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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP

FACULDADE DE LETRAS FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

BRUNA SANTOS JACINTHO BRAGA

ANÁLISE DE SONHANDO, DE ÁLVARES DE AZEVEDO


Galope Onírico

São Paulo
2017
Bruna Santos Jacintho Braga - nª USP: 10371038

ANÁLISE DE SONHANDO, DE ÁLVARES DE AZEVEDO


Galope Onírico

Análise do poema “Sonhando”, do autor Álvares


de Azevedo para a disciplina de Introdução aos
Estudos Literários I - IEL 1
Docente responsável: Prof. Dr. Eduardo Vieira
Martins

São Paulo
2017
Galope Onírico
Sonhando
Hier, Ia nuit d'été qui nous prêtait ses voiles,
Était digne de toi, tant elle avait d'étoiles!
V. HUGO
1 Na praia deserta que a lua branqueia 37 O seio gelou?....
2 Que mimo! que rosa, que filha de Deus! 38 Não durmas assim!
3 Tão pálida — ao vê-la meu ser devaneia, 39 Ó pálida fria,
4 Sufoco nos lábios os hálitos meus! 40 Tem pena de mim!
5 Não corras na areia,
6 Não corras assim! 41 Dormia — na fronte que níveo suar!
7 Donzela, onde vais? 42 Que mão regelada no languido peito!
8 Tem pena de mim! 43 Não era mais alvo seu leito do mar,
44 Não era mais frio seu gélido leito!
9 A praia é tão longa! e a onda bravia 45 Nem um ressonar!...
10 As roupas de gaza te molha de escuma; 46 Não durmas assim!
11 De noite — aos serenos — a areia é tão fria, 47 Ó pálida fria,
12 Tão úmido o vento que os ares perfuma! 48 Tem pena de mim!
13 És tão doentia!
14 Não corras assim! 49 Aqui no meu peito vem antes sonhar
15 Donzela, onde vais? 50 Nos longos suspiros do meu coração:
16 Tem pena de mim! 51 Eu quero em meus lábios teu seio aquentar,
52 Teu colo, essas faces, e a gélida mão!
17 A brisa teus negros cabelos soltou, 53 Não durmas no mar!
18 O orvalho da face te esfria o suor; 54 Não durmas assim,
19 Teus seios palpitam — a brisa os roçou, 55 Estátua sem vida,
20 Beijou-os, suspira, desmaia de amor! 56 Tem pena de mim!
21 Teu pé tropeçou...
22 Não corras assim! 57 E a vaga crescia seu corpo banhando,
23 Donzela, onde vais? 58 As cândidas formas movendo de leve!
24 Tem pena de mim! 59 E eu vi-a suave nas águas boiando
60 Com soltos cabelos nas roupas de neve!
25 E o pálido mimo da minha paixão 61 Nas vagas sonhando
26 Num longo soluço tremeu e parou; 62 Não durmas assim;
27 Sentou-se na praia; sozinha no chão 63 Donzela, onde vais?
28 A mão regelada no colo pousou! 64 Tem pena de mim!
29 Que tens, coração,
30 Que tremes assim? 65 E a imagem da virgem nas águas do mar
31 Cansaste, donzela? 66 Brilhava tão branca no límpido véu!
32 Tem pena de mim! 67 Nem mais transparente luzia o luar
68 No ambiente sem nuvens da noite do céu!
33 Deitou-se na areia que a vaga molhou. 69 Nas águas do mar
34 Imóvel e branca na praia dormia; 70 Não durmas assim!
35 Mas nem os seus olhos o sono fechou 71 Não morras, donzela,
36 E nem o seu colo de neve tremia. 72 Espera por mim!
1. Comentário
Este texto, intitulado “Sonhando”1 é o segundo poema da primeira parte d’A Lira dos
Vinte Anos, uma coletânea de poesias da literatura brasileira, publicada originalmente em
agosto de 1853 por Dr. D. Jacy Monteiro.2
O poema é escrito de um modo narrativo, pois nele há apenas a voz do Eu lírico, o
qual se comporta tanto por meio da simples descrição de algo - simples narrativa -, quanto
pelo uso do discurso direto livre - imitação -, quando dirige-se diretamente àquela que
descrevera anteriormente. Tal modo narrativo percorre toda a elocução de Sonhando, desde
seu aspecto gramatical ao ornamental.
O título Sonhando, de antemão, nos introduz a um poema que se passará em uma
realidade onírica. O Eu lírico se encontra à noite em uma praia deserta, grande, com mar e
vento agitados. Nesta praia, há uma donzela, pálida e de vestes brancas como a areia, mas de
cabelos negros como a escuridão. Em um primeiro sentido, os dois são amantes e o Eu, em
uma posição de observador ideal pede à amada que não corra na areia, pergunta aonde ela está
indo e lhe suplica pena. A donzela que corria, então tropeça, senta-se e deita-se, parecendo
estar, nesse ponto, também adormecida. O Eu lírico, no entanto, a vê tremendo e gélida, em
seguida, parada como uma estátua sem vida, sendo assim que sobre seu corpo se projeta uma
grande onda, a fazendo boiar. Nesse momento, todavia, ela já está morta e o Eu lírico pede-
lhe que o espere. O poema parece se encerrar nisso, no entanto, se nos voltarmos ao título,
vemos que o sujeito narrativo estava sonhando e pela descrição deste sonho, encontra
atordoamento pela possibilidade de perda da amada.
Essa primeira interpretação por paráfrase se faz válida, no entanto, veremos a qual
possibilidade de sentido nos conduzirá a análise estética. Há que se entender do quê ou de
quem esta donzela corre; por que subitamente ela se senta e já deitada, deixa-se levar pelas
ondas do mar; se ela está apenas imóvel boiando de forma a dormir ou jaz morta. Além disso,
o fato de o título do poema estar no gerúndio é um indicativo de que a narração da ação
(tempo narrado) ocorre de forma concomitante ao tempo do narrador (tempo narrativo). Tais
aspectos devem ser esclarecidos, a fim de uma compreensão mais robusta.


1 AZEVEDO, A. Obras de M. A. Álvares de Azevedo. Rio de Janeiro: TYP. AMERICANA, DE J. J. DA
ROCHA, 1853, p. 8-10.
2
Nesta obra, Dr. D. Jacy Monteiro, em uma seção denominada “Duas Palavras” apresenta o material produzido
por Álvares de Azevedo que será parte integrante dessa coleção. Dessa forma, cita a presença d’A Lira dos Vinte
Anos, as quais somente foram publicadas após a morte do poeta, juntamente a uma parte denominada Diversos,
bem como algumas cartas produzidas por Álvares e um discurso biográfico proferido pelo próprio Dr. D. Jacy
Monteiro.
2. Análise
No poema, há predominância da função poética da linguagem. 3 Enxerga-se a
Linguística como o estudo global do comportamento verbal; já que a função poética também
faz uso do verbo como elemento constitutivo, ela é uma parte da Linguística. Nessa
abordagem, faremos uso da dicotomia dos eixos paradigmático (seleção) e sintagmático
(combinação) como forma de definir a função poética. O paradigma seria a equivalência,
semelhança, dessemelhança, antonímia ou sinonímia, enquanto que o sintagma baseia-se em
uma relação de contiguidade para construção da sentença. Por fim, a função poética da
linguagem se dá pela projeção do princípio da equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de
combinação, promovendo a equivalência à condição de recurso constitutivo de sequência.
É a partir dessa ideia que somos capazes de casar a análise sonora e constitutiva do
poema (seleção) à depreensão de sentido por imagens (combinação), resultando em uma
divisão e interpretação lógicas.
O poema se divide em 9 estrofes, de 8 versos cada uma, obedecendo ao esquema
rímico ababacdc e a um rígido sistema rítmico. Este esquema é o traço formal mais
importante do poema, pois obedece uma regularidade absoluta com acentuação na 2ª, 5ª, 8ª e
11ª sílabas, configurando ritmo anapéstico. Dos 8 versos de cada estrofe, os 4 primeiros são
hendecassílabos (11 sílabas poéticas), ao passo que os 4 últimos são pentassílabos ou
redondilha menor (5 sílabas poéticas). À primeira vista, pode parecer que ouve quebra do
esquema métrico, no entanto, se unirmos dois pentassílabos, obteremos um hendecassílabo e
dessa união o ritmo marcado é mantido, o que a torna possível em termos analítico-estéticos.
Esse processo, todavia, modifica o esquema de rimas para ababcc, retirando o único verso
que não apresenta rima com os demais, o antepenúltimo de cada estrofe. Assim sendo,
passamos de uma oitava lírica, com rimas cruzadas e um verso branco ou solto para uma
sextilha moderna com rimas cruzadas e uma emparelhada. Isso ocorre pela justaposição das
quadras pentassílabas em dísticos hendecassílabos, conversando o ritmo anapéstico.

Que-MI | mo-que-RO | sa-que-FI | lha-de-DE-us


Don-ZE | laon-de-VA-is
Tem-PE | na-de-MIM
Don-ZE | laon-de-VA | is-tem-PE | na-de-MIM


3 JAKOBSON, Roman. “Linguística e Comunicação”. In: Linguística e Poética. São Paulo: Editora Cultrix, p.
119-30

O segmento inicial é um jambo, já os três segmentos finais são um anapesto. Jambo e
anapesto são as unidades ou “pé” da antiga metrificação grega e latina. O jambo é formado
por uma breve e uma longa; o anapesto por duas breves e uma longa. Por esse sistema, assim
representaríamos o primeiro verso exemplificado:

U – | UU – | UU – | UU –

O metro de 11 sílabas é também chamado de arte maior. Candido (1996), conquanto,


nos recorda que apesar de os versos hendecassílabos remontarem ao que existia nos
“cancioneiros” como “verso de arte maior”, o hendecassílabo utilizado pelos românticos não
deriva desse verso, mas de um verso italiano que é composto pela fusão de dois versos de 5
sílabas poéticas. “No entanto, o seu ritmo é tão forte e unificador, que só por um esforço de
atenção poderemos fazer a divisão, levados que somos pela vertigem do seu galope.”
(CANDIDO, 1996, p. 53).4
A relação deste ritmo com o metro em Sonhando cria o movimento insinuado por
verbos como “correr”, “tropeçar”, “ir”, “palpitar”, “tremer” em contraste com “parar”,
“sentar”, “pousar”, “dormir”, “boiar”. O “sonho” sobre o qual o narrador fala e a própria ação
do sonho se confundem. Há mais que o dobro de verbos empregados no presente e gerúndio
do que no passado, exprimindo ação concomitantemente à narração. Trata-se mais de um
pesadelo do que um devaneio ou sonho acordado, o que fica claro logo de início no verso 5:
“Sufoco nos lábios os hálitos meus!” e pelo topoi construído pelo Eu lírico. Esse lugar-
comum é marcado pelo excesso da tonalidade mais próxima à cor branca, como podemos
observar em: “pálida”, “areia”, “onda”, “neve”, “gélida”, “branca”, “límpido”, “transparente”
em oposição aos “negros cabelos” e com o horário noturno, muito menos aludidos ao longo
do poema, pois até “a lua branqueia” (verso 1). Tais elementos criam a imagem de um lugar
fantasmagórico. Segundo Candido (2000) 5 , a noite não possui significado apenas de
enquadramento natural, mas também, meio psicológico e tonalidade afetiva. Isso corresponde
“à disposição do poeta, à sua concepção da vida e do amor, aos movimentos turvos do eu
profundo”. Em suma, tanto o ritmo marcado pelas tônicas, como pela semântica e inflexão
dos verbos, como o ambiente-comum em que se passa a ação são essenciais na construção de
um estado de angústia, afastamento, sonho e morte. Sobre isso, nos diria o autor:


4 CANDIDO, Antonio. “O Estudo Analítico do Poema”. São Paulo: Humanitas Publicações, 1996, p. 56.
5 ___________________ “Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos”. Belo Horizonte: Editora
Itatiaia Ltda, 2000, p. 167.
A recorrência dos versos e das palavras tem o seu correlato na recorrência
infinita do ritmo, que poderíamos imaginar sempre em andamento, para lá do ponto
final. Ele pode, assim, ser considerado a “razão” profunda da estrutura do
significado.
Portanto os valores de construção se fundem com os de significado, havendo
fusão completa entre ação e emoção, isto é, entre o ritmo de galope e a angústia.
(CANDIDO, 1996, p. 44).6
As características acima apontadas ainda encontram demonstração na pontuação do
poema e no paralelismo recorrente de alguns versos. Contam-se 33 pontos de exclamação, 7
de interrogação e 3 usos de reticências. A grande quantidade de exclamações produz emoção,
contemplação, aflição e súplica quanto ao caminho e ao que se passa com a donzela. Essa
dúvida é enunciada por meio do verso “Donzela, onde vais?”, o qual se repete nas estrofes 1
(verso 7), 2 (verso 15), 3 (verso 23) e 8 (verso 63) juntamente com o paralelismo de: “Não
tem pena de mim!” em todos versos finais das estrofes, com exceção da última, na qual ele
implora: “Espera por mim!”. O efeito de incerteza quanto à morte da pálida amada ainda é
reforçado pelas reticências, as quais são empregadas em momentos oportunos na divisão de
partes do poema.
A divisão deste poema de 9 estrofes se dá de maneira equilibrada e para demonstrá-la
ampliaremos a paráfrase que acima sugerimos. Podemos, assim, dividí-lo em 3 partes, a
primeira com 3 estrofes, a segunda somente com a 4ª estrofe e a terceira com as 5 estrofes
finais. Na primeira parte, há a apresentação do cenário e da donzela com o paralelismo dos 3
últimos versos da quadra. No entanto, temos que ao que o pé da virgem pálida tropeça, há
uma mudança na sua descrição, evidenciada, inclusive pela quebra de paralelismo: ela, que
estava correndo, agora se senta, deita e repousando a mão sobre o colo, encontra-se tremendo.
Há uma mudança de “Não corras assim!/Donzela, onde vais?/Tem pena de mim!” para “Que
tremes assim?/Cansaste, donzela?/Tem pena de mim!” Na parte final, há a construção de uma
forte imagem pela descrição de como a gélida branca está boiando nas ondas do mar: de olhos
abertos, nem sentia mais frio, flutuava maleavelmente com seu corpo e vestes brancos,
moldados pelos negros cabelos soltos.7 O Eu lírico a contempla e na beleza de um ambiente
límpido e transparente, suplica a ela que por ele espere (verso que quebra o paralelismo de
todo o poema), ainda exclamando que esta não esteja morta. Um possível percurso da
sequência de ações, descrições e emoções de Sonhando se delineia quando lemos apenas o
primeiro verso de cada quadra. A leitura assim se poria: “Não corras na areia,/És tão

6 CANDIDO, Antonio. “O Estudo Analítico do Poema”. São Paulo: Humanitas Publicações, 1996, p. 44.
7 Há um intertexto entre a descrição da donzela neste poema e a morte de Ofélia ou, em inglês, Ophelia,
personagem da obra Hamlet de William Shakespeare. A morte de Ofélia já foi retratado em diversas pinturas,
mas, à época da escrita de Sonhando, podemos destacar a versão de 1838 de Eugène Delacroix. A morte de
Ofélia, nome esse que quase rima com donzela, já foi extensivamente retratada tanto em linguagem visual,
quanto literária. Sobre isso, podemos citar o poema Ophelie (1870) do francês Arthur Rimbaud.
doentia!/Teu pé tropeçou.../Que tens coração,/O seio gelou?.../Nem um ressonar!.../Não
durmas no mar!/Nas vagas sonhando/Nas águas do mar”.
As características citadas e demonstradas se adequam ao gênero do poema. Antônio
Candido classifica o poema Meu Sonho, de também autoria de Álvares de Azevedo, como
uma balada interior; este é também o gênero de Sonhando. Em sua análise, Candido diz
referir-se à balada como poema narrativo de origem popular, semelhante ao que na Península
Ibérica se denominou “romance”. Nesse gênero de poemas narrativos são contados, de uma
forma geral, “fatos e aventuras de guerra, caça, amor e morte, com uso do diálogo, recorrência
de versos e palavras, apresentação de tipo dramático.”8 (CANDIDO, 1985, p. 48). O ritmo
usado nas baladas, apesar de variar muito, em geral simula uma batida de galope, tal qual
observamos nesses dois poemas do autor. O que Álvares se diferencia dos autores de balada
macabra alemã, representada por Goethe e Schiller, é que ele reverte o caráter objetivo da
definição original de balada para uma narrativa interior, “uma espécie de drama vivido pelo
próprio emissor, onde o elemento dialógico corresponde ao desdobramento da alma.” (idem,
p. 49).
É comum que nas baladas o elemento dialógico seja submetido ao narrativo. Neste
poema, todavia, Álvares recorre no final de cada estrofe a um diálogo, representado pelas
quadras. Se em Meu Sonho a submissão do elemento narrativo ao dialógico produz o
dilaceramento do ser, em Sonhando exprime o afastamento do Eu lírico em relação à donzela.
Tal característica é essencial no encaminhamento da análise final do poema. Acerca do
exposto, nos ensina Candido:
Ao transpor o narrativo para o dialógico, e o fantasmagórico para o onírico,
Álvares de Azevedo pôde interiorizar o gênero, e graças a isso deu extraordinário
efeito dramático à descrição do tormento íntimo, fazendo uma verdadeira invenção
relativamente aos modelos europeus.
Essa análise comparativa, aparentemente circunstancial, ajuda a esclarecer o
poema no que tem de mais seu, porque faz sentir a complexidade da organização:
defini-lo como “balada interior” (contradição em termos) é entrever a sua verdadeira
natureza e originalidade. (CANDIDO, 1985, p. 49-50)
Nessa esteira, é fundamental notarmos algumas características da obra e contexto
histórico em que escreve o autor. Álvares de Azevedo é a figura complexa de maior
relevância no ultrarromantismo brasileiro. Entende-se que no Romantismo somos arrastados a
entender o artista que criou a obra, “graças à vocação da confidência e a relativa inferioridade
do verbo ante a insofreada necessidade de expressão.” (CANDIDO, 2000, p. 159). O prefácio9


8 CANDIDO, Antonio. “Na Sala de Aula: caderno de análise literária”. In: Cavalgada Ambígua. São Paulo:
Editora Ática, 1985, p. 48-50.
9 WORDSWORTH, PEACOCK, SHELLEY. “Poética Romântica Inglesa”. In: WORDSWORTH, W.: Prefácio
a Lyrical Ballads. Lisboa: Materiais Críticos, 1985, p. 65.
do inglês William Wordsworth à 2ª edição de Lyrical Ballads, no qual o autor define a poesia
como “spontaneous overflow of powerful feelings” é prova desta particularidade romântica.
Tudo isso, lembrando-se que o poeta brasileiro morre aos 20 anos em seu 5º ano do Curso
Jurídico, é elucidado por Candido, em “Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban”:
Se o Romantismo, como disse alguém, foi um movimento de adolescência,
ninguém o representou mais tipicamente no Brasil. O adolescente é muitas vezes um
ser dividido, não raro ambíguo, ameaçado de dilaceramento, como ele, em cuja
personalidade literária se misturam a ternura casimiriana e nítidos traços de
perversidade; desejo de afirmar e submisso temor de menino amedrontado; rebeldia
dos sentidos, que leva duma parte à extrema idealização da mulher e, de outra, à
lubricidade que o degrada.
[...] Há nele, sobretudo, como no escorço de vida que é a adolescência,
aquele misto de frescor juvenil e fatigada senilidade, presente nos moços do
Romantismo [...] (CANDIDO, 2000, p. 159-60)
3. Interpretação
A donzela, caracterizada como pálida, regelada, gélida, imóvel, branca e virgem é uma
constante na obra de Álvares como expressão de força obsessiva da adolescência. Como já
fora tratado, há uma enorme quantidade de lugares-comuns, tanto neste poema, quanto ao
longo de toda sua expressão poética. Agora, a fim de que casemos todos os elementos postos
pela análise estrutural e pelo contexto literário, bem como pelas questões levantadas a partir
da paráfrase inicial, nos debruçaremos sobre o sentido das palavras deste poema.
Diz Candido, em seu “Estudo Analítico do Poema”, que entre os elementos do
discurso há os adornos: tropos e figuras. Dos tropos, que se dividem de forma a significar e
ornar; apenas para significar; apenas para ornar, trataremos apenas do primeiro tipo, qual seja
a metáfora. Honorato, em suas Sinopses10, define a metáfora como: “o tropo que consiste na
mudança de uma palavra de sua significação própria para outra”. Já Venerável Beda11, define
os tropos como “a palavra transferida de sua significação própria para uma semelhança não
própria, por necessidade ou por ornamento”, enxergando a metáfora como “a simpatia
universal que une as coisas”. Já as figuras, estas podem ser de pensamentos ou de palavras se
destinando a provar, mover, recrear (pensamento) ou a acrescentar, diminuir, estabelecer
consonância, simetria ou contraposição (palavras).
De outro lado, importante, se faz também definir o símbolo como uma evocação
imediata da realidade, “um princípio, uma tendência geral do poema, resultante do jogo de
alterações particulares de sentido das palavras e da grande alteração fundamental: o intuito
poético, a intenção que preside à fatura”. (CANDIDO, 1996, p. 87). A imagem, por sua vez,

10 HONORATO apud CANDIDO. “O Estudo Analítico do Poema”. São Paulo: Humanitas Publicações, 1996, p.
82.
11 Monge inglês que vive nos mosteiros de São Pedro e São Paulo no nordeste da Inglaterra. É conhecido pela
obra “História Eclesiástica do Povo Inglês”.
possui uma capacidade ilustrativa semelhante à da metáfora, no entanto, ela ainda mantém um
nexo comparativo entre os termos. Disso, resulta uma maior expressividade à metáfora, já que
ela ocorre pela transposição, não por simples símile; a metáfora penetra com força na
sensibilidade, pois impõe-se pela analogia criada. Em nossa análise, contudo, após essa breve
definição dos adornos, nos deteremos sobre a questão da metáfora e da imagem, seguindo,
pois ao símbolo presente em Sonhando.
Neste poema, há metáfora, não há imagem. Aristóteles, o primeiro tratadista a tratar da
questão da metáfora e da imagem, nos ensina em sua Arte Retórica:
A imagem é igualmente uma metáfora; entre elas há apenas uma ligeira
diferença. Quando Homero diz de Aquiles “que se arremessou como um leão” é
uma imagem; mas quando diz: “Este leão se arremessou” é uma metáfora. Como o
leão e o herói são ambos corajosos. Homero qualifica Aquiles de leão por meio de
uma transposição. (ARISTÓTELES, p. 325)12
Partimos então, dessa noção de que a metáfora cria uma espécie de realidade nova,
pois quebra a barreira entre as palavras comparadas, através da transposição. Este é o
procedimento observado em todo Sonhando e essencial na condução de nossa interpretação.
A tal donzela, tão repetidamente chamada, pela figura da anáfora é um termo metaforizado
para o sentido transcendente de frio, sono, sonho e morte. Dessa forma, o vocabulário do
poema que para um leitor desatento estaria claramente empregado em sentido figurado,
encontra-se, todavia, inteiro em sentido direto. Ora, mas como isso seria possível? A resposta
é simples e já foi aqui lapidada: o ambiente do poema é o universo onírico, não o mundo
acordado. Na dimensão de sonho, já exposta pelo próprio título “Sonhando” as ações descritas
são perfeitamente plausíveis, fato esse ainda corroborado pela transposição de sentido da
figura da donzela aos elementos de caracterização dela, da situação e do local.
A pergunta que se põe agora é outra: quem seria esta donzela pálida, gélida e virgem?
Seria uma amada, já morta ou ainda viva com quem o Eu lírico sonha? Ela existe ou existiu
na realidade sensível? Como demonstramos, o ritmo do poema é de galope, rigidamente
marcado, conferindo unidade rítmica. Além disso, os verbos encontram-se, em grande parte
na flexão de presente, denotando que aquela ação ocorre ao tempo em que é narrada.
Salientamos, também, em decorrência disso, a presença de um Eu lírico na posição de
observador ideal. Isso fica mais claro quando vemos que entre este narrador ideal e a donzela
com quem fala não há interação física real, apenas desejo disso; quem toca a donzela é a
natureza, o Eu apenas a observa e descreve. Percebemos isso no verso 51: “Eu quero em meus
lábios teu seio aquentar,” e versos 19 e 20: “Teus seios palpitam - a brisa os roçou,/Beijou-os,

12 ARISTOTELES apud CANDIDO. “O Estudo Analítico do Poema”. São Paulo: Humanitas Publicações, 1996,
p. 84.
suspira, desmaia de amor!”, por exemplo. Voltemos à questão do ritmo, o elemento formal
mais marcante de todo o poema. Quem galopa, anda, quem galopa, se afasta, ainda mais se
um dos elementos (narrador) se mantém parado, já que só mostra o que está acontecendo. A
repetição do verbo “correr” nos versos 5, 6, 14 e 21 demonstra esse caráter a nível semântico.
No estrato sonoro ainda temos a aliteração de fricativa alveolar surda [s], como em “Não
corra(S) a(SS)im”, o que corresponderia ao som de vento pelo movimento de afastamento, o
que ocorre sempre no antepenúltimo verso de cada estrofe. O resultado disso é uma angústia
carnal própria do Romantismo.
Nossas perguntas ainda estão sem resposta e para isso, recobraremos ao contexto
histórico-literário. Escreve Candido:
É por toda a sua obra, uma sensação geral de evanescência, de passagem do
consciente ao inconsciente, do definido ao indefinido, do concreto ao abstrato, do
sólido ao vaporoso, que aparece na própria visão da natureza, na qual opera uma
espécie de seleção, elegendo os aspectos que correspondem simbolicamente a estes
estados do corpo e do espírito. (CANDIDO, 2000, p. 165)
Se, então, a tal donzela se afasta e ela é um termo metaforizado ao longo de Sonhando,
termo esse transposto a um sentido remoto comum ao léxico em que penetra, podemos, então,
concluir que a donzela não existe. Ela é símbolo de um sonho; é a sublimação de um desejo
sexual que não se realiza. Ora, não nos esqueçamos que o autor concentra toda sua produção
poética em idade ainda jovem, pois morre aos 20 anos. Em sua produção, há tanto a
representação do tema da prostituta rampeira, da qual ele zomba, quanto da virgem idealizada
com a qual ele devaneia. No entanto, de ambas, as quais muita vezes são representadas
dormindo, ele foge.
Uns e outros, com efeito, falam de amores não realizados; o burlesco de uns
corresponde ao platonismo de outros. Marcando de grotesco os amores tangíveis, o
poeta se exime deles, recuando-os para o impossível, da mesma forma que fez com
os demais por meio da idealização extremada. Foge de ambos, numa palavra, com
desculpas especiais para cada caso. (idem, p. 163)
Sobre isso, já falou Mario de Andrade que a figura da mulher adormecida é
representação do medo de amar. Ressalva-se, à título de esclarecimento, que as atribuições e
conclusões a que chegamos se mantém firmes e restritas ao poema e ao Eu lírico deste, não
fazendo, de forma alguma, referência direta à pessoa de Álvares de Azevedo. O que está
representado, portanto é a timidez sexual que resulta na dificuldade de conciliação entre
pensamento erótico e posse física, servindo como substrato para uma alta sublimação de
caráter artístico. Nesse diapasão, a donzela é nada mais que uma sublimação, a qual, todavia,
dele só se afasta ao som de um galope, em ambiente fantasmagórico, mas que ele ainda
espera, em súplica, que se realize. Sonhando é, portanto, um poema sobre o desejo
desesperado de um coito não realizado. O esquema rítmico de galope pode significar, em um
primeiro plano, o afastamento e, em segundo, a angústia derivada da sublimação não
efetuada.
Como disse Antonio Candido, a beleza de um poema reside na camada superficial, a
dos elementos estéticos, na qual os significados mais imediatos são enunciados, bastando-se
para uma leitura, que, embora satisfatória, é incompleta. O percurso de análise que seguimos
no trato com Sonhando teve o intuito de revelar a camada oculta, onde pudemos enxergar um
significado final mais elaborado.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. “Poética”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 1990.
AZEVEDO, A. “Obras de M. A. Álvares de Azevedo”. Rio de Janeiro: TYP. AMERICANA,
DE J. J. DA ROCHA, 1853.
AZEVEDO, A. “Obra Completa”. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.
CANDIDO, Antonio. “Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos”. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia Ltda, 2000.
_________________“Na Sala de Aula: caderno de análise literária”. In: Cavalgada Ambígua.
São Paulo: Editora Ática, 1985.
_________________“O Estudo Analítico do Poema”. São Paulo: Humanitas Publicações,
1996.
JAKOBSON, Roman. “Linguística e Comunicação”. In: Linguística e Poética. São Paulo:
Editora Cultrix
WORDSWORTH, PEACOCK, SHELLEY. “Poética Romântica Inglesa”. In:
WORDSWORTH, W.: Prefácio a Lyrical Ballads. Lisboa: Materiais Críticos, 1985.

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