior ao das entradas. (Machado, 1997, p.16)
No que diz respeito a dialética emigração/imigração portuguesa, as discussões
que surgem é saber se a imigração recente em Portugal corresponde a uma substituição
de profissionais portugueses que deixaram o país e foram viver em países
desenvolvidos da Europa e nos EUA. De fato, as migrações assumem atualmente um
caráter laboral, ou seja, cidadãos que emigram em busca de melhores oportunidades de
emprego e, embora Portugal tenha uma posição periférica no contexto da economia
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Esta data foi escolhida em favor do aumento das imigrações e do processo de regularização dos ilegais,
aproximando o número oficial do real. Esse números encontram-se disponíveis no site oficial do Serviço
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mundial está inserido no quadro das migrações internacionais. Entretanto, como afirma
Machado (1997, p.19) a tese de que emigração e imigração incidem sobre segmentos
diferentes do mercado de trabalho, o que se deveria, entre outras razões, também à
diferença de qualificação entre emigrantes e imigrantes, não encontra, como se vê,
suficientes elementos de prova. Pode-se dizer, portanto, que o fluxo imigratório em
Portugal da década de 80 em diante não caracteriza uma substituição de emigrantes por
imigrantes, são fenômenos que apesar de realizarem-se simultaneamente no quadro das
migrações atuais em curso são portadores de perfis distintos.
E em relação ao retorno a Guiné diz: ...E nesse momento estou a espera é... da
minha noiva e que deve vir cá, casamos cá e depois os dois arruma, fazemos, definimos
nossas coisas e voltamos. Essa é minha intenção.
O caso da imigração de africanos dos PALOP para Portugal se apresenta de
maneira específica no quadro das imigrações internacionais, pelo fato de se ter como
pressuposto que as migrações têm um caráter doméstico, se dão entre países irmãos -
PALOP e Portugal - por compartilharem costumes e valores comuns, além da mesma
língua.
Neste sentido, quando se pensa em emigrar, principalmente os que possuem
nacionalidade portuguesa, por terem nascido num período em que a esses países
africanos eram colônias portuguesa, os imigrantes se vêem e se pensam filhos de
Portugal, fazendo parte da família portuguesa ultramarina.
Entretanto, quando se defrontam com a realidade em solo português a utopia
com a terra de destino se esvai, emergindo em seu lugar uma realidade cruel, envolvida
em discriminação, racismo e exploração. A sociedade que se diz no discurso
multicultural, se apresenta na prática hostil à figura do imigrante, que por ser luso
(devido à nacionalidade portuguesa), isto é, luso-africano não aceita ser enquadrado
numa categoria geral de imigrante. Por isso estabelece uma categoria específica - luso-
africano8 - para designar os africanos de nacionalidade portuguesa, de condição social
média, que vieram com a independência das colônias e também os filhos desses
imigrantes nascidos em solo português.
Entre os luso-africanos naturais e nacionais há uma diferença quanto ao grau de
escolaridade e nível social: os primeiros possuem um nível de escolaridade mais
elevado ao passo que os últimos são marcados pelo analfabetismo e baixo grau de
capacitação, recorrendo deste modo ao trabalho na construção civil.
Pelo fato de diferenciarem-se quanto à classe social, tais imigrantes não formam
um grupo étnico conciso, pois possuem interesses divergentes que sobrepõem-se à
origem comum. Contudo, a inserção de ambos os grupos na sociedade portuguesa é
marcada de dificuldades, que se acentuam conforme a perceptividade da diferença. Isto
é, quanto mais a população imigrante se destaca da sociedade envolvente devido a cor
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Categoria questionada por António Concorda Contador (2001) quando se refere aos jovens descendentes
de imigrantes.
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Simmel (1983, p.183) discute o estrangeiro não apenas como aquele que chega
hoje e parte amanhã mas no sentido daquele que chega e amanhã fica. Ser estrangeiro,
para Simmel (1983, p.186) “é uma forma específica de interação”. Significa dizer que o
estrangeiro está próximo e está distante. Assim, “o estrangeiro está próximo na medida
em que sentimos traços comuns de natureza social, nacional, ocupacional, ou
genericamente humana, entre ele é nós. Está distante na medida em que estes traços
comuns se estendem para além dele ou para além de nós, e nos ligam apenas porque
ligam muitíssimas pessoas”.
Porém, a idéia de que o estrangeiro está distante é falsa. Na verdade o
estrangeiro está próximo, pois “assim como o indigente e as variadas espécies de
‘inimigos internos’, o estrangeiro é um elemento do próprio grupo (grifo nosso). São
elementos que se, de um lado, são imanentes e têm uma posição de membros, por outro
lado estão fora dele e o confrontam” (Simmel, p.183). Além disso, “a proporção de
proximidade e distância que dá ao estrangeiro o caráter de objetividade, também
encontra expressão prática na natureza mais abstrata da relação com ele, isto é, com o
estrangeiro têm-se em comum apenas certas qualidades gerais, enquanto que a relação
com pessoas mais organicamente ligadas baseia-se em diferenças específicas, originadas
nos traços simplesmente genéricos que se têm em comum”. (Simmel, p.185)
Os luso-africanos, neste sentido, surgem como uma categoria de identidade
híbrida. Eles são, ao mesmo tempo, um elemento interno e externo da sociedade
portuguesa – são portugueses e africanos ao mesmo tempo. Estão próximo na medida
em que se reconhece neles um pertencimento no conjunto da nação portuguesa como
afirmação de sua condição histórica além-mar; e está distante na medida em que
Portugal necessita se afirmar como nação européia, negando, assim, o seu passado
colonial. Há, porém, um problema: muitos desses africanos não se consideram
imigrantes, a expressão ‘luso-africanos’ faz deles sujeitos de dupla nacionalidade.
(Machado, 1994)
Sabe-se que para se ter espaço na União Européia é necessário restringir a
entrada de imigrantes, principalmente imigrantes do Terceiro Mundo. Portugal luta para
integrar a U.E e para isso aplica sobre os luso-africanos a condição política de
imigrantes, transforma-os em sujeitos externos de Portugal, isto é, fora de uma condição
européia.
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Neste caso a palavra ‘imigrante’ se faz necessária porque, deste modo, serão
tratados e considerados como tal: como mão de obra provisória e sem direitos
constitucionais.
Em pleno século XXI o imigrante ainda se apresenta essencialmente como “uma
força de trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito” (Sayad,
1998, p.54). Neste sentido, “um trabalhador imigrante, mesmo se nasce para a vida (e
para a imigração) na imigração, mesmo se é chamado a trabalhar (como imigrante)
durante toda a sua vida no país, mesmo se está destinado a morrer (na imigração), como
imigrante, continua sendo um trabalhador definido e tratado como provisório, ou seja,
revogável a qualquer momento” (Sayad, 1998, p.55). O trabalho faz “nascer” e “morrer”
o imigrante, portanto, um imigrante reuni em si as contradições da sociedade capitalista
contemporânea.
PARTE II
portuguesas, que não faziam parte da atual Casa de Cabo Verde, toma nas suas mãos a
direção dessa associação. Acusavam-na de não representar seus interesses, de ser muito
tolerante com relação ao colonialismo e de ter uma excessiva elitização.
A partir de 1978, começa-se a sentir uma diminuição na adesão e participação
dos associados que se acentuará na década de 80, não só devido ao reagrupamento
familiar, mas também à proliferação de associações de bairro, aumentando a oferta de
recreação, cultura e meio de participação política com Cabo Verde. Assim, o estatuto da
Associação de Cabo-verdianos e Guineenses começa a ser alterado.
Com isso, em 1981 é criada a Associação Cabo-verdiana. Essa associação inova
no caráter, além de recreativo e cultural, também de intervenção comunitária e política,
nos esclarecimentos dos problemas da comunidade, na defesa de soluções através de
candidaturas em torno da causa negra.
É perceptível um primeiro momento de organização com o intuito de conservar a
cultura cabo-verdiana, isto é, a identidade étnica, mas quando as diferenças entre essa
minoria e a sociedade nacional se expressam em desigualdades sociais e criam uma
identidade étnica negativa, a politização da questão étnica, como reação à tentativa de
assimilacionismo, torna-se urgente.
A etnicidade, portanto, se manifesta como uma base identitária de defesa de
interesses de um grupo numa sociedade caracterizada por relações de dominação de
uma maioria sobre uma minoria.
Os conflitos étnicos não são mais do que conflitos de interesses, assumindo-se
como estratégia eficaz de ação e pressão política, manifestando-se como resposta a uma
política discriminatória que se exprime na ausência de acesso das minorias étnicas aos
benefícios do Estado relativos à educação, saúde, habitação, segurança social, emprego,
mobilidade social, igualdade de oportunidades, entre outros (Carita & Rosendo, 1993,
p.136-138). Aqui está explícita a idéia de conflito e, portanto, de poder, caracterizando a
etnicidade como de caráter político.
Se as condições de marginalidade e inferioridade vividas por uma minoria étnica
é conseqüência de uma política econômica e social que a exclui, a reação a tal situação
seria “trazer a ordem política e econômica para o campo étnico”. (Carvalho, 1985, p.21)
Sendo assim, a politização da questão étnica não pode ignorar os processos de
(re)construção de identidades culturais. Para Madureira Pinto, apud Gonçalves, H. S.
(1994, p.137), o conceito identidade é “eminentemente relacional”, já que resulta do
34
uma identidade étnica, segundo ele mesmo afirma: “podemos dizer que a ficção da
identidade dos jovens negros é um agenciamento contínuo de referência
desterritorializadas, reapresentada através da partilha – do consumo – de uma
transestética negra, onde se articulam: estilos, corpo, passado-presente e música num
jogo tenso – metafórico – entre ´o que se é´ e ´o que se quer ser´.
Os jovens negros se identificam e são identificados filiados ao campo da
negritude, que vem sobretudo do hip hop9, um movimento cultural cujo questionamento
é global. Há várias frentes de afirmação e como tal este movimento também não é um
processo homogêneo. Frente à sociedade portuguesa o jovem joga ambiguamente com a
sua africanidade e com a sua negritude, porque uma coisa não é necessariamente
sinônimo da outra: elas estão juntas, mas a africanidade é a coisa do pertencimento a um
bairro africano, de falar uma língua africana, nomeadamente, o crioulo, falando assim
de origens, de espaço, etc. O caminho de pertencimento a uma negritude, como
movimento de afirmação da condição negra vem através da influência dos movimentos
mais globalizantes, o estilo de vida hip hop constitui um universo simbólico em torno de
uma condição de negritude.
Como diz Martins (1997, p.23-5), citando Giroy, a cultura dos jovens
experimenta os dilemas culturais postos pela condição de origens dos pais, mas transita
como experiência única e diferente das gerações anteriores. A juventude, o ser jovem
resulta então, da “tensão dialética entre raízes culturais e seus novos caminhos
culturais”. Para Martins, é assim que o jovem negro celebra sua especificidade e
alteridade. Constrói sua pertença grupal e uma linguagem ao mesmo tempo portuguesa,
africanizada, acrioulada e global.
No entanto, segundo o mesmo autor, é preciso ver que não se pode falar de uma
cultura juvenil negra luso-africana, posto que é diversa e múltipla para cada “bairro
africano”. Mais inclusiva, mais fechada ou mais aberta, mas sempre demarcada pela
etnicidade de seus sujeitos e pela posição que ocupam numa sociedade branca, cristã e
européia, com processos de integração-exclusão permanentes. Portanto, as culturas de
crianças e jovens negros revelam-se em especificidades e complexidades dinâmicas e
multifacetadas. A cultura dos jovens negros em Portugal se faz por fluxos e refluxos,
9
Movimento juvenil, cultural e urbano que corresponde a uma multiplicidade de expressões tais como o
graffiti (gráfico/visual), o break (dança performativa e acrobática) e rap (estilo musical composta de
ritmo e palavra verbalizadas em rimas).
40
por avanços e recuos que permitem pensá-la como um verdadeiro símbolo da sociedade
globalizada em que vivemos.
A cultura ou culturas do jovens, filhos de imigrantes africanos, permitem ainda
pensar que as raízes culturais de que são portadores descongelam-se na experiência de
suas vidas, compondo e recompondo seus elementos de modo a afirmar o espaço
concreto da cidade em que vivem, ou então, negá-lo como meio de superação da
segregação social e política que lhe é imposta pela sociedade portuguesa. Abrem-se,
assim, outros círculos de conviviabilidade e sociabilidade, impondo sua presença e
exigindo o reconhecimento da diferença como direito que dê a cada um a condição de
serem o que são, “não o que parecem ser”; que lhes dê a condição de não serem
desiguais.
41
PARTE III
gregos e nos traz até o século XX. Não será necessário aqui um mergulho a obra toda,
faremos uma confrontação com outras perspectivas para voltarmos à superfície do nosso
problema.
Segundo Le Goff (1996, p.423) o aspecto desenvolvido pela psicologia diz que
“a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em
primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode
atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”.
Este aspecto psicológico nos conduzem a uma idéia de que a memória se inscreve no
cérebro a partir da atividade mnemônica e das atividades perceptivo-cognitivas visando
unicamente organizar e adaptar a natureza humanas à situações novas. Porém, nas
ciências sociais a ênfase é dada ao comportamento narrativo como sendo o primeiro ato
da memória.
Pierre Janet, citado por Le Goff (1996, p.424-5)) considera o ato mnemômico
fundamentalmente como um “‘comportamento narrativo’ que se caracteriza antes de
mais nada pela sua função social, pois que é comunicação a outrem de uma informação,
na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo”. O eixo central
da narração é a linguagem, sobretudo a linguagem falada. A narração transmitida
oralmente possibilita a inscrição do conhecimento na memória de maneira a possibilitar
a transferencia deste conhecimento para as futuras gerações.
Ilustrativo neste sentido são as sociedades tradicionais míticas. O mito é relato
transmitido de forma oral, se realiza desta maneira e só tem razão de ser se for narrado,
se houver uma relação entre narrador e ouvinte. O mito, ao contrário do que se pensa,
deixa de existir quando transposto para o texto literário, passa a ser outra coisa, ganha
status de ficção, idéia que é completamente contrária a de mito. O mito só existe se for
falado.
J. P. Vernant (1999), em seu texto sobre a origem dos mitos gregos, critica a
idéia de uma mitologia grega. Para ele, nunca houve propriamente uma mitologia grega,
tratava-se de diversos gêneros literários como a epopéia, a poesia, a tragédia, a história e
a filosofia. Aliás, segundo ele mesmo aponta, esses gêneros ganharam uma forma
unitária e um corpo mitológico muito tempo depois da sua época. Deste modo pode-se
dizer não existe uma mitologia grega, mas um conjunto de lendas e histórias
transmitidas de maneira escrita para um público restrito de leitores. Deixa claro quais
são as condições de existência de um mito: memória, oralidade e tradição. De modo
44
Não é pragmatismo, mas sim o mundo concreto com uma dimensão utilitária e não
utilitarista. Em que consiste esta utilidade? Ensinamento moral, sugestão prática,
provérbio, conto de fadas (primeiros conselhos das crianças) e normas de vida, em
suma, o conselho. Assim, para Benjamin (1985, p.200) “aconselhar é menos responder a
uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está
sendo narrada [agora]” e continua, “o conselho tecido na [trama] substância viva da
existência tem um nome: sabedoria”. O processo que expulsa a narrativa do discurso
vivo anuncia o declínio de uma sociedade tradicional. Presenciou este momento na sua
própria sociedade com o crescimento das forças produtivas.
Para Benjamin (1985, p.200) se “‘dar conselhos’ parece hoje algo de antiquado,
é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis”. Neste momento “a arte
de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da
transmissão de uma experiência no sentido pleno, cujas condições de realização já não
existem na sociedade capitalista moderna”. (Gagnebin, 1999, p.10)
Os narradores recorrem à uma mesma fonte: a experiência que passa de pessoa a
pessoa marcada pelo traço da oralidade. Narrativa é palavra verbalizada e escutada. Os
narradores são sujeitos anônimos e as histórias narradas dão ênfase ao caráter coletivo.
Narração está sempre ligada ao coletivo, quem narra não se preocupa com as
vicissitudes individuais, mas com a continuação da história que foi contada. “A relação
ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi
narrado” (Gagnebin, 1999, p.210). O importante é assegurar a reprodução. Para tanto é
preciso que a narrativa seja de fácil memorização.
Narração e memória partilham de um mesmo conteúdo, a experiência. No
entanto, a modernidade faz desaparecer a possibilidade de transmissão tradicional do
saber. O saber que vinha de longe no tempo e no espaço dispunha de uma autoridade
que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Com a informação o
saber que vem de longe tem menos sentido que as informações próximas: devem ter
uma verificação imediata, ser compreensível e plausível. A informação surge como uma
nova narrativa sem história, sem memória, descontextualizada no tempo e no espaço.
A narrativa tem sentidos enigmáticos a serem decifrados pela interpretação, ao
contrário da informação que só tem valor quando é nova e só vive durante o seu
momento e tem que ser explicada nele. Por outro lado, a narrativa conserva suas forças
e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. A modernidade apresenta-se
47
10 “A memória é o meio daquilo que vivemos, assim como a terra é o meio dentro do qual jazem,
soterradas, as cidade mortas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado tem de proceder
48
respeito do seu tempo. As imagens que Benjamin (1997) traz de sua infância são
paradigmáticas na construção de uma história crítica do presente. O período em que
Benjamin (1997) escreve “Infância em Berlim” coincide com o fim da República de
Weimar (1918-1933) e a ditadura de Hitler na Alemanha. A primeira versão do texto é
de 1932-1934 e a segunda de 1938 em plena ditadura nazista. A emoção do texto está
ligada com a idéia de despedida, escreve o texto exatamente no momento do exílio em
Paris. Essa era a maneira que Benjamin (1997) tinha de fixar as imagens da sua cidade
de origem antes que ela fosse destruída. A infância de Benjamin é reconstruída a partir
do adulto apegado ao presente histórico.
Ao escrever “Infância em Berlim” e dedicar ao seu filho, Benjamin ( 1997)
estabeleceu uma transmissão de um patrimônio de pai para filho. “Um homem de
quarenta anos mergulha na memória da sua infância, reencontrando ali o mundo cultural
de seus pais, os valores que eles lhe ensinaram; nessa volta no tempo, recupera também
algo da maneira de ver da criança, seu modo próprio de perceber e sentir, sua
sensibilidade e seus valores”. (Bolle, 1994, p.318-319)
passado neste momento não é mais irrecuperável, já que irrecuperável é “cada imagem
do passado que se dirige ao presente, sem que este presente se sinta visado por ela”
(Benjamin, 1985, p.224), mas o novo presente, reconstruído, se sente sim visado por ela
e revida este olhar, investindo o passado e a si mesmo de aura.
Por tudo isso a busca de compreender a memória de jovens luso-africanos é uma
tentativa de romper com a idéia positivista de que só pessoas idosas tem memória, ou
que só os depoimentos delas validam ou legitimam os trabalhos dos investigadores cujo
“objeto” com o qual se preocupam é a memória. Muitos trabalhos nas mais diferentes
áreas das ciências humanas contribuíram para o que chamamos de equívoco, sejam eles
da sociologia, da historiografia, da antropologia, da educação e da psicologia social.
Como tema clássico das ciências humanas muito se falou sobre a memória, como
podemos perceber.
A idéia é dizer, através deste trabalho, que o jovem é portador de uma memória
que o situa no mundo, mesmo que sejam fragmentárias lembranças. Não pretendemos
fazer generalizações nem dizer que todo jovem age desta ou daquela maneira de igual
modo em todos os lugares do mundo porque são influenciados por uma “cultura juvenil
globalizada”. Nosso campo de discussão, como já foi exposto anteriormente, limita-se a
um grupo específico de jovem, a saber, o jovem negro luso-africano que vive na
metrópole lisboeta nos dias de hoje e que são, na sua maioria, filhos de imigrantes
africanos oriundo dos PALOP. Este jovem possui uma referência identitária que, sem
dúvida nenhuma, não é a mesma referência de um jovem negro da periferia de São
Paulo ou de um jovem branco da classe média de qualquer outra parte do mundo. Em
contrapartida, apesar deste jovem ser marcado por uma especificidade, é inevitável que
ele receberá a tal “cultura globalizada” que chega até ele através dos signos da
contemporaneidade. Usam tênis e roupas como qualquer outro jovem no mundo cujo
referencial é ocidental – mais especificamente norte-americano.
O jovem aqui em questão reúne as contradições da sociedade contemporânea,
esta é a sua especificidade em relação às outras juventudes. A memória da África se
torna auto-afirmativa diante do mundo português, ocidental e discriminatório. Não há
uma definição única sobre estes jovens, que jogam com todas as identidades possíveis:
negro, português, europeu, ocidental, filho de imigrantes. São, sobretudo, jovens
urbanos marcados por uma cultura metropolitana globalizada. Dizer isso é lugar
comum, não temos dúvidas, porém o que significa ser um jovem negro em Portugal? Eis
52
a questão a ser discutida. Qualquer definição acerca da situação dos jovens negros filhos
de imigrantes africanos em Portugal é limitada, cabe uma análise crítica do discurso e
da imagem deles na sociedade portuguesa, da possibilidade de um tempo histórico não
burguês, um tempo de exceção.
A juventude é parte deste tempo porque tem em si a memória do passado,
compreendida como a própria infância, da vida vivida até alcançar a condição de adulto.
Não se trata de pensar tão somente o indivíduo – no caso o jovem – senão o tempo
passado e presente que é coletivo e envolve outras histórias e outras narrativas diversas,
as próprias e a dos outros, as vividas e as não vividas.
O notável trabalho de Ecléa Bosi (1987) acerca das lembranças de velhos revela
a possibilidade de buscar na memória pessoal a memória social, familiar e grupal de
modo não positivista. Para se fazer um trabalho sobre memória não é necessário,
segundo Bosi, proceder de maneira cientificista, entendendo o relato como um material
documental da história. O trabalho dela não contou com “nenhum documento de
confronto dos fatos relatados que pudesse servir de modelo, a partir do qual se
analisassem distorções e lacunas... A veracidade do narrador não nos preocupou: com
certeza seus erros e lapsos são menos graves em suas conseqüências que as omissões da
História oficial. Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para
perpetuar-se na história de sua vida” (Bosi, 1987, p.1). Há, na memória, uma liberdade e
uma espontaneidade radicalmente contrária aos esquemas mecanicistas de abordagens
psicossociais, quantitativos, cientificistas e positivistas.
Convencionou-se dizer que memória é passado. Porém, percebemos que
memória não é só passado, mas um instrumento de socialização e de transmissão de
saberes e conhecimentos que aproxima espaços e lugares da história vivida e,
principalmente, da história não vivida por crianças e jovens cujo mergulho nas raízes da
tradição, da identidade, do imaginário se dá no interior da lembrança de tempos
desencontrados. Os tempos misturam-se para compor a memória, que é extremamente
mutável, fluida, mas que mantém traços estáveis. A memória não tem uma forma
acabada, ela possibilita a recriação, a reconstrução. A memória tem mais a ver com o
presente com que com o passado. Ela é o resíduo de um passado incompleto,
inconcluso. A memória que sobrevive constitui-se o devir, o possível, um projeto cujo
alcance se dará por vias não convencionais de transformação, pela recuperação das
conexões entre o sonho e a vida tornando o possível.
53
PARTE IV
Conclusão
Para colocar o ponto final neste trabalho, por tudo que foi possível desenvolver
até aqui, podemos dizer que trata-se mais de uma inconclusão do que uma conclusão
propriamente dita. O caminho percorrido esteve repleto de obstáculos principalmente
em relação ao tema central do trabalho: a juventude e sua memória.
Não temos a nossa disposição elementos concretos para uma conclusão dado que
este trabalho não contou com o que há de mais rico numa pesquisa socioantropológica:
o trabalho de campo e a observação in locus. Não adentrar no universo dos jovens
impediu a possibilidade de mapear e verificar como a memória de um passado não
vivido opera na vida desses sujeitos. Por isso, a dificuldade em falar de um realidade
distante, labiríntica e ainda por ser investigada e questionada.
Porém, para não sermos inconclusos, faremos uma breve exposição sobre as
novas leis imigratórias em Portugal e sua repercussão na imprensa portuguesas,
sobretudo no diário Público.
A última lei acerca da imigração em Portugal diz expressamente nos seus
parágrafos iniciais: “O presente diploma legal visa alterar o Decreto-Lei N.º 244/1998,
de 8 de Agosto, com as alterações decorrentes da Lei N.º 97/1999, de 26 de Julho, que
aprova as condições de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do
território nacional.”
“Com a presente alteração procura-se acautelar, por um lado, o interesse público
e, por outro, garantir os direitos e interesses que se pretenderam salvaguardar aquando
da elaboração dos referidos diplomas legais, tendo em vista a evolução do fenómeno
migratório verificado em Portugal nos últimos anos.”11 (grifo nosso). Este é o já famoso
Decreto-Lei nº 4 que entrou em vigor no dia 10 de janeiro de 2001. Tal decreto revê os
cento e sessenta e três artigos do artigo 198º. da Constituição Federal Portuguesa
voltados exclusivamente para a questão da presença de estrangeiros em solo português.
Houve uma grande repercussão desta nova lei de imigração na imprensa
portuguesa, e muitas críticas também, sobretudo quanto a necessidade de um contrato de
11
O texto completo da Legislação Portuguesa acerca da regulação de entrada de estrangeiros pode ser
obtido no site do Serviço de Estrangeiros e Fronteira (SEF): http://www.sef.pt/legislacao/DL4-01.htm
54
12
Todas as falas e excertos de notícias que se seguirão foram obtidas no Dossiêr intitulado Estrangeiros
elaborado pelo diário português Público e encontra-se disponível no site:
http://dossiers.publico.pt/estrangeiros/
55
dez meses, procurou o SEF: "Já passei cá dois dias na bicha para tratar das
coisas".
Sebastião* foi para tratar dos papéis da autorização de permanência. Chegou um
pouco antes das 08h00, mas só quando o posto abriu (às 09h00) é que ficou a
saber que o serviço que procurava mudou para outras instalações (na Avenida
Marechal Gomes da Costa, 37). Recebeu, juntamente com mais de uma dezena de
pessoas que reclamava a ausência de informação, um mapa com a localização do
novo posto e indicações de como chegar até lá.
*o nome é fictício.
13
Para saber mais sobre o Expo`98 visite o site: http://www.parquedasnacoes.pt/pt/expo98/
14
No site da Federação Portuguesa de Futebol há um link dedicado exclusivamente ao Euro 2004:
www.fpf.pt
59
V. BIBLIOGRAFIA
ABDALA Jr., Benjamin. História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática,
1985.
ABRAMO, Helena Wendel. Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São
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