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Análise da constitucionalidade do art.

168-A do Código Penal - A ‘apropriação indébita


previdenciária’.

Msc. Demetrius Almeida Leão i

RESUMO

Trata o artigo sobre a análise do art. 168-A do Código Penal (Crime de apropriação indébita
previdenciária) e sua compatibilidade com a Constituição Federal Brasileira, especificamente
em relação a princípios nela elencados como a vedação à prisão civil por dívidas, agressão à
valorização do trabalho e livre iniciativa, isonomia tributária, e o princípio da capacidade
contributiva e de vedação de efeitos confiscatórios dos tributos. Verifica o texto que o
indigitado artigo desafia controle de constitucionalidade por agredir frontalmente o texto
constitucional brasileiro.

Primeiramente, vale a observação de que o tema da ‘apropriação indébita


previdenciária’ tem recorrência que não é tema propriamente atual, pois desde 1937 (Decreto-
Lei n. 65, de 14 de dezembro do referido ano) que regras de recrudescimento de técnicas de
arrecadação do Estado existem. Outras leis, na década de 60, além das odiosas Medidas
Provisórias, na década de 90, também trataram sobre o tema, até que se chegou ao auge da
voracidade estatal com a alteração do Código Penal, precisamente na inclusão do art. 168-A
em seu texto, modificação provocada pela edição da Lei n.º 9.983, de 14 de julho de 2000.

Tal modificação criminalizou penalmente a conduta dos agentes que eventualmente


deixassem de repassar ou de recolher no prazo legal à Previdência Social as contribuições
previdenciárias, ou mesmo deixassem de pagar benefício devido a segurado, indicando que
tais agentes, por tais condutas omissivas, estariam praticando crime, sendo estipulada pena
que varia de dois a cinco anos, estando ainda sujeito à multa.

Nesse texto, faremos a análise de tal modificação à luz dos princípios constitucionais
informados pela nossa Lex Mater, verificando se, e em que passo, tal dispositivo
infraconstitucional tem condições reais de sobreviver ao primado da Constituição em sua
soberania, e se desafia controle de constitucionalidade.

Retomando uma pequena análise fenomenológica que se iniciou acima a respeito do


histórico da existência de leis que tratam da matéria ou que pretenderam ou pretendem forçar
o contribuinte (ou o responsável tributário) a realizar o pagamento, aumentando assim a
arrecadação estatal, se verifica que desde as primeiras legislações a respeito do tema, até o
presente tratamento penal, transformando em criminosos aqueles que não recolhem à
Previdência determinados valores devidos, dois fatos são claros nessa evolução: o primeiro é
a instabilidade legislativa do tema, abordado por uma dezena de leis, decretos e M.P.s, desde
a década de 30. Tal fato é provocado pelo segundo, que é o agravamento do tratamento penal
dado ao tema. As leis que tratam da matéria, historicamente, têm demonstrado o quanto o
Estado tem lançado mão dos mais diversos mecanismos de aumento de arrecadação, na
tentativa, nem sempre feliz, de engordar seus cofres.

Ainda que não seja o tema central promover uma análise de direito comparado,
parece-nos também adequado registrar que a legislação estrangeira (sobretudo a européia) tem
tratado do tema não na esfera criminal, mas na própria esfera tributária, previdenciária ou
mesmo civil, tendo em vista que se tem claramente um delito (não recolhimento/pagamento –
à previdência) de natureza civil, pois que relacionado diretamente com patrimônio, com
valores, com dinheiro. E o deslocamento do ilícito (e frise-se, é um ilícito!) em questão para o
Código Penal, como fez o legislador brasileiro, não tem o condão de transformá-lo em ilícito
penal.

E como veremos adiante, seria impensável que a redação, visivelmente capenga de


técnica legislativa mais apurada, clara, e carente de elementos que nos parecem
indispensáveis para a correta capitulação do crime de apropriação indébita, não causasse
controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias, criando certo quadro de insegurança jurídica
que, ao nosso sentir, só não tem sido pior por causa das interpretações jurisprudenciais
realizadas, principalmente, em sede de controle difuso, pelos magistrados.

Diz a redação do comentado artigo do Código Penal:

“Art.168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos


contribuintes, no prazo e na forma legal ou convencional:

 Pena- reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”.

Nenhuma ressalva, nenhuma menção ao inquérito policial, nem a vedação de


oferecimento de denúncia antes do encerramento do processo administrativo fiscal (que não
deixa de existir) faz a lei. A redação, em análise perfunctória, realizada por interpretação
gramatical, remete-nos, ao nosso sentir, a clara possibilidade de apropriação ficta, ou seja,
sem obrigatoriedade de apropriação desse valores e nem inversão da posse e dano à
Previdência, consumando-se com a verificação da omissão em recolher a contribuição. Assim,
ao deixar de recolher, o sujeito já se enquadraria no tipo penal acima descrito.
Adentrando mais especificamente na análise constitucional que afronta a existência, in
abstracto, da referida norma penal, faremos, paulatinamente, uma análise dos principais
pontos que, no nosso sentir, fazem dessa norma penal um ato normativo completamente
inconstitucional, sob vários aspectos, e que a tornam claramente, objeto passível de controle
de constitucionalidade na via concentrada.

A primeira, e talvez a mais contundente e grave afronta que faz o referido artigo à
Constituição Federal brasileira é no concernente a vedação que a Lei Maior faz sobre a
vedação à prisão por dívida. O art. 168-A do CP é, não vemos como se entender de maneira
diversa, previsão de prisão por dívida.

Se a Constituição Federal, no seu art. 5.º, LXVII, veda, em consonância com a


Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e o Pacto
Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos qualquer tipo de prisão civil por dívida,
excetuando-se os casos de inadimplemento voluntário e inescusável de alimentante e do
depositário infiel (ainda que atualmente se discuta até mesmo tal previsão no STF), impróprio
seria admitir que o Código Penal criasse tal esdrúxula figura de prisão (penal) por dívida à
previdência, incompatível com o texto constitucional.

Tal interpretação, protetiva da esfera da liberdade humana e sua não-discriminação por


fatores econômicos é tendência que se revela claríssima nas estruturas constitucionais
internacionais em todo o mundo, onde os ordenamentos nacionais têm tido, como fez o nosso,
nos parágrafos 2.º e 3º do art. 5.º1, a tendência de permitir que as legislações que protegem a
dignidade do homem pairem sobre as suas próprias disposições constitucionais. Isso tem
conseqüência direta na solução dos casos concretos, pois a primazia tem sido no sentido da
aplicação da norma que melhor proteja as vítimas de violação dos direitos humanos, seja ela
de origem nacional ou internacional.

Essa tem sido a tese que melhor reflete e fomenta os contemporâneos e (quase sempre)
convergentes diplomas internacionais e nacionais, que buscam maximizar a proteção dos
direitos humanos e que é diametralmente oposta ao estabelecido pela previsão do art. 168-A
1
CF. Art. 5.º, § 2.º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte.
§ 3.º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
às emendas constitucionais.

i
Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba; Professor de Direito Constitucional e
Administrativo das Faculdades UNESC – União de Ensino Superior de Campina Grande e CESREI – Centro de
Ensino Superior Reinaldo Ramos; Advogado.
do CP, que nasce na contramão da tendência constitucional mundial da proteção e da
valorização plena da dignidade da pessoa humana.

Sarlet (2001) assenta que a dignidade da pessoa humana possui força normativa mais
intensa que uma simples norma, que, além do seu enquadramento na condição de princípio
(valor) fundamental, é alicerce de mandamento definidor de direito e garantia, mas também
de deveres fundamentais.

Agra (2006), na mesma linha, indica que as condições de dignidade da pessoa humana
devem ser propiciadas pelo Estado, mas não são prerrogativas outorgadas pelas entidades
governamentais, pois que preexistem a qualquer direito estatal, advindo da qualidade inata
dos seres humanos, onde o Estado apenas e tão somente deve atestar sua existência,
comprometendo-se a velar por elas.

Nesse caso específico, o Estado, ao contrário de ser o grande protetor e garantidor da


concretização plena da dignidade do homem, torna-se seu algoz, produzindo legislação
tacanha, injusta, desproporcional e desarrazoada, impondo a preponderância da propriedade,
por sua voracidade fiscal, ao primado constitucional da liberdade humana, que deve ser
preservada, só devendo ser afastada em casos em que nenhuma outra atitude estatal possa se
mostrar efetiva. O Estado usa, nesse caso, o Direito Penal como forma de aumentar a sua
arrecadação, arrasando, aniquilando, valores constitucionais que devem prevalecer sobre tal
vontade deliberada de cobrar coercitivamente tributos de seus administrados usando a ameaça
da constrição de suas liberdades de locomoção.

Nesse passo, Clève (1997) diz claramente da incompatibilidade do texto do art. 168-A
com a Constituição, pois que em tal artigo não existe nenhum tipo subjetivo, como a conduta
fraudulenta, ou mesmo o abuso de confiança, sendo medida desproporcional e agressiva ao
princípio da justa medida. Diz ele, com razão ímpar, que o interesse da arrecadação estatal,
mesmo protegido pela norma penal, não pode ser suficiente para justificar a aniquilação do
direito fundamental insculpido no direito de não-sujeição à privação da liberdade por dívida
erigido em direito fundamental e cláusula pétrea, no art. 5.º, LXVII da CF.

Assim, claro está que a supremacia constitucional deve ser preservada, e no caso em
espeque há uma afronta clara e direta da previsão constante do art. 168-A do CP ao art. 5.º,
LXVII da Constituição Federal brasileira. A conseqüência lógica desse confronto, e para que
se promova a estabilidade constitucional, deve ser o reconhecimento de que tal incongruência
não deve ser tolerada, sob pena de enfraquecimento da própria Constituição.
Nucci (2005) muito bem explicita que transformar, sem nenhuma finalidade especial,
o crime previdenciário num delito de mera conduta é indevido porque transforma a lei penal
em instrumento de cobrança, pois o devedor previdenciário, mesmo sem intenção de deixar de
contribuir, se deixasse de fazer o recolhimento, poderia acabar não sendo executado pelas vias
cabíveis para ser criminalmente imputado, numa nítida inconstitucionalidade por afronta à
vedação da prisão civil por dívida. Acrescenta que o legislador, ao criar tal figura penal sem o
dolo específico da vontade deliberada de fraudar, estaria buscando a cobrança de uma dívida
através da ameaça de sancionar penalmente o devedor.

A própria existência da legislação tributária em questão afronta o que Britto (2003),


por seu turno, chama de circunferência democrática da Constituição de 1988. Indica o autor
que a circunferência democrática brasileira tem como paradigma os incisos de I a V do art. 1.º
da CF com os nomes de “soberania”, “cidadania”, “dignidade da pessoa humana”, “valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa” e “pluralismo político”, além dos descritos no §4.º do
art. 60, sob as denominações de “forma federativa de Estado”, “voto direto, secreto, universal
e periódico”, “separação dos Poderes” e “direitos e garantias individuais”. Explica o autor que
tais conteúdos ou manifestações da Democracia gozam de uma posição intra-sistêmica do
mais alto relevo, pois toda interpretação normativa que os confirmar, será uma “interpretação
conforme a Constituição”, ou seja, uma interpretação específica ou topicamente revelado nos
valores que tais.

Ao mesmo tempo, alerta o referido autor, o que nos parece extremamente pertinente
anotar em relação à própria existência do art. 168-A que, como se sabe (e tem sido tão
magistralmente aplicado pela Corte Máxima do nosso país), ante uma interpretação possível
da lei que seja contrária à Constituição e outra que seja harmoniosa com o Texto Magno,
deve-se preferir esta última.

Todavia, se o claro sentido da norma legal estiver na contramão da Magna Carta, o que
se deve é, sem rebuços, proclamar a inconstitucionalidade da norma interpretada. Não se deve
forçar a adaptação da norma inferior à Constituição, porque, aí, sob o pretexto de salvar a
normatividade inferior, o que se está a fazer é um ato de criação da própria norma jurídica
abstrata. Ato de criação que termina sendo um atentado à Constituição, que não faz do
intérprete-jurista uma fonte do Direito.

Ao nosso sentir, somente por um salvamento desse tipo, que se sustenta


contrariamente aos paradigmas constitucionais, é que se pode admitir, absurdamente, a
subsistência da norma insculpida no art. 168-A do Código Penal brasileiro.
Aprofundando outro ponto que nos parece pertinente em relação à afronta perpetrada
pelo artigo tributário em espeque à Magna Carta brasileira: a agressão à valorização do
trabalho e da livre iniciativa, insculpidos no inciso IV do art. 1.º da CF como fundamentos da
República Federativa do Brasil e desdobrados em princípios no art. 170 2. Importante também,
nesse contexto principiológico, notar a posição que deve figurar o Estado brasileiro, que
aparece como incentivador da atividade econômica, nos termos do art. 174 da Lei Maior3.

Os princípios econômicos insculpidos no art. 170, bem como a função incentivadora


do Estado em relação à atividade econômica também são princípios que não se coadunam
com a existência do art. 168-A do CP, ao contrário, são agressores da finalidade erigida no
art. 170, pois que atenta, diretamente, contra os ditames da justiça social, que se destinam a
assegurar uma existência digna de todos.

Silva (1999) explica que um regime de justiça social é o que cada um pode dispor dos
meios materiais para viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física,
espiritual e política. Indica que o reconhecimento dos menos favorecidos, não teve, até aqui, a
eficácia necessária para reequilibrar a posição de inferioridade que lhes impede o efetivo
exercício das liberdades garantidas. Assim, indica que o capitalismo há de humanizar-se.

Não se pode deixar de perceber que a legislação criada no art. 168-A do CP, muito ao
contrário de humanizar o capitalismo – donde as responsabilidades previdenciárias, por
lógico, decorrem diretamente da atividade econômica – cria um novo instrumento, muito mais
voraz e amedrontador do que todos os que já existem atualmente, afastando, o próprio Estado,
garantias de dignidade da pessoa humana, instituindo a possibilidade de constrição da
liberdade como forma de arrecadação tributária.

2
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos
produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que
tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente
de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
3
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as
funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo
para o setor privado.
De fato, parece-nos que o Estado, por tal legislação, cria um novo desafio, afora o já
existente risco que é inerente a qualquer atividade econômica, pois se a investida de qualquer
pessoa, que se dispõe a lançar-se na atividade econômica, não logra êxito, além do fracasso
econômico, também fica – a pessoa que se lança como empreendedor – mercê de ser
enquadrado como criminoso, pois se não obtém êxito para cumprir com suas obrigações
atuais (o que o leva à bancarrota), por óbvio que não cumprirá com a obrigação de pagamento
dos valores previdenciários ao Estado, o que lhe torna criminalmente imputável segundo os
termos do art. 168-A do CP.

O artigo afronta diretamente os princípios constitucionais em questão, pois inibe a


livre iniciativa. Bastos (1999) é extremamente perspicaz tratando do tema, explicitando que a
livre iniciativa é expressão fundamental da concepção liberal do homem, que o coloca como
centro a individualidade de cada um. A livre iniciativa, segundo o autor, é necessária para que
cada um possa dar destino a sua vida, na expressão de sua dignidade enquanto homem, o que
só se pode conseguir através da liberdade que se dá a cada um para poder exercer a atividade
econômica.

A estipulação penal de que o fracasso na expressão econômica da dignidade da pessoa


humana possa acarretar a restrição da liberdade do indivíduo definitivamente afronta os
princípios erigidos como direitos econômicos fundamentais na Constituição brasileira.

Ainda em Bastos, o mesmo explica que a livre iniciativa deve levar em conta que
(ainda que procurada por razões egoísticas) o lucro que o homem busca para si acaba
constituindo-se em lucro para todos. A riqueza irradia-se para toda a sociedade com a criação
de empregos e através do pagamento de salários aos empregados. A livre iniciativa, então,
procura tatear, através da experiência e do erro, descobrindo por meio de sucessivas tentativas
em que consiste a verdade. Não há assim, segundo o referido autor, uma definição apriorística
dos fins a serem alcançados ou dos objetivos a serem atingidos e por isso mesmo é que a livre
iniciativa conduz necessariamente a políticas pluralistas, pois que, em princípio, não existem
regras ou idéias condenáveis, onde o Estado só deve intervir na economia para coibir
possíveis abusos.

Araújo e Nunes Júnior (2007), no mesmo sentido, indicam que a valorização social do
trabalho e a livre iniciativa, indicados como fundamentos de nossa ordem econômica (art. 170
da CF), mostram que não só o Brasil adota o sistema capitalista, calcado na liberdade de
empreendimento, como que um dos papéis de regulação do sistema econômico atribuído ao
Estado é o de valorizar o trabalho, promovendo, portanto, a sua proteção, quer em relação ao
empregador, quer em relação a vicissitudes econômico-sociais.

Ao modificar o Código Penal brasileiro, criando a figura da “apropriação indébita


tributária”, o Estado aparece, não temos como entender diferentemente, como verdadeiro
inibidor da atividade econômica, pois que mostra uma possibilidade nada atraente para os que
eventualmente não lograrem êxito em sua empreitada econômica: a restrição de sua liberdade.

Ainda, no mesmo passo, importante notar que, ao instituir tamanho gravame ao tipo
penal em questão, o Estado cria penalização mais severa para o não recolhimento aos cofres
da Previdência Social do que o não pagamento do próprio empregado por parte do
empregador, numa completa desvalorização do trabalho, não só do empregado, mas também
do empresário, ou mesmo do responsável tributário.

De fato, deixar de pagar à Previdência implica em pena que pode ir de 2 a 5 anos, e


multa. Deixar de pagar verbas trabalhistas (alimentos atuais) ao empregado, pode acarretar
penalização de detenção e por, no máximo, 3 anos. Desvaloriza o trabalho, para valorizar a
arrecadação previdenciária, através de estipulação de instrumento penal de cobrança,
legislação desprovida, como já se disse, de razoabilidade, proporcionalidade, democracia,
dignidade da pessoa humana.

Não se olvide também, apesar de não ser esse o intuito central da análise presente, que
está o art. 168-A a estimular, por seu turno, a não existência formal das empresas (ou mesmo
dos empresários individuais), empurrando, ainda mais, por medo não só da pesada tributação
a qual estão submetidos todos os que estão formalmente inseridos no sistema capitalista, mas
também de serem submetidos à pena prisional, os agentes econômicos para a informalidade, o
contrabando, o subemprego, a pirataria, eis que para o Estado, os agentes promotores dessas
práticas nem existem oficialmente.

Outros princípios constitucionais que são diretamente atacados pela existência da


legislação tributário-penal em questão são os princípios constitucionais tributários da
isonomia, da capacidade contributiva e da vedação de efeitos confiscatórios.
Tais princípios estão determinados nos arts. 150, II; 145 e 150, IV da CF 4 e muito bem
ensina Harada (2004) que são eles diretrizes traçadas pelo legislador constituinte que devem
servir para guiar e orientar a atividade legislativa infraconstitucional, explicitando que Leis
Ordinárias ou Leis Complementares não poderão rebelar-se contra os princípios
programáticos estatuídos na Carta Magna, apesar de a omissão do legislador na
implementação desses preceitos não trazer qualquer conseqüências de natureza jurídica.

Imaginando a seguinte situação hipotética: dois empresários, formalmente


constituídos, um que tem faturamento de pouco mais de R$ 30.000,00 (trinta mil Reais) e
outro que tem um faturamento de R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais). Imaginemos,
também hipoteticamente, que, no dia 02 de cada mês, os dois deixam de pagar seus tributos
devidos à Previdência. Ainda que se possa amenizar a carga tributária da pequena empresa,
por estar inscrita em programas específicos, se pensarmos na média da tributação atual sobre
as empresas brasileiras (a 17.ª posição que mais tributa no mundo) , que é de 34% 5, é inegável
que é muito mais penoso para a pequena empresa pagar R$ 10.200 (dez mil e duzentos reais)
do que para a grande empresa pagar os 10.200.000,00 (dez milhões e trezentos mil reais),
tendo em vista seu alto potencial econômico.

De ver-se que a pena do art. 168-A, inegavelmente, recairá sobre o pequeno


empresário, que não conseguirá realizar o pagamento, pois via de regra, os grandes
empresários sempre têm condições de levantar grandes quantias de dinheiro e, no caso,
realizariam o pagamento antes da ação fiscal, sendo beneficiados pela extinção da
punibilidade, como prevê o §2.º do art. 168-A do CP, que também é inconstitucional, tendo
em vista que, no nosso entender, não subsiste nenhum prejuízo à sociedade, nem ao
trabalhador, nem à própria Previdência Social se, eventualmente, mesmo depois de iniciada a

4
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: I -
impostos;
II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos
específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a
esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os
rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios:
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida
qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da
denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
IV – utilizar tributo com efeito de confisco.

5
Informação colhida em www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u112117.shtml, acesso em 16 de
dezembro de 2008.
ação fiscal, ou mesmo a ação tributária baseada no art. 168-A do CP, o responsável tributário
efetua o pagamento.

Assim, como entende Capez (2005) a extinção da punibilidade deve ser reconhecida
em qualquer tempo em que se faça o pagamento, mesmo em grau de recurso, inclusive
porque, como se sabe, todo pagamento previdenciário feito com atraso é realizado mediante o
pagamento de atualização, juros e pesadas multas. Não conseguimos vislumbrar, realizado o
pagamento, como subsistiria o “crime” capitulado no art. 168-A do CP. Inconstitucional a
previsão do § 2º e também do § 3.º do art. 168-A do CP6.

Faz-se essa pequena comparação para demonstrar o fato inegável de que o não-
pagamento aos cofres do Estado não se faz (basta uma análise perfunctória das empresas que
quebram no país) por mera vontade deliberada de se locupletar das verbas devidas (e são
devidas, repita-se!) à Previdência nacional. O não recolhimento se faz por puro estado de
necessidade, onde o responsável tributário, o empresário, sobretudo o pequeno, deixa de
recolher suas obrigações tributárias por pura incapacidade econômica, escolhendo a
subsistência de sua atividade, fomentando a economia presente, gerando riquezas para a
sociedade, cumprindo – ainda que a duras penas – com a função social da existência da
empresa, ao gerar trabalho, adimplindo compromissos com fornecedores, promovendo a
subsistência da empresa, a sua própria subsistência e dos que dependem, atual e diretamente,
da existência da empresa.

Favorece-se assim, com a indigitada legislação, a existência, tão somente, de grandes


empresas, privilegiando e favorecendo somente os que têm grande capacidade econômica.

Indo numa análise um pouco mais profunda, insta-nos notar que, pela análise, do
quadro descrito acima, o art. 168-A do CP quebra o preceito constitucional programático da
capacidade contributiva, pois se este não gera o direito subjetivo, como explica Harada (2005)
do contribuinte responsável bater às portas do judiciário pleiteando que determinado imposto
ajuste-se ao seu perfil econômico, parece-nos completamente pertinente a alegação de que
permitir se institua constrição penal como forma de cobrança, agride frontalmente o princípio
constitucional da capacidade contributiva, pois o tributante, ao instituir odiosa medida para

6
Art. 168-A.
§ 2º. É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das
contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida
em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.";
§ 3º. É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de
bons antecedentes, desde que: I - tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a
denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios;
aumentar a sua arrecadação, penaliza muito mais o pequeno do que o grande responsável
tributário.

E ainda que o princípio da vedação de efeitos confiscatórios tenha, na redação dada


pelo art. 150, IV da CF, uma imprecisão e vaguidão terminológica, impele a observação que
faz Harada (2005), citando Baleeiro, para quem tributos confiscatórios são aqueles que
absorvem todo o valor da propriedade, aniquilam a empresa ou impedem o exercício de uma
atividade lícita e moral.

Levando-se em conta que o não pagamento do tributo no prazo convencional, da


maneira que está escrita no art. 168-A do CP, já possibilita a instauração de processo penal
que pode resultar em restrição da liberdade pessoal do empresário (ou do responsável
tributário), já que, na sua redação, é crime omissivo próprio, claro nos parece que tal lei, nesse
aspecto, estatui uma legislação confiscatória, pois a imposição de pena restritiva da liberdade
– e perceba-se que a pena está fora da margem dos juizados especiais – impede que o
empresário continue a exercer, ainda que lícita e moral, a sua atividade econômica.

Por todos esses fatores até aqui elencados, não há outra conseqüência lógica
decorrente senão o reconhecimento da plena, direta e frontal inconstitucionalidade do disposto
no art. 168-A do CP.

Mas algumas outras considerações merecem ser feitas.

Primeiramente, é fato que a atividade jurisdicional tem tido grande participação na


construção de uma jurisprudência a respeito do tema que, temos esperança, logo chegará via
ação direta ao STF (apesar da lei já existir desde o ano de 2000).

Os juízes têm tido papel determinante na consolidação da jurisprudência sobre o tema,


afastando a incidência direta da aplicação do art. 168-A do CP e invocando a Constituição
Federal. Não vemos necessidade de colacionar jurisprudência, mas apenas de registrar que os
Magistrados, até mesmo por pedido do Ministério Público, suspendem os processos judiciais
até que se discuta a liquidez e a certeza do débito tributário na via administrativa fiscal.

A razão de tal suspensão (que ocorre, geralmente, nos crimes de sonegação fiscal e
previdenciária) é clara: trata-se, de um lado, da aplicação de princípios de razoabilidade e de
proporcionalidade, de justiça, e mesmo de devido processo legal e contraditório, tendo em
vista a oportunização, para que o devedor tributário discuta, junto à Fazenda Pública, seu
débito, podendo, inclusive, quando permitido em lei, realizar composições através de acordos
e refinanciamentos da dívida. Por outro lado, reflete também o resultado do reconhecimento
de um sem-número de denúncias em ações relacionadas à dívidas tributárias, tendo em vista
que tais denúncias, feitas antes de findo o processo administrativo fiscal, eram reconhecidas
ineptas, por completa falta de subsistência.

Igualmente, parece-nos (e essa deve ser, no nosso entender, o final da discussão a


respeito do tema) ainda que de maneira insipiente, o Judiciário tem mostrado, de maneira
tênue7, argumentos que justificam o afastamento da legislação infraconstitucional em questão.

E mesmo o STF, em recente decisão plenária em sede de Agravo Regimental 2537/GO


– Goiás, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, adotou o entendimento de que a apropriação
indébita previdenciária consubstancia-se em crime omissivo material e não simplesmente
formal e que, estando em curso processo administrativo mediante o qual questionada a
exigibilidade do tributo, afasta-se a persecução criminal e – ante o princípio da não-
contradição, o princípio da razão-suficiente – a manutenção do inquérito, ainda que
sobrestado.

A decisão então passa a entender de maneira corretíssima (ainda que tantos outros
argumentos tenham sido elencados) que é indispensável à ocorrência de apropriação dos
valores, com inversão da posse do numerário. Entendeu-se também que, pendente recurso
administrativo sobre o tributo, seria inviável a propositura da ação penal e da manutenção do
inquérito, sob pena de preservação de situação que degrada o contribuinte.

Mesmo assim, entendemos que mais do que forçar uma interpretação que a lei não
abre espaço, essa interpretação dada nas decisões em controle difuso – deferindo Habeas
Corpus e afastando a possibilidade de prisão pelo crime descrito no art. 168-A do CP, vai
além disso: dá ao Magistrado a possibilidade de criação, como já dissemos alhures, a
possibilidade de ser ele mesmo uma fonte de emanação abstrata de lei.

Dessa maneira, não se pode permitir, e esta é observação que cabe não só quanto ao
caso do artigo em estudo, mas também em todos os casos em que não caiba uma interpretação
conforme a constituição, simplesmente por inexistir duas ou mais interpretações sobre o tema,
que a Jurisprudência tenha o papel de consertar, amoldar de maneira completamente forçada,
reconhecendo as falhas, impropriedades da técnica legislativa, omissões e
inconstitucionalidades da lei, e se permita que normas permaneçam existindo, ilesas, no
ordenamento jurídico, ao arrepio da Constituição, promovendo o gradativo enfraquecimento
da Lei Maior do Estado, atacando a supremacia constitucional.

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Como nos casos de liminares proferidas em HC n.º 2007.04.00.022930-7/PR e 2006.04.00.031146-9/RS
ambos do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região.
O art. 168-A do Código Penal merece, e no nosso concluir, com todos os argumentos
possíveis aqui delineados (ainda que outros, que questionam critérios de natureza
propriamente penais e tributárias – como ser o crime de natureza material e do estado de
necessidade do responsável tributário) ser objeto de controle de constitucionalidade repressivo
via Ação Direta de Inconstitucionalidade (ou mesmo via Ação Declaratória de
Constitucionalidade, tendo em vista que, pouco a pouco, parece surgir a controvérsia sobre o
tema) por afrontar diretamente não só regras, mas princípios constitucionais basilares,
insculpidos na proibição de ser preso por dívidas, na proteção ao direito alimentar (tanto do
trabalhador como do empregador), na valorização do trabalho e da livre iniciativa como
fundamentos da República Federativa do Brasil, nos princípios de isonomia, capacidade
tributária e vedação ao confisco, todos eles se convergindo no princípio basilar da proteção à
dignidade da pessoa humana.

Referências:

AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro. Forense, 2006.

ARAÚJO. Luiz Alberto Davil. Curso de Direito Constitucional/Luiz Alberto David Araújo,
Vidal Serrano Nunes Júnior. 11.ª Ed. Ver. E atualizada. São Paulo. Saraiva, 2007.

BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20.ª Ed. Atualizada. São Paulo.
Saraiva, 1999.

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro. Forense, 2003.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal vol. 02 Parte Especial: dos crimes contra a pessoa
a dos crmes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212). 5.ª
Ed. São Paulo. Saraiva, 2005.

CLÈVE, Clemerson Merlin. Contribuições Previdenciárias. Não recolhimento., São Paulo.


RT n.º 763, 1997.

HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 14.ª Ed. Revista e ampliada. São Paulo.
Atlas, 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 5.ª Ed. São Paulo. RT, 2005.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na


Constituição Federal de 1988. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2001.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11.ª Ed. São Paulo.
Malheiros, 2004.

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