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ESPORTE

FUTEBOL
AO SOL E À SOMBRA
José Roberto Torero

E
duardo Galeano ficou co- Hemingway. O futebol espera ainda o gran-
nhecido por As veias abertas da de escritor que se lance em seu resgate.”
América Latina, publicado em Vinte e sete anos depois, o pró-
1971. Eu mesmo li este livro prio Galeano tornou-se este escritor ao
na adolescência e o impacto foi gigantes- lançar Futebol ao sol e à sombra.
co. Se sou de esquerda até hoje, o mérito, O livro começa pelo começo: fala
ou a culpa, dependendo do gosto do lei- dos primeiros jogos na antiga China,
tor, é em boa parte deste sujeito. passa pela Europa medieval e chega à
Mas três anos antes, em 1968, ele América pré-colombiana. Depois co-
foi o organizador de um livro sobre um meça a contar sobre os grandes joga-
assunto bem diferente. Su majestad el fútbol dores da década de 1910 e cronologi-
foi um pequeno livro com cerca de 120 camente vai enfileirando personagens e
páginas, com textos de 17 escritores sele- causos do nascimento do futebol.
cionados por Galeano. Entre estes esta- Algumas destas histórias são to-
vam atletas literários do porte de Horacio talmente novas até para os mais enci-
Quiroga, Mario Benedetti, Albert Camus clopédicos cronistas esportivos. Por
e Thiago de Mello. exemplo, o fato de, em 1916, durante a
Não havia um texto de Galeano. Primeira Guerra Mundial, o capitão in-
Ele não se autoescalou. Fez apenas um glês Nevill saltar de sua trincheira chu-
prefácio de duas páginas e meia. Mas neste tando uma bola em direção às trinchei-
pequeno espaço ele deu uma bela cutuca- ras alemãs. Capitão, que, ironicamente,
da nos intelectuais de esquerda, dizendo, já foi morto por outra bola, de canhão.
naquele tempo, que era um erro colocar a Galeano ergue sua obra utilizan-
culpa da alienação do povo no futebol. do a mesma engenharia com que reali-
Curiosamente, no final daquele pró- zou sua melhor obra (na minha opinião):
logo, Galeano diz: “Os touros tiveram seu a trilogia Memórias do fogo. Ele sobrepõe
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Foto: Nauro Júnior

Ao lado: Durante os jogos da Copa do Mundo no Brasil, Eduardo Galeano passou todos os dias fechado em sua casa em Montevideu
assistindo aos jogos e atendendo excepcionalmente algumas pessoas como o fotógrafo Nauro Junior, autor dessa foto.
Abaixo: Pelé em uma de suas jogadas geniais em jogo da seleção brasileira.
Foto: Divulgação

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tijolos de dois tipos: fatos importantes e como estas não poderiam ser do célebre
fatos poéticos. E usa como cimento suas torcedor do Fluminense:
opiniões e seu lirismo, nunca caindo no - “suas pernas eram um mapa de cica-
piegas ou num criticismo vazio. trizes”,
Na primeira metade do livro, a - “ninguém podia parar aquele redemoi-
coisa mais saborosa são as histórias nho que derrubava jogadores como se
que ele conta sobre jogadores pouco fossem bonecos de trapo”,
conhecidos no Brasil, como o grande - “dava passes por um buraco de agulha”,
Ricardo Zamora, goleiro espanhol que - “Martino entrou na área sossegado
bebia conhaque e fumava três maços que nem boi no pasto”,
de cigarros por dia, Josep Samitier, que - e “a rede era a renda de noiva de uma
assinou seu contrato em troca de um menina irresistível”.
relógio luminoso e um terno com co- Outra coisa interessante é que
lete, Abdón Porte, que se suicidou por o futebol jamais é visto como algo
ficar na reserva, José Leandro de An- solitário, independente do resto do
drade, que teria atravessado meio cam- mundo. Galeano, quando fala de uma
po com a bola na cabeça, e José Pien- Copa, sempre explica a época, contex-
dibene, que não comemorava seus gols tualizando a competição e colocando
para não ofender os adversários. -a em oposição ou como consequên-
Neste começo ele cria persona- cia do que acontece no planeta.
gens míticos, grandiosos, emblemáticos. Na segunda metade do livro, o
Mas há alguns erros de infor- tom muda. Se na primeira tivemos odes
mação. Por exemplo, Galeano diz que, aos grandes craques, como Di Stéfano,
quando acabou a final da Copa de Garrincha, Zizinho, Pelé, Julio Pérez Pa-
1958, o Brasil deu a bola a seu torcedor taloca, Nilton Santos, Didi, Yashin, Uwe
mais devoto, o massagista negro Mário Seller e Stanley Matthews, na etapa final
Américo. Não é verdade. Mário Améri- ele torna-se mais ácido, e fala de perso-
co roubou a bola do juiz, a mando de nagens que estragaram o futebol, como
Paulo Machado de Carvalho, e a bola o ditador chileno Alfredo Stroessner
não ficou com ele. Também afirma que (que se fez presidente do Colo-Colo,
Friedenreich fez mais gols que Pelé, en- time mais popular do país), de Jesús Gil
quanto ele marcou “apenas” a metade. y Gil (presidente do Atlético de Madrid
Porém, Galeano termina seu texto sobre ligado a Franco), de João Havelange, de
Friedenreich dizendo que, depois dele, Carlos Alberto Lacoste (homem forte
o futebol brasileiro abandonaria os ân- da Argentina na Copa de 78) e de Gui-
gulos retos e seria “como as montanhas lherme Cañedo, presidente da mexicana
do Rio de Janeiro e os edifícios de Oscar Televisa. Fosse o livro mais recente, e
Niemeyer”. Por esta bela comparação, não de 1995, falaria de José Hawilla, de
perdoa-se tudo. Afinal, não se cons- José Maria Marin, de Ricardo Teixeira.
troem mitos, nem literatura, sem um Enfim, misturando lirismo, críti-
tanto de invenção, exagero e mentira. ca, personagens míticos e malditos, o
Muitas vezes o tom de alguns livro acaba sendo o que pretendia Ga-
contos, que transformam pequenos fa- leano, uma “homenagem ao futebol,
tos em fatos simbólicos e poéticos, lem- celebração de suas luzes, denúncia de
bra o tom de Carlos Drummond de An- suas sombras”.
drade em Contos Plausíveis. Mas Galeano
também se aproxima de outro brasileiro: José Roberto Torero é jornalista, analista de
Nelson Rodrigues. Vejam se expressões futebol e articulista.

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GARRINCHA

GENTO PLATINI

JULIO PÉREZ ROMÁRIO BAGGIO

ZIZINHO BECKENBAUHER NILTON SANTOS


Fotos: Divulgação

FRIEDENREICH LEONIDAS JAIRZINHO DI STEFANO

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