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CHUVAS E TROVOADAS

Dedo, dedal, de-mal, drapeado, debrum, debruado, dever, desfazer...


A caixinha de costura, a mesa comprida, sala imensa. Cabecinhas baixas, olhos fixos
nas agulhas que mergulhavam rápidas, tecido claro, claro como a tarde modorrenta, se
arrastando.
Vê-las ali, trabalhos manuais executando, era encher de graça a placidez um mundo
de meninas laboriosas, aprendizes, um mundo comportado.
É claro que, de repente, um pé saía do sapato e escorregava pra debaixo da mesa. É
claro também que gotas de suor brilhavam naquelas frontes tão claras. Mas entre
linhas azuis e verdes, outras matizadas, os ouvidos abriam-se para o ruído das ruas.
E passavam vendedores de cascalho. E passavam vendedores de pipoca de havia
ainda, quando em vez, bruscas freadas dos automóveis.
Mas, protegidas do mundo, abrigadas na imensa sala, as meninas costuravam.
A professora era paciente, mas exigente e cuidadosa. E as meninas...educadas,
caprichosas, perfumadas.
Aula de costura! Caixinha arrumada, às quatro, em ponto, elas iam chegando e se
acomodando nas cadeiras.
Difícil era fugir à tentação das janelas abertas mas muito altas. Penoso era olhar a um
canto o piano sempre fechado, negro, lustroso. Doloroso era ficar tão longe do quintal
que se adivinhava lá pro fim do corredor comprido, tábuas corridas enceradas,
passadeira colorida, de tão poucos passantes.
Todas banhadas, cheirando à lavanda francesa, uma de tranças, outra de franja, laço
de fita, broche dourado. A de cabelos encaracolados trazia brinquinhos nas orelhas
pequenas, delicadas, e arrastava a cadeira e pedia desculpas, mas repetia o gesto todos
os dias de aula. O ruído era dela, feito por ela. O outro vinha do quintal, vinha de mais
longe, vinha triste chegando e enfeitava a tarde calorenta. Era o galo que cantava no
quintal apenas adivinhado, longe e mole e rouco ruído para compor com o outro, o
arrastar da cadeira, sempre acompanhado pelos olhares meio reprovadores das outras
costureirinhas.
Não pediam para ir ao banheiro, as meninas? Não sentiam sede? Sim e não. Em meio
à aula, às quatro e 45, entrava na sala, tangida por um estranho relógio a empregada
de avental branco e na bandeja redonda, cinco copos d’ água.
Nesse momento descansava-se a costura ao lado, e pelo ar, sentia-se a permissão para
ir ao banheiro, se precisassem. Ia sempre a menina de cabelos encaracolados, ovelha
meio desgarrada que procurava antes o sapato debaixo da mesa. Era dela o pezinho
vestido com meia branca rendada, adivinharam?
Vez por outra, um gato gordo e branco atravessava a sala.
Às cinco e meia, arrumavam as caixinhas, beijavam a professora e partiam.
_Recomendações à mamãe...!
E a porta comprida e pesada interceptava o fim da tarde.
Feliz a professora, felizes as mães de filhas tão gentis. Poderia a professora dizer que
“ menina tem parte com o diabo?”
Bainhas e babados, alinhavos, arremates, franzidos e cerzidos, aprendiam fácil, as
dóceis meninas costureiras:
E a professora sonhava. Sonhava e as transformava em futuras jovens senhoras, “
mãos de fada”, orgulho dos maridos, da família. Proibido falar em mundo perdido.
Vislumbrava-o inteiro naquelas meninas tão meninas, tão delicadas, louçãs, gentis.
E telefonavam as mães ao fim de cada quinzena, mães e professora que falavam de
um mundo arrumado, costurado, cerzido, consertado.
Contam que foi numa tarde de janeiro e que a aula decorria já pela metade, na hora
dos copos d’ água, quando desabou a chuva.
A professora apressou-se em fechar as janelas e acender as lâmpadas do lustre pesado,
pendente no centro da sala. O dia virou noite, ou melhor, a tarde virou noite, de
repente.
Contam também que a menina do cabelo encaracolado perdeu-se esquecida, agulha
presa entre os dedos, olhos fixos no lustre resplandecente.
A professora ergueu os olhos por cima dos óculos. Mas a menina já estava de pé,
braços abertos num longo espreguiçamento e, ligeira, atirou caixas e agulhas e linhas
e dedal para cima, para o alto, esparramando pela sala dezenas de alfinetes e
pedacinhos de rende que se foram alojar, num vôo doido, por cima das meninas
costureiras.
Na mão esquerda, a tesourinha ameaçadora que ela fincou sobre a mesa e virou as
costas, rindo das caras assustadas das outras meninas. E abriu a porta.
Merda! Que ela disse ainda, antes de mergulhar na chuva grossa que banhava ruas e
calçadas.
Contam que as outras meninas acudiram a professora com água e açucar. E que a aula
acabou por ali mesmo. E que logo depois tocou telefone e que a conversa não foi
escutada por ninguém.
Só o gato enrolava-se nas pernas da professora. Contam, por fim, que a menina, filha
de um professor de filosofia, passa as tardes devorando livros de aventuras, contos de
fada, lendas e mitos, sonhando com terras distantes. E que (já ia me esquecendo) anda
apaixonada por um tal de Robinson Crusoé.

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