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IDIOMA - 18 O ENSINO DA LITERATURA PORTUGUESA NO 2° GRAU Séngis Nazar David 1. 0 ENSINO DA LITERATURA A invasao que o mercado editorial vem sofrendo por titulos ¢ autores de baixo valor estético 6 acompanhado na maioria das vezes de uma defesa quase incondicional da leitura. E muito dificil saber o que é melhor para aqueles que ingressam no mundo dos livros e da cultura letrada: a leitura de seja 14 o que for ou um certo dirigismo por parte da escola? As duas opges podem ser boas, mas podem ser também ruins. A liberdade de escolha por parte doaluno nao dé passaporte garantido para ohdbitode lere nemo habito de ler ésin6nimo de aprender a viver ou acompreendera vida. Ha osque léem para ouaté ficar estipidos. Por outro lado o dirigismo pode afastar 0 aprendiz do livro, e sobre isto pouco é necessdrio ser dito, uma vez que quase todos dentre nés experimentam, seja como aluno, seja como professor, sejacomo alunoe depois também como professor, a sensagao de que determinada obra talvez nao tenha sido escrita para nés. Os dois caminhos muitas vezes, na escola, parecem encarar a leitura comoum jogo de tudo ounada. Os apologistas da liberdade facil se esquecem de que as vezes 0 esfor¢o nos leva a algumas das melhores coisas da vidae de que o acesso aoconhecimento implica disciplina, perseveranga, desejo de tocar oque aprincipio nos parece impenetrdvel. Alguns dirao que desejocada um temo seu. Mas, por outro lado, ndo me parece a melhor atitude restringir possibilidadesemnome deum pretensioso saber que julga saber o que o outro quer. Jéos apologistas do rigor da leitura dos ditos grandes autores parecem se esquecer também de que com a escola nao se deve esgotar a trajetéria do leitor que ela pretende formar. O autor que nao for lido hoje podera ser lido amanha com grande prazer e proveito. Na escola e no professor nao estéo 0 inicio e o fim de todas as coisas. De qualquer maneira € dificil parao professortrabalharcom ouniverso de expectativas dos alunos, mas também deve ser dificil para o aluno trabalhar com 0 universo de expectativas do professor. Os alunos, na sua maior parte, costumam demandar leituras mais particulares e circunscritas a0 84 IDIOMA - 18 seu dia-a-dia: violéncia, crime, agao... Isto nao é necessariamente sinénimo & literatura de segunda categoria, embora tais obras, quando enderegadas estritamente ao publico infanto-juvenil, nos paregam a nés adultos tantas yezes uma brincadeira de esconde-esconde. Adultos, por seu turno, ainda mais quando professores, normalmente apreciam autores que ultrapassem circunstancias hist6ricas e sociais especfficas paraatingir certa universalida- de. E note-se que ultrapassar, neste caso, em nada deve se parecer, a0 nosso ver, com ignorar. Aqui € a vez de o professor ser visto com incompreensao, © nao sdo poucas as vezes em que se vé pregando no deserto, Posta de lado a indagagao das causas destes fendmenos, percebemos que, queiramos ou nao, o ato de ler tendea ligar-se a principio por um mecanismo quase imediato 4s nossas experiéncias e anseios momentineos. E dificil ler 0 que nao nos eta diretamente. A aproximacao de obras que nos oferecem nas primeiras paginas algum desprazer nos faz lembrar 0 rio Falgu, de “O sdbio da Efelogia”, de Malba Tahan. “O seu leito apresenta-se coberto de arcii parece extremamente seco, drido, como um deserto. O viajante que dele se =proxima nao vé dgua nem ouve o menor rumor do liquido. Cavando-se, porém, alguns palmos na areia, encontra-se um lengol de 4gua pura e impida.” Malba Tahan diz-nos que hé na vida homens que sio como 0 rio algu, embora também haja aqueles que sao precisamente 0 contrério do famoso e venerado rio da India. Nés acrescentarfamos que tal ensinamento também se aplica aos livros, sendo que para estes (assim como para os rios = para os homens) a validade do que podem fazer aos outros nao se restringe estas duas formas de ser rio (seco ou caudaloso). Malba Tahan nos mostra, em “O sdbio da Efelogia”, que entrar em contato com 0 que nao conheci- amos, Com 0 que ndo podfamos ver, é muitas vezes motivo de jtibilo, embora possa ser também de decep¢ao e desapontamento. As vezes, depois de ler passamos a conhecer sé um pouco mais do que o nada de antes ou a ver s6 ema pequena luz que nao mostra a coisa, mas denuncia a presenga de algo zivez valioso. Aprendemos entdo a esperar, a aguardar os acontecimentos. escola também nos deve ensinar 0 que nao podemos ver. Ou entao a nos roximarmos das coisas invisfveis. Fago estas consideragGes a respeito do estimulo a leitura porque este Seve ser, no meu ponto-de-vista, o pontoem favor do qual se devem organizar = atividades ligadas a Literatura no 1° e 2° graus. Isto parece ser 0 6bvio. ‘fas o que quero dizer 6 que para promover a leitura em sala de aula nao ha olugdes magicas. Os problemas que se apresentam sao variados e as Ges costumam ter alcance relativo. E por qué? Porque, por mais que o professor faga, por mais que a escola nao atrapalhe, ha sempre um termo esta equacdo sobre o qual nao se tem dom{nio absoluto: 0 aluno. Mais ainda: 85 IDIOMA - 18 temos o dominio absoluto sobre algona vida? Masisto nao deve ser Alibi para nao se fazer nada. Pelo contrario, costumo tentar fazer com que até os que a princfpio nao querem ler queiram. E, se o que queremos é formar leitores, cada professor aqui buscaré 0 seu caminho, Eu, por minha conta, poderia dizer varias coisas que ja fiz em sala de aula, que j4nao fago mais, quea vezes fago, que fago sempre... No entanto, vou me limitar a duas observagdes. A primeira é: na minha sala de aula s6 sao lidos textos que me interessam, que me comovem de algum modo... E costumo deixar claro para os alunos que eles tém liberdade de escolha, na leituraextraclasse, dentro das possibilidades oferecidas por mim, Nos textos curtos de sala de aula, a leitura é para todos. Mas lembro sempre que niotenhobola de cristal. Tenho apenas sensibilidade e procuro ter bom senso. E€ claro que sempre acontece de alguns alunos nao gostarem de um livro ou de um texto. Procuro ver isto como algo normal & absolutamente dentro do previsfvel. A segunda coisa que gostaria de dizer- Ihes a respeito da minha experiéncia de professor de Ifngua ¢ literatura é a seguinte: acredito que seja importante para o aluno ver o professor comoum leitor, alguém para quem a Ieitura tem valor. A respeito disto gostaria de narrar-lhes um fato. Neste ano levei para os meus alunos do Colégio Pedro Ilo livro mais velho que eu tenho, que cu ganhei em 1974, na 5# série, e que guardo até hoje. Euma antologia com est6rias deliciosas que na época eu li e reli varias vezes. Ea estéria de que eu mais gostava cra “A lenda dos cinco mais cinco”, de Malba Tahan. Este livro tem na primeira folha a minha assinatura, como eu assino até hoje. Sé que a minha letra mudou nestes 21 anos que se passaram. Depois de contar isto, deixei que os meus alunos vissem 0 livro. E depois li para eles a longa est6ria dos cinco mais cinco. Houve preparacao: umlivro velho que surge dofundo dotempo, um professor que escreveu seu nome naquele livro ha vinte e um anos atrds, um professor que ja foi uma crianga de letras tortas, e que trouxe O seu melhor livro, 0 primeiro, edele retirou aest6riade que mais gosta. Espero que, apos aleitura, para alguns alunos, de algum modo, tenha ficado claro que eles tm um professor que tenta aprender a viver coma vida, e que em sua vida os livros tém um lugar, bem perto do coragao. Por fim, para concluir este t6pico, gostaria de dizer que, assim como escrever nao se ensina s6 mandando o aluno escrever, com a leitura também passa-se algo semelhante. Hi habilidades especificas que, se nao trabalha- das, nao haverd estimulo suficiente que possa fazer do aluno um leitor. A tendéncia da escola é subjetivar as habilidades da leitura eda escrita. Diante das dificuldades que estes processos nos impoem, € mais facil agir como se fossem dons. 86 IDIOMA- 18 2. A LITERATURA PORTUGUESA Dentro deste quadro vale perguntar: como vai a literatura portuguesa nas escolas de ensino médio? A resposta é que em muitas delas no vai. E se isto acontece quero crer que nao est suficientemente claro ainda para aqueles professores que passam ao largo da Literatura Portuguesa que raz6es teriam para nao fazé-lo. Ha alguns ataques muito comuns ao ensino de Literatura Portuguesa no Brasil. Primeiro: ougo desde o tempo em que era aluno na graduagio a seguinte formulagao: por que Literatura Portuguesa e nao Literatura Fran- cesa, ou Inglesa, ou Italiana? Respondo: porque em Portugal a literatura se escreve em portugués, e no Brasil ainda falamos esta Ifngua, a de Camées. Mais: porque anteriormente ao romantismo brasileiro, temos trés séculos de ineratura no Brasil escrita basicamente por portugueses, autores que a principio assumiram aperspectiva docolonizadore os modelos discursivosda metrépole, mas que aqui e ali se vao diferenciando desta perspectiva emocéntrica e se movimentando dentro destes modelos de modo a inserir neles 0 novo, o que se estava formando, a perspectiva brasileira. Falo de Anchieta, Gregério de Matos, Vieira... Mais: porque a propria literatura roméntica brasileira adota a matriz francesa, de inspiracdo rousseaufsta, via Portugal. As elites letradas brasileiras do século XIX se formaram estudando na Universidade de Coimbra. E, quando nao o faziam, iam paraas faculdades de Direito de Sao Paulo ou de Olinda/Recife, faculdades estas regidas pelo espirito coimbrao. Estd visto que esta elite brasileira, do século XIX, letrada, hegemOnica, nos quadros administrativos e burocraticos do Brasil-Império, ¢ homogénea, forjou também instituigdes inspirada nas instituigdes portugue- sas. Falo das Faculdades de Direito, mas posso citar também 0 Conservatério Dramatico Brasileiro, que também segue os passos da Inspegao Geral de Teatros e do Conservatério Real Portugués. Por tiltimo gostaria de lembrar o didlogo que alguns autores modernos brasileiros mantém coma literatura portuguesa: Manuel Bandeira, com a lirica galego-portuguesa, Camées, Ant6nio Nobre... Ariano Suassuna com Gil Vicente. Sem falar no neo- realismo brasileiro, que influencia o portugués. Sem falar no mito sebastico tantas vezes retomado seja na literatura popular,seja na literatura erudita brasileira. Outro aspecto as vezes levantado é 0 seguinte: por que estudar iteratura portuguesa no Brasil se em Portugal a literatura brasileira pratica- mente nao é estudada? A isto eu responderia dizendo que um erro nao justifica o outro. A lingua portuguesa é patrim6nio comum do Brasil, de Portugal e dos pafses africanos - e é desta maneira que deve ser estudada e 87 IDIOMA - 18 yalorizada. Os acordos firmados entre os paises de lingua portuguesa pressupdem isto. No entanto, enquanto as melhores universidades de Sao Paulo ede Minas Gerais eas escolas de ensino médio destes estados incluem aLiteratura Portuguesa no vestibular e nocurrfculo basico, no Rio de Janeiro apenas 0 Colégio Pedro IT dd o exemplo raro de valorizagao dos lagos culturais que unem Brasil e Portugal, valorizacao de uma literatura de nove séculos, a literatura escrita em lingua portuguesa, seja ela de onde for. Todas estas razoes, acredito, sido validas. Mas podemos apresentar também razées validas para a necessidade do ensino de latim. Eno entanto, dificilmente, no atual momento politico daeducagao brasileira, olatimpoderé ser reintroduzido nos currfculos de ensino médio. E que, apesar das razGes validas, € preciso priorizar razées. Entao qual seria a razao para que O ensino de literatura portuguesa no Brasil pudesse ser reconhecido como prioritério? Qual seria a razdo definitiva que tiraria as razdes daqueles que dizem nada ter contra a literatura portuguesa, mas, sé mal conseguimos ensinar a literatura brasileira (dizem), entao por que literatura portuguesa? Contra este argumento € preciso dizer que 0 olhar para o passado por si s6 nao justifica aindao ensino de literatura portuguesa. E preciso compreender que o didlogo que travamos com a literatura portuguesa se insere num didlogo maior continuado que vimos travando com os modelos e as idéias européias. Deste modo a literatura portuguesa pode ser valorizada em si mesma, mas pode também nos dar régua e compasso para uma melhor compreensao dos caminhos que nos trouxeram até aqui, régua ¢ compasso para que possamos optar no presente entre os caminhos que o futuro nos oferece. Acredito que muitas vezes os erros que cometemos sao resultado de algo que no conseguimos ver. Entao optamos pelos caminhos as vezes aparentemente mais faceis. Talvez seja por isto que as aulas de literatura no 28 grau se transformam tantas vezes em aulas de estilo de época. Vale lembrar que a periodizagao literdria € itil e que visa basicamente a facilitar a compreensao da evolugio da literatura, evolugiio aqui considerada, fique claro, ndo sob a 6tica positivista. No entanto, se os estilos de época por um lado facilitam, por outro lado podem se transformar numa armadilha pelo apelo que trazem ao reducionismo. O curriculo por estilos de época é interessante, mas pede habilidade ao professor, que deve ver que literatura nio é estilo de época. A opgio pela estilistica, preponderante também nos livros didaticos, de um modo geral oculta a incapacidade de ver as relagoes dialéticas entre as literaturas brasileira e portuguesa e as articulages entre forma e contetido. Cito um exemplo: talvez um bom aluno de ensino médio saiba identificarnum dos sermées ‘doPadre Anténio Vieiraas figuras de estilo tfpicas do barroco, mas talvez nao percebaaengenhosidade do grande jesuita 88 IDIOMA - 18 fazendo daretorica uma verdadeira maquina de guerra discursivacontrauma civilizagao requintada e cruel, movida pelo espirito Contra-reformista. Cito outro exemplo: talvez este aluno saiba identificar nos romances coloniais de Alencar a recorréncia de situag6es e de temas romanticos, mas talvez nao perceba a franca apologia do colonizador. Paralelamente a esta op¢ao preferencial e tantas vezes exclusiva pelos estilos de época que considero equivocada, observo o esquecimento de algo que deve ser 0 objetivo maior do ensino da literatura , o de formar leitores. E isto, sejamos francos, a escola, via de regra, nio consegue fazer. Fago estas consideragdes com 0 intuito de contribuire naocomo deacusar. Todos nds sabemos das dificuldades do dia- a-dia do professor, tantas vezes empurrado para lugares em que nao gostaria de estar, empurrado para atitudes que gostaria de nao tomar, para aulas que gostaria de nao dar, para provas que gostaria de nao dar e corrigir. Mas sou da teoria de que é melhor fazer face 4s adversidades do que ficar chorando pelos cantos. Fago estas consideragées porque a Universidade tem como uma de suas mais elevadas fungGes observar como as coisas se passam fora de seus muros e oferecer sugestdes. Se nao o faz, peca por omissao, pois nao tomar uma posicao € tomar uma posi¢io, a do isolamento ou do desdém, como gueiram. Se o faz de modo arrogante (como se tivesse a varinha de condao da verdade) ou seo faz de modo inconseqiiente (como se oconhecimento que ela produz s6 servisse para a ascensao na hierarquia académica), reforga 0 preconceito as vezes nada infundado de que ela, a Universidade, 6 chega para atrapalhar. Espero ter contribuido para que, para alguns de vocés, a literatura (dentro desta particularidade, a portuguesa) ocupe um lugar especial. —— Conferéncia apresentada no Congresso Brasileiro de Lingua e Literatura, ma UERJ, em 27/07/95. Fizeram parte da mesa-debatedora os professores: Luiz Marques (UERJ), Claudia Amorim (UERJ), Olga de Jesus (Colégio Pedro Il) e Marise Rodrigues Colégio Pedro Il).

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