Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
José
Carlos Marighella. O inimigo número um da ditadura militar.
São Paulo, Sol e Chuva, 1998.
João Roberto Martins Filho (Professor de Ciência Política da Universidade
Federal de São Carlos)
No início dos anos 70, com o intuito dades, outra ética e diferentes motivos,
de aprender a teoria e a prática da luta Marighella foi também um símbolo. Nes
antiguerrilha, centenas de disciplinados se sentido, é possível afirmar que, se o
oficiais com responsabilidade de coman período préGuerra Fria foi a época de
do em operações repressivas de seus paí Luís Carlos Prestes, a história da esquer
ses de origem afluíam à Escola das Amé da brasileira na Guerra Fria personifica
ricas, posto avançado do Exército dos se, em suas virtudes e contradições, na
Estados Unidos na Zona do Canal, no figura de Carlos Marighella.
Panamá. O curso O47 Operações de
Vida e morte de um revolucionário
ContraInsurreição no tópico Con
ceitos Básicos de ContraInsurreição em Quando morreu, Marighella já era um
Áreas Urbanas incluía a teoria bási mito. Conforme a eletrizante descrição
ca da guerrilha urbana: conceitos, orga de seus últimos momentos, que serve de
nização e padrões de insurreição, com abertura ao livro de Emiliano José, os 29
ênfase no modelo de insurreição pelo policiais que cercaram e executaram o
minimanual de Mariguella (sic).1 exdirigente do PCB, na noite de 4 de
Com efeito, o Pequeno manual do novembro de 1969, na Alameda Casa
guerrilheiro urbano correu mundo. Em Branca, em São Paulo, sabiam perfeita
recente história da guerra moderna, mente da importância da missão e seu
publicada em 1997 (The Oxford illus nervosismo (que resultou num tiroteio
trated history of modern war), no capítulo com morte entre os próprios agentes) de
sobre a guerra popular, podese ler: No nunciava a grande tensão reinante. Pas
Brasil, Carlos Marighella defendeu que a so a passo, Emiliano reconstitui com pena
mobilização do povo podia começar com de mestre os detalhes da emboscada. Em
uma espécie de ação de bandos assaltos seu texto apurado, notase que o profes
a bancos e seqüestros que preparariam sor e jornalista baiano, autor também, em
as forças revolucionárias e provocariam parceria com Oldack de Miranda, de
ações repressivas do governo, que por sua Lamarca, o capitão da guerrilha (1980),
vez se chocariam contra a população (p. refinou entre um livro e outro seus dons
170). Marighella é o único brasileiro de narrador. Carlos Marighella é um li
citado no livro. vro que se lê quase sem fôlego, uma bio
Assim, aos olhos do inimigo ou da eru grafia à altura do biografado, construída
dição acadêmica, o comunista baiano a partir de inúmeras entrevistas, com o
aparece como um emblema. Aos olhos apoio de artigos de jornal, documentos
da esquerda brasileira, por outras quali oficiais e livros sobre o período.
1. Para a íntegra do documento, ver Nancy Stein e Michael Klare (orgs.) The Pentagons
protégés. U.S. training programs for foreign military personnel. Naclas Latin American &
Empire Report. Nova York, X(1):132, 1976.
CRÍTICA MARXISTA 139
Na obra se reconhece, para lembrar as ficos dirigentes do Partido Comunista
palavras de Antonio Cândido no prefá Brasileiro (PCB), de alto a baixo da hie
cio, um dos homens que encarnaram o rarquia partidária. Enquanto a esquerda
que o Brasil contemporâneo tem de me dividiuse em múltiplas táticas e estraté
lhor, isto é, a luta por superar a iniqüida gias e em incontáveis grupos revolucio
de que encharca nossa vida social e nos nários, o Estado militar unificouse em
faz ser uma das nações mais injustas da torno de uma só doutrina.
Terra (p. 8). A partir dessa tomada de Como mostra Carlos Marighella, o
posição fundamental, o livro não se exi próprio sucesso de algumas ações espe
me de discutir os equívocos das organi taculares da luta armada colaborou para
zações de luta armada, entre as quais se apressar a racionalização das forças re
destaca a Ação Libertadora Nacional pressivas. Depois do seqüestro do em
(ALN), o grupo de Marighella. Assim, nà baixador americano, no início de setem
página 57, o autor reproduz as conside bro de 1969 um choque nos nervos
rações de Jacob Gorender, historiador e do regime, no momento de intensa luta
exdirigente do PCB, fundador do Parti interna que se seguiu à doença de Costa
do Comunista Brasileiro Revolucioná e Silva veio a avalanche.2 No dia 30
rio (PCBr) em 1968: de setembro, antes ainda da sagração de
a conclusão que nós devemos tirar Médici pelo Congresso Nacional, os ór
é que a esquerda revolucionária que gãos de repressão estouram em São Se
não quis ceder ao pacifismo e ao bastião (SP) um refúgio da ALN, e aí
reformismo do PCB tinha que tomar prendem Cyrilo, alto dirigente. Poucas
uma outra linha naquela época que não horas antes, foi preso e morreu sob tor
era a da luta armada imediata. E que tura Virgílio Ferreira da Silva. A partir
deveria ser uma linha paciente, de con daí, por todos os lados, o rolo compres
tatos com as massas operárias e campo sor continuou ferozmente sua marcha até
nesas, com todas as dificuldades, e elas a execução de Marighella. Nessa altura,
eram enormes ... (p. 57). na alta cúpula das Forças Armadas, a
É verdade que, independentemente decisão de centralizar as ações repressi
das táticas ou estratégia adotadas pela vas e assumir diretamente seu comando
esquerda, ou da confusão entre uma e estava já tomada, embora o cerco a
outras, a política de contrainsurreição Marighella deixado ostensivamente
do Estado militar estava claramente à polícia de São Paulo ainda mostre
traçada. A tortura como método repressi escrúpulos que logo a seguir seriam
vo e política de Estado e a eliminação abandonados. Por outro lado, o Cenimar
pura e simples de inimigos atingiram não teve participação decisiva nas prisões e
apenas aqueles militantes que erraram interrogatórios que levaram ao des
ao desencadear a luta, como os pacientes mantelamento da ALN.
revolucionários do Partido Comunista do De todo modo, a história política ain
Brasil (PCdoB), no Araguaia, ou os pací da não dispõe de uma análise adequada
2. Apesar disso, é difícil aceitar a versão incorporada por Emiliano (p. 60) de que na decisão
de desencadear a ação pesou a doença do ditador. Efetuado no dia 4 de setembro, o seqüestro
já estava planejado antes dos acontecimentos em palácio, que só vieram à luz nos primeiros
dias de setembro.
140 RESENHAS
e completa das sucessivas etapas de cons cias do poder e a insistência obstinada
trução do aparelho repressivo.3 A meu ver, dos familiares de mortos e desaparecidos,
esses processos são mais importantes, do que lançaram mão de todos os instrumen
ponto de vista histórico, do que saber tos de pressão ao seu alcance, inclusive
exatamente quem denunciou quem, sob os antigos laços do presidente com alguns
tortura, aspecto que a imprensa mais des dos desaparecidos, para chegar à difícil
tacou nas reportagens e resenhas sobre o conquista da Lei 9.140, de 4 de dezem
livro de Emiliano José. bro de 1995. Ainda assim, o projeto pas
A persistência da memória sou pelo Congresso sem que se permitis
se uma só emenda e coube ao presidente
A segunda parte do trabalho destina
apontar os membros da comissão. Inici
se à memória de Marighella e aos acon
almente concebida de forma a excluir os
tecimentos que se desenrolaram depois
casos de Marighella e Lamarca, a lei aca
da anistia de 1979. Transportados para
bou por permitir o exame inclusive
Salvador, na Bahia, os restos mortais do
desses dois episódios, contrariando fron
fundador da ALN ganharam uma lápide,
talmente os chefes militares.4
desenhada por Oscar Niemeyer, com a
inscrição: Não tive tempo para ter De resto, o debate do caso Marighella
medo. Difícil imaginar, como mostra permitiu uma das mais consistentes ar
com precisão Emiliano, a sobrevivência gumentações contra a versão oficial de
dessa memória, sem o exemplar, genero que os atos dos anos 60 e 70 se inseriram
so e incansável trabalho de Clara Charf, num contexto de guerra (p. 115 e ss.).
a companheira de Marighella desde o fi Como mostrou o relator, Luís Francisco
nal dos anos 40. Sem ela, e sem a militân de Carvalho e Silva, o dirigente da ALN
cia tenaz das comissões de mortos e de foi morto numa situação de emboscada,
saparecidos, não seria possível passear com um tiro de misericórdia disparado a
hoje pela remota rua do subúrbio de San curta distância, quando estava imobili
ta Cruz, no Rio de Janeiro, cujas placas zado e sem condições de reação.
exibem o nome de Carlos Marighella. Um homem e seu tempo
Tocase aqui em outro ponto relevan Na terceira e derradeira parte de
te. Hoje, tornouse comum dizer que o Carlos Marighella, podese acompa
governo Fernando Henrique teve a cora nhar a trajetória pessoal e política do
gem de enfrentar os militares na questão dirigente comunista. Do nascimento, em
do reconhecimento oficial da responsa 1911, passando pelo brilho dos estudos
bilidade da União quanto às mortes e secundários no Ginásio da Bahia
desaparecimentos do período militar. O onde respondeu em versos a uma prova
relato de Emiliano José (p. 103 e ss.) de Física , chegase ao ingresso no
mostra uma história um pouco diferente, PCB e às sucessivas prisões e lon
onde ressaltam as vacilações e resistên guíssimas torturas, em 1932, 1936 e fi
3. Informações importantes sobre o ramo policial do aparelho repressivo estão à disposição no
estudo da socióloga norteamericana Marta Huggyns publicado no Brasil com o título Polícia e
política: relações Estados Unidos/América Latina (Cortez Editora, 1998).
4. Ver, a este respeito a entrevista do ministro chefe do EstadoMaior das Forças Armadas à
revista Veja de 27 de maio de 1998, com o título Doeu, sim.
CRÍTICA MARXISTA 141
nalmente, 1939. Durante seis anos, em tos, um tempo que não deixou tempo
Fernando de Noronha e na Ilha Grande, para sentimentos de medo. Em sucessi
até a anistia de abril de 1945, o militan vos textos, encontros e declarações,
te comunista viveu nos cárceres do Es Marighella engrossa e fortalece as legi
tado Novo. Depois disso, veio o perío ões de dissidentes do PCB. Em dezem
do de destacada atuação na Assembléia bro de 1966, desligase da Comissão
Constituinte (Marighella foi eleito de Executiva e em agosto de 1967 vai à
putado pela Bahia com um terço dos reunião da Olas em Havana, onde fica
votos dados aos comunistas no Estado), sabendo que fora expulso do partido.
a cassação do mandato, a tenaz atuação Volta ao Brasil decidido a criar um agru
partidária semiclandestina como alto pamento revolucionário que evitasse a
dirigente em São Paulo, a viagem à Chi inflexibilidade e morosidade dos parti
na em 1953 e 1954, o impacto da reve dos comunistas: surge o embrião da
lação dos crimes de Stalin, em 1956. ALN. Mas não convém relatar em deta
Os fatídicos anos 60 se abrem com a lhe o conteúdo dessas páginas finais.
integral dedicação à militância e à luta Convido o leitor a trilhar ele mesmo o
interna no PCB até o golpe e a prisão percurso que, fechando o círculo inexo
subseqüente e a volta à liberdade, gra rável do destino, leva de volta aos
ças aos mecanismos liberais ainda vi instantes finais de Marighella. Comple
gentes. O imediato pósgolpe de 64 apa tase a longa viagem. Embora trágica,
rece como um turbilhão de acontecimen uma bela e digna viagem.
Antonio Carlos Mazzeo
Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. 2ª ed.
(revista) São Paulo: Cortez Editora, 1997 144 páginas.
Marcos Del Roio (Professor de Ciência Política da FFCUnesp, Marília)
A reedição desse livro de Antonio Creio que a marginalização do tema
Carlos Mazzeo, numa corajosa e elo da origem e da natureza da dominação
giável iniciativa da Cortez Editora, é de classe no Brasil é devida a pelo me
muito bem vinda, até para evidenciar nos dois elementos interligados: um, a
ainda uma vez a atual carência de debate imposição de uma hegemonia liberal que
sobre a origem e a natureza da formação se pretende inserida na ordem imperial
social brasileira. E isso precisamente no global do capital e que prescinde de um
momento em que os clérigos das sem horizonte políticocultural, atendose a
pre mesmas classes dirigentes da nova falsa universalidade do mercado; dois, a
ordem liberal, se preparam para o espe convicção de que essa é uma questão
táculo de exaltação do início do sexto suficientemente resolvida ou mesmo su
século de uma nação que nunca se fez perada. Creio ainda que essa segunda
enquanto tal. proposição não pode ser dissociada da
142 RESENHAS
FILHO, João Roberto Martins. Resenha de: JOSÉ, Emiliano. Carlos Marighella: o inimigo
número um da ditadura militar. São Paulo: Sol e Chuva, 1998. Crítica Marxista, São Paulo,
Xamã, v.1, n.7, 1998, p.139-142.