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[9] Quanto mais retrocedermos na história, tanto mais veremos a personalidade

desaparecendo sob o manto da coletividade. E quando chegamos à psicologia


primitiva, nem vestígios encontramos do conceito de indivíduo. Em vez da
individualidade, só acharemos relacionamento coletivo ou “participação mística”
(participation mystique)[1]. Esta atitude coletiva impede o reconhecimento e a
valorização de uma psicologia diferente da do sujeito, pois a mente, orientada
coletivamente, é totalmente incapaz de pensar e sentir de outra forma que não seja
por projeção. O que entendemos sob o conceito de “indivíduo” é uma aquisição
relativamente nova na história do pensamento e cultura humanos. Por isso não é de
admirar que a atitude coletiva, primitiva e todopoderosa, impedisse quase
completamente uma valorização psicológica objetiva das diferenças individuais ou
qualquer objetificação científica dos processos psicológicos individuais. É devido a
esta falta de pensamento psicológico que o conhecimento se tornou “psicologizado”,
isto é, repleto de psicologia projetada. Encontramos exemplos marcantes disso nas
primeiras tentativas do homem de explicar filosoficamente o cosmos. O
desenvolvimento da individualidade, com a consequente diferenciação psicológica
do homem, caminha passo a passo com o trabalho despsicologizante da ciência
objetiva. Isto pode explicar por que as fontes da psicologia objetiva fluem tão
escassamente do material que nos foi transmitido pela Antiguidade. A diferenciação
dos quatro temperamentos que assumimos dos antigos pouca coisa tem de
tipificação psicológica, já que os temperamentos quase nada mais são do que
complexões psicofisiológicas. Mas esta falta de informação não significa que não
encontremos, na história do pensamento clássico, vestígio dos efeitos dos opostos
psicológicos em questão

[435] Para torná-lo apto àquela tarefa, foi preciso que a alma destruísse nele a
última possibilidade de uma vinculação erótica ao objeto. Esta última possibilidade é
a infidelidade a si mesmo. Recusando-se Hermas conscientemente ao desejo
erótico, demonstra apenas que teria sido mais cômodo para ele se o desejo erótico
não existisse dentro dele; não demonstra, porém, que não tenha tido realmente
intenções e fantasias eróticas. Por isso a mulher-senhora, a alma, desvenda-lhe,
sem dó, a existência de seus pecados e o liberta, assim, também da vinculação
secreta ao objeto. Assume, portanto, como “um vaso de devoção” aquela paixão que
estava a ponto de gastar-se inutilmente no objeto. Também era preciso erradicar o
último vestígio de sua paixão para então realizar a tarefa histórica que consistia
numa separação do homem da vinculação sensual, da primitiva “participação
mística”. Para o homem daquela época esta vinculação se tornara insuportável. Era
necessário introduzir uma diferenciação do espiritual para restabelecer o equilíbrio
psíquico. Todas as tentativas filosóficas de estabelecer este equilíbrio, a
aequanimitas (equanimidade), que se condensaram sobretudo na doutrina estoica,
malograram devido a seu racionalismo. A razão só pode fornecer o equilíbrio àquele
cuja razão já é um órgão de equilíbrio. Mas para quantas pessoas e em que épocas
da história ela foi exatamente isso? O homem, via de regra, precisa ter também o
oposto de um de seus estados para então posicionar-se necessariamente no meio.
A simples razão não pode fazê-lo abandonar a plenitude da vida e o excitante
sensual do estado imediato. Assim, é necessário que nele estejam contra o poder e
o prazer do temporal a alegria do eterno, e contra a paixão do sensual a maravilha
do suprassensível. Por mais inegavelmente real que isto lhe seja, aquilo deve ter
uma eficácia cogente.

[475] O “sair de” significa uma tomada de consciência do conteúdo inconsciente e da


força inconsciente na forma de uma ideia nascida da alma. Este ato é uma distinção
consciente da força dinâmica inconsciente, uma separação do eu como sujeito em
relação a Deus (isto é, a força dinâmica inconsciente) como objeto. Dessa forma,
Deus “vem a ser”. Quando esta separação é novamente anulada pela “irrupção”, ou
seja, desvinculando o eu do mundo e identificando-o com a força dinâmica ativa do
inconsciente, então desaparece Deus como objeto e se torna o sujeito
indiferenciável do eu, isto é, o eu, como produto relativamente tardio de
diferenciação, é novamente unificado com a totalidade referencial, mística e
dinâmica (“participação mística” dos primitivos). Esta é a imersão na “torrente e
fonte”. As inúmeras analogias com as ideias do Oriente são bem claras. Pessoas
mais capazes do que eu já o demonstraram em estudos pormenorizados. Este
paralelismo, que não se originou de influência direta, mostra que Eckhart pensa a
partir de uma profundidade do espírito coletivo que é comum ao Oriente e ao
Ocidente. Este fundamento comum pelo qual não se pode responsabilizar nenhuma
história comum é a causa primeira da disposição primitiva do espírito com seu
conceito primitivo e energético de Deus, onde a força dinâmica ativa ainda não se
cristalizou na ideia abstrata de Deus. Este retorno à natureza primitiva e esta
regressão religiosamente organizada às condições psíquicas da pré-história são, no
sentido mais profundo, comuns a todas as religiões vivas, começando com a
identificação regressiva nas cerimônias fúnebres dos aborígenes australianos[159]
até os êxtases dos místicos cristãos de nossa época e cultura. Por este retorno,
estabelece-se de novo um estado de começo: a improbabilidade da identidade com
Deus e, devido a esta improbabilidade, que, no entanto, veio a constituir vivência
muito profunda, surge nova diferença de nível; o mundo é recriado na medida em
que a atitude do homem para com o objeto se renovou

[564] É esta visão aterradora e triste do mundo que leva os budistas a uma atitude
abstrativa, da mesma forma que Buda, segundo a lenda, foi levado a seu caminho
por impressão semelhante. A animação dinâmica do objeto como base da abstração
vem muito bem expressa na linguagem simbólica de Buda. Esta animação não
resulta da empatia, mas corresponde a uma projeção apriorística inconsciente, uma
projeção que existe praticamente desde o início. O termo “projeção” parece
inadequado para designar corretamente o fenômeno. Projeção é, na verdade, um
ato que acontece e não um estado existente desde o início, do qual estamos falando
aqui. A meu ver, a expressão “participação mística”, de Lévy-Bruhl, é mais adequada
a este estado porque formula a relação original do primitivo com seu objeto. Seus
objetos têm animação dinâmica, estão carregados de matéria ou força anímica (mas
nem sempre dotados de alma, como pretende a hipótese animista) e exercem
influência psíquica direta sobre as pessoas, produzindo nelas como que uma
identidade dinâmica com seu objeto. Por isso, em certas línguas primitivas, os
objetos de uso pessoal têm um gênero que designa vida (o sufixo de estar vivo).
Também para a atitude abstrativa, o objeto é animado e ativo a priori, e não precisa
da empatia; ao contrário, exerce influência tão forte que leva à introversão. A grande
e inconsciente carga de libido que o objeto possui origina-se de sua “participação
mística” do inconsciente daquele que tem uma atitude introvertida. Isto se deduz
claramente das palavras de Buda: o fogo do mundo é idêntico ao fogo da libido do
sujeito, à sua paixão ardente, mas que a ele se apresenta como objeto porque não
foi diferenciada numa função subjetiva disponível.
[565] A abstração parece uma função que luta contra a “participação mística”
primitiva. Ela afasta do objeto para destruir os vínculos com ele. Leva, por um lado, à
criação de formas artísticas e, por outro, ao conhecimento do objeto. A função da
empatia é também a de ser um órgão de criação artística e de conhecimento. Mas
ela tem lugar em bem outra base do que a abstração. Esta se baseia no significado
e força mágicos do objeto; a empatia se funda no significado mágico do sujeito que
se apodera do objeto mediante uma identificação mística. O primitivo, por um lado, é
influenciado magicamente pela força do fetiche, mas, por outro, é também o feiticeiro
e acumulador da força mágica que fornece “carga” ao fetiche. (Cf., neste sentido, o
rito Curinga dos australianos[13].) A despotenciação inconsciente do objeto que
antecede ao ato da empatia é igualmente um estado duradouro de menor
acentuação do objeto. Mas no tipo empático os conteúdos inconscientes são
idênticos ao objeto e fazem com que este pareça sem vida e sem alma[14], por isso
a empatia é necessária ao conhecimento da essência do objeto. Poderíamos então
neste caso falar de uma abstração inconsciente, sempre à disposição, que
apresenta o objeto como desprovido de alma. A abstração tem sempre este efeito:
mata a atividade independente do objeto na medida em que esta se relaciona
magicamente com a psique do sujeito. Por isso, o abstrativo a utiliza
conscientemente, para proteger-se contra a influência mágica do objeto. Também a
relação de confiança que o empatizante tem com o mundo provém da não animação
apriorística do objeto: nada há que o possa influenciar hostilmente ou oprimir, pois
só ele dá vida e alma ao objeto, ainda que para sua consciência a situação pareça
exatamente oposta. Para o abstrativo, porém, o mundo está cheio de objetos que
atuam poderosa e, por isso, perigosamente; sente medo e, consciente de sua
impotência, foge de um contato muito estreito com o mundo para então criar aquelas
ideias e fórmulas com as quais espera dominar a situação. Sua psicologia é,
portanto, a do oprimido; ao passo que o empatizante se coloca diante do objeto com
segurança apriorística, pois, devido à sua não animação, é inofensivo. Esta
caracterização é esquemática e não pretende delinear a natureza toda da atitude
extrovertida ou introvertida, mas apenas sublinhar certas nuances cuja importância,
contudo, não é desprezível.
[822] (818) A ideia é uma grandeza psicológica que determina não só o pensamento,
mas também (como ideia prática) o sentimento. Geralmente só emprego o termo
ideia quando falo da determinação do pensar no tipo pensamento; também falaria de
ideia na determinação do sentir no tipo sentimento. Por outro lado, é
terminologicamente correto falar da determinação pela imagem primordial quando se
trata da determinação apriorística de uma função não diferenciada. A dupla natureza
da ideia, como algo primário e ao mesmo tempo secundário, faz com que o termo
seja às vezes usado promiscuamente com “imagem primordial”. Para a atitude
introvertida, a ideia é o primum movem (primeiro motor) e para a extrovertida é um
produto.
[823] (821) Identidade. Falo de identidade no caso de uma igualdade psicológica. É
sempre um fenômeno inconsciente, pois a igualdade consciente sempre pressuporia
a consciência de duas coisas equivalentes e, por conseguinte, uma separação entre
sujeito e objeto, o que suprimiria o fenômeno da identidade. A identidade psicológica
pressupõe sua inconsciência. É uma característica da mentalidade primitiva e o
autêntico fundamento da “participação mística” que nada mais é do que o resíduo da
primitiva indiferenciação psíquica entre sujeito e objeto, portanto, do estado
inconsciente primordial; também é característica do estado de espírito da primeira
infância e, finalmente, é característica do inconsciente do adulto civilizado que, na
medida em que não se tiver tornado um conteúdo da consciência, fica em
permanente estado de identidade com o objeto. Na identidade com os pais baseia-
se a identificação (v.) com os pais; também nela se baseia a possibilidade da
projeção e da introjeção (v.).

[871] (856) Participation mystique. Termo que provém de LévyBruhl[66], significa


uma espécie singular de vinculação psicológica com o objeto. Consiste em que o
sujeito não consegue distinguir-se claramente do objeto, mas com ele está ligado
por relação direta que poderíamos chamar identidade parcial. Esta identidade se
baseia numa unicidade apriorística de objeto e sujeito. A participação mística é,
portanto, um resíduo desse estado primitivo. Não atinge o todo da relação sujeito-
objeto, mas apenas certos casos em que se manifesta o fenômeno dessa relação
peculiar. A participação mística é naturalmente um fenômeno que melhor se pode
observar nos primitivos; mas também é encontrável com frequência entre os
civilizados, ainda que não com a mesma extensão e intensidade. Entre os
civilizados, ocorre, normalmente, entre pessoas; raras vezes entre uma pessoa e
uma coisa. No primeiro caso, trata-se de uma relação de transferência em que o
objeto (em geral) obtém certa influência mágica, isto é, absoluta, sobre o sujeito. No
segundo caso, trata-se de influências semelhantes de uma coisa ou de uma e

Jung – Tipos psicológicos

Aquilo a que os psicólogos chamam identidade psíquica, ou "participação mística",


foi afastado do nosso mundo objetivo. Mas é exatamente este halo de associações
inconscientes que dá ao mundo primitivo aspecto tão colorido e fantástico; a tal
ponto perdemos contato com ele que se o reencontramos nem o reconhecemos.
Conosco, estes fenômenos situam-se abaixo do limite da consciência e quando,
ocasionalmente, reaparecem insistimos em dizer que algo de errado está ocorrendo.

Jung – O Homem e Seus Símbolos

[83] Esse livro não se apresenta como trabalho científico; entretanto, é científico até
mesmo em sentido mais elevado, porque fornece o quadro verdadeiro das
dificuldades que realmente ocorrem na educação. Merece séria consideração por
parte de todos os que devem ocupar-se com as crianças, seja por vocação, seja por
dever. Interessará também àqueles que, movidos apenas pelo desejo de saber,
procuram alargar o alcance de seus conhecimentos sobre o surgimento da
consciência humana, mesmo sem estarem presos a obrigações ou inclinações
pedagógicas. Se bem que para o médico e para o educador versado em psicologia
muitas das observações e das opiniões contidas nesse livro não apresentem nada
de fundamentalmente novo, contudo o leitor ávido de saber encontrará aqui e acolá
certos casos mais raros, capazes de despertar a reflexão crítica, assim como casos
e fatos que a autora, em sua orientação essencialmente prática, não acompanha
nem em suas origens profundas nem em suas consequências teóricas. Que opinião,
por exemplo, formará o leitor atento acerca do fato obscuro, mas inegável, da
identificação do estado psíquico da criança com o inconsciente dos pais? A intuição
nos leva a ver aí um campo repleto de possibilidades que nem podemos avaliar, um
problema parecido com um monstro de muitas cabeças. Contudo, esse problema
interessa tanto ao médico como ao biólogo, e também ao filósofo. Para quem
estudou e conhece a psicologia de povos primitivos parece manifesto existir uma
relação entre o conceito de “identidade” e o que Lévy-Bruhl designa como
participation mystique (participação mística). É fato curioso que muitos etnólogos
ainda se recusem a aceitar esta concepção genial; a culpa disso talvez deva ser
procurada sobretudo na escolha pouco feliz do termo mystique. A palavra “místico”
nos dá como que a ideia de uma morada de todos os espíritos imundos, ainda que
originariamente não tenha sido esse o conteúdo do conceito, o qual foi rebaixado a
tal ponto justamente pelo uso impuro de todo o mundo. Nesta identidade não há
nada de “místico”, como também não é absolutamente místico o metabolismo
existente entre a mãe e o embrião. Esta identidade provém essencialmente do
estado de inconsciência em que se encontra a criança pequena, fato que é
conhecido de todos. O mesmo tipo de relacionamento se dá no homem primitivo: ele
é tão carente de consciência como a claramente diferenciado do resto das coisas,
mas tudo o que existe são acontecimentos ou ocorrências, que tanto podem
pertencer a mim como a qualquer outro. É suficiente que alguém se sinta afetado ou
tocado por isso. A extraordinária força contagiante das reações emocionais já se
encarrega de que todos os que porventura se encontrem por perto sejam igualmente
envolvidos. Quanto mais débil é a consciência do “eu”, tanto menos importa
considerar quem propriamente foi afetado, e igualmente tanto menos está o
indivíduo em condição de proteger-se contra o contágio geral. Esta proteção apenas
poderia ser atuante se alguém fosse capaz de dizer: “Tu é que estás excitado ou
furioso, e não eu, pois eu não sou tu”. Esta é a situação da criança na família. Ela se
sente atingida na mesma medida e do mesmo modo que todo o grupo. [84] A
conclusão importante que daí surge para todo aquele que se interessa pelo
conhecimento teórico é que, por via de regra, as reações mais fortes sobre as
crianças não provêm do estado consciente dos pais, mas de seu fundo inconsciente.
Para toda a pessoa de responsabilidade moral, que ao mesmo tempo é pai ou mãe,
representa este fato um problema de certo modo amedrontador. Cada um logo
compreende: aquilo que conseguimos controlar mais ou menos, isto é, a consciência
e seu conteúdo, é, no entanto, apesar de todo nosso esforço, ineficiente quando
comparado com os efeitos incontroláveis do fundo psíquico. Sobrevêm a qualquer
pessoa um sentimento de extrema incerteza moral, quando se começa a refletir
seriamente sobre o fato da existência de atuações inconscientes. Como então se
poderá proteger as crianças contra os efeitos provenientes de si próprio, quando
falha tanto a vontade consciente como o esforço consciente? Indubitavelmente será
de grande utilidade para os pais saberem considerar os sintomas de seu filho à luz
dos seus próprios problemas e conflitos. É dever dos pais proceder assim. Neste
particular, a responsabilidade dos pais se estende até onde eles têm o poder de
ordenar a própria vida de tal maneira que ela não represente nenhum dano para os
filhos. Em geral se acentua muito pouco quão importante é para a criança a vida que
os pais levam, pois o que atua sobre a criança são os fatos e não as palavras. Por
isso deverão os pais estar sempre conscientes de que eles próprios, em
determinados casos, constituem a fonte primária e principal para as neuroses de
seus filhos

JUng – Desenvolvimento da Psique

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