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VENCER ou MORRER

FUTEBOL, GEOPOLÍTICA E IDENTIDADE NACIONAL

Gilberto Agostino
Copyright @ by Gilberto Agostino, 2002
2ª edição: 2011

Direitos desta edição reservados à


MAUAD Editora Ltda.
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1ª edição em coedição com


FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro

Projeto Gráfico:
Núcleo de Arte/Mauad Editora

Foto da Capa:
Copa de 1938. Jogadores alemães saem derrotados após jogo com a Suíça

CATALOGAÇÃO NA FONTE
Departamento Nacional do Livro

A275v
Agostino, Gilberto.
Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional
/ Gilberto Agostino. – Rio de Janeiro : FAPERJ : Mauad, 2002 ;
2. ed.: Mauad X, 2011.

ISBN 978-85-7478-523-3

1.Futebol – Aspectos sociais. 2. Futebol – Aspectos políticos.


I. Título.

CDD – 796.334
Dedico este livro aos meus irmãos, Júlio e Salvador,
que me ensinaram a amar o jogo

Este trabalho foi concebido a partir de uma experiência no Jornal dos Sports,
no qual assinei a coluna “Futebol, Paixão e Poder“. Das crônicas ao livro, foram
muitos dilemas, dúvidas e desafios. Consegui superar alguns deles graças ao
incentivo de muitas pessoas, às quais devo sinceros agradecimentos. Antes de
tudo, à minha família, que esteve ao meu lado nos bons e maus momentos. À
FAPERJ, especialmente na pessoa de Luis Fernandes, pelo apoio ao projeto.
Aos colegas do Laboratório de Estudos do Tempo Presente, pelas reflexões
levantadas em nossas discussões. Entre aqueles que compartilharam mais de
perto da evolução do texto, foram fundamentais as sugestões de Alexander
Martins, assim como a leitura atenta e carinhosa de Octacílio Ribeiro Lessa. Não
poderia esquecer também as pessoas que me incentivaram com uma palavra,
gesto ou “livro emprestado”, como Luís Antônio, Leonardo Bahiense, Diego
Henrique, Rodrigo Ferrari e Luís Mauro. Finalmente, gostaria de deixar registrado
um agradecimento especial ao professor Francisco Carlos, pelo encorajamento
que reforçou minha determinação de ir em frente.
Vencer ou Morrer
(Mensagem de Benito Mussolini aos jogadores italianos
na véspera da final da Copa de 1938)
ÍNDICE

PREFÁCIO — Teixeira Heizer

APRESENTAÇÃO — Francisco Carlos Teixeira Da Silva

CAPÍTULO 1
BATALHAS NO CAMPO, BATALHAS NA VIDA

CAPÍTULO 2
A ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA E A FASCINAÇÃO DO FUTEBOL

CAPÍTULO 3
FUTEBOL E POLÍTICA NO “SOCIALISMO REAL”

CAPÍTULO 4
POPULISTAS, DITADORES E GUERRILHEIROS

CAPÍTULO 5
VELHOS IMPÉRIOS, NOVAS NAÇÕES

CAPÍTULO 6
TORCEDORES E NOVA DIREITA: VIOLÊNCIA E (DES)CONTROLE

CONCLUSÃO
Futebol, Mundialização e Mídia 1

BIBLIOGRAFIA
Vencer ou Morrer

Prefácio

EM BUSCA DA POESIA PERDIDA

Teixeira Heizer*

A bola começava a rolar na Velha Albion e o texto de Gilberto


Agostino parecia mover-se com ela, transitando ao seu lado, em mágico
retrocesso aos idos de 1800, um passado esportivo que não morreu; passou.
Aliás, o futebol é assim mesmo. Suas vigorosas emoções, sejam trágicas
ou épicas, fluem em direção ao imprevisível. Os encantos nele embutidos
vêm de longe, e não são eclipsados sequer pelas brumas do tempo. O
autor – enfeitiçado também pelas pesquisas – soube capturar o turbilhão
de sensações decorrentes desses quase dois séculos em que homem e bola
se envolveram em fantásticos pas-de-deux, capazes de apequenarem os
Nureyev e Nijinsky, por inexpressivos, se ousassem portar chuteiras. E
transmitiu-as com honestidade para o público leitor, desacostumado a
relatos tão convincentes.
Conjuração fantástica de torcidas, desde seu nascedouro prosaico,
sem lei e sem nada, nos terrenos frios das escolas e fábricas, até sua prá-
tica nos engalanados estádios de hoje, o futebol é assim: um momento de
amor desmedido. Em todos os tempos, os deuses da bola – Pelé à frente
– compeliram o mundo a recitar seu catecismo em liturgia universal. Ne-
nhum homem, em qualquer quadrante do planeta, em algum momento de
sua vida, terá deixado de chutar uma bola. Vale arriscar uma jura. Com
habilidade, o autor costurou sua história, despindo-a de penduricalhos tão
comuns em situações análogas. Às favas com os paetês e vidrilhos, que o
futebol, por sua seriedade, dispensa tais adornos. É verdade que os aspec-
tos lúdicos não foram desprezados, nem as cores de aquarelas colegiais
deixaram de tingi-lo como resultado de nossas imaginações.
*Teixeira Heizer é jornalista e autor de O Jogo Bruto das Copas do Mundo.

Teixeira Heizer 9
Prefácio

Talvez, por seus compromissos acadêmicos, Agostino tenha mergu-


lhado nas profundezas das pesquisas responsáveis, desnudando aspectos até
aqui impermeáveis ao conhecimento humano. O texto fluente ancorou-se
em ingredientes de caráter sociológico, numa convergência em que a reli-
giosidade, a política e outros que tais avultam aos olhos dos leitores, num
lance de grande fascínio, magnetismo mesmo. Pode ser que o andamento
escape do tecnicismo jornalístico, cujos moldes têm norteado uma imensa
variedade de trabalhos que emolduram as coloridas prateleiras das livrarias.
Não é um livro sobre futebol. É o livro, desculpem-me a síntese preguiçosa.
Perpassam por suas páginas fatos até aqui ignorados por autores de nomeada.
Mesmo os que se atreveram a desvendar o secretismo do hermético mundo
da bola. E tudo é feito sem grandes alardes, embora não sejam descartados
enfoques que vão do contundente ao pitoresco.
A linguagem é substantiva; o texto, adjetivo. A retórica dos declarantes
é reprodução necessária, não para confeitar a história, mas para compô-la com
credibilidade, embora dela se possa discordar. Aquele Barão de Coubertin, de
cima de hipócrito olimpismo, assegurava que o ideal no esporte não era vencer,
mas competir. Nós, vivos de hoje, não pensamos assim. Por mais frágeis que
sejam nossas barricadas, delas partimos em direção aos triunfos consagrado-
res. Nem precisamos parodiar declarações do Duque de Wellington, aquele
que assegurou ser a vitória de Waterloo, quando as forças napoleônicas
malograram sonhos franceses, germinada no futebol das escolas de Eton,
onde dez anos antes os estudantes de então, guerreiros das batalhas de
Bonaparte, iniciavam-se na prática do esporte bretão. Ainda que se trate
de uma impropriedade histórica, vale a transcrição.
A política aproveitou-se do futebol e enveredou-se por um viés
estreito, mas oportuno. O líder fascista Benito Mussolini empolgou o
mundo com seu time campeão de 1938. Poucos sabem que Giuseppe
Meazza, hoje nome do grande estádio do Milan, teve que erguer o braço,
na emblemática saudação fascista, diante de um desconfortado presidente
francês, Lebrun, ao receber a Taça Jules Rimet, em Colombes-França.
Também a história nos remete àqueles momentos que antecederam a de-
cisão, quando os jogadores da Azurra foram incentivados pelo Duce com
um cartão de síntese ameaçadora: vincere o morire. O livro de Agostino
revolve a história com seriedade.
E que dizer do parceiro de aspirações sanguinárias e hediondas,
o sinistro Adolf Hitler, que gastou mundos e fundos para fazer relações

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Vencer ou Morrer

públicas às custas das bicudas chuteiras alemãs? Mas o esporte soube


rejeitá-lo ao menos duas vezes. A primeira, nos Jogos Olímpicos de Berlim.
O negro Jesse Owens mandou às favas suas loucas teorias, paraninfadas
por Goebbels, Göring, Speer e companhia, em direção à eugenia da raça,
doutrina que poderia contaminar o mundo branco dos idos de 1930. E
volta à memória dos mais antigos, também, o sinistro Anschuss que, além
de absorver a Áustria, tentou, na garupa, anexar o seu alegre futebol.
Recorde-se a reação patriótica dos craques que se negaram a servir ao
nazismo, entre eles Sindelar, por sua magreza apelidado O Homem de
Papel. Suicidou-se, mas não jogou.
Em Londres, em 1966, a imagem do argentino Rattin, expulso, esmi-
galhando a bandeira inglesa, que assinalava o corner do campo, representava
mais que a revolta dos corações argentinos, parecendo mesmo, a exemplo
de Maradona & Cia em jogo vitorioso contra os ingleses anos mais tarde,
uma vingança – no caso de Rattin, antecipada – pela trágica derrota na
guerra por duas pedras de gelo ao sul da Patagônia, as Malvinas. E mais:
doze anos após, os gemidos dos torturados presos políticos, ali mesmo,
nas masmorras da Escola de Mecânica da Armada, próximas ao estádio
de Nuñez, onde a Argentina vencia sua primeira Copa do Mundo, num
quadro típico de um tango que bailava nas pautas tingidas a sangue.
Al compaz, naturalmente.
Quem não quiser atravessar o Rio da Prata pode se assustar, também, com
o sufoco dos gritos de gol que não foram ouvidos pelos presos políticos brasilei-
ros, oito anos antes, no México, quando Pelé etc. destroçaram seus adversários
de todos os quadrantes do mundo. Recorde-se como símbolo de uma época de
chumbo, em contraponto, a imagem do presidente Garrastazu Médici, rádio de
pilha ao ouvido, a vibrar com os feitos patrícios em campos astecas, tendo ao
fundo a linda marchinha Pra Frente Brasil, de Miguel Gustavo.
O autoritarismo estava absolvido?
Geopolítica e identidade nacional, subtítulo que condensa fatia
robusta da história do futebol, encapam um trabalho fecundo de Gilberto
Agostino – porque se move com a marca da competência –, que interessará
não só ao público esportivo, como, sobretudo, aos universitários, neces-
sitados de um livro como esse que já vai à luz da publicidade.
A Igreja subiu na garupa da novidade. É só recordar o arcebispo de
Glasgow ao paraninfar jogos visando a obtenção de fundos para crianças

Teixeira Heizer 11
Prefácio

das missões africanas. O futebol, antes da virada do século, já estava


canonizado na Escócia, bentos os seus praticantes. Até hoje, é cortejado
por todas as linhas religiosas, sem que se ocultem os feitiços brotados em
terreiros pouco confiáveis. É a doutrina da bola. Tão poucas regras e tão
poucos magistrados controlam, ou não, confrontos geradores de emoções
que rompem fronteiras como se elas fossem construídas sobre bases de
papel crepe. E elas não são propriedade de seus praticantes, avançando sem
pedir licença pela população que habita ordinariamente as arquibancadas:
a torcida. Diga-se que esta, muita vez composta de pacatos cidadãos, até
transformou-se em exércitos de malfeitores, insurgindo-se não só contra as
normas que devam reger a sociedade esportiva, como contra as leis penais.
E Agostino traduz esse estado d’alma com desusada competência.
De repente, salta dos campos de jogos, palcos de feitos épicos imor-
redouros, para a revolução que se desenrola, transformando o romantismo
das épocas passadas, sobretudo as do pós-guerra, em tempos calculados
na gigantesca parafernália eletrônica que preside o mundo moderno. É o
futebol.com do novo século. No seu capítulo que fala de mundialização e
mídia, são reveladas as novas regras, pelas quais fantásticas organizações
econômicas hão de dizer – e já dizem – quais são os novos patrões, su-
cessores de Coubertin, Rimet etc. Aliás, de alterações incidentais para as
transformações quase globais, foi um pulo. Na metade do século, precisa
Agostino, o advento da televisão deixou o rádio e suas transmissões fan-
tásticas para trás, sepultando um estilo consagrado nos quatro cantos do
mundo. Ah!, que saudade de Gagliano Neto, Rebelo Júnior, Pedro Luiz,
Édson Leite, Oduvaldo Cozzi, Antonio Cordeiro e Valdir Amaral – para
aludir apenas aos microfones do Rio e de São Paulo – poetas de estilo
barroco, que encantaram as tardes de domingo dos setentões de hoje,
jovens malandros de ontem.
E volto a Agostino, quando ele traduz a ascendência da mídia,
sobretudo a eletrônica, como pilar principal da nova era, que cheira ao
mercantilismo, aprisionando os principais jogadores e, paradoxalmente,
tornando-os reféns da sua própria riqueza. No arremate de seu oportuno
texto, o autor é explícito ao nos falar de ditadores sanguinários, políticos
oportunistas e cenas diabolicamente arquitetadas nos desvãos da vida.
Mas o intelectual dá lugar ao esportista para torcer, ardentemente, pelo
reencontro da poesia perdida. Oxalá consiga.

12 Teixeira Heizer
Vencer ou Morrer

Apresentação

Francisco Carlos Teixeira Da Silva*

O Brasil é o país do futebol – esta é uma assertiva aceita univer-


salmente e endossada por nomes como Pelé, Roberto Carlos, Ronaldinho
ou Romário. Entretanto, poucos, na verdade muito poucos, trabalhos de
pesquisas surgiram na universidade brasileira sobre a maior paixão nacional.
Mesmo o mundo da literatura brasileira, onde proliferaram os diversos
tipos nacionais, as mais diversas profissões e esportes, pouco ousou pro-
duzir uma análise profunda do futebol, do jogador ou mesmo do torcedor.
Coube em verdade à MPB, mesmo de forma discreta, cantar a ginga, o
bailado e o gênio do brasileiro no campo verde, seja em Lamartine Babo
ou Wilson Batista, seja em Chico Buarque ou Sérgio Ricardo, como na
memorável incompreensão de público na denúncia do jogo sujo dos car-
tolas em Beto Bom de Bola.
Aos poucos o cinema começou a tratar o futebol, no início como
tragicomédia e depois como drama, retratando o jogador e seu dedicado
torcedor. Foi assim que, de forma tímida, driblando o preconceito, dando
um carrinho na arrogância acadêmica, que o futebol achou um cantinho,
uma meia área, no convívio universitário. O primeiro tempo foi dominado
pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro, com Leite Lopes armando o
meio de campo, e em seguida com o escrete animado por Maurício Murad,
vestindo a camisa da UERJ. Esforço original, seminal e intermitente, nem
sempre compreendido e nem sempre continuado. Buscava-se o estatuto
teórico não só para o futebol, como para o conjunto dos estudos sobre os
esportes, oscilando-se entre o quadro técnico das faculdades de educação
física, a antropologia ou a ciência política.

* Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/Programa de Pós-graduação


em História Comparada, IFCS/UFRJ.

Francisco Carlos Teixeira Da Silva 13


Apresentação

No intervalo, e seguindo uma boa tradição da crônica brasileira,


com Nelson Rodrigues ou João Saldanha, surgiram jogadas geniais,
grandes passes, que fundam uma linguagem brasileira para o futebol,
abandonando-se de vez os anglicismos e nacionalizando a maior paixão
– e não vamos discutir aqui as demais... – do brasileiro. Ali, bem dentro
da pequena área, entre a crônica esportiva e o estudo acadêmico, foi reto-
mado o livro fundador do quadro teórico do futebol brasileiro: O Negro
no Futebol (1947), de Mário Filho, este mesmo um dos “inventores” do
futebol-paixão nacional.
De forma paradoxal foi preciso que as ciências sociais, já no se-
gundo tempo, encontrassem nas suas congêneres europeias a dignidade
acadêmica, até então insuspeita, para que os estudos sobre esportes, em
especial sobre o futebol, pudessem rolar a bola a céu aberto, sem medo
de firulas ou rendados. Descobriram-se Anthony Giddens, Norbert Elias,
Peter Gay, George Mosse e Peter Reichel como grandes pesquisadores,
formuladores teóricos originais, que se ocuparam de forma criativa e origi-
nal com os esportes, suas relações com o Estado e a Sociedade, da mesma
forma que surgiam novos e ricos corpos documentais, tanto nos arquivos
tradicionais, agora revisitados, quanto em novos arquivos, em especial nos
próprios clubes esportivos, além de uma nova e deliciosa tradição oral,
cheia de causos, anedotas e conversa fiada. Davam-se, assim, as condi-
ções para a formação de novos times de pesquisa e preservação cultural,
verdadeiros craques que realizam na pesquisa suas grandes jogadas, como
na UNICAMP, ou o grupo autodenominado Batepronto, do Laboratório
de Estudos do Tempo Presente/TEMPO, do IFCS/UFRJ, onde o autor,
Gilberto Agostino, realiza suas pesquisas sobre esporte e política.
A opção de Gilberto Agostino ao abordar o futebol foi clássica:
trata-se de aclarar, ao longo de uma periodização que remete à história do
tempo presente, as relações entre Estado e futebol, muito especialmente
os Estados autoritários, as formas de apropriação do prestígio de um es-
porte de massa e a tentativa de galvanizar em proveito próprio a fama de
jogadores ou escretes. Numa outra abordagem, mais polêmica, busca o
autor a relação entre a constituição de selecionados nacionais e a projeção
de um imaginário sobre a Nação, como verdadeiro ersatz para as grandes

14 Francisco Carlos Teixeira Da Silva


Vencer ou Morrer

disputas internacionais. Da mesma forma, alguns selecionados – como


na Itália, Brasil, Uruguai, Argentina – constituíram-se claramente em ele-
mentos paralelos, embora em nada secundários, na consolidação da ideia
de Nação, do orgulho e da consciência de ser parte de uma comunidade
nacional. Gilberto Agostino, com uma redação agradável e sem sapato
alto, nos apresenta de forma clara e direta, na presente obra, uma verda-
deira geopolítica mundial do futebol, ao lado de uma economia política
dos esportes nos regimes autoritários.
Assim, com algum atraso, embora emplacando um golaço, os estu-
dos universitários, desta feita através do Laboratório de Estudos do Tempo
Presente/TEMPO entram em campo para uma grande jogada: Vencer ou
Morrer, um livro sobre a paixão de todos nós.

Francisco Carlos Teixeira Da Silva 15


Ninguém sabe ao certo de quem partiu a ideia, mas esta consistia em atacar os alemães a partir
de uma bola chutada em direção à trincheira inimiga. A prática, apesar de arriscada, parecia
magnetizar os soldados, fazendo do campo adversário uma espécie de gol simbólico.
Vencer ou Morrer

CAPÍTULO 1

BATALHAS NO CAMPO, BATALHAS NA VIDA

Oh! Estou convencido que o futebol vos dará


iniciativa (...). Se vós sereis mais tarde um grande co-
merciante, um distinto jornalista, um ousado explorador,
um industrial previdente... para tudo isso é necessário
que sejais um homem de iniciativa, um bom jogador de
futebol, não tendo medo dos golpes, sendo sempre ágil,
rápido nas decisões, conservando o sangue frio. É ne-
cessário ser autocontrolado, ou seja, exercer o governo
de si mesmo... Eu adoraria ver vossa atenção fixar-se
em coisas distantes, em obras de iniciativas, em homens
de ação; eu gostaria que vós tivésseis a ambição de
descobrir a América... O futebol é o prólogo de todas as
coisas. Tudo isso, posto no mesmo saco, parte do mesmo
programa: é a educação do ‘ir sempre adiante’.
(Barão de Coubertin)

Nunca antes havia presenciado cenas de paixão


e entusiasmo como a da conquista da vitória. Quando
se hasteou a bandeira uruguaia, os jogadores da equipe
Campeã Mundial choravam e toda a nação parecia estar
unida e orgulhosa por aquele triunfo.
(Jules Rimet)

Gilberto Agostino 19
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

Atribui-se ao Duque de Wellington a seguinte exortação após a


vitória sobre o exército napoleônico, em 1815: “A Batalha de Waterloo
foi vencida nos campos de futebol de Eton”. Referia-se o nobre inglês a
um dos tradicionais colégios da Inglaterra, onde ele próprio estudara, e a
uma das práticas mais excitantes para seus alunos. Um jogo em que a bola
era arremessada furiosamente contra uma parede. Para um observador de
hoje, algo que lhe traria a momentânea sensação de que todos jogavam
contra todos. Ainda não se tratava do futebol moderno, com regras uni-
versalmente definidas, uniformes padronizados, esquemas táticos e tantas
outras especificidades. E muito menos de um jogo permeado pelo espírito
do fair play, com um juiz a coibir desde simples deslizes até os excessos
mais violentos. Na verdade, as palavras de Wellington foram durante um
bom tempo não só banalizadas como mal interpretadas. O Duque não se
referia necessariamente ao espírito de equipe. Afinal, a esta altura, o fute-
bol estava bem longe de ser uma expressão da disciplina coletiva ou algo
do gênero. Também não se tratava da mera comparação entre esporte e
guerra, como logo tornar-se-ia um revisitado lugar-comum. Para o homem
que vencera Napoleão, a tônica estava no espírito todo particular que se
configurou no processo educacional do gentleman inglês. Tratava-se da
possibilidade concreta de competir e buscar através do esporte não só a tão
almejada honra como também a sensação de lidar com um objetivo que
conduzia ao aperfeiçoamento. Neste sentido, a experiência vivenciada pelo
esportista era capaz de torná-lo apto a liberar, no momento oportuno, as
descargas de violência contida por uma sociedade tão rigidamente marcada
pelo controle das pulsões. Portanto, cultivar a frieza, a determinação e o
autocontrole, capacitando-o a vencer o inimigo sem a menor piedade. Foi
este o sentido capturado por Wellington ao mencionar o futebol em Eton,
uma vez que via no campo de jogo um espaço possível para a preparação
do homem disposto a enfrentar desafios, que poderiam ser militares – como
na visão de muitos outros nacionalistas do século XIX –, imperialistas,
como tão bem expressou o Barão de Coubertin, ou mesmo morais, como
pensavam os reformistas e educadores que teorizaram sobre o papel dos
esportes na formação da conduta humana.

20 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

Como bom etoniano, Wellington sabia que jogar futebol em Eton,


ou em qualquer outra escola inglesa da primeira metade do século XIX,
era antes de tudo uma prova de arrojo e rudeza tipicamente masculi-
na, quase que um rito de passagem. Reclamar de um chute na canela
ou qualquer outro tipo “convencional” de agressão era algo que não
condizia com alguém que aspirava ser reconhecido como um homem
talhado para respeitar as regras do jogo, mesmo quando estas sugeriam
uma espécie de vale-tudo. Em 1825, dez anos após Waterloo, o mesmo
colégio foi palco de uma demonstração do que o código esportivo era
capaz de representar: em uma luta contra um outro aluno da instituição,
o filho de Lord Shatesbury foi morto diante de um público que assistiu
extasiado a uma refrega de quase duas horas e meia de duração. Apesar
do desconsolo, Shatesbury recusou-se a invocar sua posição ou sua
influência para encontrar os responsáveis pela morte do filho. Eram as
regras do jogo. Um combate leal entre os pares. Nada podia estar acima
deste código de honra.
Desvencilhando-se de algumas tradições, não demorou muito
tempo para que o futebol deixasse de ser uma prática educacional das
escolas inglesas e se tornasse o esporte mais popular do país, com forte
apelo para o proletariado urbano. Já em 1855, no condado de York, em
Sheffield, centro industrial de aço, foi fundado o primeiro clube inglês
voltado especificamente para o futebol. Poucos anos mais tarde, em
1863, em Londres, em um encontro histórico na Taverna dos Maçons
Livres, representantes de várias escolas concordaram em abrir mão de
suas idiossincrasias em relação a como jogar e estabeleceram regras co-
muns, codificando o que era ou não permitido. Nas calorosas discussões
que se seguiram em busca da regra comum, entrou em pauta a definição
do número de participantes, um requisito fundamental para estabelecer
um novo conceito de disciplina. Talvez não seja exagero afirmar que o
futebol moderno tenha nascido quando se fixou claramente a demarcação
entre aqueles que jogavam e aqueles que assistiam ao jogo, superando
os tradicionais embates durante os jogos de rua, nos quais qualquer um
podia entrar a qualquer momento. E os onze representantes de escolas
decidiram que cada equipe deveria ter onze participantes, um número
inicialmente casual mas que acabaria se impondo aonde quer que o jogo

Gilberto Agostino 21
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

à moda inglesa fosse praticado. Resolvida tal questão, novas discussões


envolveram aquilo que se convencionaria chamar de contato físico entre
os jogadores, procurando determinar qual a dose certa de violência a ser
liberada e qual o momento exato de parar.
Muitas mudanças estavam por vir nos anos seguintes, mas permane-
ceu dos tempos das escolas a ética toda particular em torno do respeito às
regras que envolviam a violência. Não por acaso o que seria denominado
em seguida de offside já era chamado pelos etonianos de sneaking – signi-
ficando algo como inescrupuloso –, não representando uma das realidades
possíveis de uma partida, mas, sim, a prova de um ato baixo, antes de
tudo desrespeitoso, em relação aos tradicionais códigos de honra. Não
por acaso, a figura do juiz alcançou uma projeção determinante para os
destinos do jogo. Para o sociólogo Norbert Elias, o juiz veio representar a
materialização da codificação das regras do futebol moderno, respondendo
pela delicada missão não só de controlar o tempo de duração das partidas
(um poder nada desprezível), como também de equilibrar o nível de tensão
que o jogo exige (um dos aspectos centrais de sua emoção), mantendo
sob controle o índice de violência entre seus jogadores. Nesse sentido,
uma das dimensões do esporte moderno seria estabelecer a reorientação
da violência espontânea – e sua consequente indisciplina – para formas
lúdicas e organizadas. Municiado por inumeráveis cartilhas e manuais, o
que um historiador chamou de obsessão burguesa pela regulamentação1 ,
o árbitro assumia uma função absolutamente impensável nos primórdios
do jogo, época em que nenhum jogador poderia de fato imaginar que
haveria necessidade de alguém para regular o que ocorria em campo, já
que os próprios capitães controlavam as faltas de sua equipe. Primeiro nas
tribunas, não demorou muito tempo para que o referee atuasse diretamente
em campo, correndo junto aos jogadores e demarcando seu espaço no
andamento da partida, uma atividade que em muito breve já não poderia
ser realizada sem sua presença.
Em 1871, mesmo ano em que ocorreu a ruptura entre os futebo-
listas e os rugbymen, a Football Association (FA) procurou consolidar
a originalidade do jogo, idealizando uma competição entre os princi-
pais clubes ingleses. Inaugurava-se a Challenge Cup (Copa-Desafio),

22 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

dando origem à Copa da Inglaterra. No ano seguinte, foi disputada a


primeira partida internacional de que se tem notícia. Em campo – aliás,
originalmente um campo de cricket –, ingleses e escoceses empataram
sem gols.
Acompanhando as mutações no universo do proletariado, o esporte
invadiu decisivamente o conjunto de referenciais da classe trabalhadora.
Boa demonstração desta realidade pode ser constatada a partir do perfil do
público nos estádios, que deixou de ser formado pelas classes médias já
no final do século XIX. Na finalíssima da FA Cup de 1887, 27.000 pessoas
marcaram presença no Crystall Pallace. Menos de vinte anos depois, em
1901, a final da mesma competição contava com um público de cerca de
110.000 espectadores, formado por operários em sua maior parte. Fator
determinante para a interação entre este segmento social e o esporte foi a
gradativa ampliação dos horários de lazer, conquista trabalhista alcançada
no decorrer da segunda metade do século XIX. A folga após o meio-dia
de sábado marcaria para sempre os horizontes esportivos na Inglaterra,
adaptando-se perfeitamente às convicções protestantes em relação à im-
portância do domingo.
Richard Hoggart afirmou que nas rodas de conversas do operariado
masculino inglês apenas dois temas de fato chamavam a atenção de todos:
sexo e esporte2 . É relevante que no início de 1880 a Inglaterra já contasse
com três periódicos nacionais dedicados às práticas esportivas: Sporting
Life, Sporting Chronicle e Athletic New, demarcando a importância de
uma atividade que, para muitos leitores, era bem mais atrativa do que os
assuntos discutidos no Parlamento. Uma caricatura em 1911, ano em que
parlamentares ingleses passaram a receber remuneração, demonstrava o
peso da questão, apresentando uma ilustração em que um trabalhador dizia
para o outro: Gente como nós... tem que pagar a ele 400 libras por ano.
Fico louco só de pensar que poderíamos ter dois zagueiros de primeira
classe pelo mesmo dinheiro.3 
Apesar de separados por todas as barreiras possíveis e imagináveis,
trabalho e lazer se completavam, não sendo poucos aqueles que viam o
último como uma compensação para os sacrifícios que o primeiro impunha.
Neste sentido, o futebol – por sua capacidade de representar mimeticamen-

Gilberto Agostino 23
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

te as experiências existenciais do dia a dia – acabava por estabelecer uma


ocasião em que pulsões e emoções podiam assumir um efeito catártico e
libertador, representando um espaço autorizado para quase todas as formas
de extravasamento, assumindo, nas palavras de Eric Hobsbawm, o papel
de uma religião profana do universo do proletariado.
Tão logo as regras foram consolidadas na Inglaterra, não demorou
muito tempo para que o futebol ganhasse projeção em toda a Europa, di-
fundido a partir da malha de interesses econômicos do capitalismo inglês.
País de Gales, Escócia e Irlanda criaram suas próprias associações fute-
bolísticas na década de 1870. A esta altura, para qualquer observador de
seu tempo, a força do futebol era um fenômeno avassalador, ultrapassando
os horizontes europeus e cativando admiradores em todas as partes onde
os interesses imperialistas se manifestavam. Comerciantes, engenheiros
de estradas de ferro, instaladores de linhas de telégrafo, estudantes ou
educadores, marinheiros ou soldados, todos eram jogadores em poten-
cial, fazendo demonstrações do jogo em cidades portuárias (Hamburgo,
Gênova, Rio de Janeiro, Buenos Aires), centros econômicos (Paris, Mi-
lão, Viena) ou qualquer outra área onde a modernidade se fazia sentir,
incluindo zonas de litígio entre as potências capitalistas. Foi este último,
por exemplo, o sentido da difusão do futebol na África do Sul em finais
do século XIX. Apesar de chegar à região como uma prática pedagógica
das instituições de ensino frequentadas pelos filhos dos colonizadores,
com a eclosão da Guerra dos Bôeres (1899-1902) o futebol ganhou um
impulso decisivo, extrapolando os muros dos elegantes colégios da elite
branca e sendo difundido entre os nativos pelos soldados ingleses que
atuaram no conflito.
Já entre os estudantes que difundiram o jogo pelo mundo, papel
relevante foi desempenhado por aqueles que estiveram na Inglaterra ou
outras nações europeias em que conheceram de perto o futebol à inglesa.
De volta aos países de origem, muitos levaram bolas e outros apetrechos,
contribuindo para que o esporte fosse conhecido. De certa forma, eram
ingleses os referenciais para se jogar o verdadeiro jogo. E não só pelas
regras. A Inglaterra era de fato a grande monopolizadora de todo o material
esportivo e pouquíssimas regiões da Europa não dependiam dos equipa-

24 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

mentos ingleses. Neste sentido, passando os olhos na escalação de dois


clubes de futebol chilenos que entraram em campo em Viña del Mar, em
1893, para um desafio entre cidades, fica bem transparente o peso que os
ingleses possuíam neste momento de difusão do jogo:

Valparaíso: Webb, Mcnought, Reynolds, Roberts, Bailey, Crangle,


Baldwin, Woodgate, D Scott, Fleming, Simpson.
Santiago: P.Scott, McColl, Coast, Madden, Rogers, Anderson,
Hood, Melrose, V Scott, Jones, Allen.4 

De forma geral, pode-se afirmar que a difusão do futebol, apesar


de manter o fio comum com os interesses do capitalismo, acabou as-
sumindo caminhos bastante diversos. Aspecto nem sempre lembrado a
contento, em muitos lugares a presença de religiosos foi fundamental.
Mesmo na Inglaterra, esta realidade já era bastante expressiva antes de
o esporte ganhar o mundo. Além dos vetustos colégios e dos enevoados
pubs – estes últimos frequentados pelos próprios alunos veteranos (os old
boys) –, a paróquia assumiu um papel crucial na formação dos clubes de
futebol do final do século, tendo como exemplos significativos o Aston
Villa, Blackpool e o Bolton Wanders. Na Escócia, foi a vocação religiosa
o pano de fundo para uma das maiores rivalidades da história do futebol
moderno: Celtic e Rangers. Tendo como um dos idealizadores um pastor
chamado Walfrid, que pretendia unir a comunidade irlandesa local em
torno de um clube de futebol, o Celtic foi criado em janeiro de 1888. Um
dos patrocinadores do cube foi o Arcebispo de Glasgow, que fez questão
de inscrever na ata de fundação o objetivo principal do clube: Fornecer
fundos às assembleias da sociedade Saint-Vincent de Paul d’ East End
no intuito de manter a assistência alimentar às crianças necessitadas das
missões de Saint-Marie, Saint-Michel e Sacré-Coeur.5 
Tão logo o clube ganhou projeção, os jornais escoceses ironizaram
com caricaturas a presença marcante de padres nas arquibancadas, prin-
cipalmente no Celtic Park, estádio inaugurado em junho de 1888. Alguns
anos mais tarde, em 1893, quando o Celtic conquistou o tricampeonato,
um jornal chegou a publicar uma mensagem que havia sido enviada a
Roma por um dos dirigentes da equipe: Vossa Santidade, nós ganhamos as

Gilberto Agostino 25
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

três Copas. Tal afiliação religiosa contribuiu para que o clube se tornasse
desde os seus primeiros tempos uma representação política, sendo para
os imigrantes irlandeses na Escócia um referencial para assuntos que não
podiam ser esquecidos, como a Home Rule (autonomia irlandesa). Não
por acaso, juntamente com o Arcebispo de Glasgow, um dos primeiros
patronos do clube foi um antigo membro do Sinn Fein, Michael Davitt.
Momento emblemático desta identidade foi registrado na primeira turnê
que o clube fez nos Estados Unidos, quando os dirigentes exigiram que
fosse tocado o hino irlandês e não o escocês. Nesse sentido, não surpre-
ende que a identidade político-religiosa do Celtic tenha gerado a reação
de grupos tradicionais na Escócia.
Fundado dezesseis anos antes, o Rangers FC nascera marcado pelos
traços da lealdade franco-maçônica, muito mais expressiva entre escoceses
do que entre ingleses. Este clube acabaria catalisando a identidade não sim-
plesmente protestante, mas fundamentalmente anticatólica. No início do
século XX, a tensão entre os clubes, e principalmente entre seus torcedores,
explodiu, tornando o confronto entre eles – que viria a ser denominado de
Old Firm – um dos principais clássicos do futebol europeu.
Na Itália, existem notícias que, em 1880, colégios jesuítas haviam
utilizado o futebol como meio pedagógico, sendo possível que as insti-
tuições congêneres da América do Sul tivessem introduzido o jogo bem
antes da chegada dos “promotores ingleses”, embora seja reconhecido
que só mesmo com estes o esporte assumiu o formato moderno tal qual
definido na Inglaterra. De qualquer forma, em vários continentes, em
realidades religiosas das mais diversas, foi a Igreja uma importante pro-
motora da mensagem esportiva, favorecida não só pela força ideológica
de que dispunha, como também pelos terrenos em que as partidas podiam
ser disputadas.
Além da dimensão religiosa, outra realidade também bastante sig-
nificativa para a difusão do jogo foi a sua promoção através das próprias
companhias capitalistas, em muitos casos considerando o esporte um
mecanismo de disciplina, desenvolvimento físico e moral dos trabalha-
dores. Em Sochaux, onde Peugeot criou uma equipe profissional, o jogo
era considerado, antes de tudo, um meio disciplinar:

26 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

A sociedade esportiva não é e nem deve ser em nada compa-


rável à nossa sociedade democrática do século XX... Se for possível
comparar tal estrutura a outras sociedades conhecidas, parece-me
bastante adequado [dizer que] se trata da vida militar e do regime
em vigor a bordo das naves da marinha...6 

Para alguns industriais, a principal vocação do esporte era, efetiva-


mente, a potencialidade propagandística que dele se podia extrair. Assim
pensava o empreendedor italiano Piero Pirelli, um dos primeiros a olhar o
esporte por esse viés publicitário. Em breve, apareceriam reclames com os
jogadores apresentando desde a imprescindível brilhantina para o cabelo
até os últimos modelos automobilísticos. Assim, em um primeiro momen-
to, muitos círculos socialistas encararam o jogo como mera expressão da
manipulação consumista e alienante da burguesia. Neste sentido, a grande
questão que envolvia o esporte em geral era o desperdício do lazer dos
trabalhadores. Em 1925, o Partido Socialista Italiano afirmava:

Segundo nossa concepção, o emprego do segundo terço do


dia – aquele entre as oito horas de trabalho e as oito horas do des-
canso reparador – é muito importante... É somente durante essas
horas intermediárias – que os franceses chamam de lazer (palavra
quase intraduzível) – que começa e se expressa a verdadeira vida do
trabalhador como homem, cidadão, membro de sua própria classe,
ou ainda como socialista e preparador da sociedade socialista.7 

Na verdade, entretanto, a formação de times a partir de referenciais


operários, sem maior interferência do patronato, também acabou sendo ex-
pressiva em muitas situações. No Ruhr, o Schalke 04 nasceu marcado pela
sociabilidade operária, configurando uma realidade que se faria presente
em vários clubes da Alemanha. Na Argentina, algumas agremiações nas-
ceram com motivações não só operárias, mas claramente questionadoras
em relação ao modelo vigente. O Argentino Juniors é um caso exemplar,
uma vez que a equipe surgiu em 1905 da fusão de dois modestos clubes:
os Mártires de Chicago e o Primeiro de Maio, duas evidentes referências
às lutas dos trabalhadores contra a ordem capitalista. Não por caso, a cor
escolhida para a camisa da equipe foi a vermelha. No mesmo ano, ainda

Gilberto Agostino 27
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

em Buenos Aires, empregados do comércio decidiram fundar um clube


sem a interferência dos patrões endinheirados de Avellaneda, surgindo o
Independiente.
Além de palco possível de expressão para as lutas de classes, também
esteve no olho do furacão futebolístico a questão nacional. Divulgado na
espiral chauvinista que marcou a últimas décadas do século XIX, o futebol
não foi bem recebido em toda a parte, suscitando inúmeras reações, até
porque os ingleses, sempre que podiam, faziam questão de lembrar que
eram os inventores do jogo. Volta e meia apresentavam-no como uma
criação no mesmo nível que o próprio idioma inglês, o Meridiano de
Geenwich e a Origem das Espécies, de Charles Darwin, recusando-se a
ingressar na Féderation Internationale de Football Association (FIFA),
fundada em 1904, em Paris, que representava os interesses futebolísticos
de sete estados europeus.
Na América do Sul, os movimentos contrários ao futebol encon-
traram repercussões já no início do século XX. Nesta época, em Buenos
Aires, o jornal anarquista La Protesta se colocava contra a perniciosa
idiotização através do chute reiterado no objeto redondo.8  No Brasil, além
de manifestações anarco-sindicalistas, merece destaque o debate travado
na imprensa entre os escritores Lima Barreto, um dos organizadores da
Liga contra o Futebol, e Coelho Neto, não só entusiasta do esporte como
também desvairado torcedor, principalmente quando seus filhos Mano e
Preguinho estavam em campo. Na mesma época, mesmo sem participar
do «entrudo futebolístico» que ganhava as páginas da imprensa, o escritor
Graciliano Ramos também questionava o esporte bretão:

Temos esportes em quantidade. Para que metermos o bedelho


em coisas estrangeiras? O futebol não pega, tenham a certeza. Não
vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de im-
portância. Não confundamos. As grandes cidades estão no litoral.
Isto aqui é diferente, é sertão.9 

Na Europa, onde as rivalidades nacionalistas eram bem mais


viscerais, a repulsa ao futebol foi bastante relevante. Na Alemanha, por
exemplo, muitos viam o jogo inglês como coisa de macacos desengonça-

28 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

dos e desnutridos. Um ensaio publicado em 1875, em Berlim, chamava o


futebol de doença dos ingleses (Englische Krankheit), incompatível com o
ideal do aprimoramento físico desenvolvido pela escola prussiana. Para os
defensores da superioridade germânica, tal modalidade esportiva era uma
ameaça que poderia levar à degeneração. Insistiam que o aprimoramento
físico deveria seguir os pressupostos do pai da ginástica alemã, Friedrich
Jahn (1778-1852), sendo as associações de ginastas, alpinistas, lutadores,
marchadores e esgrimistas muito superiores aos clubes de futebol. Introdu-
zido no país em 1874 por um certo Konrad Koch, o jogo foi apresentado aos
estudantes do ginásio em Braunschweig como uma atividade recreativa.
Alguns anos mais tarde, já existiam adeptos suficientes para ser formada a
Associação de Futebol da Alemanha (DFB). Apesar da difusão do esporte,
os protestos dos conservadores alemães continuariam a crescer, ganhando
uma maior projeção quando, em 1900, em Tottenham, uma seleção alemã
foi batida pelos ingleses por 12X0, placar nada auspicioso em qualquer
circunstância, mas muito menos interessante em um momento crítico de
rivalidade anglo-germânica exposta indiretamente na Guerra dos Bôeres.
Entre os alemães, somente às vésperas da I Guerra Mundial é que muitos
dos preconceitos em relação ao jogo seriam superados. Escrevendo em
1910, R. M. Berry percebeu claramente a mudança de atitude que se
processava no meio militar germânico:

O futebol vem sendo encarado por muitos jovens oficiais


alemães como uma das melhores práticas esportivas no sentido de
cultivar a coragem nos homens, ensinando-os a adensar o caráter
ao mesmo tempo que lhes confere mais agilidade e iniciativa.10 

Nos três decadentes impérios do final do século XIX – Austro-


Húngaro, Russo e Otomano –, o futebol também gerou apreensão e des-
confiança, uma vez que as autoridades mais conservadoras viam no esporte
os ameaçadores germes da subversão. Temiam que a “doença dos ingleses”
incitasse o nacionalismo de grupos étnicos subjugados ou subvertesse as
tradições, como pensavam alguns líderes islâmicos. Durante muitos anos,
estudantes do Galatassaray High School, na Turquia, tiveram que jogar
às escondidas, como se estivessem praticando um ato criminoso. De certa

Gilberto Agostino 29
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

forma, para aqueles assustados com qualquer coisa vinda de fora – como o
sultão turco Abdülhamid –, o futebol era um corpo estranho, o que torna-
va um simples livro de regras literatura subversiva. Na realidade, alguns
destes temores reacionários tinham certo fundamento. Muitos jovens
nacionalistas se encontravam em associações esportivas para discutir suas
linhas de ação política e muitos clubes nasceram imbuídos desse espírito.
Fascinado com esta realidade, Gramsci sintetizaria mais tarde: O futebol
é o reino da liberdade humana exercida ao ar livre.

m m m

Resultado da hostilidade acumulada entre as potências europeias,


a Grande Guerra explodiu em julho de 1914. Iniciado o conflito, muitos
acreditavam que as ações militares seriam breves e as tropas estariam
de volta já no Natal. No primeiro momento, portanto, quase ninguém na
Europa envolvido diretamente com o futebol achou necessário interromper
definitivamente as competições oficiais. Estas transcorreriam por mais
algumas rodadas. Bastou que a realidade das trincheiras substituísse as
ofensivas e a guerra estacionasse nos campos vitimados pela fúria das
chuvas de agosto e dos obuses para que as impressões iniciais passassem
a ser uma distante lembrança. Para aqueles que viviam o dia a dia na linha
de frente, as expectativas de uma guerra rápida se viram mergulhadas
em uma angustiante paralisia. A existência se mostrava imersa em uma
sensação letárgica, traduzindo o desencanto em relação a toda euforia e
júbilo que marcaram as manifestações nacionalistas nos primeiros mo-
mentos do combate.
A vertigem do front se fez sentir, entre tantas e tantas vezes, na
primeira noite de Natal da guerra, quando os soldados ingleses e alemães
saíram das trincheiras e se confraternizaram durante algumas horas na
“terra de ninguém”, como era chamado o campo neutro que separava as
fortificações inimigas. Afinal, o Natal passava ser uma lembrança não
vivida, ainda assim esperada como a paz possível, mesmo que efêmera.
Em meio à troca de cigarros, bebidas, chocolates, houve notícia de que
alguém deu o pontapé inicial, fazendo um jogo de futebol emergir entre

30 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

as crateras de lama. Enquanto alguns relatos falam em uma lata de carne


sendo chutada de um lado para o outro, há quem diga ter sido utilizada
uma bola de verdade, o que não seria tão difícil, uma vez que, ao longo
de todo o conflito, centenas de bolas foram enviadas ao front.
Mais tarde, quando foram produzidas histórias oficiais, juntamente
com a avalanche de memórias escritas pelos soldados, surgiriam informa-
ções desencontradas sobre o episódio. De qualquer forma, a despeito dos
comandos, que viram na trégua uma insana insubordinação, o episódio
contribuiu para abalar o processo de demonização do inimigo que vinha
sendo alimentado há tempos por uma propaganda maciça tanto na imprensa
quanto nos campos de treinamento. Como sugere as lembranças de um
recruta de Cheshire, testemunha daquele momento: Não havia animosida-
de entre nós, nem mesmo juiz, nem placar.11  Sem intermediários, fossem
eles os superiores, armas ou obrigações nacionais, naquele breve instante
os soldados se viram diante de um inimigo que não lhes parecia tão hostil
quanto se anunciara. Para muitos, o encontro só fizera causar ainda mais
inquietação quanto ao verdadeiro sentido da guerra.
Em meio a tudo isso, no próprio berço do futebol moderno, as dis-
cussões em torno dos esportes de massa ganhavam cada vez mais projeção.
Algumas vozes se levantaram, afirmando que, enquanto durasse a guerra,
esses perderiam sua razão de ser, tendo chegado a hora de o futebol se
recolher. Era o momento de valorizar a ginástica, prática esportiva que
conduzia ao verdadeiro condicionamento físico e à disciplina, tão ne-
cessários na linha de frente quanto em casa, diferentemente do futebol,
marcado pelo individualismo. Foi mais ou menos este o tom do discurso
de J. H. Thomas, membro trabalhista do Parlamento, a 7 de novembro
de 1914, em uma audiência em Londres, destilando sua indignação em
relação ao futebol, ao afirmar acidamente sobre os jogadores que ainda
não haviam se desligado de seus clubes para ingressar no exército: Ou
estes jovens não fazem ideia do momento que estamos vivendo ou eles
são covardes e traidores.12 
Em pouco tempo, um acirrado debate ganhou as páginas da grande
imprensa, uma vez que não foram poucos aqueles que consideravam um
absurdo mandar atletas despreparados para um combate em que as chan-

Gilberto Agostino 31
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

ces de sobrevivência seriam mínimas. A. F. Pollard estava entre os que


pensavam desta forma, escrevendo em The Times: Nós assistimos com
indignação e alarme à insistência da Associação em mandar os nossos
melhores homens para o inimigo.13  A despeito das acaloradas discussões,
o tempo encarregar-se-ia de mostrar o quanto o futebol poderia contribuir
para o esforço de guerra, assumindo um papel crucial para o Ministério
da Guerra, que – ao explorar as múltiplas manifestações em torno da inte-
gração nacional suscitadas pela mitologia esportiva – transformou o jogo
em uma de suas mais bem-sucedidas estratégias de integração nacional.
Uma das primeiras iniciativas nessa direção foi a ideia de alocar postos
de alistamento nos próprios estádios em que seriam realizados jogos im-
portantes. O Ministério também cuidou para que o horário de tais jogos
não coincidisse com o turno de trabalho nas fábricas, principalmente
daquelas de material bélico. Foi esta a tônica da preocupação que acabou
determinando que o jogo entre o Bradford City e o Norwich, pela FA Cup,
fosse disputado a portas fechadas.
Os resultados começaram a aparecer, embora em um ritmo lento
demais diante das necessidades que o momento exigia. William Joynson-
Hicks, membro conservador do Parlamento, pensou em algo mais agres-
sivo e, em pouco tempo, equipes formadas a partir de batalhões foram
convocadas para realizar partidas de exibição em diversos pontos do país.
Sua missão: cativar a simpatia da população e, se possível, angariar volun-
tários para o combate, usando o slogan: Jogue o Grande Jogo e se aliste
no Batalhão do Futebol. Afinal, em uma nação como a Inglaterra, onde
não havia alistamento obrigatório (pelo menos até 1916), cada partida de
futebol envolvendo astros-soldados podia literalmente representar sangue
novo para o front. Nesta hora, um cartoon – logo transformado em um
cartaz de propaganda – mostrava o emblemático Mr. Punch no gramado
de jogo, afirmando a um jogador de futebol com um ar professoral: Não
há dúvida que você pode ganhar dinheiro neste campo, meu amigo. Mas,
nos nossos dias, só há de fato um campo em que você pode alcançar
verdadeiramente a honra.14 
Mobilizado em janeiro de 1915, mereceu destaque especial o famoso
17º Batalhão de Middlesex, conhecido como Os Extremados. Como tantos

32 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

outros, sua função era simples: despertar o “nacionalismo adormecido”


através do futebol. Após quase um ano girando de norte a sul da Inglaterra,
o que permitiu que muitos moradores das distantes regiões rurais entrassem
pela primeira vez em contato com o esporte, Os Extremados cumpriram
seu papel até serem finalmente enviados à linha de frente. Uma vez na
França, a presença do batalhão de craques representou um poderoso meio
de propaganda, exatamente no momento em que o moral das tropas pre-
cisava de um reforço especial. Disputando a final da Copa das Divisões,
em dezembro de 1916, o 17º de Middlesex sagrou-se campeão, partida que
movimentou o monótono dia a dia do front. Entretanto, tal situação era
tida como especial para os soldados devido à sua grandiosidade e pompa.
Na verdade, não era tão nova assim e de fato só fazia alinhar-se com a
realidade da guerra.
Bem antes da chegada de qualquer espetáculo demonstrativo en-
volvendo equipes de futebol, o jogo já havia se tornado uma das poucas
diversões atrás da linha de combate, juntamente com a chance de flanar
pelas aldeias em busca de cerveja forte e pommes frites. Independentemen-
te dos esforços dos comandos, sempre capazes de explorar as inúmeras
variáveis suscitadas pelo esporte, o futebol parecia estar presente em toda
a parte. Mesmo para aqueles que haviam caído nas mãos dos inimigos, o
jogo também podia representar a possibilidade de recriar uma sociabilidade
alternativa. Foi o caso dos prisioneiros ingleses de Ruhleben, em Berlim,
que chegaram a organizar um campeonato extremamente disputado,
contando com um público de mais de mil espectadores em algumas de
suas partidas. Em linhas gerais, a mesma situação repetir-se-ia no campo
de Mathasusen, onde prisioneiros italianos chegaram a formar inúmeros
clubes e até mesmo disputar torneios.
Como é certo que a realidade da guerra não poupou ninguém, não
se pode esquecer que as baixas entre os futebolistas em combate não
foram desprezíveis. Algumas foram lembradas pelos familiares, outras
pelos torcedores, outras também pelo Estado. Neste último caso, entre os
ingleses, pode ser citado o zagueiro do Bradford, Donald Bell, que rece-
beu a Victoria Cross após cair morto em 1916. Já para os franceses, uma
perda muito sentida foi a de Charles Bard, logo no início da guerra, em

Gilberto Agostino 33
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

novembro de 1914. No ano seguinte, anunciou-se com destaque a morte


de um poilu – expressão genérica para o soldado francês das trincheiras
– que se fizera no meio futebolísitco: Charles Simon, fundador do Comitê
Francês Interfederal (CFI). Os italianos, por sua vez, lembraram a perda
de 26 jogadores da Internazionale e mais da metade do time da Udinese,
número semelhante que perdeu o Hellas, de Verona, enquanto os torcedo-
res da Juventus homenagearam o sacrifício de Enrico Canfari, o primeiro
presidente da equipe, morto no conflito. Quanto ao 17º de Middlesex, fo-
ram necessários apenas poucos meses de batalha para que suas lendárias
performances se transformassem em uma tênue lembrança de soldados do
front. De duzentos jogadores que haviam passado pelo batalhão antes do
combate, restavam apenas cerca de trinta quando, em fevereiro de 1918,
Os Extremados foram finalmente desmobilizados.
Experiências como essas nos levam a pensar o quanto as referências
do universo futebolístico estiveram presentes durante todo o conflito,
possibilitando ao soldado a inserção permanente no esporte, como joga-
dor, espectador ou simplesmente ouvinte. Neste sentido, poucos relatos
são mais fascinantes do que a prática inaugurada pelo 1º Batalhão do 18º
Regimento de Londres, servindo em Loos, em 1915. Ninguém sabe ao
certo de quem partiu a ideia, mas esta consistia em atacar os alemães a
partir de uma bola chutada em direção à trincheira inimiga. A prática,
apesar de arriscada, parecia magnetizar os soldados e logo os relatos se
multiplicaram. Vencendo distâncias, em pouco tempo, a “manobra” havia
sido levada para Gallipoli, onde tropas inglesas e australianas enfrentaram
os turcos.
A notoriedade desta ofensiva ficou registrada de fato na Batalha do
Somme, em 1916, um dos embates mais cruciais da Grande Guerra. Na
“preleção” para o combate, o capitão W. P. Nevill, comandante do 8º East
Surreys, apresentou a seus homens quatro bolas de couro, uma para cada
batalhão que comandava, anunciando um prêmio para a primeira divisão
que cruzasse a linha germânica. Apesar de toda a expectativa que cercava
a ação, o próprio capitão estaria entre os 600 soldados ingleses que foram
mortos no primeiro dia de luta em Somme. Entre as inúmeras lembranças
da guerra, um verso eterniza seus feitos15 :

34 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

On through the hail of slaughter Em meio à torrente de matança,


Where gallant comrades fall onde camaradas valentes caíram,
Where blood is poured like water onde o sangue como água jorrou,
They drive the trickling ball pouco a pouco a bola conduziam.
The fear of death before them Diante deles, o medo da morte
Is but an empty name. era apenas um nome vazio.
True to land that bore them – Verdade para terra onde morreram –
The Surreys play the game Os Surreys jogaram o jogo.

Para alguns, Nevill era um louco, para outros, um bufão. De qual-


quer forma, assim como outros combatentes que partiram atrás das bolas
lançadas na terra de ninguém em direção às trincheiras alemãs, ele fez
do campo inimigo uma espécie de gol simbólico, ritualizando a guerra
como um jogo a promover o reencontro entre os significantes bélicos e
esportivos: “atacar, defender, tática, ganhar terreno, artilheiro”. Deixava-
-se transparecer o quanto a experiência em torno da afirmação do futebol
moderno tivera como referência o universo militarista que marcara a
sociedade europeia desde finais do século XIX.
Enquanto a angústia do front jogava por terra todas as ilusões da
Belle Époque, para aqueles que ficaram em casa o peso de uma guerra que
se tornara total devorou as referências do cotidiano, cobrando algum tipo
de tributo, a ser pago mais cedo ou mais tarde. Não podia ser diferente
com o futebol. Nada mais seria como antes. Como um dos primeiros re-
flexos do clima de lealdade nacional crescente, clubes de origem alemã na
Inglaterra tiveram que mudar seus nomes. Na França, onde as primeiras
ações militares fulminaram o norte do país, exatamente nas áreas onde o
jogo fincara raízes mais profundas, o futebol sofreria um expressivo im-
pacto. Em seguida, entretanto, renasceria com força, cumprindo o papel
que desempenhara em outros lugares: promover o entusiasmo popular e
afastar o clima de derrota que tomava conta da população.

Gilberto Agostino 35
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

Apesar de os encontros oficiais serem cancelados, muitas partidas


entre seleções foram realizadas, estreitando os laços de lealdade entre os
países da Entente. Logo surgiram pequenos campeonatos, como a Taça dos
Aliados e a Copa Desafio da Vitória. Nesse contexto, franceses e belgas
disputaram seu tradicional embate em quatro oportunidades, uma para cada
ano de guerra, sendo a arrecadação dos jogos revertida para os soldados no
front. No encontro de 1915, as tribunas de honra receberam um convidado
bem especial: o Barão de Coubertin, figura já bastante conhecida no cenário
esportivo. Além das seleções propriamente ditas, que a esta altura contavam
com uma mistura de soldados e civis, partidas entre unidades militares
também foram disputadas. Em um destes encontros, com portões abertos,
em outubro de 1916, cerca de 20.000 pessoas compareceram ao Parc des
Princes. Na ocasião, muitos presentes mostraram que o futebol ainda era
uma novidade, uma vez que, ao final do primeiro tempo, boa parte dos
espectadores deixou o estádio, acreditando que o jogo já havia chegado ao
fim. Superados estes e outros contratempos, em 1917, os dirigentes franceses
encontrariam forças para organizar a Coupe de France, denominada Coupe
Charles Simon. Contando com times de quase todo o país (quarenta e oito
no total), a competição foi encarada como a sobrevivência do futebol francês
depois dos danos causados pela invasão alemã. Com final disputada em 5
de maio de 1918, em meio ao fogo cruzado daquela que ficaria conhecida
como Batalha de Paris, o título ficou com o Olympique de Plantin.
Na Inglaterra, apesar dos múltiplos usos do futebol como instru-
mento de mobilização nacional, a FA Cup acabou sendo interrompida,
sendo disputadas até o final da guerra apenas competições regionais. Com
a anuência do Ministério da Guerra, a decisão da temporada 1914/1915,
despedida do campeonato nacional, reuniu cerca de cinquenta mil especta-
dores, na sua maioria homens já mobilizados para o front. Tão grande era
o número de torcedores uniformizados no estádio em Old Trafford que o
embate final foi chamado de Khaki Cup. Em campo, assistiu-se à vitória
do Sheffield United sobre o Chelsea por 3X0. Na entrega das medalhas,
Lord Derby discursou em um tom de despedida, alegando que os clubes e
torcedores deveriam unir seus esforços para o mais importante dos jogos
a ser disputado pelos ingleses.

36 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

Com a entrada dos EUA na guerra, em 1917, um novo incremen-


to foi dado aos diversos usos do esporte no campo de batalha. E não
apenas através do futebol e da ginástica, como ocorria até então, mas
também através de outras modalidades, incluindo o baseball, uma ver-
dadeira paixão dos soldados norte-americanos na França. Em uma carta
enviada ao jornal Tribuna do Porto, um voluntário português contava
aos familiares, um tanto abismado, como seu batalhão recebera um sem-
-número de bolas de futebol e luvas de boxe para que nenhum soldado
se sentisse excluído da possibilidade de praticar seu esporte preferido
nas horas de lazer.
À medida que se aproximavam os momentos decisivos do con-
flito, o futebol continuava marcando uma presença quase obrigatória,
nos bons e maus momentos. Como afirmam os historiadores italianos
Antonio Papa e Guido Panico, não é simples coincidência que, em 28
de outubro, apenas quatro dias depois da derrota italiana na Batalha
de Caporetto, com o país atravessando um de seus mais dolorosos mo-
mentos, os torcedores milaneses pudessem assistir ao encontro entre
o Milan e a Unione Sportiva Milanese, jogo que ocorria simultanea-
mente a outras doze partidas disputadas em toda a península itálica.
E certamente também não foi por acaso que o futebol tivesse vindo a
se transformar num dos principais elementos de confraternização nos
momentos finais da guerra – momento em que os aliados da Entente
começavam a comemorar vitória. Foi o que ocorreu em Módena, às
vésperas da rendição alemã, em março de 1918, quando um encontro de
soldados belgas e italianos transformou-se em uma partida de futebol
em nome da liberdade e da paz.
Se por um lado o apelo da pátria de fato mobilizou os homens para
o campo de batalha, por outro, abriu caminho para o futebol feminino,
modalidade que buscava afirmação desde o final do século XIX, esbarrando
na dura oposição dos setores mais conservadores da sociedade. Foram as
contingências impostas pela guerra total que permitiram às mulheres um
maior destaque no campo de jogo, vindo a cumprir um importante papel
que antes fora masculino: a sustentação da moral interna, com a realização
de partidas promocionais.

Gilberto Agostino 37
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

Em um destes momentos, em 1917, os ingleses assistiram ao con-


fronto entre um time de soldados convalescentes e uma equipe feminina,
com toda a renda destinada a uma instituição de caridade. Por cava-
lheirismo, ou algo parecido, os soldados decidiram jogar com as mãos
amarradas para trás, o que deu à publicidade do jogo um incremento todo
especial. Não se sabe se este gesto de galanteio acabou influenciando no
resultado da partida, mas a verdade é que as mulheres acabaram ganhan-
do por 8X5, saindo de campo aplaudidas pelo público. Ainda durante a
guerra, à medida que o futebol feminino ia alcançando maior relevância,
campeonatos específicos foram instituídos, como ocorreu na França em
1918. Não demoraria muito tempo para que alguns times começassem a
disputar as melhores jogadoras. Nesta hora, foram muitas as transações
envolvendo equipes femininas. Caso curioso envolveu a grande estrela
do Porsmouth Ladies, Ada Anscombe, negociada com um time masculino
em uma troca que envolveu dois jogadores.
Mesmo com a aproximação dos momentos terminais da guerra,
o jogo das mulheres continuaria por algum tempo a cativar o grande
público. A equipe feminina mais famosa da Inglaterra, composta por
jogadoras da Dick Kerr, uma fábrica de Preston, chegou a reunir mais de
cinquenta mil espectadores ao se apresentar em um estádio de Liverpool.
A vedete do time, a atacante Lily Parr, levava os torcedores à loucura
ao comemorar seus gols com um eletrizante salto mortal. Apesar do su-
cesso de tais partidas, o pós-guerra apontava para uma nova realidade,
nada favorável para a autonomia das jogadoras. As forças conservadoras
que tinham influência sobre os círculos dirigentes do futebol europeu
cerraram suas fileiras para o futebol feminino, afirmando que tais jogos
contribuíam para o abandono dos lares. Alguns críticos sustentavam que
as exibições das jogadoras eram encaradas pelo público como espetáculo
cênico e não como um esporte. Em meio ao crescente conservadorismo,
que se somava à reintegração dos homens que chegavam do front ao
mercado de trabalho, o futebol feminino parecia perder o brilho que
alcançara durante a guerra. Nesta hora, sentindo o clima pesar na In-
glaterra, as meninas da Dick Kerr decidiram apresentar-se fora do país.
No início dos anos de 1920, embarcaram para os Estados Unidos, onde

38 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

disputaram várias partidas, todas contra equipes masculinas, chegando


a obter algumas inesquecíveis vitórias.

m m m

Encerrado definitivamente o conflito, deixava-se para trás o rastro


da angústia e incerteza quanto aos rumos que a humanidade empreende-
ra. Em meio a paisagens “lunares”, onde o que se via eram crateras de
barro e lama, vilas queimadas e vestígios do asfixiante gás mostarda, os
soldados se arrastavam de volta à casa, seguindo o gigantesco fluxo da
desmobilização. Enquanto um mundo desgastado ansiava pela paz, uma
força invisível se movia sem ouvir os muitos apelos em nome da trégua:
a partir de 1918, o homem passaria a conhecer a responsável por mais de
vinte milhões de mortes em todos os cantos do planeta, a Gripe Espanhola.
Na verdade, era o troco final de uma guerra que se tornara mundial, des-
conhecendo fronteiras, envolvendo direta ou indiretamente todos aqueles
que se mantinham interligados não só por uma economia global, como
também pela crença de que o futuro era a única estrada a se percorrer. O
rastro da doença comprometeu as referências do cotidiano, dentre outros
aspectos, paralisando por algum tempo as atividades esportivas. Apesar das
causas do mal não serem conhecidas na época, temia-se que aglomerações
pudessem difundi-lo, agravando uma situação que, em muitos lugares,
saíra completamente do controle. Neste sentido, o futebol foi muito visado
pelas autoridades sanitárias, uma vez que as arquibancadas eram espaços
privilegiados para a manifestação do contágio. Era a hora de fazer aquilo
que nem mesmo a guerra conseguira: estancar o ritmo do jogo.
Na América do Sul, a chegada da Gripe Espanhola reproduziria
uma série de situações vividas em outros lugares. Até então, a guerra não
havia comprometido as competições e os encontros internacionais, e o
esporte vivia um momento de expansão. Em 1916, com a fundação da
Confederação Sul-Americana de Futebol, foi disputada uma competição
com a participação do Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. Quando a guerra
tocou de forma mais expressiva o continente a partir dos bombardeios de
submarinos alemães, foram incitadas manifestações nacionalistas em di-

Gilberto Agostino 39
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

versos países, sendo possível perceber que os aficionados pelo futebol cada
vez mais relacionavam a vitória no campo de jogo ao orgulho cívico. Não
por acaso, o Flamengo, no Rio de Janeiro, achou por bem nesse momento
abandonar sua famosa camisa cobra coral – vermelha, preta e branca –,
até hoje lembrada nos cânticos da torcida, uma vez que a disposição das
cores lembrava o Império Alemão, contra quem o Brasil declarara guerra
em 1917. Nessa fase, não foram poucos os clubes que procuraram não só
formar batalhões militares, como também discutir questões referentes à
defesa nacional entre os associados. Foi neste ímpeto que surgiu no Rio
de Janeiro o Sport Club Aliados, cujo estatuto não aceitava sócios de des-
cendentes dos países com os quais as nações aliadas estavam em guerra.
A partir de 1918, entretanto, a gripe espanhola encarregar-se-ia de
trazer ao futebol sul-americano todo o transtorno que a própria guerra não
trouxera. Em um contexto em que as autoridades sanitárias rondavam as
ruas em busca de portadores da doença, o convívio social tornara-se um
mar de suspeitas, irrompendo o pânico em muitas cidades importantes.
Foi neste quadro que dirigentes do Corinthians em São Paulo tiveram
que se defender das acusações de que os treinos do time ameaçavam a
integridade da população. Ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro, em meio
ao verdadeiro caos em que a saúde pública se encontrava, os dirigentes
decidiram adiar o Sul-Americano, a ser realizado em 1918. A notícia do
adiamento foi bem recebida pelas delegações do Uruguai e da Argentina,
e o campeonato foi transferido para o ano seguinte.
Partindo de forma tão rápida e intempestiva quanto viera, a Gripe
Espanhola deixou algumas angustiantes inquietações. Uma reação, entre-
tanto, pareceu exercer o domínio sobre todos: esquecer o que acontecera.
Mesmo que a doença esteja indexada na lembrança de algumas famílias,
enquanto experiência histórica coletiva ela foi praticamente apagada da
memória social, como se a omissão ou mesmo a negação do passado pre-
servasse os homens da possibilidade de algo parecido voltar a acontecer.
Nesse sentido, em pouco tempo já era evidente a recomposição do cotidia-
no nas grandes cidades. À medida que os efeitos da gripe desapareciam,
as demandas esportivas iam sendo retomadas. Em 1919, os encontros
internacionais seriam de fato normalizados.

40 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

Como emblemática representação dessa retomada foram realizados


os Jogos Interaliados, organizados pelos vencedores da Grande Guerra,
cuja pretensão era resgatar o espírito dos Jogos Olímpicos, que haviam
sido programados para Berlim em 1916, mas foram cancelados em função
da guerra. Excluindo os derrotados no campo de batalha em uma espécie
de quarentena esportiva, as disputas ocorreram paralelamente às reuniões
que decidiriam as questões mais cruciais das relações internacionais do
entre-guerras. A final de rugby, por exemplo, foi disputada no mesmo dia
em que foi assinado o famoso Tratado de Versalhes. Na América do Sul,
o ciclo também foi retomado. Em 1919, realizou-se, finalmente, o Sul-
-Americano, possibilitando aos brasileiros a conquista de um título que
representava um dos maiores orgulhos nacionais na sua época. Ficava
claro que chegara a hora de recomeçar o que a guerra e a Gripe Espanhola
haviam adiado. Era preciso resgatar o sentido de continuidade, retomar
os campeonatos e restaurar-lhes o sentido cíclico que se adequara tão
bem às exigências da modernidade repetitiva do estilo de vida burguês.
Assim foi feito.
Nesta hora muitas expectativas apresentavam-se em relação ao
futuro do jogo. Em diversas áreas coloniais, o gosto pelo futebol cresceu
ainda mais, principalmente depois que muitos soldados tinham entrado em
contato com as práticas esportivas nas trincheiras. O entusiasmo foi tanto
que chegou mesmo a deixar apreensivos alguns agentes coloniais. Em um
despacho do tenente-governador do Níger, colônia francesa, percebemos
nitidamente o teor das preocupações:

(...) os jogos de futebol, mesmo os amistosos, entre os fran-


ceses e os autóctones não são bem-vindos, uma vez que desgastam
o prestígio que mantém nossa dominação neste país, já que neste
domínio eles são mais fortes.16 

Abria-se através do esporte um importante elemento questionador


do mito da superioridade do homem branco, principal base ideológica do
Imperialismo, embora só mesmo após a II Guerra Mundial tal questão
assumisse um relevo decisivo. De qualquer forma, dos anos de 1920 em
diante o futebol nas colônias gradativamente assumiu uma força própria,

Gilberto Agostino 41
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

compondo um dos elementos cruciais de uma identidade nacional em


desenvolvimento. Na América do Sul, por sua vez, o futebol ganhava
outro sentido, tornando-se cada vez mais uma questão importante para
os governantes, notadamente no plano das relações internacionais, não
sendo poucos os líderes sul-americanos que, já no início do século XX,
se utilizaram do esporte como um instrumento de diplomacia. Em 1904, o
general argentino Julio A. Roca assistiu ao jogo entre o Alumni e a equipe
inglesa do Southampton, transformando-se no primeiro presidente da
América do Sul a comparecer a uma partida de futebol, inaugurando uma
prática que se estenderia amplamente daí em diante. Alguns anos mais
tarde, o próprio presidente Roca compareceu ao vestiário do selecionado
argentino que enfrentava a seleção brasileira. A partida estava no inter-
valo e a equipe porteña vencia por 3X0, fazendo com que o presidente
exigisse mais moderação, uma vez que o momento era de aproximação
diplomática entre os dois países.
No Brasil, não foram poucos os presidentes da chamada República
Velha (1889-1930) que interferiram nos rumos do jogo, procurando promo-
ver através do esporte uma imagem do país tida como positiva. De todos
os episódios neste sentido, o mais conhecido de todos envolveu, em 1921,
Epitácio Pessoa, que impediu a seleção brasileira de utilizar jogadores
negros na disputa de um campeonato sul-americano na Argentina, uma
vez que estes poderiam ser chamados de macaquitos pela torcida local,
desgastando a imagem do Brasil.
Na década de 1920, juntamente com o Uruguai, como grandes re-
presentantes do esporte na América do Sul, Brasil e Argentina enfrentavam
a questão profissionalismo versus amadorismo, principalmente a partir
da evasão de craques para a Europa. Afinal, desde que o futebol caíra no
gosto popular, floresceram discussões acaloradas entre os defensores do
amadorismo e os adeptos do profissionalismo. Diante das características
elitistas que marcavam o meio esportivo, muita gente afirmava que a
profissionalização do jogador de futebol poderia acabar com o amor pelo
clube e com o espírito de companheirismo. Na prática, entretanto, ainda
nos tempos do amadorismo muitos atletas já recebiam uma série de com-
pensações financeiras para entrar em campo. Para os jogadores mais pobres

42 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

não havia nenhum impedimento moral em receber uma gratificação, muito


pelo contrário. Tais luxos podiam ficar para os jovens abonados da elite.
Estes, sim, podiam ficar ofendidos diante da ideia de receber dinheiro
para jogar futebol. Enquanto as discussões transcorriam sem solução
aparente, as gratificações corriam soltas. Antes da instituição do sistema
profissional, foram aparecendo mil e uma possibilidades de estabelecer
prêmios e salários indiretos – ou mesmo diretos – para os jogadores. No
Brasil, assim entrou em cena o tão famoso bicho. Surgindo no Vasco da
Gama, a expressão referia-se ao valor da gratificação ao jogador, associada
aos animais do jogo popular – uma clara associação entre o futebol e o
sistema de loterias, presente em vários países.
Enquanto o futebol rendia seus frutos no Novo Mundo, era
organizada na Europa, em 1920, a VII Edição das Olimpíadas, tendo
a Bélgica como sede. Marcada profundamente pelas cicatrizes da
Grande Guerra, fora a Antuérpia escolhida como a cidade símbolo do
renascimento da Paz Mundial e dos Jogos Olímpicos. Apesar deste
apelo, o espírito militarista marcou presença nas provas, até mesmo
porque muitos heróis de guerra entraram na disputa, como o italiano
Nedo Nadi, vencedor de cinco medalhas de ouro em esgrima. Neste
sentido, o Barão de Coubertin aconselhou que alemães e austríacos
não fossem convidados. A Rússia, por sua vez, vivia uma sangrenta
guerra civil, tendo declinado do convite feito pelos organizadores.
Para o torneio de futebol, haviam sido inscritas 13 equipes. Um dos
destaques foi a Espanha, que brilhou na vitória de seu time contra a
Dinamarca, resultado que representou uma surpresa para muitos ana-
listas. Na verdade, nada seria tão surpreendente quanto a eliminação
da Inglaterra pela Noruega. Na final, a Bélgica conquistou a medalha
de ouro, derrotando a Tchecoslováquia em um jogo tumultuado que
acabou durando apenas 39 minutos, pois os tchecos não concordaram
com as marcações do juiz – uma expulsão e um pênalti –, abandonando
o campo quando perdiam por 2X0. Apesar da vitória, os belgas não
conseguiram demonstrar um jogo convincente tal como haviam feito
os ingleses nas duas edições anteriores (1908 e 1912) e como fariam
os uruguaios nas duas posteriores (1924 e 1928).

Gilberto Agostino 43
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

À medida que as lembranças mais imediatas da guerra ficavam para


trás, o ritmo futebolístico europeu mudava de marcha. Em toda parte, o
futebol se difundia, moldando-se às realidades políticas e geográficas.
Foi esta a tônica para que países da Europa Central organizassem a Mi-
tropa, vista hoje como a antecessora da Copa dos Campeões. Instituída
em 1927 por Hugo Meisl, a ideia era confrontar os clubes mais fortes do
continente, tendo como espaço geográfico a área danubiana. Inauguraram
o torneio a Áustria, a Tchecoslováquia, a Iugoslávia e a Hungria, sendo
que a Itália juntou-se ao grupo em 1929, com grandes performances do
Torino. Em meio à avalanche de competições, transações envolvendo
clubes e revoluções táticas, novos estádios eram erguidos em quase to-
dos os países europeus. Em 1923, os ingleses viram nascer o templo de
Wembley, com suas instalações monumentais, logo comparadas por um
jornalista à cidade bíblica de Jericó. Construído em 300 dias de trabalho,
seus gastos ultrapassaram o valor de 750.000 libras, sendo inaugurado
apenas quatro dias antes da grande final entre Bolton Wanders e West Ham
United. O jogo de estreia foi marcado por uma grande confusão: milhares
de pessoas tentaram entrar no estádio sem ingresso, forçando os policiais
a uma ação repressiva assistida da tribuna real por Sua Majestade, o Rei
Jorge V, que esperou infinitos quarenta minutos para o início da partida.
Foi a partir deste jogo que Wembley passou a ser palco do final da Copa,
configurando uma tradição que durou muitos anos. Estabelecia-se um
verdadeiro ritual, pelo qual Suas Altezas reais recebiam os dois times ao
som do cântico Abide with me.
Apesar de toda a pompa que marcava o futebol inglês, o universo
futebolístico europeu buscava seus próprios caminhos, resignado de certa
forma com o isolamento da Inglaterra. Em 1928, no Congresso da FIFA em
Amsterdã, quando Jules Rimet, presidente da entidade, e Henri Delaunay,
principal secretário, apresentaram a criação de um torneio internacional
de futebol, ninguém poderia imaginar quantas dificuldades teriam de
ser enfrentadas para que tal proposta se concretizasse. No ano seguinte,
enquanto o dirigente francês procurava diligentemente superar as inú-
meras resistências nacionais ao projeto, a espiral eufórica do mercado de
ações mostraria sinais de cansaço diante da maré especulativa e do fluxo

44 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

inconsequente dos negócios em Wall Street. Como um castelo de cartas,


a interdependência da economia internacional mergulhava em uma crise
de confiança, reacendendo as hostilidades internacionais e a xenofobia.
Mais do que nunca, em meio a um quadro generalizado de desesperança
e indefinição, as ideias de Rimet pareciam marcadas pela insensatez da-
queles que viviam com os olhos voltados para o passado. E talvez tenha
sido exatamente o traço insensato que demarca a tênue fronteira entre o
futebol e a idealização, acrescido às muito reais aspirações nacionalistas
em curso, que tenham possibilitado a materialização do torneio que os
dirigentes franceses chamariam de Copa do Mundo.
No olho do furacão, indiferente aos tormentos que a cercava, já há
algum tempo a FIFA vinha analisando ideias em relação ao país-sede da
competição. Além da Holanda e da Suécia, falava-se na Áustria, projeto
que contava com o apoio do famoso jogador Hugo Meisl, interlocutor
com os franceses. Com a tergiversação da Associação Austríaca, vozes
se levantaram em nome da Itália, proclamada como a terra do calcio, um
dos tantos ancestrais do futebol moderno, ideia que, pelo menos naquele
momento, não contava ainda com o entusiasmo necessário do governo
fascista. Contrário às evidências mais pessimistas, Rimet, entretanto, pare-
cia não desistir. E quando chegou às suas mãos uma proposta do Uruguai,
bicampeão olímpico, o presidente da FIFA analisou com cuidado a questão,
não dando ouvidos quando um assessor desdenhosamente referiu-se ao
candidato como um ponto desprezível no mapa da América do Sul. Afinal,
se a ideia era realizar a competição em 1930, a data coincidia exatamente
com o centenário da independência do país, o que certamente representaria
o respaldo governamental. No projeto uruguaio, aparecia a convidativa
proposta de o anfitrião arcar com os gastos dos participantes. Diante de
tais circunstâncias, as condições pareciam mais do que favoráveis, mesmo
se considerando as distâncias de uma viagem transatlântica. Em 1929, em
Barcelona, os dirigentes da FIFA bateram o martelo, aprovando o Uruguai
como sede da Primeira Copa do Mundo.
Enquanto saía em campo em busca de adesões, a FIFA imediatamen-
te idealizou a criação de um troféu que simbolizasse não só a grandiosidade
do acontecimento, como também que fosse capaz de fascinar os homens

Gilberto Agostino 45
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

por sua beleza e esplendor. Neste sentido, acreditava que só mesmo o re-
luzir eterno do ouro poderia expressar tal fascínio. Levando sua ideia ao
escultor Abel Lefleur, assistente do museu de Belas-Artes de Rodez, Rimet
viu seu sonho concebido em uma estatueta de 30 centímetros, esculpida
em ouro maciço, sendo a Deusa da Vitória a perfeita projeção do desejo
que o presidente da FIFA procurava despertar. Afinal, em meio a todas as
dificuldades em que se organizava o Mundial do Uruguai, o prêmio maior
do futebol precisava ser algo mais que um troféu. Haveria de ser uma
conquista permanente. Desta forma, foi instituído o regulamento de que
o país vencedor ficaria com a taça até a disputa de um novo Mundial. A
ideia em si podia não ser totalmente nova, mas, naquele contexto, não só
exercitava a projeção de uma nova Copa, algo ainda duvidoso em 1930,
como alimentava o espírito de que só poderia haver um vencedor, questão
importante em meio a tantas dissidências no mundo do futebol. Durante a
realização de um novo torneio, a taça passaria temporariamente à FIFA, a
única capaz de entregá-la ao novo campeão. Em torno da estatueta, por-
tanto, fundava-se uma tradição, aspecto crucial para a internacionalização
de uma competição em um mundo tão dividido por ideologias e conflitos.
À medida que a organização do evento ia se transformando em
uma verdadeira corrida de obstáculos, a FIFA ganhou terreno, deixando
os dissidentes para trás. O tempo era curto demais para mais debates, pois
envolvia os preparativos daqueles que arrumavam as malas para uma longa
viagem e também do anfitrião, que começava uma série de obras especial-
mente para o Mundial. Na verdade, as ausências europeias não eram nada
desprezíveis: Alemanha, Hungria, Suíça e Thecoslováquia recusaram-se
a participar de um certame realizado em terras tão distantes; quanto aos
ingleses, estes já não estavam integrados à FIFA e ninguém acreditava que
pudessem participar, mesmo que o campeonato fosse realizado na Europa.
Neste meio tempo, enquanto setores da imprensa esportiva afirmavam que
a Copa do Uruguai seria um torneio latino-americano, os dirigentes france-
ses confirmaram não só a presença da própria França, como as da Bélgica
e Iugoslávia. Em busca de mais uma adesão, o próprio Rimet chegou a
viajar para a Romênia, procurando convencer o Rei Carol da importância
da competição. Segundo consta, recebeu a melhor das acolhidas por parte

46 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

do Monarca, que lhe teria garantido que se encarregaria pessoalmente de


formar a equipe nacional. Mesmo não sendo as principais representantes
do futebol europeu, essas seleções significavam uma efetiva demonstração
da capacidade diplomática da FIFA. Paralelamente, confirmava-se tam-
bém a presença dos Estados Unidos, onde o futebol vinha conseguindo
entusiasmar alguns círculos esportistas na década de 1920. Ao todo, entre
americanos e europeus, seriam treze equipes, divididas em quatro chaves.
Os vencedores de cada chave fariam a semifinal.
Mal fora aprovada a proposta uruguaia, o governo do presidente
Cimpistegui convocou a equipe responsável pela construção daquele que,
segundo os uruguaios, seria o maior estádio do mundo. As ambições eram
grandiosas, estimadas em mais de um milhão de pesos. Em oito meses –
atravessando a estação chuvosa – projetou-se um colosso capaz de conter
oitenta mil torcedores. Haveria de se chamar Centenário, em homenagem
à data que se comemorava no país. Enquanto trabalhadores uruguaios
revezavam-se dia e noite para cumprir o cronograma das obras exigido
pela estreia da competição, programada para 13 de julho, os preparativos
para o embarque dos europeus chegavam ao fim. O navio Conte Verde –
le bateau du football – zarpou de Gênova com a delegação romena. No
caminho, foram incorporados os belgas e os franceses. Também subiu a
bordo Jules Rimet, zelando por sua pequena estatueta, a “Deusa das Asas
de Ouro”, rumo à fase final de uma epopeia que fora idealizada há tantos
anos, entre viagens, conferências e acordos. Dirigentes à parte, para a
grande maioria a bordo do Conte Verde, esta seria a primeira viagem de
navio. Foram quinze dias de banhos de piscina, tênis de mesa, cinema,
carteado e, por vezes, exercícios físicos. Os iugoslavos, por sua vez, via-
jaram em separado em uma embarcação ainda mais confortável. Ao final
da Copa, afirmou-se que os excessos nas noitadas a bordo teriam minado
a capacidade da seleção iugoslava. Quase três semanas depois de deixar
a Europa, tendo recolhido a seleção brasileira no Rio de Janeiro, o Conte
Verde atracou em Montevidéu. Um espetáculo indescritível aguardava os
enfastiados jogadores. Centenas de bandeirolas com as cores da França,
Iugoslávia, Romênia e Bélgica tremulavam nas mãos da massa humana
que aguardava, ansiosa, o desembarque.

Gilberto Agostino 47
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

Enquanto tudo parecia sair ainda melhor que o esperado, os organi-


zadores do Mundial se viram diante do primeiro contratempo mais sério.
Apesar de todo o empenho, o governo uruguaio anunciava que o Estádio
Centenário ainda não estava em condições de inaugurar a competição.
Alegava-se que os treze meses anteriores de chuva haviam comprometido
o ritmo das obras, o que causaria um atraso de alguns dias para a inaugura-
ção. Como era impossível adiar todo o cronograma, a saída foi dar início
ao campeonato assim mesmo. Na data marcada, 13 de julho, dois jogos
foram realizados, ambos com um público muito modesto. No Estádio do
Nacional F.C, a França entrou em campo para enfrentar o México, com
vitória dos franceses por 4X1. Do outro lado da cidade, em Pocitos, no
estádio do Peñarol, os Estados Unidos venciam a Bélgica por 3X0.
Apenas no dia 18 o Estádio Centenário pôde, finalmente, ser aberto ao
público. E não sem problemas. A massa, ansiosa, praticamente passou por
cima dos policiais – e até mesmo as bilheterias foram assaltadas. Como o
dia da inauguração coincidia com a estreia da seleção uruguaia e com a data
histórica da independência do país, comentaristas internacionais foram im-
placáveis com o governo de Cimpistegui, acusando-o de manobrar o atraso
das obras para valorizar as festividades em torno da comemoração nacional.
Certos ou errados, a verdade é que a seleção uruguaia entrou em campo
sob os aplausos de 70.000 torcedores, divididos nas tribunas denominadas
Colombes e Amsterdã, referência às vitórias olímpicas. Vivia-se um marco.
Nunca na América uma partida de futebol havia sido contemplada por um
público tão grandioso. Vencendo os peruanos, os uruguaios superavam seu
primeiro desafio. Apesar do placar diminuto – um simples 1X0 –, a torcida
acreditava muito no potencial da Celeste Olímpica e expectativas cresciam
a cada dia. Aos olhos desta, parecia que apenas a seleção argentina podia ser
uma adversária à altura, já que as lembranças da final dos Jogos Olímpicos
de 1928 ainda estavam bem vivas e por pouco não levaram a Argentina a
boicotar o Mundial. Um dos destaques da seleção uruguaia vinha sendo
o médio Andrade, cérebro do time no bicampeonato olímpico, primeiro
jogador negro a brilhar em uma Copa do Mundo.
Em Pocitos, quando estrearam contra a França, os argentinos senti-
ram a pressão da torcida local, que conclamava os franceses à vitória como

48 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

se torcessem para a própria Celeste. Em um dos jogos mais conturbados


do Mundial, o embate entre França e Argentina ficaria marcado pelo
descuido do árbitro – e dirigente – brasileiro Gilberto Pereira Rego. Ele
chegou a dar por encerrada a partida com 84 minutos de jogo, exatamente
no momento em que os franceses, com um jogador expulso, lançavam-se
perigosamente sobre o gol argentino, tentando empatar um jogo em que
perdiam por 2X1. Mesmo com o reinício da partida, após muitas confusões
no gramado, a sorte não virou para o lado dos franceses, mantendo-se o
placar favorável aos argentinos até o apito final. Perdido o jogo, sobravam
em compensação as palavras e gestos de apoio por parte dos torcedores
uruguaios. Aclamados pela garra em campo, alguns franceses chegaram
a ser carregados nos ombros como vencedores. Na perspectiva da garra
charrua, marca indelével do futebol uruguaio, talvez fossem vistos como
vitoriosos de fato.
Viriam os momentos decisivos da competição e as expectativas da
torcida uruguaia pareciam se confirmar. Na primeira semifinal, no dia 26
de julho, Argentina e Estados Unidos fizeram um jogo que não demons-
trava ser capaz de muitas surpresas. Os torcedores argentinos acreditavam
tanto na vitória que “invadiram” Montevidéu em embarcações fretadas
especialmente para a partida. Apesar de contar com jogadores escoceses
naturalizados, para os observadores mais realistas a seleção estadunidense
não parecia ser uma adversária à altura dos argentinos. Em campo, Stabille
e Monti comandaram a goleada argentina por 6X1, com a maioria dos
gols marcados no segundo tempo. O árbitro da partida, o famoso belga
Jan Langenus, que registraria suas impressões sobre a Primeira Copa do
Mundo em um livro de reminiscências, ficou deslumbrado com a atuação
argentina, chegando a considerá-la simplesmente a apoteose da perfeição
em campo.
No dia seguinte, no Centenário, uma nova goleada incendiaria o
Mundial. Era a hora de o Uruguai enfrentar a Iugoslávia diante de mais
de cem mil espectadores. Enquanto o mercado negro funcionava a pleno
vapor vendendo ingressos que deveriam estar nas bilheterias, Montevi-
déu parava para a partida que poderia levar a Celeste Olímpica à final.
Em uma atuação polêmica, mais uma vez a arbitragem roubou a cena,

Gilberto Agostino 49
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

favorecendo os uruguaios ao anular um gol iugoslavo, além de uma série


de outros lances tidos como duvidosos. Ao final, o Uruguai alcançaria o
mesmo placar obtido no dia anterior pela Argentina: 6X1. Como não ha-
via sido prevista decisão do terceiro lugar, norte-americanos e iugoslavos
acabaram dividindo a colocação. O anticlímax da Final não poderia ser
mais emocionante. Argentina e Uruguai de fato tinham se mostrado as
melhores equipes da competição. De longa data, já se anunciava a feroz
rivalidade, forjada nos muitos embates travados em terras sul-americanas
e europeias. Os torcedores argentinos saíam do Prata ao coro de Argentina
si, Uruguay no! Victoria o muerte!, chegando aos milhares em Montevidéu.
Em meio à euforia e à desorganização, muitos barcos ficaram encalhados
no meio do caminho. Isso sem falar nos tantos argentinos que ficaram fora
do estádio, já que a cota de ingressos destinada a eles não era suficiente
para todos. Para as autoridades uruguaias, os problemas multiplicavam-
-se a todo instante, tornando o que deveria ser a final dos sonhos em uma
grande preocupação.
A imprensa alimentava um verdadeiro clima de guerra. Discutia-se
até em relação à bola a ser utilizada na Final. A delegação argentina exigiu
segurança especial, garantida pela polícia montada, enquanto Jan Lange-
nus, árbitro designado para o jogo, tomou providências especiais, temendo
por sua própria segurança e dos auxiliares. Até mesmo as bilheterias foram
reforçadas com grades, visando assegurar o “bem-estar da renda”. Na
véspera da partida, o famoso cantor Carlos Gardel, entusiasta do futebol,
apareceu na concentração dos uruguaios, onde chegou a apresentar-se
para os jogadores. Como sua mãe era uruguaia, Gardel decidiu prestar
uma homenagem à Celeste. Algumas horas mais tarde, foi a vez de visitar
a seleção argentina, sendo recepcionado com menos entusiasmo pelos
argentinos, um tanto quanto enciumados por não terem sido os únicos
a receberem as congratulações do cantor. Chegada a hora da decisão, o
Estádio Centenário parecia explodir em vibração. Apesar da torcida uru-
guaia, o time da casa não começou tão bem quanto se esperava: abrindo
o marcador aos doze minutos com Pablo Dorado, o Uruguai mal teve
tempo de respirar, pois os argentinos empataram logo em seguida. Alguns
minutos depois viria a virada argentina nos pés de Stabille, consagrado

50 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

artilheiro da Copa, silenciando por completo as tribunas do Centenário.


Iniciado o segundo tempo, os uruguaios demoraram um pouco para reagir
de fato. Aos dez minutos – que, para a torcida, pareciam uma eternidade
–, foi consumado o gol de empate. Ganhando confiança e impondo seu
jogo, o Uruguai marcou mais dois gols com Iriarte e Castro, liquidando a
fatura e sagrando-se o primeiro campeão da História da Copa do Mundo.
A torcida presente no Centenário delirou e muitos se julgavam tri-
campeões, pois já vinham contabilizando as vitórias olímpicas. Ao som
dos apitos e sirenes que ressoavam no porto, Jules Rimet entregou o troféu
ao capitão uruguaio, enquanto o presidente Cimpisgueti decretou que o
dia seguinte seria feriado nacional. Nas ruas, entretanto, muitos distúrbios
envolveram os torcedores rivais, com insultos e brigas marcando a des-
pedida dos argentinos de Montevidéu. Atritos continuaram nas fronteiras
por mais alguns dias e até mesmo a Embaixada do Uruguai em Buenos
Aires chegou a ser apedrejada. O Mundial estava lançado. A esta altura,
poucos ousariam duvidar do poder do jogo.

Gilberto Agostino 51
Batalhas no Campo, Batalhas na Vida

Notas

 1
Peter Gay, O Cultivo do Ódio, São Paulo: Companhia das Letras,1995, p. 436.
Cf. Jeffrey Hill, Sport et classe ouvrière en Grande-Bretagne, Les origines
 2

du Sport Ouvrier en Europe, Paris: l’Harmattan, 1994, p.87.


Cf. Modris Eksteins, A Sagração da Primavera, Rio de Janeiro: Rocco,
 3

1992, p. 163.
 4
Cf.Chris Taylor, The Beautiful Game, London: Victor Gollancz, 1998, p. 25.
Cf. Bill Murray, Celtic et Rangers, les Irlandais de Glasgow, Actes de la
 5

Recherche, n.103, jun, 1994, p.41-51.


Cf. Cf. Jeffrey Hill, Sport et classe ouvrière en Grande-Bretagne, Les origines
 6

du Sport Ouvrier en Europe, op.cit., p.88.


Cf. Stefano Pivato, Socialisme et Antisportisme. Le cas italien (1900-1925),
 7

Les origines du Sport Ouvrier en Europe, op. cit., p.129.


Cf. Hugo Martínez de León, El Superclásico, Buenos Aires: Hojas Nuevas,
 8

Grijalbo, 1999, p. 158.


Cf. Flávio Araújo, O Rádio, o Futebol e a Vida, São Paulo: Editora Senac,
 9

2001, p. 174.
 10
Cf. David Downing, The Best of Enemies, London: Bloomsbury, 2000, p. 5.
 11
Cf. Modris Eksteins, A Sagração da Primavera, op. cit., p. 165-170.
Cf.Martin Gilbert, The First World War, New York: Henry Holt and Company,
 12

1994, p. 100.
 13
Cf.Martin Gilbert, The First World War, op. cit, p. 100
 14
Cf.Martin Gilbert, The First World War, op. cit, p. 100.
 15
Cf. David Downing, The Best of Enemies, op. cit, p. 14.
 16
Cf.Deville-Danthu, Le sport en noir et blanc, Paris: L’Harmattan,1997, p. 29-33.

52 Gilberto Agostino
1938. O English Team vai à Alemanha e se rende ao protocolo nazista.
Vencer ou Morrer

CAPÍTULO 2

A ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA
E A FASCINAÇÃO DO FUTEBOL

Há mais que um triunfo esportivo nesta conquista,


realizada a partir dos músculos e da inteligência dos
jogadores italianos. Esta é também a vitória de uma raça.
(Bruno Roghi, diretor do Gazzetta dello Sport,
sintetizando a vitória da seleção italiana em 1938, no
Mundial da França)
Cem mil pessoas deixaram o estádio em um estado
depressivo. Vencer uma partida é mais importante para
o povo do que capturar uma cidade em algum lugar do
leste.
(Goebbels, em seu diário, após a derrota da
seleção alemã pela da Suécia, em 1942)
Vocês têm feito mais pela Espanha do que muitas
embaixadas desperdiçadas nesses povos de Deus. Gente
que nos odiava agora nos compreende graças a vocês,
porque foram capazes de romper muitas barreiras...
Podem ter certeza que nós, juntamente com nossas
mulheres e nossos filhos, seguimos seus triunfos que há
muito engrandecem o pavilhão espanhol.
(José Solís Ruiz, membro do governo franquista,
em audiência aos jogadores do Real Madri)

Gilberto Agostino 55
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

Desde 1922, momento em que Mussolini chegou ao poder, os


fascistas aproveitaram-se de toda força que o espetáculo esportivo podia
vir a representar em uma sociedade de massas, conferindo inúmeras
possibilidades de ritualização da fidelidade nacional e da legitimação da
ordem vigente. Afinal, a cultura física era um aspecto fundamental para
a consolidação da ideologia guerreira, um dos componentes inestimáveis
para o conjunto de valores que iria prevalecer nos países totalitários. A
partir de 1925, a organização governamental l’Opera Nazionale Dopola-
voro financiou e coordenou a construção de estádios, piscinas, pistas de
atletismo e ciclismo, e toda uma série de outras instalações favoráveis à
prática esportiva. Na verdade, nos anos iniciais do governo, o Duce dera
uma maior importância aos denominados esportes de guerra: notadamente,
a ginástica, o boxe, a natação, a esgrima e o tiro. Nesse sentido, demoraria
algum tempo para que o futebol fosse visto como um esporte plenamente
condizente com os mais nobres valores do regime.
De qualquer forma, como em outros aspectos culturais, a ingerência
do novo Estado no meio futebolístico também se fez sentir. No primeiro
momento, não chegou a entrar em choque com as tendências já expressas
anteriormente em torno da centralização dos campeonatos e unificação
de equipes. Em 1922, duas das mais expressivas equipes italianas, Na-
poli e Internazionale, uniram-se para formar o Internaples, mesmo ano
em que l’Unione Sportiva Italia e o Cagliari Football Club formaram o
Club Sportivo Cagliari. Em 1928, a Internazionale e l’Unione Sportiva
Milanese se fundiram, formando a Ambrosiana, uma das potências fu-
tebolísticas italianas até o final da II Guerra Mundial. Em relação a esta
última, existe também a hipótese, bastante pertinente, de que os dirigentes
fascistas reuniram esforços para banir do futebol italiano denominações
inconvenientes, ou seja, qualquer alusão, mesmo que apenas nominal, à
Internacional Socialista.
Um dos momentos cruciais da intervenção fascista no cenário fute-
bolístico italiano ocorreu com a outorga, em 1926, da Carta de Viarregio,
documento que elaborava um novo estatuto para o futebol, definindo o
status de jogadores, fixando normas para atletas estrangeiros, além de le-
gislar sobre uma série de outras questões relativas ao universo do esporte.

56 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

Na verdade, até o início dos anos de 1930, il calcio, como os italianos


sempre se referiram ao jogo, enfrentava a concorrência do volata.
Inventado por Augusto Turati, uma das figuras-chave do regime, que
chegaria inclusive a ocupar o cargo de secretário do Partido Fascista, o
novo jogo era uma mistura de futebol e rugby, apresentado à nação como
uma expressão tipicamente italiana do esporte que os ingleses haviam
degenerado – degenerazione inglese – com suas infinidades de regras.
Em 1930, enquanto o Uruguai e Argentina faziam a final do primeiro
Mundial de Futebol, o governo italiano patrocinava um campeonato
nacional de volata, contando com dezenas de equipes de todo o país.
Apesar de todo o esforço desprendido, por volta de 1933 o jogo foi
caindo no esquecimento, paralelamente ao declínio político do próprio
Turati, deixando de ser praticado.
Foi exatamente após a grande repercussão do Mundial do Uru-
guai que o governo italiano mostrou-se interessado em assumir todos
os encargos de uma nova Copa do Mundo. Desde os Jogos Olímpicos
em Amsterdã, algumas sondagens já haviam sido realizadas, frustradas
pelos efeitos imediatos das incertezas da economia a partir de 1929.
Mal superados estes obstáculos, entretanto, o governo fascista retomou
o projeto original com todo o empenho, disposto a concretizá-lo a qual-
quer preço, principalmente após o êxito do Mundial do Uruguai. Sempre
atento a qualquer potencialidade em torno da mobilização nacional, o
Estado Fascista percebeu claramente toda a dimensão que o futebol
podia alcançar em uma estrutura de poder que valorizava o culto da
força e do combate. Ficava claro que, mais do que qualquer expressão
esportiva, caracterizava um sem número de metáforas belicistas, o que
se aplicava perfeitamente aos valores fascistas. O próprio Mussolini,
que gostava de propagandear seus dotes esportivos, não hesitava em
se deixar fotografar em situações que transparecessem ideia de força
física. Logo, apareceram fotografias nas quais o Duce desajeitadamente
aparecia com uma bola nos pés.
Neste contexto, o general Giorgio Vaccaro, coordenador-geral de
esportes da Itália Fascista, foi nomeado representante italiano nas nego-
ciações com a FIFA, não medindo esforços para o sucesso de sua missão.

Gilberto Agostino 57
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

Os italianos se comprometiam a assumir todos os gastos da competição,


inclusive na fase preparatória. Em 1932, em Estocolmo, após oito inter-
mináveis congressos, entre suspeitas de subornos e ameaças, a escolha
da Itália foi finalmente aprovada. Sem perda de tempo, a propaganda
fascista procurou articular a conquista à comemoração dos dez anos
do regime. Um dos cartazes promocionais do Mundial apresentava um
jogador, com a bola no pé, fazendo a clássica saudação fascista com o
braço estendido.
Oito estádios foram apresentados pelo governo fascista para a reali-
zação do campeonato Mundial. Na verdade, há alguns anos, o Fascismo já
vinha investindo na construção de grandes templos esportivos. Em 1927, o
Duce e o Rei Vittorio Emanuele III estiveram presentes na inauguração do
Littoriale, em Bologna, quando a Itália venceu de forma magnífica a Es-
panha. No ano seguinte, em Roma, uma nova festa contou com a presença
das autoridades para a inauguração do Estádio do Partido Nacional Fascista
(PNF), que passaria à história como palco da final da Copa de 1934. Em
campo, os italianos derrotaram os húngaros por 4X3. No ano seguinte,
Turati inaugurou Il Testaccio di Roma com o jogo Roma X Brescia. De
pequenas proporções, construído todo em madeira e com as arquibancadas
pintadas de amarelo e vermelho, daí ser conhecido como giallorossi, foi
esta uma das primeiras obras do Fascismo a receber a bênção do catoli-
cismo. Afinal, neste mesmo ano, Mussolini havia firmado com o Papa Pio
XI o Tratado de Latrão, regularizando as relações entre o Estado Italiano
e a Igreja Católica. Apesar de ter sido demolido em 1940, sendo utilizado
apenas por onze anos, principalmente pelo Roma, il giallorossi marcou
o seu tempo, recebendo muitas visitas do Duce. Como se não bastasse, o
estádio foi ainda o palco de inspiração para um dos mais famosos filmes
esportivos da época fascista, Cinque a Zero (Cinco a Zero), baseado em
uma partida entre Roma e Juventus.
Em 1932, seguindo a onda de inaugurações esportivas, foi a vez
do Stadio del Littorio, em Trieste, um dos estádios de menor porte a ser
utilizado na Copa de 1934, capacitando apenas 25.000 torcedores. Já
entre aqueles construídos especialmente para o Mundial, destacaram-se
L’Ascarelli di Napoli, com capacidade para 45.000 espectadores, destruído

58 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

pelo bombardeio aliado em 1943, durante a II Guerra Mundial, e Il Comu-


nale di Torino, com capacidade para setenta mil pessoas e idealizado como
o mais imponente complexo esportivo do país. Em um comunicado do
governo fascista, o estádio, que logo seria chamado de Benito Mussolini,
era anunciado: A vasta construção é toda em cimento armado e surge no
meio de um campo esportivo onde estão outros terrenos de jogo, piscinas
e ginásios esportivos. A arquitetura é de estilo racional.1 
Desde muito antes da própria confirmação da Itália como sede do
II Campeonato Mundial, Vaccaro já havia começado a organizar as bases
da comissão técnica da Azurra. Nesse sentido, ainda em 1929, o general
convocou Vittorio Pozzo para assumir o posto de Comissario Tecnico,
expressão com um evidente sentido militar. Pozzo, ardoroso admirador
do futebol inglês, vinha se dedicando à crônica esportiva, mas já havia
treinado a seleção nos Jogos Olímpicos de 1912, quando os italianos
depararam-se com o Wunderteam, de Hugo Meisl, sendo derrotados por
5X1. Assumindo novamente o comando da Azurra em um novo contexto
e com plenos poderes, o Comissario impôs seu esquema e montou um
time realmente competitivo, principalmente contando com o talento dos
oriundi. Estes eram o resultado de um fenômeno bastante expressivo para
os rumos do futebol internacional que marcou decisivamente os últimos
anos da década de 1920.
Cada vez de forma mais frequente, dirigentes europeus vinham para
a América do Sul atrás dos talentos argentinos, uruguaios e brasileiros.
Na verdade, como ainda não existia um regime profissional nestes paí-
ses, um jogador não estava legalmente preso a este ou aquele clube. Isto
significava que poderia deixá-lo a qualquer momento. Sem multa, sem
passe ou qualquer coisa do gênero. Para a FIFA, tratava-se de um negócio
perfeitamente legal. As coisas começaram a preocupar os dirigentes sul-
-americanos no início da década de 1930. Em excursão pela Europa, o
Vasco da Gama perdeu de uma vez só dois de seus importantes jogadores:
Fausto e Jaguaré. Na hora do regresso, quando o time já estava de malas
prontas, anunciaram que não embarcariam, seduzidos pelas vantagens que
o Barcelona lhes oferecia. Mais que a Espanha, entretanto, era a Itália o
principal polo de atração naquele momento. Diante da crise de valores

Gilberto Agostino 59
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

que vivia o calcio, Mussolini garantira à Associação Italiana de Futebol


plenas condições para a naturalização de jogadores sul-americanos que
tinham ascendência italiana, então chamados oriundi.
Apenas em 1931, cerca de 39 jogadores brasileiros haviam sido
transferidos para atuar em times italianos, principalmente saídos de São
Paulo, onde a imigração tinha deitado raízes mais profundas. Quando um
empresário da Lazio desembarcou em São Paulo com os bolsos cheios de
dinheiro atrás de jogadores com nomes ou sobrenomes italianos, levou
consigo quase todo o time do Corinthians, boa parte do Palestra Itália e
outro tanto do Santos. Um caso que ficaria bastante famoso foi o do ponta-
-direita corinthiano Filó, na verdade Amphilóquio Marques Guarisi. Por
sua descendência italiana, o jogador chegou na Itália bem a tempo de ser
aproveitado para a seleção italiana em 1934, acabando por se transformar
no primeiro brasileiro Campeão do Mundo.
A Argentina também já havia cedido a clubes italianos um bom
número de oriundi, com muitos seguindo o caminho aberto por Libo-
natti, primeiro jogador argentino a transferir-se para gramados italianos
já em 1924. À medida que o processo ia se acentuando, alguns desses
casos passaram a despertar a ira dos dirigentes platenses. Um deles foi
o centromédio Luisito Monti, que atuava no Boca Juniors e havia sido
vice-campeão em 1930, sendo contratado pelo Juventus de Turim. Outro,
o ponta-esquerda Raimundo Orsi, foi “sequestrado” pelos italianos por um
salário de 8 mil liras, além de uma expressiva quantia de luvas e um carro
FIAT. Juntamente com De Maria e Guaita, outros dois oriundi argentinos,
Monti e Orsi seriam aclamados heróis da Azurra na conquista do Mundial
de 1934. Apesar de enfrentar muitas críticas da imprensa internacional
pela contratação dos oriundi, a Associação Italiana de Futebol não voltou
atrás em suas determinações. Até mesmo o técnico Vitorio Pozzo chegou a
afirmar no tom belicista da época: Se eles podem morrer pela Itália, podem
jogar pela Itália. Afinal, como possuíam ascendência italiana, segundo
a noção de cidadania Fascista, estes poderiam ser alistados. Pozzo lem-
brava ainda que alguns dos oriundi eram filhos de veteranos da I Guerra
Mundial, falando em nome da questão do sangue, tão cara às ideologias
totalitárias. Nesse sentido, Mussolini mantinha uma preocupação em es-

60 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

pecial com a “pureza” dos atletas e havia instruído os dirigentes para que
nenhum descuido fosse cometido na escolha dos jogadores. Apenas os
tidos como racialmente puros podiam ser admitidos, tornando-se funda-
mental a exclusão daqueles que, mesmo com sangue italiano, possuíssem
algum traço mestiço.
Nesse momento, diante das compensações financeiras que a Itália
oferecia, muitos jogadores sul-americanos aproveitaram a situação para
falsificar documentos, incluindo sobrenomes italianos às identidades.
Esta questão seria intensamente explorada pelos adeptos da profissio-
nalização na América do Sul, não por acaso adotada na Argentina em
1931 e no Brasil em 1933. Em meio ao que se denominou de verdadeira
redescoberta da América, em algumas transferências transparecia a ideia
de libertação – o definitivo rompimento com o passado. Um desses casos
envolveu Fernando Giudicelli, jogador do Fluminense. Um dos tantos a
ser atraído pela corrida do ouro que a Itália oferecia, Giudicelli, com um
nome “bem” italiano, era considerado um emigrante de volta à casa. Na
sua última partida no Brasil, o jogador aproveitou para acertar as contas
com a arbitragem, espancando, em campo, o árbitro Leandro Carnaval.
Este, completamente atordoado, mal teve condições para expulsá-lo. O
jogador saiu do campo direto para o navio, de chuteiras e tudo.
Na partida de abertura do Mundial, milhares de espectadores
aplaudiram entusiasticamente Mussolini no Estádio de Roma. Apesar do
otimismo dos torcedores e do entusiasmo governamental, a jornada para
a conquista do Mundial não seria fácil para a seleção italiana e o preparo
físico mostrar-se-ia fundamental. Isto porque o regulamento da competição
estabelecera uma eliminatória simples. Se o jogo terminasse empatado,
uma nova partida seria disputada no dia seguinte. Assim, diante de um
gigantesco esquema de propaganda, cada disputa da Squadra Azurra era
representada como uma guerra ritualizada em que a presença dos emblemas
nacionais – uniformes, bandeira, hino – e o próprio Duce ganhavam uma
posição de destaque. Este assistiu a todas as partidas, comemorando com
os camisas-negras cada vitória. O jogo entre Itália e Espanha entrou para
a história dos mundiais: foram 210 minutos de embate – duas partidas
inteiras e mais uma prorrogação –, com muitos dos titulares ficando no

Gilberto Agostino 61
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

meio do caminho, em uma época em que não eram permitidas substituições.


O herói italiano da partida foi Giuseppe Meazza, que foi retirado do campo
desmaiado, após fazer os gols da vitória. Nada poderia demonstrar mais ca-
balmente o espírito de sacrifício exigido pelo Fascismo.
Na semifinal, os italianos enfrentaram os austríacos, vencendo
com um gol de Guaita, apesar de o grande destaque da partida ter sido
o goleiro Combi. Na final, diante de 75 mil espectadores, os italianos
entraram em campo para enfrentar a Tchecoslováquia. Os tchecos foram
derrotados por 2X1 na prorrogação, embora jamais tenham aceitado o
resultado – para eles, alcançado com o favorecimento do juiz. Segundo a
delegação tcheca, o árbitro fora visto no camarote de Mussolini um pouco
antes da partida ter início, uma clara demonstração de sua subserviência
aos desígnios fascistas, que acabaram por ser concretizados. Aclamado
aos gritos de DU-CE, DU-CE, DU-CE, Mussolini compareceu ao estádio
juntamente com todo o Ministério e fez questão de entregar o troféu da
vitória ao capitão dos azurri. A vitória foi saudada como reflexo de uma
Nação forte e preparada para enfrentar os inimigos, em um momento em
que os planos governamentais se inclinavam cada vez mais para a invasão
da Etiópia, que seria concretizada nos próximos meses.
Como fizeram outros governos do período entre-guerras, os fascistas
também utilizaram largamente encontros esportivos para promover uma
política de aproximação com outros regimes, ampliando o campo das rela-
ções internacionais para além dos mecanismos tradicionais da diplomacia.
Neste sentido, ainda antes da Copa, em 1933, a partida entre a Juventus
e o Marselha foi interpretada como um dos mecanismos de aproximação
com a França. Para muitos, o jogo valia mais do que qualquer encami-
nhamento da inoperante Liga das Nações. Tal estratégia, todavia, muitas
vezes gerava reações nem sempre tão favoráveis ao governo de Mussolini,
uma vez que as pulsões promovidas em uma partida de futebol eram um
terreno propício para exprimir hostilidades. Quando a Juventus foi jogar
na Tchecoslováquia contra o Slavia, a reação dos torcedores tchecos foi
de total repulsa em relação não só aos azurri, como ao regime fascista
como um todo. Tal reação refletia na verdade um quadro internacional
de tensão, uma vez que italianos e alemães se aproximavam diplomati-

62 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

camente, enquanto tchecos, iugoslavos e romenos formavam a Pequena


Entente, receosos dos projetos expansionistas da Alemanha – a esta altura
já governada por Adolf Hitler. Na ocasião do jogo, o embaixador italiano
em Belgrado afirmou: ...as copas, os campeonatos são situações muito
importantes, mas há alguns casos em que se dá prioridade à suscetibili-
dade nacional, que então é posta em jogo em cada competição esportiva.2 
Em fevereiro de 1933, quando Itália e Bélgica se encontraram para
um jogo amistoso, um grupo de antifascistas atacou violentamente alguns
jornalistas italianos. Mesmo com estes reveses, o futebol continuaria a ser
utilizado como uma das referências de diplomacia e poder pelos fascistas.
Em novembro de 1934, apenas alguns meses depois do triunfo italiano na
segunda edição da Copa do Mundo, os azurri foram à Inglaterra enfrentar
os inventores do jogo. Antes do embarque dos jogadores, o próprio Duce
fez um discurso vibrante, conclamando-os à vitória.
Durante a transmissão da partida, multidões se aglomeravam nas
ruas de Roma, onde inúmeros alto-falantes haviam sido instalados, vi-
brando com a narração de Nicolo Carosio, um dos mais importantes lo-
cutores esportivos do rádio italiano, inventor de expressões futebolísticas
tipicamente italianas em substituição à tradicional nomenclatura inglesa.
Principal meio de comunicação de massas, o rádio era um dos trunfos
do regime na esfera da propaganda, tendo uma amplitude muito maior
que a imprensa escrita ou mesmo o cinema. Se em 1932 existiam cerca
de 300.000 aparelhos no país, seriam mais de 1 milhão de receptores em
1938. Capaz de transmitir “verdades absolutas”, o rádio tornava o locutor
não apenas o narrador do evento, como o seu intérprete mais confiável.
Como no caso deste jogo, grandes momentos do Fascismo chegaram ao
conjunto da população através do rádio, como a campanha da Etiópia.
Desta forma, a narração da partida era um momento de lealdade patriótica,
em que a rotina era interrompida para render-se aos êxitos italianos em
terras distantes.
Disputada no estádio de Highbury, a partida foi chamada pela im-
prensa internacional de “O Jogo do Século”, abrindo caminho para um
epíteto que ainda seria utilizado em muitas oportunidades. A imprensa
inglesa, por sua vez, denominou sua seleção de Armada de Drake – jogo

Gilberto Agostino 63
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

de palavras com Ted Drake, jogador do Arsenal, cuja missão era derrotar os
homens de Mussolini. Para a Squadra Azurra, jogando a primeira partida
desde a conquista do título mundial, derrotar a indecifrável Inglaterra era
um desafio ainda mais dignificante. Iniciada a partida, assistiu-se a uma
verdadeira batalha campal, digna de entrar para a história do futebol como
Batalha de Highbury. Logo no primeiro minuto, os ingleses tiveram um
pênalti a seu favor, saindo na frente. Em seguida, uma entrada mais dura
de Ted Drake em Luisito Monti fez o clima esquentar. Com os italianos
procurando revidar a cada lance, deixando o jogo em si de lado, os in-
gleses fizeram três gols em apenas quinze minutos. Parecia se anunciar
um desastre para o futebol fascista, mas, através de Giuseppe Meazza, a
Azurra marcou duas vezes e só não empatou graças à atuação magnífica
do goleiro Frank Moss. Mesmo com o nível técnico subindo, as jogadas
violentas continuaram até o final, com vários jogadores deixando o campo
com ferimentos consideráveis, merecendo destaque especial Eddie Ha-
pgood, que saiu com o nariz quebrado, apesar de não ser o único a sair
fraturado. O jornal Daily Herald referiu-se ao jogo como o mais brutal e
perigoso dos encontros futebolísticos internacionais de todos os tempos,
exigindo que a FA pusesse um ponto final nas partidas internacionais,
consideradas lesivas à pureza do jogo inglês.
A recepção que os jogadores italianos tiveram por parte dos torce-
dores franceses, em 1938, não poderia ter sido pior. As relações entre a
França – principal bastião antifascista da Europa – e a Itália vinham se
deteriorando rapidamente, principalmente após a chegada da Frente Po-
pular ao poder. Para agravar a situação, alguns dias antes do Mundial, em
14 de maio, uma declaração de Mussolini hostilizando o governo francês
caíra como uma bomba nas relações entre os dois países. Já na primeira
partida da Squadra Azurra, contra a Noruega, as manifestações contra os
jogadores italianos fizeram o estádio tremer. Como relatou Ugo Locatelli,
que jogou aquela partida:

Pelo menos três mil antifascistas da França reuniram-se em


torno de nosso vagão de luxo para vaiar, gritar, xingar e insultar-
-nos com ‘fascistas’. A polícia montada interveio a bastonadas.
Quando nos apresentamos no campo com o uniforme azzura e

64 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

o pequeno escudo tricolor com o desenho entalhado dos feixes


liteiros e nos apresentamos em fila para saudar todos à romana,
o estádio parecia explodir.3 

Os dirigentes fascistas não mediam esforços para alcançar o bicam-


peonato. Enquanto as outras seleções deslocavam-se de trem, os italianos
tinham um avião à disposição. Na semifinal, os azurri enfrentaram o Brasil,
comemorando a vitória com argumentos tipicamente fascistas: Saudamos
o triunfo da inteligência itálica contra a força bruta dos negros 4. Na final,
entre Itália e Hungria, os 58 mil espectadores presentes no Estádio Co-
lombes, com exceção dos poucos italianos presentes, já haviam decidido
apoiar os húngaros. O presidente Albert Lebrun foi a campo cumprimentar
as equipes finalistas, acomodando-se logo em seguida na tribuna de honra,
de onde assistiu à partida rodeado de ministros e diplomatas. Segundo
uma história muito citada, um pouco antes do início do jogo um telegra-
ma chegara à concentração italiana enviado pelo próprio Mussolini. Sua
mensagem tornou-se bem conhecida: Vencer ou Morrer.
A Squadra Azurra sobreviveu, comemorando a força do Fascismo.
Em campo, os italianos marcaram logo aos seis minutos. Os húngaros
reagiram empatando a partida, embora Silvio Piola colocasse novamen-
te os italianos em vantagem. Ainda antes do fim do primeiro tempo, os
italianos marcaram mais um gol. Retornando do intervalo, os húngaros
esboçaram reação, chegando a marcar, mas os azurri foram sempre melho-
res e venceram por 4X2. Quando voltaram para casa, os jogadores foram
recebidos como gladiadores vitoriosos. Para o regime, o êxito esportivo
e sua potencialidade propagandística criavam mais uma vez uma ocasião
monumental, capaz de ritualizar a fidelidade nacional e exaltar valores
do regime.
Na Alemanha, desde que Hitler ocupara o poder, em janeiro de 1933,
a atenção desprendida pela nova ordem ao mundo dos esportes não parou
de crescer, assumindo uma dimensão fundamental dentro da perspectiva
nazista de controle total da sociedade. Menosprezando a expressão dis-
port – originária da Inglaterra –, com um significado próximo de prazer,
os nazistas preferiam utilizar o termo leibesübungen (exercícios físicos),

Gilberto Agostino 65
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

denotando um sentido mais marcial à prática esportiva. Anos antes, em


sua obra Mein Kampf, Hitler parecia repetir velhos jargões ao estabelecer
a relação entre a prática esportiva e a formação do elemento nacional
regenerado, que os nazistas passariam a chamar de “Homem Novo da
Futura Alemanha”:

A cultura física não é, pois, um problema que só interesse ao


indivíduo ou que afete somente aos pais, mas é um requisito indis-
pensável para a conservação da raça, a que o Estado deve proteção
(...). A função do esporte não é somente a de tornar os indivíduos
ágeis e destemidos, mas também prepará-los para suportarem todas
as adversidades. 5 

Nesse sentido, interessava aos nazistas a aproximação da prática


esportiva a todos os campos, notadamente ao universo do trabalho, em
que o trabalhador-esportista era tomado como exemplo a ser seguido, uma
vez que combinava a capacidade produtiva essencial à economia nacional
com os valores estéticos que refletiam a superioridade ariana. Em uma
dimensão festiva, a Frente do Trabalho Alemão organizou as Olimpíadas
dos Trabalhadores, atraindo milhares de participantes. Estes eram sub-
metidos a critérios que tanto mediam o desempenho no campo esportivo
quanto no profissional. Competições interempresariais envolviam diversas
modalidades, entre elas o futebol, cujos jogos decisivos sempre atraíam
públicos maiores. Em 1938, o Comitê Olímpico Internacional (COI) re-
conheceu oficialmente a prática esportiva da Frente do Trabalho Alemão,
concedendo-lhe uma taça olímpica como prova de aceitação dos valores
esportistas difundidos pelo Nacional-Socialismo.
Como desdobramento da política racial dos novos donos do poder,
o meio futebolístico foi diretamente atingido pelo antissemitismo nazista.
Já em 1933, a revista da seleção nacional apresentava a ordenação que
obrigava a Federação de Futebol Alemã a banir os jogadores judeus dos
clubes de futebol, obedecendo às determinações do “Parágrafo Ariano”
– Arienparagraph –, que excluía os judeus de determinadas atividades.
Dessa forma, perdia-se um grande potencial futebolístico, reproduzindo
nesse campo o que ocorreria com outras áreas, notadamente a científica,

66 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

em que os episódios envolvendo físicos que deixaram a Alemanha em


favor de outros países são bem conhecidos. Um desses casos envolveu
um dos grandes nomes do futebol alemão. Tratava-se de Gottfried Fuchs,
que brilhara nos Jogos Olímpicos de Estocolmo em 1912, marcando
dez gols em um só jogo na histórica vitória de 16X0 contra a seleção
da Rússia. Com a chegada de Hitler ao poder, Fuchs, já no apagar das
luzes de sua carreira, conseguiu fugir para o Canadá. Mesma sorte
não teve seu colega de seleção, Julian Hirsch, que continuou no país.
Descoberto em 1943, quando oferecia seus serviços como treinador de
futebol, Hirsch foi enviado a Auschwitz, onde ainda se deparou com um
ex-companheiro, Otto “Tull” Harder, que atuava como guarda do campo.
Harder seria julgado após a guerra e alegaria em sua defesa que era um
guarda mais tolerante do que a média, pois permitia que os prisioneiros
jogassem futebol em Auschwitz.
Além da projeção interna que o esporte propiciava, o governo nazista
utilizou, desde o primeiro momento, a prática esportiva como fator de
aproximação internacional, procurando quebrar o isolamento cultural que
alguns países haviam imposto ao país. Se durante a República de Weimar
os encontros esportivos internacionais envolvendo a Alemanha giravam
em torno de 20 atividades por ano, os nazistas aumentaram significativa-
mente esta média, chegando ao pico de 78 participações internacionais
em 1935. Em meio a este verdadeiro tour de force diplomático-esportivo,
merece destaque a visita da seleção alemã à Inglaterra, uma das partidas
de futebol mais vibrantes de sua época, não pelas variáveis do jogo em si
mesmo, mas, sim, pelas múltiplas conotações políticas que viria a alcançar
nas relações entre os dois países.
Na verdade, a ideia de uma nova partida de futebol entre ingleses e
alemães já vinha amadurecendo há muito tempo, tendo sido adiada pelos
efeitos da Grande Depressão e, finalmente, retomada pelas federações
em meados de 1935. O encontro foi agendado para o final do ano – 4 de
dezembro –, sendo escolhido o White Hart Lane, campo do Tottenham
Hotspur, clube ligado à comunidade judaica inglesa, como palco do es-
petáculo. Mal fora anunciada a tramitação, entretanto, grupos antinazistas
na Inglaterra protestaram. Em breve, receberiam o apoio dos círculos

Gilberto Agostino 67
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

judaicos, indignados com as leis antissemitas recém-outorgadas pelos


nazistas. Estas, conhecidas como Leis de Nuremberg, procuravam definir
a essência racial de um legítimo alemão, tornando-a uma base jurídica
para a segregação dos judeus. Na edição de 15 de novembro, o jornal Star
anunciava o protesto dos torcedores do Tottenham contra a realização de
uma partida considerada por eles como não uma afronta somente à raça
judaica, mas a todos aqueles que amam a liberdade.6 
Logo em seguida, ainda no calor de uma discussão que parecia in-
cendiar o país, circulou a notícia de que uma partida entre um time alemão
e um polonês, disputada na atual cidade de Regensburg, havia terminado
em tragédia. Segundo o relato, os torcedores alemães presentes tornaram
a situação ainda mais tensa quando começaram a atirar pedras nos joga-
dores poloneses. Ao final do ataque, os poloneses contavam com vários
feridos, sendo que um dos atletas não suportou os ferimentos e morreu a
caminho do hospital. Mesmo questionada por alguns, a notícia do jogo
em Regensburg trouxe apreensão para membros do governo. Afinal, como
conter os milhares de torcedores alemães que poderiam cruzar o Canal e
invadir o país com suas bandeiras, suásticas e hinos em homenagem ao
Führer? Enquanto outras notícias com o mesmo teor apareciam na im-
prensa, não eram poucos os que encaravam a partida como uma questão de
segurança nacional. Por outro lado, as manifestações dos judeus cresciam
intensamente, mobilizando cada vez mais adeptos.
De forma original, torcedores do Tottenham chegaram a planejar
um ato de repúdio à presença da seleção alemã. A ideia consistia em
mobilizar seis mil torcedores e orientá-los a marchar pacificamente so-
bre o campo de jogo, minutos antes do apito inicial da partida contra o
Bradford, a ser realizada no dia 19 de outubro. Não se sabe exatamente
por que o plano não foi adiante. À medida que o jogo se aproximava, a
questão era calorosamente discutida nas altas esferas governamentais.
No Ministério do Interior, as preocupações com os torcedores alemães
estavam na ordem do dia. Já para o Foreign Office vivia-se um momen-
to de contemporização com os alemães – que passaria à história como
Política do Apaziguamento –, sendo necessário vencê-los no campo de
jogo sem perturbar as intrincadas negociações na esfera internacional,

68 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

ou seja, todo o esforço deveria ser realizado para que tudo saísse bem,
inclusive o resultado do jogo.
Na verdade, o governo alemão pensava da mesma forma, sendo
pressionado por uma exigência ainda mais crucial. Programados para o
ano seguinte, os Jogos Olímpicos de Berlim ainda estavam sob a ameaça
de não contar com a presença de atletas norte-americanos, uma vez que
a campanha de boicote promovida pelos EUA ganhava cada vez mais
projeção. Neste sentido, disputar uma partida de futebol na Inglaterra, de
preferência sem distúrbios, era para a Alemanha uma demonstração de
sintonia com o espírito de fair play e uma poderosa referência política para
minar a campanha de boicote. Foi com este objetivo que o próprio Hitler
enviou instruções ao embaixador em Londres para que as manifestações
patrióticas fossem contidas, notícia muito bem recebida pelo Home Se-
cretary, Sir John Simon. Um acordo foi estabelecido, determinando que
os torcedores alemães não poderiam cantar hinos, entoar slogans nazistas
ou transportar bandeiras com suásticas. Concluídos os últimos trâmites,
tudo estava pronto para a chegada da equipe alemã na Inglaterra. Enquanto
alguns esperavam que os alemães cruzassem o canal da Mancha em um
navio, como era usual, eles desembarcaram no aeroporto de Croydon,
causando um grande impacto na população inglesa. Três aviões recobertos
indelevelmente com suásticas traziam a delegação, recebida ansiosamente
pela imprensa. O Daily Worker anunciou com letras garrafais que a gan-
gue de futebol de Hitler havia aterrissado, embora as entrevistas com os
jogadores do Reich não confirmassem a chamada. Quando perguntado a
respeito do interesse do Führer no evento, um dos alemães respondeu: Hi-
tler não nos enviou mensagem alguma. Nós estamos aqui como esportistas
para jogar futebol contra os melhores jogadores do mundo. Isto é tudo.7 
Nos dias seguintes, os passos dos jogadores alemães foram acom-
panhados milimetricamente pela imprensa. Os horários dos exercícios,
das refeições, do descanso, tudo era informado por repórteres que pra-
ticamente levantaram um sítio no hotel em que a seleção alemã estava
instalada. As táticas, o perfil dos jogadores, os pontos fracos e fortes da
equipe, tudo isso era também objeto de observação e discussão. Todas
essas informações recolhidas ao longo dos dias contribuíam para reforçar

Gilberto Agostino 69
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

a ideia de que o jogo seria vencido pelos ingleses. Isso era ponto pacífico.
A questão era por quanto? No dia da partida, o Daily Express arriscou o
placar 8X2, enquanto o Daily Mirror preferiu não apostar no resultado,
mas, sim, no vencedor e na vantagem do placar: os ingleses, vaticinava o
jornal, venceriam por cinco ou seis gols de diferença.
Chegada a hora do embate, doze mil torcedores alemães atraves-
saram o Canal para assistir à sua seleção. Um gigantesco esquema de
segurança foi montado, dividindo-os em grupos – através de cores de
identificação – desde que chegaram ao país. Seriam mantidos em vigi-
lância desde a entrada do estádio até o local de embarque. Muitos desses
torcedores eram trabalhadores das indústrias alemãs favorecidos pelo
programa de turismo organizado pela Força para a Alegria. Na realidade,
durante a estadia dos alemães, pouquíssimos incidentes foram alvos da
ação policial inglesa, e, mesmo estes, sem maiores consequências, como
no caso de um tal Ernest Woolwy, que foi preso por desfilar com uma
gigantesca bandeira com a suástica nas tribunas do White Hart Lane. Em
campo, com a bola rolando, as surpresas não foram muitas e o jogo em
si não teve tanta emoção quanto se esperava. Superiores, os ingleses não
tiveram dificuldade de vencer por 3X0, placar não tão dilatado quanto os
mais otimistas dos jornalistas previram.
Para Hitler e Göring, que ouviram a transmissão da partida na
Chancelaria do Reich, enquanto discutiam os planos de remilitarização da
Renânia, o resultado esportivo era uma decepção e só valia mesmo pelo
encaminhamento diplomático que representava. Terminado o jogo, apesar
de jornalistas estrangeiros disputarem selvagemente os poucos telefones
disponíveis para realizar ligações internacionais, o clima na cidade era
de tranquilidade. Os jogadores das duas equipes foram receber os cum-
primentos do Rei em uma audiência marcada pela cordialidade. O evento
terminara exatamente como os ingleses esperavam: uma vitória no cam-
po, um estreitamento esportivo com a Alemanha Nazista que coadunava
com as estratégias do Foreign Office. Para os dirigentes alemães, a visita
à Inglaterra não fora de todo ruim. Ninguém acreditava seriamente que
os ingleses pudessem ser derrotados em casa. Em compensação, abria-
-se a possibilidade de o time inglês retribuir a visita, o que seria bastante

70 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

interessante para a política internacional de Hitler no momento em que


começava a redefinir a ordem internacional estabelecida em Versalhes ao
final da I Guerra Mundial.
Apesar de todos os esforços da máquina governamental nazista,
a seleção alemã jamais conseguiu vencer uma das grandes competições
esportivas internacionais do período. A primeira grande frustração do
futebol nazista veio de fato em 1936, quando os Jogos Olímpicos de
Berlim foram transformados por Hitler, Göring e Goebbels em símbolo
da apoteose esportiva e estética do Terceiro Reich. Enquanto os cartazes
antissemitas eram retirados de cena, Berlim sofreu inúmeras intervenções
arquitetônicas, juntamente com melhoria de ruas, estradas e aeroportos.
Coube ao Estádio Olímpico concentrar, entretanto, o conjunto das aten-
ções. Hitler ordenara a reconstrução completa do velho estádio berlinês,
o Deutsches Stadium, tarefa encomendada ao arquiteto Werner March,
filho de Otto March, que desenhara o projeto original. March apresentou
um estádio modernista, envolvendo estruturas metálicas aparentes e vidro,
numa metáfora dos pinheiros que floresciam nas imediações do estádio
em Grünewald. Hitler, irritado, rejeitou o projeto, afirmando que jamais
poria os pés em uma caixa de vidro, sendo o encargo repassado a Albert
Speer. Arquiteto por excelência do Terceiro Reich, Speer reformulou o
projeto e o recobriu com citações helênicas, superdimensionou as propor-
ções e abriu gigantescos espaços para a evolução de massa das SS, SA e
Juventude Hitlerista.
Na abertura dos jogos, ao som do hino olímpico composto por
Richard Strauss, centenas de holofotes desenharam sobre a multidão a
catedral de luz. Quando a tocha olímpica chegou ao Deutsches Stadium,
havia percorrido o caminho que os nazistas fariam em sentido inverso
poucos anos mais tarde: da Grécia até a Alemanha, passando pela região
dos Sudetos, na Tchecoslováquia. A imponência dos Jogos e a grandiosi-
dade do estádio olímpico deveriam mostrar a todo o mundo a grandeza do
Reich dos Mil Anos. Trágica ironia – não muito longe dali, ficava o campo
de concentração de Oreniemburg, onde Hitler internava seus opositores.
Os jogos de Berlim constituem a mais emblemática manifestação
midiática de massas, seguindo o modelo já inaugurado pelo fascismo e pelo

Gilberto Agostino 71
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

nazismo nas grandes manifestações públicas. Não por acaso, a televisão entrou
em cena e o cinema marcou com firmeza a sua posição através das lentes de
Leni Riefensthal. Estavam reunidos os componentes marcantes da cultura
de massas no século XX. Como afirmou o historiador Peter Reichel, as
Olimpíadas de 1936 aparecem, assim, como uma espécie de obra de arte
total fascista, mistura de consagração nacional com ópera wagneriana,
fenômeno quase religioso em sua concepção, que transformava uma
competição pacífica entre nações em uma explosão de violência secreta,
de terror de Estado e de preparação de corações e mentes para a guerra.8 
Foi neste contexto que, depois de oito anos, o futebol voltou ao
programa olímpico. Em campo, não é surpresa, não faltariam momentos
de muita tensão e brutalidade. No jogo entre Itália e Estados Unidos, os
italianos agrediram o juiz depois da expulsão de um dos azurri. No con-
fronto entre Áustria e Peru, o campo foi invadido e a partida anulada. Os
peruanos, que venciam por 2X0, recusaram-se a jogar novamente. Em
protesto, toda a delegação do país abandonou os jogos, depois de tentar,
sem sucesso, conclamar os sul-americanos para que fizessem o mesmo.
Quando as notícias da confusão atravessaram o Atlântico, a embaixada
alemã em Lima foi apedrejada, enquanto os navios alemães foram boico-
tados pelos estivadores. Para o presidente peruano, Oscar Benavides, os
supostos “arianos” jamais podiam aceitar perder uma partida para aqueles
que consideravam inferiores.
Para a seleção alemã, a competição acabou nas semifinais, ao ser
derrotada por 2X0 pela Noruega do técnico Asbojorn Halvorsen, de origem
judaica. Pior ainda, o jogador que fez os dois gols noruegueses possuía um
nome tipicamente judeu – Isaaksen –, o que irritou ainda mais os dirigentes
nazistas. Corria o dia 7 de agosto, data que ficaria marcada para os dois
lados. Um Hitler “furioso”, segundo o relato de Goebbels, percebendo
que os alemães seriam inevitavelmente eliminados, deixou o estádio pou-
cos minutos antes de a partida terminar, estratégia utilizada mais de uma
vez diante de um revés olímpico. Ao final da competição, a Itália levou
o ouro, para a satisfação de Mussolini, convencido da supremacia dos
valores esportivos italianos, marcados pelo racismo e pelo culto da força.
Para os alemães, entretanto, pairava a decepção. Na verdade, os nazistas

72 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

nunca compreenderam, ou aceitaram, a ideia de que o fascínio do futebol


estivesse também em sua imprevisibilidade, nos caprichos que subvertiam
qualquer plano mais cartesiano. E como em tantas vezes, nestas horas, é
necessário encontrar um culpado, os nazistas não demoraram a fazê-lo: o
técnico Otto Nerz foi demitido, ainda no vestiário.
Mesmo em meio ao turbilhão em que vivia a Europa, as lembran-
ças do jogo Noruega X Alemanha continuaram presentes. No início da II
Guerra Mundial, quando as forças de Hitler começaram a impor uma nova
ordem europeia, antigos adversários esportivos foram chamados para o
acerto de contas com o nazismo. Chegara a hora de Asbojorn Halvorsen
ser transportado do campo de concentração em Alsace para Neuengamme,
nas proximidades de Hamburgo. A esta altura, aquele que havia sido não
só treinador, como um dos maiores jogadores de sua época, pesava apenas
quarenta quilos, acometido de tifo, disenteria e desnutrição. Na Noruega,
a vitória contra os nazistas continua a ser lembrada até hoje. O 7 de agosto
é celebrado como um dos momentos em que o futebol tornou-se um sím-
bolo de liberdade, representando a soberania da nação diante do inimigo.

m m m

A fascinação do futebol e suas imbricações políticas não seriam


encaminhadas de forma tão diferente na Espanha. Como ocorreu em
praticamente todas as partes do mundo, foram também os ingleses que
levaram o futebol para a Espanha. No final do século XIX, engenheiros
britânicos que trabalhavam nas minas de pirita de Rio Tinto organizaram
as primeiras partidas de futebol no território espanhol. Na virada do sécu-
lo, boa parte dos clubes que fariam história no futebol espanhol já havia
sido fundada: Bilbao e Atlético de Bilbao, em 1898; Barcelona, em 1899;
Español, em 1900, Real Madri, em 1902, e Atlético de Madri, em 1903.
Lançadas as bases do esporte, a Copa da Espanha foi inaugurada
ainda em 1902, junto com a coroação do Rei Alfonso XIII, sendo ven-
cida pelo time de Viscaya, um combinado dos melhores jogadores de
Bilbao. Em 1913, foi fundada a Real Federação Espanhola, uma clara

Gilberto Agostino 73
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

demonstração da importância que o esporte vinha assumindo no país. Nos


Jogos Olímpicos da Antuérpia, em 1920, a seleção espanhola sagrou-se
vice-campeã. Remonta a este momento a denominação Furia, criação do
técnico Paco Bru, que utilizou a expressão diante da imprensa espanhola,
visando caracterizar o espírito de seus jogadores diante da possibilidade
de ganhar a medalha de ouro.
Apesar da unidade propiciada pela formação de uma competitiva
seleção nacional, a trajetória futebolística de Espanha não seria desvinculada
das identidades regionais, da tendência ao centralismo ou da luta pela auto-
nomia em relação ao governo central – uma das questões mais importantes
da trajetória da Espanha moderna. Diversos clubes do país haviam nascido
com uma clara identificação com o governo central, ou mesmo recebendo
a chancela real após alguns anos. Em 1920, na capital, o Madri FC recebeu
o selo de honra da coroa, passando a ser chamado a partir de então de Real
Madri, denominação que caiu em desuso durante a experiência republicana
que precedeu a Guerra Civil, com o time sendo chamado simplesmente de
El Madri, mas voltou a ser utilizada com a chegada de Franco ao poder. Na
Catalunha, era o Espanyol que possuía uma ligação expressiva com o Rei
Alfonso XIII. Apesar de não obter uma projeção de tanto destaque quanto
outros famosos clubes do país na década de 1920, esta equipe contou com
um dos maiores goleiros espanhóis de todos os tempos: Ricardo Zamora.
Corre uma história no clube de que quando chegou ao Kremlin a informação
de que o governo espanhol passara às mãos de Alcalá-Zamora, o próprio
Stálin teria indagado: “Zamora é o jogador de futebol, não é?”9 
Entre os clubes que representaram historicamente a oposição ao
centralismo de Madri, nenhum deles atingiu a projeção que alcançaria o
FC Barcelona. Na verdade, à época da fundação, poucos podiam acreditar
que um clube de futebol atingisse uma transcendência capaz de represen-
tar de forma tão acabada os anseios e a projeção política e social de uma
identidade coletiva. O Barça – como os torcedores acostumaram-se a
chamá-lo – desde cedo aproximou-se da identidade catalã, misturando-a
com seus signos enquanto clube de futebol, como denota um dos gritos de
guerra da equipe: Visca el FC Barcelona! Visca Catalunya! (Vida Longa
ao FC Barcelona, Vida Longa à Calatunha!), ou mesmo o hino do clube:

74 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

O estádio não é mais que um grito:


Nós somos la gente blaugrana...
Pouco importa de onde viemos,
Do Norte ou do Sul,
Em um ponto nós estamos de acordo:
Uma bandeira nos torna irmãos,
Blaugrana no vento...
Um grito de bravura
Faz conhecer nosso nome no mundo inteiro:
Barça, Barça, Barça!

Durante a ditadura de Primo de Rivera (1923-1930), o Barça enfren-


taria momentos muito difíceis. Um dos primeiros atos do novo governo,
que chegou ao poder através de um golpe de estado em 13 de setembro, foi
multar o clube catalão em 10.000 pesetas por sua participação na comemo-
ração do Dia Nacional, festejada dois dias antes. Nos anos seguintes, sob
a vigilância das autoridades, o clube sofreu constantemente todo tipo de
ameaças, inclusive de fechamento do seu estádio. Em muitas das manifes-
tações políticas contra o governo de Madri, a bandeira catalã, la Senyera,
foi substituída pelo estandarte do Barça. Este apresenta a inconfundível
combinação do azul e do grená (blaugrana), segundo a mitologia catalã,
as únicas cores disponíveis no ateliê do suíço Hans Gramper, fundador
do clube, quando desenhou o uniforme dos jogadores. Recentemente, Jeff
King no livro FC Barcelona: Tales from the Nou Camp (Contos de Nou
Camp) retomou uma velha história em relação às cores do Barça, depois
de analisar algumas cartas arquivadas pela família Gamper. Segundo ele,
é bem possível que as cores do clube tivessem sido inspiradas nas cores
do cantão suíço de onde veio Gamper ou de um time inglês denominado
Waterloo Rugby Football Club. A última hipótese não seria nada impro-
vável, uma vez que esta se tornara uma prática muito comum nos tempos
de afirmação do esporte. O próprio Real Madri, para alguns a perfeita
representação da antítese ao Barcelona, teria suas cores baseadas em um
dos mais famosos clubes ingleses de sua época, o Corinthians.

Gilberto Agostino 75
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

Em meio à radicalização política em que o país se encontrava, viria


um dos momentos mais críticos de toda a história da Espanha, a Guerra
Civil (1936-1939). Neste momento, o Barcelona assumiria importante
papel como um dos baluartes da resistência republicana. Quando o cerco
franquista se fechou, o próprio presidente do clube, Josep Sunyol, foi
morto em combate, tornando-se um dos mártires da causa catalã. Diante
das dificuldades que a guerra impunha, o Barcelona promoveu uma sé-
rie de partidas em países americanos, arrecadando fundos para a causa
e difundindo os valores da República, cada vez mais ameaçados pelo
crescimento da pressão golpista. Na verdade, o idealizador da tournée
do Barcelona pela América foi um antigo treinador de basebol do clube,
Manuel Mas Serrano, que vivia no México já há alguns anos. Foi estabe-
lecido um acordo que promovia a realização de seis jogos, tendo o clube
a receber a cota de 15.000 dólares no total, além de poder contar com
todas as despesas cobertas.
A primeira partida, realizada na cidade do México contra o América,
foi uma verdadeira festa, com os torcedores homenageando os jogadores
e saudando-os como verdadeiros heróis da causa da Espanha Livre. Tal
reação mostrava-se diretamente relacionada à postura do governo mexi-
cano diante da Guerra Civil. Lázaro Cárdenas, presidente do México, foi
um dos poucos políticos do Ocidente a se pronunciar a favor da causa
republicana, condenando a ação golpista conduzida por Franco. Apesar de
placares negativos, o sucesso do time espanhol foi tão grande que outras
partidas acabaram sendo realizadas além das programadas inicialmente,
abrindo caminho para que alguns jogadores ali se instalassem quando a
vitória franquista fosse consumada. Depois do México, o Barcelona foi
para Nova York, onde o time também foi recebido com entusiasmo por
grupos políticos que apoiavam a causa republicana. Em campo, jogos fo-
ram disputados com a seleção norte-americana, com o Brooklyn Hispano
FC e com o American Hebrew.
Paralelamente ao Barça, uma equipe basca também saiu em campo,
excursionando por uma série de países, sem contar, entretanto, com contra-
tos predeterminados, como fizera o Barcelona. Angel Zubieta, que jogou
nesta equipe, referiu-se mais tarde aos jogadores bascos como viajantes

76 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

errantes, quase como artistas de circo, que só podiam contar com o talento
para sobreviver de cidade em cidade. Na América, o time jogou em Cuba,
na Argentina e no México, onde alguns jogadores também acabaram se
instalando. Dois deles, Roberto e Gorostiza, seriam mais tarde cooptados
pelo governo de Franco, regressando ao país.
À medida que a guerra pendia para o lado dos golpistas, a situação
dos esportistas republicanos ficava mais difícil, acompanhando o quadro
geral. Quando Madri foi tomada, o estádio Chamartín foi alvo de uma
ação impiedosa que devastou suas dependências, transformando a madeira
que sustentava as arquibancadas em combustível para aquecer as tropas
golpistas. Já no final de 1938, a resistência perdia terreno, enquanto os
nacionalistas ganhavam moral, pressentindo a vitória próxima. Lançando
bombas e panfletos sobre as cidades republicanas, a aviação franquista
procurava minar ainda mais o espírito de luta. Nesse contexto, em 21 de
dezembro de 1938, foi lançado o jornal Marca, inicialmente semanal,
mas em pouco tempo diário. Comprometido com o ideal franquista – o
subtítulo era “Com o braço levantado, todos os esportistas da Espanha” –,
o número de lançamento apresentou um artigo de Jacinto Miquelarena,
emblemático para pensar os rumos do esporte a partir da nova ordem a
que o país seria em muito breve submetido:

Durante a República, o futebol era uma orgia vermelha


de paixões regionais, pequenas e nefastas para o país. Eu já
tinha falado sobre isso bem claramente: quase todo mundo era
separatista e grosseiro em partidas do campeonato de Espanha.
O ‘biscaysmo’ (movimento em favor de Biscaya) se fazia ouvir
tanto nas arquibancadas do estádio Mamés em Bilbao quanto na
tribuna de Chamartín em Madrid. E, na maior parte dos casos, o
madritismo era um ‘biscaysmo’ de Madrid, ou seja, um localismo...
Felizmente tudo isto está bem longe. Nós temos os cadáveres do ini-
migo. Aquele marcado pela esquizofrenia do off-side e do penalty. É
o espírito cavalheiresco do esporte que me interessa, assim como
tudo que o esporte tem de leal e são, tudo que ele pode dar ao
prestígio nacional 10 .

Gilberto Agostino 77
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

Em janeiro de 1939, quando a Catalunha caiu em mãos franquistas,


o destino da Guerra Civil já estava definido. Entre aqueles que marcharam
ao lado das tropas vencedoras, estava um homem que ligara inexoravel-
mente o seu destino ao do Real Madri, Santiago Bernabéu, que já havia
sido jogador e técnico do clube e, em breve, alcançaria a presidência.
Logo em seguida, consumada a vitória militar, foi publicada a Lei de
Responsabilidades, que autorizava a perseguição de todos os que haviam
participado – “ativa” ou “passivamente” – da vida política republicana.
Os prisioneiros chegaram a 270.000, sendo que, segundo algumas
estimativas, cerca de 10% deste contingente foram fuzilados sumariamen-
te. Nesse momento, Franco ostentava uma força conquistada a partir do
que se afirmava ser uma “cruzada”, o que lhe conferia poderes plenos,
instituindo uma mistura eclética de elite militar de direita, de partido estatal
fascista e de conservadorismo católico. Assim, para a Catalunha, uma das
consequências imediatas de sua chegada ao poder foi a implementação de
uma rigorosa política de erradicação das tendências autonomistas, seja no
plano político, seja no cultural. Com este propósito assumiu o poder na
região o primeiro governador nomeado pela ditadura franquista, Wenceslao
González Oliveros, comprometido com o que denominava depuração dos
vestígios catalães.
Como num passe de mágica, seguidos decretos alteraram nomes de
locais públicos, jornais, instituições, conferindo-lhes denominações no que
se chamava espanhol de Castela, a “língua do Império”. O idioma catalão
foi oficialmente banido, juntamente com outras expressões linguísticas
regionais, paralelamente ao lançamento do slogan: Se você é patriota, fale
espanhol. Em meio a esta depuração, como era de se esperar, o Barcelona
sofreu intervenção estatal, sendo presidido por um homem ligado ao poder,
o Marquês de la Mesa de Asta, e obrigado a utilizar o espanhol em seus
símbolos, além de denominado Club de futebol de Barcelona, aparente-
mente uma diferença desprezível, mas, de fato, uma questão crucial para
muitos catalães que consideravam que a liberdade começava na língua.
Tal como na Catalunha, todos os clubes da Espanha que possuíssem
qualquer referência tida como estrangeira na denominação, símbolo ou

78 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

uniforme foram obrigados a passar pelo processo de “castelhanização”.


O Real Sporting de Gijón, fundado em 1905, teve que jogar sem o termo
Sporting até o fim do regime franquista. O Donostia Foot-Ball Club, de
San Sebastian, principal clube da capital do país basco, antes denominado
Real Sociedad, também foi obrigado a utilizar o antigo nome, apesar de
ainda existir uma terceira denominação, em idioma basco, igualmente
proibida oficialmente pelo regime franquista: Erral Futbol Elkaerta.
Instalada a nova ordem, Franco assinou o decreto criando a De-
legação Nacional dos Esportes da Falange Tradicionalista e das JONS
(Juntas Ofensivas Nacionais Sindicalistas), estabelecendo que a direção
do esporte espanhol ficaria a cargo da Falange. Daí em diante, a Delega-
ção Nacional encarregar-se-ia não só de todas as questões pertinentes à
organização, promoção e realização dos eventos esportivos, como também
de aspectos jurídicos e do controle das Federações, inclusive do Comitê
Olímpico Espanhol. Presidida pelo general Moscardó, um dos heróis do
sítio de Alcazar de Toledo (uma das batalhas cruciais da Guerra Civil), a
Delegação Nacional foi importante parte do processo de militarização que
marcou o esporte espanhol e atingiu seu momento mais crítico durante a
II Guerra Mundial.
Nesse período, a Federação Real Espanhola de Futebol foi diri-
gida por falangistas que viam o esporte como um poderoso mecanismo
de mobilização de massas. Em substituição à Copa do Rei, foi criada a
Copa El Generalísimo – título conferido a Franco –, enquanto o unifor-
me da seleção nacional teve sua cor alterada do vermelho para o azul,
condizente com os uniformes da Falange. Simultaneamente, foi insti-
tuída a obrigatoriedade da saudação fascista – braços erguidos – antes
de cada partida enquanto o hino da Falange estivesse sendo executado.
No campeonato de 1940, o time militar do Atlético Aviación sagrou-se
campeão, repetindo o feito no ano seguinte. Estavam lançadas as bases
do franquismo no futebol espanhol.

m m m

Gilberto Agostino 79
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

No início da década de 30, o mundo do futebol viu nascer um dos


maiores times que atuaram nos gramados europeus na primeira metade do
século XX. Criado por Hugo Meisl, um dos pais do futebol austríaco, e
Jimmy Hogan, técnico inglês que se transferiu para Viena, o Wunderteam
(Time Maravilhoso), como ficaria conhecida a seleção austríaca, deslum-
brou o mundo com um futebol extremamente técnico e rápido, envolvendo
os adversários com táticas que se mostravam bastante avançadas em rela-
ção às outras equipes de seu tempo. Meisl, desde sua inserção no mundo do
esporte, via no futebol uma forma de promover o nacionalismo austríaco.
Nesse sentido, instigou a realização de diversas partidas internacionais,
destacando-se o primeiro encontro realizado entre duas seleções no con-
tinente europeu: em 1902, austríacos e húngaros entraram em campo em
Viena para defender suas bandeiras, sintoma inequívoco das inúmeras
tensões que pairavam sobre o gigante com pés de barro que se tornara
o Império Austro-Húngaro às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Os
austríacos venceram por 5X0.
Tudo indica que Meisl e Hogan acertaram as engrenagens do
Wunderteam em maio de 1931. Neste ano, quando a Áustria goleou a
Escócia – uma seleção de ponta na Europa -, já se vislumbrava um time
com um arranjo tático diferente. A partir de então, os austríacos angaria-
ram uma vitória após a outra, na maior parte dos casos com exibições de
gala, suplantando a Alemanha duas vezes (5X0 e 6X0), a Suíça (8X1) e a
Hungria (8X2). Nesses jogos, brilharam juntos dois daqueles que seriam
considerados os maiores centroavantes da época, Matias Sindelar e Hans
Gschweidl, uma dupla que tiraria o sono de qualquer técnico, até mesmo
daquele encarregado de armar o time com duas feras ocupando a mesma
posição. Afinal, qual a fórmula tática capaz de acomodar dois artilheiros
tão hábeis na mesma equipe?
Meisl encontrou a solução recuando Sindelar e utilizando seus lan-
çamentos para favorecer a arremetida de Gschweidl. Hoje parece o óbvio,
mas na época era uma inovação. O Wunderteam mostrava-se invencível e
muitos não acreditaram quando a equipe não passou de um quarto lugar no
Mundial da Itália, em 1934. Quando Meisl morreu, em 1937, a magia do
time já não era a mesma, resistindo, entretanto, até o golpe desfechado logo

80 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

em seguida, como desdobramento da política expansionista do Terceiro


Reich. O Anschluss, como os nazistas se referiam à união Alemanha-
-Áustria, já vinha sendo articulado há tempos. Na verdade, a ideia podia
ser encontrada, sem nenhum tipo de rodeio ou metáfora, na primeira pá-
gina do Mein Kampf, publicado em 1925. Naquele 13 de março de 1938,
quando os nazistas entraram em Viena, o velho projeto foi finalmente
concretizado, sendo coroado com um discurso de Hitler em sua cidade
natal, Linz, quando o Führer anunciou que aquele era o momento de unir
o seu destino pessoal com o destino da própria Alemanha.
As consequências do Anschluss para o futebol austríaco não po-
deriam ter sido mais drásticas. Três dos mais importantes clubes do país
foram incorporados diretamente às competições alemães, jogando tanto na
Copa quanto na Liga Alemã: o Rapid Viena, o Admira Wie (transformado
em Admira-Wacker) e o First Viena, campeão em ambas as competições.
No primeiro momento, entretanto, como fariam em todos os territórios
incorporados ao Terceiro Reich, os nazistas começaram “depurando” as
federações e dando início a um processo de arianização dos dirigentes.
O FK Austria, time em que jogava Sindelar, foi um dos primeiros a ser
atingido, quando o presidente judeu foi substituído por um político iden-
tificado com os ideais do Nacional-Socialismo.
Visando comemorar o Anschluss, os dirigentes nazistas planejaram
um grande encontro esportivo, em que jogadores dos dois países estariam
em campo, representando a união do Wunderteam com a seleção alemã.
Corria o dia 3 de abril e milhares de torcedores lotaram o estádio em
Viena, muitos encarando a partida como um momento emblemático para
manifestar a insatisfação contra a anexação nazista. Os dirigentes alemães
conheciam o desfecho de um encontro entre Itália e Áustria ocorrido um
ano antes na Copa Internacional, quando o árbitro fora obrigado a sus-
pender o jogo devido às hostilidades contra os italianos – àquela altura,
os principais parceiros da Alemanha. Sendo o encontro encarado como
uma oportunidade de aproximar o países, era necessário um clima de
cordialidade, com a demonstração, a toda prova, de que a nova fase que
se inaugurava representava um momento de renascimento para austríacos
e alemães. Neste sentido, instruções foram dadas à comissão técnica para

Gilberto Agostino 81
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

que os austríacos fossem tratados com bastante consideração, bem acima


da “média esportista” dispensada pelos alemães em outras oportunidades.
Tanta consideração chegou a influenciar até mesmo o resultado da partida,
já que os austríacos ganharam por 2X0, marcando em dois pênaltis ques-
tionados por torcedores de ambos os lados.
Acreditando ser possível montar uma superequipe, os nazistas ins-
creveram-se para a Copa da França, a ser realizada dali a alguns meses, já
utilizando jogadores austríacos. Não contaram, entretanto, com Sindelar, o
Homem de Papel (Der Paperiener), notório por suas posições antinazistas.
Este se mataria com gás em janeiro de 1939. Seu enterro, transformado
por setores da resistência ao nazismo em demonstração de repúdio ao
Terceiro Reich, reuniu cerca de 20.000 pessoas. Em 1998, uma votação
popular na Áustria considerou Sindelar o jogador austríaco do século.
Na verdade, a união futebolística com a Áustria não aproximara
de fato os jogadores, não tornando o time tão forte quanto os dirigentes
esportivos nazistas esperavam. Preocupados com este quadro, procurou-
-se aprimorar a identidade dos atletas em relação ao regime e controlar
rigidamente o comportamento esportivo dos futebolistas. Submetendo-os
a um treinamento especial fora das quatro linhas, os jogadores aprendiam
nomes de personalidades, datas nacionais, além de aperfeiçoar a saudação
nazista. Herbert Moll, jogador que atuou no Bayern de Munique, assim
relatou a sua experiência:

Tínhamos aulas todas as terças-feiras depois do treino. Éra-


mos submetidos a um exame oficial. Os aprovados recebiam um
carimbo nos seus passaportes de jogador. Aqueles que não passavam
eram descartados. Os bem-sucedidos recebiam tíquetes de refeição,
passagens de trem de segunda classe e uns poucos marcos alemães
por cada partida.11 

Ainda antes da Copa da França, entretanto, em maio de 1938, um


jogo histórico representaria um difícil teste para a seleção alemã e marcaria
as relações esportivas do entreguerras, transformando-se em um dos mais
expressivos símbolos da Política do Apaziguamento desenvolvida pelos
ingleses. Desde que a seleção alemã jogara em White Hart Lane, três anos

82 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

antes, as grandes tensões que demarcavam a ordem internacional viveram


um processo intenso de aceleração. A participação de contingentes de
Hitler e Mussolini na Guerra Civil Espanhola não era segredo para ninguém,
fortalecendo as hostes de Franco contra os republicanos. No Oriente, a ofen-
siva japonesa na China – invadida em 1937 – demonstrava que não eram só
alemães e italianos que se empenhavam na busca de áreas de influência. Nos
Sudetos, território da Tchecoslováquia onde predominava uma população
alemã, grupos identificados com o nazismo procuravam enfatizar os valores
do pangermanismo, fazendo crescer as manifestações favoráveis em relação
à possibilidade de a área ser anexada pelo Terceiro Reich, como ocorrera um
pouco antes com a Áustria.
Em meio a uma rápida deterioração da velha ordem definida em
Versalhes, a postura de conciliação do Foreing Office em relação às pre-
tensões nazistas era a tônica da política inglesa. Programada para maio
de 1938, a visita da seleção inglesa à Alemanha era a contraparte que o
esporte poderia propiciar para este esforço, sendo que o próprio Sir Ne-
ville Henderson anunciou que assistiria à partida. E foi exatamente com
o propósito de conciliação que a comissão técnica inglesa foi instruída a
respeitar o protocolo nazista quando chegasse na Alemanha, demonstrando
fair play pelos valores políticos do adversário. Em outras palavras, tal
respeito implicaria em fazer a saudação nazista antes do jogo, gesto que
já indignara muitos atletas que haviam se defrontado com os alemães
anteriormente.
Desembarcando em Berlim, os jogadores ingleses demonstraram
uma imensa curiosidade pelo país, onde se dizia que estava sendo produ-
zida uma “raça de super-homens”. Envolvidos em uma espiral de prepa-
rativos – treinos, reconhecimento do gramado, preleções –, eles só viriam
mesmo a ter contato mais direto com os alemães na hora do jogo. Estes,
por sua vez, encontravam-se completamente absorvidos pelos preparativos
conduzidos pelo técnico Sepp Herberger – indicado pelo próprio Führer
–, sendo assistidos pelos mais renomados profissionais da Alemanha em
todas as questões pertinentes ao preparo físico.
A partida chamara especial atenção de Goebbels, que considerava
este encontro o mais importante embate futebolístico da história do país,

Gilberto Agostino 83
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

uma verdadeira questão de honra para os alemães. Com este argumento,


mais de vinte mil trabalhadores da Força para a Alegria foram mobiliza-
dos, sendo encaminhados, em trens, para o Olimpic Stadium, de Berlim,
que há poucas horas do início da partida mais se parecia com o palco para
os tradicionais rituais políticos que marcaram a estetização da política
nazista: 110.000 espectadores serpenteados por enormes bandeiras com
a suástica ao centro – visão impressionante para os ingleses mais inexpe-
rientes. Viriam então as tão discutidas questões protocolares. Diante da
expectativa de todo o estádio, tão logo foram entoadas as primeiras notas
do hino inglês, os jogadores ingleses ergueram o braço em direção ao
camarote do ausente Führer, onde Henderson se via cercado pela cúpula
nazi: Rudolph Hess, Goebbels, Göring e von Ribbentrop.
Como ocorrera em 1935, o jogo propriamente dito não apresentou
grandes surpresas. Até o mais patriota dos alemães não teria dúvidas,
depois daquele dia, de que a seleção inglesa era muito melhor do que a
seleção alemã. Transformando a superioridade em gols, os ingleses não
tiveram dificuldades de marcar seis vezes, contra três dos alemães. Um
pouco depois, circulou a história de que, no auge do domínio inglês, Hen-
derson ofereceu o binóculo a Göring, afirmando: Que gols maravilhosos!
Você realmente poderia vê-los melhor com isto.12  Encerrada a partida,
após um desconfortável jantar de confraternização entre as duas equipes,
caberia aos alemães disputar a Copa da França, a ser realizada dali a al-
guns dias. Oportunamente, deixavam o país em uma hora crítica, sendo
poupados diretamente dos comentários mais pessimistas da imprensa e
dos torcedores.
Uma vez em Paris, o clima que a seleção alemã encontrou não foi
dos melhores. Em campo, como já acontecera com os italianos, foi clamo-
rosamente vaiada pelos torcedores franceses. Ao comando de Sepp Her-
berger, a equipe alemã jogou com a Suíça no Parc de Princes, empatando
em 1X1. Segundo o regulamento, um novo jogo seria realizado. Neste, os
alemães terminaram o primeiro tempo vencendo por 2X0, com um dos
gols marcado por Hahnemann, um dos quatro austríacos que jogavam na
seleção alemã. Ao fim dos noventa minutos, entretanto, os suíços viraram
o jogo para 4X2. Consumada a derrota, há quem diga que Hitler espatifou

84 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

o rádio que transmitia a partida. Diante do ocorrido, o Führer chegou a


uma emblemática conclusão: a sede da FIFA deveria ser transferida para
Berlim. Ironicamente, foi a própria Suíça – e sua duvidosa neutralidade –
que salvou a hegemonia da instituição, mantendo-a resguardada durante
os piores momentos da II Guerra Mundial.
Poucos meses após a Copa da França, as pressões alemãs em direção
à Tchecoslováquia se intensificaram. Enquanto Hitler ameaçava enviar suas
divisões blindadas para resolver a questão dos Sudetos, os apaziguadores
ingleses não podiam suportar a ideia de uma nova guerra, envolvendo os
principais países europeus. Procurando resolver a questão “definitivamente”,
Mussolini propôs um encontro internacional em Munique. Nesta cidade, re-
presentantes franceses, ingleses, italianos e alemães decidiram o destino da
região dos Sudetos, sem ouvir a opinião dos soviéticos ou dos tchecoslovacos.
No ano seguinte, para surpresa de alguns – inclusive nazistas e
comunistas – a assinatura do Pacto Germano-Soviético estabelecia novas
perspectivas para o cenário internacional. Enquanto os contatos econô-
micos, diplomáticos e culturais entre a Alemanha de Hitler e a URSS de
Stálin se acentuavam – onde não faltaram oportunidades para cerimônias
esportivas de conciliação – Inglaterra e França reconheciam o desgaste
total do Apaziguamento. Em breve, o mundo sentiria mais uma vez o peso
de uma guerra total.

m m m

Para Goebbels, ministro da Propaganda do Terceiro Reich, o futebol


tinha o poder de mobilizar as paixões populares. Assim, os clubes de fu-
tebol continuaram entrando em campo na Alemanha durante quase toda a
guerra, procurando não só manter a força catalisadora do esporte, como
também passar à nação a sensação de normalidade. O rádio, um dos
mais importantes veículos da propaganda nazista, assumiu um papel
fundamental na divulgação do esporte, com os locutores incentivados a
narrar os jogos utilizando expressões militares. Muitas vezes, eram os
radialistas esportivos, através dos alto-falantes instalados nos estádios,

Gilberto Agostino 85
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

que anunciavam as vitórias nazistas ocorridas no campo de batalha.


Durante os anos de guerra, a seleção alemã cumpriu um papel decisivo
tanto em países satélites quanto em áreas sob ocupação militar. No
decorrer dos jogos, um sistema de prêmios e punições salariais foi insti-
tuído para regular a eficiência da seleção alemã. Até o final da II Guerra
Mundial, 34 partidas seriam realizadas, com as vitórias comemoradas
com todas as pompas que a propaganda permitia. Assim ocorreu, por
exemplo, em 1940, quando a seleção finlandesa foi batida por 13X0.
O futebol teve uma função importante para os nazistas quando as
dificuldades nos campos de batalha começaram a se intensificar para
as forças alemãs. Nesta hora, o noticiário esportivo cumpriu o papel
de preencher diversos espaços, evitando a divulgação de notícias sobre
os desgastes da máquina de guerra. Quando o curso do conflito virou
definitivamente em favor dos Aliados, cabia-lhe ocultar as derrotas mi-
litares. Ao mesmo tempo, os ingressos para as partidas eram vendidos
mais em conta do que em tempos de paz, estimulando o “consumo” do
esporte. O rádio, por sua vez, ganhou uma programação especial para
a divulgação de questões referentes aos jogos amistosos da seleção e
dos campeonatos locais. No momento em que a guerra interrompeu as
competições internacionais, era crucial que diversas partidas fossem
realizadas em toda área dominada pelos alemães, procurando demonstrar
a superioridade do invasor.

86 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

1939 Placar Local

24.setembro Hungria 5X1 Alemanha Budapeste

15. outubro Iugoslávia 5X1 Alemanha Zagreb

22.outubro Bulgária 1X2 Alemanha Sofia

12.novembro Alemanha 4X4 Boêmia Breslau

26.novembro Alemanha 5X2 Itália Berlim

3.dezembro Alemanha 3X1 Eslováquia Chemnitz

1940 Placar Local

7. abril Alemanha 2X2 Hungria Berlim

14. abril Alemanha 1X 2 Iugoslávia Viena

5. maio Itália 3X 2 Alemanha Milão

14 julho Alemanha 9X3 Romênia Frankfurt

1. setembro Alemanha 13X0 Finlândia Leipzig

15. setembro Eslováquia 0X1 Alemanha Bratislava

6. outubro Hungria 2X2 Alemanha Budapeste

20. outubro Alemanha 7X3 Bulgária Munique

3. novembro Iugoslávia 2X0 Alemanha Zagreb

17.novembro Alemanha 1X0 Dinamarca Hamburgo

Gilberto Agostino 87
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

1941 Placar Local


9. março Alemanha 4X2 Suíca Stuttgart

6. abril Alemanha 7X0 Hungria Colônia

20.abril Suíca 2X1 Alemanha Berna

1. junho Romênia 1X4 Alemanha Bucareste

15. junho Alemanha 5X1 Croácia Viena

5. outubro Suécia 4X2 Alemanha Estocolmo

5. novembro Finlândia 0X6 Alemanha Helsinque

16.novembro Alemanha 1X1 Dinamarca Dresden

7.dezembro Alemanha 4X0 Eslováquia Breslau

1942 Placar Local


18. janeiro Croácia 0X2 Alemanha Zagreb

1. fevereiro Alemanha 2X1 Suíça Viena

12.abril Alemanha 1X1 Espanha Berlim

3. maio Hungria 3X5 Alemanha Budapeste

19. julho Bulgária 0X3 Alemanha Sofia

16. agosto Alemanha 7X0 Romênia Bytom

20. setembro Alemanha 3X2 Suécia Berlim

18. outubro Suíça 3X5 Alemanha Berna

1. novembro Alemanha 5X1 Croácia Stuttgart

22. novembro Eslováquia 2X5 Alemanha Bratislava

(Folha de S. Paulo, 15 de agosto de 1999)

88 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

As derrotas nazistas, ocorridas em apenas oito oportunidades, foram


praticamente apagadas da memória, ocultadas ao máximo, pela propaganda
oficial. Uma delas, em 1941, exatamente no aniversário do Führer – 20
de abril –, foi encarada por Hitler como um ato imperdoável. Entre estas
poucas, uma das mais marcantes para os alemães ocorreu na Ucrânia em
agosto de 1942. Na verdade, não envolveu a própria seleção alemã, mas um
time nazista que representou o país diversas vezes, formado pela Luftwaffe
(Força Aérea), que enfrentou ex-jogadores locais. O episódio entraria para
história como o Jogo da Morte (Match Smerti). Sua história, entretanto,
volta-se para os acontecimentos de 1941, quando os nazistas invadiram a
Ucrânia e instalaram a nova ordem do Terceiro Reich.
Foi exatamente nesse período que o futebol assumiria um papel
determinante, empenhado em promover um tipo de resistência contra a
presença do invasor, mesmo tendo suas estruturas controladas e vários
atletas aprisionados. Um dos registros mais fascinantes que marcou esta
trajetória envolve Iosif Kordik, dono de uma padaria em Kiev, chamada
“Padaria do Número Três”. Kordik, a quem o atual governo ucraniano quer
ver como o “Oskar Schindler” da Ucrânia, salvou a vida de vários atletas
de origem judaica ao empregá-los no seu negócio – uma área vital para
o abastecimento da cidade, incluindo as tropas nazistas que a ocupavam.
Além de jogadores de futebol, foram empregados na padaria também
ginastas, pugilistas, esgrimistas e alguns poucos atletas de outras moda-
lidades. Nos momentos de folga, as partidas de futebol eram a diversão
“natural” de boa parte deles, sendo formado o Start FC, que contava, na
verdade, com jogadores que haviam integrado o Dínamo e o Lokomotiv,
times de Kiev dissolvidos pelos nazistas quando estes ocuparam a cidade.
Foi exatamente este time que acabou sendo desafiado pelos nazistas em
agosto de 1942.
Antes do jogo, o árbitro da partida entrou no vestiário do time
ucraniano e exigiu que os nazistas fossem saudados com o cumprimento
oficial do Terceiro Reich, ou seja, braços erguidos e a evocação de Heil
Hitler!. Muitas discussões se seguiram à retirada do árbitro e prevaleceu
entre os jogadores a ideia de desafio ao invasor. Durante a apresentação,
os jogadores ucranianos desrespeitaram as deliberações do árbitro e gri-

Gilberto Agostino 89
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

taram com eloquência FitzcultHura, saudação esportiva tradicional na


União Soviética, abrindo caminho para uma partida irretocável, frustrando
os alemães presentes no estádio, que viram a seleção da Luftwaffe ser
esmagada por 5X1.
Imediatamente após a partida, os dirigentes alemães articularam a
realização de uma revanche, reforçando o time para enfrentar pela segunda
vez o time ucraniano. Esta ocorreu três dias mais tarde, quando o time
da Luftwaffe foi derrotado novamente, desta vez por 5X3. Os vitoriosos,
entretanto, pagaram um preço alto pela ousadia. Alguns dias mais tarde,
a “Padaria do Número Três” foi ocupada pela Gestapo, sendo presos vá-
rios jogadores do Start, duramente torturados e enviados a um campo de
concentração. Oito deles seriam executados meses depois. Hoje, quem
visita a Ucrânia pode tirar uma foto ao lado do monumento erguido, em
1971, pelos soviéticos para homenagear a coragem daqueles que venceram
o invasor nazista.
Cerca de quarenta anos mais tarde, o cinema abordou o episódio
com o filme Fuga para a Vitória (Victory), de Freddie Fields. Fazendo uma
livre adaptação dos acontecimentos, a história transcorre em um campo de
concentração nazista, onde estavam mantidos alguns dos grandes nomes
do futebol mundial. Diante da possibilidade de se promover uma partida
demonstrativa da superioridade ariana, os alemães organizam um jogo
contra os prisioneiros, enquanto a Resistência, por sua vez, viu a possi-
bilidade de articular uma fuga espetacular, pelo vestiário, no intervalo do
jogo. Em campo, a partida é marcada pela violência e pela parcialidade do
‘árbitro’. Ao final do primeiro tempo, os alemães vencem com facilidade.
No vestiário, na hora da fuga, os prisioneiros decidem ficar, voltar ao
gramado e virar o jogo, mesmo que isto lhes custasse a vida. Aliás, vale
mencionar que Pelé e Ardiles representaram alguns dos jogadores aliados.
Na Itália, a explosão da II Guerra Mundial não trouxe alterações
imediatas para o universo futebolístico do país. Afinal, mesmo com toda a
afinidade ideológica entre Mussolini e Hitler, os italianos não ingressaram
diretamente no conflito, assumindo uma posição de não-beligerância que
se estendeu por quase nove meses. Sendo assim, neste período, a Azurra
entrou em campo contra a Alemanha, Suíça e Romênia, disputando amis-

90 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

tosos que corroboravam as posições do país em relação à guerra. Quanto


ao campeonato nacional, nada se alterou efetivamente, sendo que, em 2
de junho de 1940, a Ambrosiana sagrou-se campeã nacional. Exatamente
oito dias mais tarde, as tropas italianas juntar-se-iam às nazistas na luta
contra a França e a Inglaterra, levando o presidente dos EUA, Franklin
D. Roosevelt, a utilizar a expressão “punhalada pelas costas” ao referir-se
à postura de Mussolini.
Apesar da fragilidade que as forças armadas da Itália demonstrariam ao
longo do conflito, a certeza da vitória, alimentada por um gigantesco esquema
de propaganda, parecia dominar o país. Partindo dessa premissa, não se cogi-
tou a interrupção dos campeonatos esportivos. Mesmo diante dos primeiros
sobressaltos – a força da guerra aérea, os reveses no deserto e nos Bálcãs –,
os encontros futebolísticos continuaram, considerados pelas autoridades
um fator potencial de otimismo e um dos principais meios de transmitir
a sensação de normalidade almejada pelo governo. Os mais lúcidos, en-
tretanto, sabiam que tal situação não poderia perdurar por muito tempo.
À medida que as dificuldades impostas pela guerra se acentuavam,
mesmo os objetivos originais em relação ao futebol começaram a apre-
sentar “efeitos colaterais” indesejáveis, principalmente os altos índices
de violência envolvendo torcedores em dias de jogo. Em abril de 1943,
encerrava-se o último campeonato regular em tempos de guerra. A esta
altura, os aliados faziam os últimos preparativos para a operação de desem-
barque na Sicília, trampolim para alcançar o território continental italiano.
Concretizada em julho, a bem-sucedida ação militar representou um golpe
fatal para o fascismo. Algum tempo depois, ocorreria a prisão de Mussolini
em Grand Sasso e sua libertação pelas mãos nazistas, entregando-lhe o
governo títere em Saló. Tantos sobressaltos, logicamente, alteraram a vida
futebolística do país, embora o jogo não tivesse desaparecido totalmente.
No último ano do conflito, na áreas mais ao sul, onde a ocupação
aliada ganhou seu primeiro terreno, o futebol foi se revitalizando pouco a
pouco. No norte, manteve-se como um bastião potencial para a resistência,
apesar de todas as adversidades de uma guerra praticamente perdida. Nesta
região, foi organizado um campeonato denominado Alta Itália, com a
final decidida no dia 20 de junho de 1944. A regra geral, entretanto, até

Gilberto Agostino 91
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

o final da guerra foi mesmo marcada por uma profunda fragmentação de


campeonatos, envolvendo disputas de caráter regional ou setorial, com
destaque para times militares. Neste momento, o clima de insegurança fez
com que a Federação Italiana de Futebol mudasse de sede algumas vezes,
instalando-se em Veneza e depois em Milão, áreas onde a hegemonia
permaneceu nas mãos nazistas até os momentos finais.
Mesmo sob a tutela militar de Hitler, os dirigentes italianos não se
sentiram de fato seguros, alarmados pelas reiteradas recomendações de
membros da FIFA em relação à segurança da Taça do Mundo, em mãos
italianas desde 1934. Desde que a guerra eclodira, o próprio Jules Rimet
demonstraria preocupação especial com o destino da Deusa da Vitória, que
levaria seu nome alguns anos depois. Neste sentido, não mediu esforços
para que ela fosse escondida de Hitler, insaciável devorador de objetos
de arte em praticamente toda a Europa. O responsável pela preservação
da estatueta foi Ottorino Barassi, um dos mais importantes dirigentes de
toda a história do futebol italiano. Barassi havia atuado como árbitro de
futebol no início dos anos 20, ingressando nos bastidores do esporte em
1927, ao ser convocado por Leandro Arpinati para auxiliar no processo
de centralização do futebol italiano promovido pelo Fascismo. Em 1933,
Barrassi tornou-se secretário-geral da Federcalcio, sob a presidência de
Vaccaro, atuando na organização do Mundial de 1934.
Com a eclosão da guerra, o dirigente apresentou-se como voluntário,
voltando à vida esportiva em 1944, quando foi chamado em caráter de
emergência para substituir o Comissario da Federcalcio, Fulvio Bernardini,
destituído do cargo por questões políticas. Foi neste momento, assumindo
um posto-chave do futebol italiano em uma fase crítica, quando a soberania
do país estava comprometida pelo próprio peso da aliança com o Nazismo,
que Barassi viu por bem tirar a Taça Mundial do alcance dos alemães.
Manteve-a no minúsculo apartamento em que vivia, escondendo-a no
colchão de sua cama. Em seguida, um tanto assustado pela pressão alemã,
decidiu enterrá-la em um lugar seguro. Finda a guerra, Barassi sobreviveu
ao Fascismo, continuando no posto de dirigente do futebol italiano ainda
por muitos anos e reorganizando as bases do esporte sob governo repu-
blicano. Tão logo foi anunciada a realização do quarto torneio mundial,

92 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

o protetor da estatueta de ouro fez questão de conduzi-la pessoalmente


ao Rio de Janeiro, em 1950.
Declarada guerra à Alemanha, em 3 de setembro de 1939, a Ingla-
terra tinha começado os preparativos para um confronto que acabaria se
estendendo por longos seis anos. E foram os reveses dos primeiros mo-
mentos, como a queda da França e a Retirada de Dunquerque, assustadores
o suficiente para acarretar a suspensão de todas as competições esportivas
que envolviam multidões. Ficava claro para a população que esta guerra
não era uma mera continuação da anterior, assumindo consequências
bem mais amplas para o conjunto da sociedade inglesa. Em pouco tempo,
entretanto, as autoridades perceberiam toda a potencialidade que a prática
esportiva podia promover em um país que procurava se superar diante da
adversidade. Como em tantas outras vezes, o futebol assumiu um papel
expressivo, não só no sentido de reforçar o sentimento em torno da coe-
são nacional, como também a arrecadação de fundos para desassistidos.
É certo que muitas restrições foram feitas. Na verdade, nada seria mais
exatamente como antes, pois muitas estrelas já haviam sido convocadas
para o front. Até mesmo algumas tradições foram abandonadas. O sagrado
horário dos jogos, por exemplo, viria a ser alterado por questões ligadas
à manutenção da ordem.
Na verdade, o mais difícil obstáculo a ser superado para a manu-
tenção dos eventos esportivos viria de alguns setores da sociedade, que
ficariam conhecidos como Puritanos da Guerra (Puritans War), uma vez
que consideravam um desrespeito a realização de jogos, virtuais espaços
para comemoração, em um país que atravessava um momento tão difícil.
Alguns membros do Parlamento também assumiram posições contrárias
ao ritmo esportivo, embora com argumentos mais pragmáticos: estavam
preocupados em disponibilizar espaços esportivos para a guerra total
que o país enfrentava. Venceram algumas batalhas como, por exemplo, a
possibilidade de se utilizar o campo da equipe de cricket de Surrey para
aprisionar os paraquedistas alemães capturados em Londres nos raids da
Luftwaffe. Uma figura seria decisiva para a manutenção do esporte no
país, mesmo em meio a “seu momento mais difícil”: Winston Churchill.
Este sabia muito bem a importância de manter ao máximo a regularidade

Gilberto Agostino 93
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

do cotidiano, além de propiciar momentos de lazer em um país que pas-


sava tantas privações. Neste sentido, em 1940, sobreviventes da retirada
de Dunquerque foram especialmente convidados para assistir à partida
entre West Ham e Blackburn Rovers, que disputavam a final de um torneio
lançado logo no início da guerra.
Neste momento, o futebol conseguiu resistir até mais do que alguns
outros esportes, sendo associado ao espírito de resistência necessário para
enfrentar as ofensivas nazistas sobre o país. A bem da verdade, entretanto,
é inegável que uma certa magia do esporte se perdera nas partidas locais
diante das necessidades de segurança impostas pelo conflito. Diversas
restrições foram decretadas pelo Ministério da Guerra, comprometendo a
diversidade dos encontros futebolísticos ao limitar os deslocamentos dos
times, impedindo-os de se afastarem mais que cinquenta milhas da cidade
de origem. Por outro lado, em um país afetado pela guerra aérea, muitas
disposições referentes à concentração humana foram baixadas, limitando
em muitas partidas o público a oito mil espectadores, com venda antecipada
de ingressos. Finalmente, discorrera-se também a respeito dos pagamentos
dos jogadores, sendo limitado o ganho por partida na base de 30 shillings.
No plano internacional, as partidas da seleção inglesa eram mo-
mentos cruciais para o esforço de guerra, sendo prestigiadas em algumas
ocasiões não só por Churchill, como também pelo “herói vivo” do exército
inglês, Marechal de Campo Montgomery, assim como pelo próprio Rei.
Quando a desfalcada seleção da Inglaterra entrou em campo, em maio
de 1940, contra a Escócia, 75.000 espectadores estavam presentes no
Hampdem Park, incitando a equipe para uma vitória que não aconteceu,
com o jogo terminando empatado em 1X1. Em 1943, duas estonteantes
goleadas matariam a sede de vitória dos torcedores: em setembro, em
Wembley, o País de Gales foi batido por 8X3; um mês mais tarde, os
60.000 espectadores que foram a Maine Road foram contemplados por
uma goleada histórica sobre a Escócia de 8X0, em uma partida em que
os ingleses contavam com Stanley Mathews, Denis Compton e Tommy
Lawton. Tais vitórias foram anunciadas pela imprensa britânica como a
virada da maré da guerra, afirmando-se que o renascimento do futebol era
o sinal mais evidente do renascimento da própria nação.

94 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

Do outro lado do Canal da Mancha, tão logo a guerra começara,


alguns ainda acreditavam que o sistema de defesa da linha Maginot e a
ajuda dos ingleses seria suficiente para conter a Blitzkrieg nazista em
território francês. Seis semanas mais tarde, entretanto, em 14 de junho de
1940, quando as divisões Panzer entraram em Paris, ninguém mais tinha
dúvida de que se inauguraria em solo francês uma nova ordem imposta
pelos alemães. Tão logo consolidou-se a invasão, os nazistas passaram
a dominar o norte e a região central do país, formando duas regiões
denominadas zona ocupada e zona interditada, com diferentes graus de
autonomia. No sul do país, a ordem nazi estabeleceu um governo títere
sob a presidência de um herói da I Guerra Mundial, o Marechal Petáin,
com a capital no balneário de Vichy.
À medida que a vida cotidiana procurava se adequar à dura realidade
da guerra, em meio aos expurgos ideológicos e às constantes alterações
administrativas, o esporte começou a sentir o peso das primeiras diretrizes
impostas pelos invasores. Sentindo sua autonomia contestada, Jules Rimet
pediu demissão da Federação Francesa de Futebol, dedicando-se nos anos
seguintes a manter a soberania da FIFA, acantonada em Zurique. Em Vi-
chy, o grande desafio do futebol francês foi manter sua soberania diante
das novas medidas implementadas pelo Comissário-Geral da Educação
e dos Esportes, Jean Borotra, que decretou o fim do profissionalismo no
país, forçando os jogadores a buscar novas formas de organização para
sobreviver. Na verdade, a postura enquadrava-se em uma certa dose de
desprezo pelo futebol, compartilhada por muitos setores do meio esportivo
francês. Neste sentido, Borotra procurou projetar especialmente o rugby,
considerando-o uma disputa muito mais nobre, por seus valores e táticas,
e chegando mesmo a impor o tempo de duração deste jogo às partidas de
futebol, reduzidas para oitenta minutos.
Mesmo com o futebol desacreditado pelas autoridades esportivas,
seus dirigentes ainda conseguiram organizar um campeonato nacional que
reuniu as equipes melhores colocadas nas diferentes zonas do país. Foi
um momento privilegiado para que as paixões clubísticas aflorassem. Em
janeiro de 1942, como preparativos para os jogos internacionais a serem
disputados em seguida, a divisão entre França Ocupada e França Livre

Gilberto Agostino 95
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

transpareceu diretamente, desta vez sem a intermediação dos clubes. No


Parc de Princes, sob os olhares e aplausos de 35.000 torcedores, o embate
entre as seleções do Norte e do Sul foi considerado pelo público presente
e pela crítica esportiva como um sinal evidente do retorno ao bom futebol.
Apesar das expectativas suscitadas neste momento, chegada a
hora da seleção francesa entrar em campo para jogos mais disputados,
os resultados seriam decepcionantes. Enfrentando a Suíça no Vélodrome
de Marselha, no dia 8 de março, os bleus foram derrotados por 2X0. Nas
arquibancadas, a torcida questionava irritada a escalação do técnico Gaston
Barreu, que não convocara os principais jogadores do sul, privilegiando
aqueles da zona ocupada. Escapando da pressão dos torcedores, a seleção
viajou para Sevilha, onde entrou em campo no dia 15, para enfrentar a
forte seleção espanhola, com arbitragem de um juiz português. Para os
jogadores franceses, a viagem era uma válvula de escape, um momento
singular para fugir das privações de um país ocupado. Em campo, entre-
tanto, os bons ares da liberdade não fizeram efeito, prevalecendo a apatia
e o desânimo de uma equipe mal condicionada fisicamente. Contando
com o apoio de uma vibrante torcida e excelentes jogadores de frente,
os espanhóis não encontraram dificuldades para vencer os franceses por
4X0, em uma partida em que o destaque ainda foi Julien Darui, o goleiro
francês. O fulminante ataque do Red Star (André Symonyi e Alfred Aston),
que tantos gols havia marcado na última temporada, foi completamente
anulado pela forte marcação individual dos espanhóis.
Durante os dois anos seguintes, a seleção francesa sairia de circu-
lação. O futebol na França continuaria, apesar das restrições e ingerências
das autoridades. Com o retorno de Pierre Laval ao poder em 1942, Jean
Borotra foi substituído pelo Coronel Pascot. Este, apesar de suas antigas
ligações com o rugby, restabeleceria a duração das partidas para 90 mi-
nutos. Quanto ao profissionalismo, Pascot chegou a permitir a inclusão
de sete jogadores profissionais em cada equipe, decisão que ele mesmo
revogou alguns meses mais tarde, alegando que só o amadorismo manteria
a pureza do futebol francês.
Em 9 de maio de 1943, o campeonato – Copa Charles Simon – viveu
momentos de emoção quando o Olympique de Marseille e os Girondins

96 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

de Bordeaux foram à final no Parc des Princes. Em um jogo cheio de


variáveis, assistido por 35.000 espectadores, prevaleceu a igualdade – 2X2
–, adiando a decisão para uma nova partida. Dias antes do embate final,
o Olympique entrou com uma petição na Federação Francesa, alegando
que alguns jogadores do Bordeaux tinham sido inscritos depois da data-
-limite. Dando ganho de causa ao Olympique, a decisão da Federação foi
questionada pelo sucessor de Borotra, o coronel Pascot. Este exigiu que
o resultado do campeonato saísse no campo de jogo, cassando a decisão
da Federação. No dia 22 de maio, os times encontraram-se novamente no
Parc des Princes. Com uma renda recorde de 1.008.425 francos, destinada
aos prisioneiros de guerra, o Olympique venceu por 4X0, sagrando-se pela
sexta vez campeão da França.
Com o desembarque na Normandia, em junho de 1944, o domínio
nazista na França viveu seus momentos finais. À medida que a guerra se
aproximava do fim, o futebol ganhava mais projeção, pronunciando-se
como uma reação libertadora para um país que sofrera o peso da ocupação
por tantos anos. Alguns colaboracionistas tiveram que pagar pelo posicio-
namento assumido, sendo que muitos foram executados. Não surpreende
que muitos fossem colhidos no meio esportivo, alguns até mesmo heróis
do passado, como Alex Villaplane, que havia sido o capitão francês na
Copa de 1930 no Uruguai.
Como em muitos lugares da Europa, não só se comemorou a
paz com danças, festas e brindes. Jogou-se também futebol. Nas ruas,
praças, em meio aos destroços, militares, civis, ingleses, franceses,
muitos lembram-se de ter visto algo parecido com uma bola de cá pra lá,
celebrando a paz em meio a tanto júbilo. Em setembro, a liberdade foi
saudada com uma partida entre as equipes mistas de militares e civis de
franceses e ingleses, relembrando as ligações anteriores, interrompidas
pela guerra. Jogando com Frank Swift, Ted Drake e Stanley Matthews,
os ingleses terminaram goleando os franceses por 5X0. Quase ninguém
se importou de fato. Comemorava-se a Liberação. Neste dia, até a der-
rota foi festejada.

m m m

Gilberto Agostino 97
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

No outro extremo do espectro político, a Espanha de Franco havia


tomado parte na II Guerra Mundial através de uma única ação militar.
Formando a Divisão Azul, a tropa participou junto com os nazistas da
invasão à URSS. Encerrado o conflito, portanto, o país não conheceu
nenhuma alteração política de maiores proporções. Mesmo com o
banimento de alguns rituais tipicamente fascistas, como a saudação
romana, o poder continuava sendo exercido de forma arbitrária, com
Franco se anunciando como o último bastião de resistência contra o
avanço do comunismo na Europa. Tal argumento, entretanto, não era
suficiente para estabelecer uma total harmonia no plano das relações
internacionais, levando o país a conviver por alguns anos com a ani-
mosidade de alguns regimes democráticos. Foi dentro deste quadro
que o esporte representou uma poderosa arma diplomática do regime
franquista. E exatamente neste momento o futebol espanhol vivia uma
fase de esplendor, notadamente através do Esquadrão Merengue, como
ficaria conhecido o brilhante time do Real Madri, uma das maiores
equipes de futebol de todos os tempos.
A primeira edição da Copa dos Campeões em 1956 criou condições
para que o time exibisse seu talento, apresentando ao mundo uma legião
de estrelas e um jogo invencível. O campeonato havia sido criado em
resposta a um jogo amistoso, ocorrido dois anos antes na Inglaterra, entre
o Honved e o Wolvverhampton. Vencendo por 3X2, a imprensa britânica
anunciava o Wolverhampton como a melhor equipe do mundo, opinião
logo polemizada por Gabriel Hanot, do jornal francês L’Equipe. Ele aca-
bou propondo a organização de um campeonato europeu de clubes que
tirasse todas as dúvidas a respeito destas questões. No plano das relações
internacionais, o contexto não podia ser mais propício, uma vez que a
reconstrução europeia exigia a superação da rigidez dos mercados nacio-
nais, dando ensejo a experiências comuns, como a comunidade europeia
do carvão e do aço e, finalmente, em 1957, ao Mercado Comum Europeu,
nascido oficialmente com a assinatura do Tratado de Roma.
O Real Madri foi à final da primeira edição da competição disputan-
do o título com o Reims, equipe francesa que contava com Kopa, Fontaine
Piantoni, Vincent e Leblond. No Parc des Princes, com o estádio lotado,

98 Gilberto Agostino
Vencer ou Morrer

os franceses começaram de forma arrasadora, marcando dois gols em dez


minutos de partida. Os espanhóis não se intimidaram e acabaram vencendo
por 3X2. Em 1957, mais uma vez o Real Madri chegou à finalíssima da
Copa dos Campeões, desta vez derrotando a Fiorentina.
A esta altura, o sucesso da competição já levava a FIFA a pensar
em uma Copa Europeia de Nações. No ano seguinte, mais uma vez, os
espanhóis apareceriam como favoritos, em um campeonato que crescia
em importância, já contando com 24 clubes, oito mais do que na sua
primeira edição. Transmitida pela televisão, a final entre o Real Madri
e o Milan foi emocionante, só se decidindo na prorrogação, com a vitó-
ria de 3X2 para o time espanhol. Na quarta edição do torneio, em 1959,
o Real mais uma vez chegou à final, derrotando o Reims e se sagrando
tetracampeão da competição. Em 1960, o pentacampeonato seria alcan-
çado com a vitória sobre o Eintracht Frankfurt, no jogo mais vibrante da
competição. No estádio do Hampden Park, em Glasgow, diante de 135 mil
testemunhas, o time espanhol desfechou uma goleada de 7X3, considerada
por alguns analistas da época como a melhor partida de futebol de todos
os tempos. Era a apoteose do Esquadrão Merengue, que ainda disputaria
o título mundial de clubes com o Peñarol, campeão da Libertadores da
América, criada um ano antes. Após o empate de 0X0 em Montevidéu, o
time espanhol esmagou a equipe uruguaia em casa por 5X1.
Foi o início desta inebriante performance do Real Madri que se
transformaria em uma fonte diplomática e propagandística do governo es-
panhol pouco tempo depois que este ampliara suas relações internacionais,
firmando acordos com os EUA e com a Santa Sé. Recentemente, muitas
discussões envolvem a relação do Real Madri com o governo franquista,
sendo de amplo conhecimento a simpatia que Santiago Bernabéu devo-
tava ao Caudilho, assim como as reuniões periódicas entre o ministro dos
Negócios Estrangeiros, Fernando María de Castiella, e o vice-presidente
do clube, Raimundo Saporta. Admite-se que a equipe de fato representou
a Espanha durante todos esses anos. Por outro lado, há alegações que
pretendem rever algumas dessas interações e defendem a ideia de que
o Real Madri representaria o país sob qualquer governo – republicano,
monárquico ou mesmo franquista.

Gilberto Agostino 99
A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

Nesta mesma época, a força asfixiante do regime de Franco conti-


nuava exercendo forte pressão sobre o Barcelona. Como exemplo desta
situação, o 50º aniversário do clube, em 1949, que ainda vivia sob inter-
venção, foi comemorado com uma homenagem aos sócios que haviam
morrido na Guerra Civil defendendo a causa franquista. Obviamente,
nenhuma menção foi feita àqueles que defendiam, na mesma batalha, a
causa republicana, cujo contingente era bem mais expressivo. Foi neste
momento que a rivalidade entre o Barcelona e o Real Madri se consolidou
verdadeiramente, embora os torcedores do Barça também continuassem
encarando o Espanyol como rival direto – um “cavalo de Troia” –, ainda
mais quando na década de 1960 este clube viu o contingente de seus
torcedores crescer como decorrência do incremento das migrações internas.
Apesar de todas as pressões, novamente diante da adversidade, o
Barça continuaria marcando sua posição na luta pela autonomia. Mais
do que nunca, em um clima de angustiante fechamento político, o futebol
assumia a postura de catalisador da identidade coletiva. Mais do que nunca,
uma vitória no campo de jogo expressava a esperança de dias melhores.
Talvez esta relação tenha atingido sua plenitude em fevereiro de 1974, no
apagar das luzes da ditadura, quando o Barcelona foi à capital e venceu
o Real Madri por 5X0, um dos últimos grandes encontros entre os dois
clubes antes de a Copa El Generalíssimo ser novamente denominada
Copa del Rey. Não são poucos os que consideram o jogo em Madri, e
não o assassinato do Almirante Carrero Branco, em dezembro de 1973,
o verdadeiro marco de transição do regime. Quando em 1984 o Barça
finalmente inaugurou o seu museu, muitos elementos do jogo histórico
foram registrados.

m m m

Em Portugal, o futebol não recebeu um tratamento tão decisivo dos


dirigentes autoritários quanto ocorrera na Espanha. Na verdade, as origens
do jogo no país não foram nada auspiciosas. Na primeira metade do século

100 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

XX, as suas pretensões foram intimidadas pela “fúria” do futebol espanhol.


Em 1921, no primeiro jogo internacional da equipe lusa, os espanhóis
venceram por 3X1. Um ano mais tarde, contra os mesmos adversários, os
portugueses caíram por 2X1. A primeira vitória contra outra seleção viria
apenas em 1925, quando os italianos foram derrotados em Lisboa por 1X0.
Animados para disputar as eliminatórias visando a segunda edição da Copa
do Mundo, e contando com o primeiro ídolo futebolístico de sua história,
Victor Silva, os portugueses foram esmagados pelos espanhóis por 9X0.
O troco, não com um placar tão dilatado, só seria dado em 1947, quando
estes foram derrotados em Lisboa por 4x1. Apesar deste triunfo, a seleção
nacional, dividida pela rivalidade clubística, continuaria a amargar uma
série de derrotas, demorando muito a conseguir apresentar-se como uma
equipe realmente competitiva. Piores dias ainda estavam por vir: 10x0
contra a Inglaterra, no recém inaugurado Estádio Nacional, diante de toda
a cúpula de poder lusa, inclusive Salazar.
A partir de meados da década de 1950, diversos fatores contribuíram
para que o futebol português fosse ganhando nova forma. O contato com
outras escolas permitiu que uma série de inovações táticas fosse introduzida,
justamente no momento em que uma safra de excelentes jogadores das colô-
nias africanas chegava ao país. O Belenenses contratou Matateu, enquanto o
Benfica apresentou três revelações de Moçambique: o goleiro Costa Pereira
e o meio-campo Coluna. Um outro craque deixaria para sempre sua marca
na trajetória do futebol português: nascido em Lourenço Marques (atual
Maputo), era chamado de Nakulo, embora ficasse mundialmente conhe-
cido pelo nome de batismo Eusébio da Silva Ferreira, ou simplesmente
Eusébio. Jogando no Sporting (de sua cidade), filial do clube homônimo
sediado em Portugal, o jogador foi descoberto pelo técnico do Ferroviário,
Carlos Bauer, quando seu time foi jogar em Moçambique. Béla Gutman,
treinador do Benfica, acabou ouvindo falar da jovem revelação que, além
da habilidade com a bola, era capaz de correr 100 metros em 11 segundos.
Começava uma verdadeira disputa para contratá-lo. Tudo levava a crer que
o Sporting Club de Portugal conseguiria fechar o contrato com o jogador,
mas o Benfica se adiantou nas negociações, ficando com o craque que, em
1961, tinha apenas 18 anos.

Gilberto Agostino 101


A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

Neste ano, o Benfica venceu o Barcelona no estádio Wankdorf,


de Berna, conquistando a Copa Europeia de Clubes, título que trouxe
orgulho e encanto para os torcedores portugueses. Com a chegada – e o
amadurecimento – de Eusébio, o time voou mais alto. Em 1962, venceu
novamente a Copa dos Campeões e, no ano seguinte, o craque, chamado
de Pantera Negra, foi chamado para ingressar na Seleção do Resto do
Mundo, que enfrentaria a Inglaterra em Wembley. Em 1965, Eusébio foi
considerado o melhor jogador a atuar na Europa. Na esteira de prestígio
em que se encontrava o futebol português, pela primeira vez poderia ser
alcançada a tão esperada classificação para a Copa do Mundo. Para tanto,
Portugal precisava passar nas eliminatórias por uma chave bastante difícil,
formada pela Tchecoslováquia – vice-campeã em 1962 –, pela Romênia
e pela Turquia.
Nestes jogos, principalmente na casa do adversário, ficava claro o
quanto o futebol português havia evoluído. Contra a Turquia, em um jogo
marcado para Istambul, a delegação portuguesa se negou a deixar o seu
time entrar em um campo todo esburacado, na verdade, uma velha plan-
tação de batatas repleta de ervas. O jogo acabou sendo transferido para a
capital Ankara. Em Bratislava, contra a Tchecoslováquia, debaixo de uma
chuva torrencial, os portugueses se superaram e derrotaram os tchecos com
um gol de Eusébio. Isso em um jogo em que a equipe portuguesa atuou com
um jogador a menos, já que Fernando Mendes, do Sporting, tinha saído de
campo aos três minutos após uma entrada do meio-campo Krovasnak –
nessa época, não eram permitidas substituições.
Apesar da classificação brilhante para o Mundial, mesmo assim
Portugal chegou à Inglaterra sem chamar muita atenção, não sendo capaz
de gerar muitas expectativas, uma vez que caíra no grupo com a Hungria,
Brasil e Bulgária. Para a crônica em geral, os portugueses ficariam no
meio do caminho, considerando-se que brasileiros e húngaros possuíam
muito mais tradição. Em campo, o que se viu foram três vitórias da seleção
portuguesa, inclusive eliminando o bicampeão Brasil, em uma partida
marcada pela violência. Como os brasileiros já haviam sido derrotados
pela Hungria, acabaram sendo eliminados da competição. Portugal passava
para as quartas de final, tendo pela frente a Coreia do Norte, que vencera

102 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

surpreendentemente a Itália. Depois das anteriores exibições portuguesas,


parecia um jogo fácil, embora os coreanos tivessem chegado rapidamente
ao placar de 3X0. Os portugueses conseguiram fazer dois gols ainda no
primeiro tempo. No vestiário, o treinador da equipe portuguesa, o brasi-
leiro Otto Glória, um dos inovadores táticos que se instalara em Portugal
anos antes, chegou a insultar seus jogadores, exigindo-lhes dedicação,
garra e orgulho. Retornando ao gramado, os portugueses viraram o jogo
para 5X3, apesar de terem perdido Vicente, jogador fundamental para
a coesão da zaga. No total, Eusébio marcara quatro gols, dois deles de
pênalti, disparando na artilharia da competição.
O próximo embate seria contra os anfitriões da competição. A In-
glaterra levou o jogo para Wembley, contrariando o regulamento e, assim,
evitou Manchester, região onde a colônia portuguesa era expressiva. Para
muitos, foi o melhor jogo do mundial, com vitória para os ingleses por
2X1, com o zagueiro inglês Nobby Styles seguindo Eusébio por todos os
lugares do campo e Bobby Charlton fazendo, possivelmente, sua melhor
exibição pela seleção inglesa, sendo o autor dos gols da Inglaterra. Três
dias depois, disputando o terceiro lugar, os lusos bateram a União Soviética,
com o Pantera Negra marcando mais uma vez e sagrando-se artilheiro do
Mundial com nove gols. De volta à casa, os jogadores foram recebidos
por uma multidão entusiasmada com a excelente performance. Salazar,
obviamente, não ficou fora da festa e condecorou pessoalmente os jo-
gadores da seleção. Com a turbulência política resultante da Revolução
dos Cravos (1974), diante da indefinição do poder central, mais uma vez
a força dos clubes superou o selecionado nacional. A década de 1980 foi a
época de ouro do Futebol Clube do Porto, tradicional rival do Benfica,
que viria a ser vencedor da Copa dos Campeões e do Mundial Interclubes.
Acreditando na nova safra que surgia, o povo português comemorou a
classificação para o Mundial de 1986, no México, embora o clima entre
jogadores e dirigentes estivesse muito carregado, em função das discus-
sões em relação às premiações. Com a competição em andamento, estas
discussões se arrastavam, desunindo o grupo. Alguns anos mais tarde,
Aurélio Márcio, um dos mais renomados cronistas esportivos do país,
afirmou em relação à questão:

Gilberto Agostino 103


A Estettização da Política e a Fascinação do Futebol

As reuniões em Saltillo, onde a Seleção Portuguesa esteve ins-


talada, começaram num ambiente de desconfiança, que degenerou em
confrontos verbais e, por vezes, insultuosos, entre as duas partes – entre
jogadores e dirigentes – pois nem um nem outro queriam ceder (...) O
ambiente de Guerrilha tornou-se cada vez mais excitante, mais agres-
sivo, fazendo lembrar o PREC (processo revolucionário em curso), dos
primeiros tempos depois da Revolução de 25 de Abril.13 

A equipe portuguesa, denominada pela crônica de Os Infantes,


viveu um momento emblemático na partida contra a seleção de Mar-
rocos. Foi impossível não associar o embate a um dos momentos mais
importantes da história de Portugal: a batalha contra os mouros, em
1578, em que o Rei D. Sebastião desapareceu, deixando a esperança de
seu retorno. Nos campos mexicanos, os marroquinos venceram o jogo
por 3X1. Eliminados, os portugueses voltaram para casa, emparedados
em seu silêncio, sufocados pela saudade da geração de 1960. Mas man-
tiveram a esperança. Afinal, esta é uma palavra que tem um significado
muito especial para os portugueses. Além de representar a ideia de ex-
pectativa positiva pelo porvir, representa também o sentido de espera.
E os jovens craques que brilharam nos Mundiais Sub-20 – em 1989 e
1991 – fizeram tudo valer a pena. Mais uma vez, a glória portuguesa
atravessou o caminho do Brasil, derrotado na finalíssima que garantiu
o bicampeonato português. Em meio a tantas promessas, lá estava o
sucessor de Eusébio, Figo, representando a volta do Rei, o retorno do
esperado. Brilhando no Real Madri, jogador mais caro do mundo na sua
época, o craque reacendeu o encanto do futebol português, deixando
transparecer o quanto este se encontra entranhado no espírito nacional.
Afinal, os dois possuem algo em comum, que os une, como um destino:
se nasceram da dor, ganham forças na esperança.

104 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Notas

 1
Cf. Carlo Caliceti, Gli Stadi della Memoria, Calcio 2000, maio. 2001, p. 75.
 2
Cf. Angela Teja, Le sport italien et les relations internationales au temps
du fascisme, Sport et Relations Internationales (1900-1941), Paris:
L’Harrmattan,1998, p. 184.
 3
Cf. Antonio Papa e Guido Panico, Storia sociale del calcio in Italia, Bolonha:
Il Mulino, 1993, p. 197.
Cf. Eduardo Galeano, Futebol ao Sol e à Sombra, Porto Alegre, L&PM, 1995,
 4

p. 79.
 5
Adolf Hitler, Minha Luta. São Paulo: Editora Moraes, 1983, p. 255-256.
 6
Cf. David Downing, The Best of Enemies, op.cit., p.27.
 7
Cf. David Downing, The Best of Enemies, op.cit., p.31.
Peter Reichel, La Fascination du Nazisme, Paris: Éditions Odile Jacob,
 8

2000, p. 248-253.
Jeff King, FC Barcelona: Tales from the Nou Camp, London: Macmillan,
 9

2000, p.51.
Cf. Teresa Gonzalez Aja, La politique sportive espagnole dans l’Espagne
 10

républicaine et franquiste (1873-1975), Sport et Relations Internationales


(1900-1941), Paris: L’Harrmattan,1998, p. 217-218.
 11
Folha de S. Paulo, 15 de agosto de 1999.
 12
Cf. David Downing, The Best of Enemies, op.cit.,p.53.
Cf. José de Almeida Castro, Histórias da Bola, São Paulo:Edipromo, 1998,
 13

p.159.

Gilberto Agostino 105


Cartaz promovendo uma competição internacional organizada pela URSS nos anos 1920.
Vencer ou Morrer

CAPÍTULO 3

FUTEBOL E POLÍTICA NO “SOCIALISMO REAL”

Para entender o que uma vitória como essa re-


presentava para o povo húngaro, é preciso compreender
o que havia acontecido na Hungria a partir de 1949.
Vivíamos sob um regime bastante radical que usava
muitas armas, incluindo intimidação, para impor sua
visão. Isso incluía tentar solapar nossa identidade nacional
e pessoal. Obras artísticas de evidente cunho patrióti-
co, por exemplo, eram proibidas. Paradoxalmente, no
entanto, o Estado era muito enfático no que se referia a
fomentar o esporte como meio de propagar ao mundo o
sucesso do sistema comunista – e o surgimento da Sele-
ção de Ouro era parte disso. Por ironia, nossas vitórias
possibilitaram que 10 milhões de húngaros recobrassem
e celebrassem sua ‘hungaridade’ de uma maneira que
o Estado dificilmente poderia reprovar. Enquanto as
autoridades políticas tentavam monopolizar e manipular
nosso sucesso para seus próprios fins, a massa popular
foi liberada pelos noventa minutos de futebol: eles sabiam
de onde eram e sabiam que sua alma era húngara.
(Grosics, goleiro da Seleção de Ouro Húngara)

Gilberto Agostino 109


Futebol e Política no “Socialismo Real”

Tão logo foram sendo superados os momentos mais críticos da


Guerra Civil na Rússia (1918-1921), desdobramento da Revolução de
Outubro de 1917, o futebol já voltava a ocupar a posição de esporte mais
popular do país. As autoridades bolcheviques não hesitaram em promo-
ver diversos encontros esportivos, alguns coincidindo com atividades
governamentais, como o bem-sucedido Festival da Cultura Física, em
1920, organizado paralelamente ao Congresso da Terceira Internacional.
Finalizando o evento, foi realizado no campo que se transformaria no
futuro Estádio Lênin um jogo de futebol entre os delegados russos e os
estrangeiros. Em meio aos últimos, encontrava-se o ex-jogador do time
de Harvard, John Reed, que iria escrever um clássico sobre a Revolução
Russa: Dez dias que abalaram o Mundo.
Durante os grandes desafios lançados por Lênin – a consolidação da
União Soviética e a NEP –, o futebol assumiu posições contrastantes no
país. Se por um lado foi encarado como um desvio burguês, permissivo
devido às perigosas tendências em torno do individualismo e profissio-
nalismo, por outro, foi um artifício importante no sentido de fortalecer
as relações de “boa vizinhança” entre o governo bolchevique e os países
mais próximos, principalmente através de equipes formadas por sovietes.
Em 1922, inaugurando os encontros internacionais do futebol socialis-
ta, entraram em campo o time da Federação Operária da Finlândia e o
Zamoskvoretsky, clube de Moscou, que acabou vencendo o embate pelo
placar de 7X1. No ano seguinte, foi a vez de a equipe da Federação Russa
organizar uma turnê que começou pela Suécia, seguindo logo depois para
a Noruega, Portugal e Alemanha.
Na mesma época, na Turquia, as transformações promovidas por
Mustafá Kemal Atartük – proclamando a república no país em 1923 –
estimularam os soviéticos a buscar uma política de cordialidade com
a nova ordem do país. Mais uma vez, o futebol seria uma estratégia de
aproximação diplomática. Nada menos que 41 partidas de futebol foram
realizadas entre equipes soviéticas e turcas entre 1924 e 1936. Anali-
sando os resultados, algumas vitórias dos turcos acabam sendo surpre-
endentes, quando comparadas com desempenhos anteriores do futebol
soviético e com a própria defasagem técnica entre os dois países. Para

110 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

alguns analistas, não resta dúvida de que os jogadores soviéticos foram


instruídos a entregar alguns jogos, uma vez que sucessivas vitórias do
futebol socialista poderiam esfriar as relações com os turcos, justamente
na hora em que estes viviam um importante momento de afirmação da
soberania nacional.
O grande impulso para a modernização do futebol na União Soviética
viria mesmo na década de 1930, juntamente com as grandes transformações
promovidas por Stalin. Em 1936, foi organizada a primeira liga nacional,
centralizando o universo futebolístico a partir de Moscou. Sem abrir mão
de aproximar os encontros futebolísticos das grandes festas cívicas – Dia
do Trabalho, Dia da Constituição, Aniversário da Revolução de Outubro
–, a estrutura stalinista não descuidou de utilizar o jogo como meio de
aproximação diplomática, como outros países haviam feito anteriormen-
te. Em 1935, quando a União Soviética e a Tchecoslováquia assinaram
um acordo de paz, estabelecendo relações estremecidas há quase uma
década, um time de Praga fez três partidas em solo soviético, angariando
dois empates em Moscou e Leningrado, e uma vitória na Ucrânia. Três
anos mais tarde, em 1938, em meio ao turbilhão diplomático em que a
Europa estava envolvida, o Pravda anunciava como dever maior das
organizações esportivas

unir as forças progressistas ao seio do movimento esportivo


internacional, consolidar o front unido das organizações esporti-
vas dos Estados socialistas, dos jovens países independentes e dos
grupos esportivos de trabalhadores nos Estados capitalistas, onde
o objetivo é atender as decisões progressistas sobre os problemas
encontrados pelo movimento esportivo internacional e empregar o
esporte como uma arma na campanha pela paz e a compreensão
mútua.1 

A relação de um Estado rigidamente burocratizado com o universo


do futebol abriria espaço para uma identificação muito particular com o
esporte. Nomes de muitos clubes foram alterados. O Orekhovo Sport Club,
fundado por dois irmãos ingleses que trabalhavam em uma manufatura
têxtil em Moscou, teve seu nome alterado em 1923 por Felix Dzerzhinsky,

Gilberto Agostino 111


Futebol e Política no “Socialismo Real”

chefe da polícia secreta de Lênin. Passaria em seguida a ser chamado de


Dínamo de Moscou. Este clube seria praticamente o primeiro de uma
série de Dínamos fundados daí em diante pelos soviéticos – ou segui-
dores diretos –, simbolizando o valor que a indústria pesada possuía
para o socialismo: Kiev, Tbilisi, Minsk, Batumi, Bucareste, Dresden,
Berlim e muitas outras cidades que passaram para a órbita de influência
soviética até o fim da II Guerra Mundial. Na maior parte dos casos, os
Dínamos passariam a ser clubes odiados, uma vez que identificados
com a repressão.
Em um ambiente político fechado e policialesco, não foram pou-
cas as partidas em que torcedores rivais vaiavam e insultavam a equipe
como uma forma de hostilizar o regime. Duas exceções merecem ser
citadas: os clubes de Kiev e de Dresden, que conseguiram ganhar po-
pularidade e fugir do estigma de clubes identificados com a ordem, uma
vez que identificados antes de tudo com uma região: Ucrânia e Saxônia,
respectivamente.
Em Moscou, enquanto o Dínamo era apoiado pelo Ministério do
Interior, o Spartak era sustentado pelas cooperativas industriais. Pro-
curando ganhar espaço, encontravam-se também em Moscou o CSKA,
equipe do Exército Vermelho, o Lokomotiv, time identificado com os
trabalhadores do setor de transportes, o Torpedo Moskva, ligado à fábrica
de motores, e o Kryla Sovetov (Asas dos Sovietes), representando os
trabalhadores da aviação. Muito mais difícil era a situação dos times fora
da capital, como o Dínamo de Tbilisi, na Geórgia, e o Dínamo de Kiev,
na Ucrânia. Estes procuravam com muito esforço a afirmação diante
das potências futebolísticas de Moscou, situação que promovia disputas
viscerais entre os clubes. Algumas dessas rivalidades permaneceriam
latentes durante muitos anos. Em um desses casos, um medíocre jogador
do Dínamo Tbilisi, Lavrenty Pavlovich Beria, que se tornaria chefe da
polícia secreta soviética, lançaria todo o seu ódio contra os jogadores
rivais. Ingressando no círculo de poder do Kremlin em 1939, Beria
encarcerou muitos de seus desafetos nos campos de trabalho forçado
da GULAG (Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-Trudovykh Lagerey),
como foi o caso de Nikolai Starostin.

112 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Nascido em 1902, Starostin era um típico representante da geração


de atletas da Rússia bolchevique, interessado em todas as potencialidades
do esporte, sendo capaz de jogar, com igual desenvoltura, futebol no verão
e hóquei no gelo no inverno. Fundando o Spartak em 1935, time que se
tornaria um dos grandes rivais do Dínamo Tbilisi, Starostin foi a grande
estrela dos campeonatos de 1938 e 1939, vencidos pelo Spartak. Em seu
livro Futbol skvoz gody (Futebol através dos anos), lançado em 1989, o
jogador reproduziu o diálogo entre Beria e o treinador do Dínamo, que,
para Starostin, selou seu próprio destino e de seu clube.

‘Eu tenho somente uma questão’, disse Beria. ‘O que está


errado?’ O treinador respondeu: ‘Spartak paga altos salários’.
‘Realmente?!’, Beria demonstrou surpresa e disse: ‘Plumagem e
penugem ganham mais do que os oficiais do NKVD?...’. E voltou-se
para seu oficial: ‘Isso deve ser imediatamente corrigido’.

... ‘Há alguns problemas com a defesa, mas nós esperamos


que...’, retomou o treinador, mas Beria interrompeu-o: ‘Talvez uma
companhia de artilheiros fosse uma boa defesa? Isso pode ser ar-
ranjado, mas lembre-se que eles também serão treinados nas suas
costas. Eu aconselho Você a pensar sobre o que conversamos... 2 

A acusação que Beria articulou contra Starostin não foi simples-


mente uma daquelas utilizadas usualmente para os desafetos políticos:
protestar contra os rumos da Revolução ou apresentar um desvio burguês
de qualquer natureza. Algo maior foi pensado. Algo que conspirava contra
os próprios destinos da sociedade soviética como um todo: participar de
um complô visando matar Stálin. Encarcerado em 1942, juntamente com
seus irmãos, Starostin só sobreviveria pelo respeito que alguns guardas
nutriam por suas glórias futebolísticas, chegando a treinar um time da
segunda divisão.
Durante os anos de guerra, o futebol soviético não sobreviveu à
Operação Barbarossa – nome-código para a invasão nazista ao país em
1941 –, tendo reaparecido à medida que as vitórias do Exército Vermelho
restauraram a soberania do país. Há notícias de partidas comemorativas

Gilberto Agostino 113


Futebol e Política no “Socialismo Real”

sendo jogadas em cidades que escapavam do controle alemão. Em Sta-


lingrado, em 1943, milhares de pessoas assistiram a um jogo que come-
morava a vitória sobre os alemães envolvendo o Spartak e jogadores
locais. Em Moscou, cidade que não caíra nas mãos nazistas, partidas
foram realizadas no Dia do Trabalho, em um campo artificial montado
na Praça Vermelha.3  Tão logo terminou o conflito, em meio à indefinição
dos rumos que tomaria a nova ordem mundial, o Dínamo de Moscou
aceitou o convite lançado pela Federação da Grã-Bretanha para realizar
uma série de partidas amistosas em nome da conciliação internacional,
selando a amizade daqueles que lutaram juntos contra o inimigo na-
zista. Conscientes do prestígio do futebol inglês e da importância dos
resultados para a imagem da União Soviética no Ocidente, os dirigentes
esportivos do país resolveram reforçar a equipe do Dínamo de Moscou
com jogadores de outros clubes, medida que se mostraria providencial
nos momentos decisivos. Também por precaução, diversas condições
foram impostas aos ingleses, entre elas, a exigência de que ao menos em
uma partida o árbitro fosse soviético. Este, obviamente, embarcaria junto
com a delegação do Dínamo, embora a Federação Soviética garantisse
sua “neutralidade”.
Deixando Moscou para a longa viagem que tinham pela frente, os
jogadores viram mais de perto os escombros deixados por uma guerra
implacável. Mais tarde, alguns admitiram que a imagem da dor e da
destruição causada ao povo soviético havia tornado ainda maior a res-
ponsabilidade de um bom desempenho fora de casa. Uma vez na Ingla-
terra, os jogadores visitantes chegaram a se surpreender com o público
presente nos estádios. Logo na primeira partida, contra o Chelsea, mais
de 85.000 espectadores amontoavam-se para ver o confronto que vinha
causando furor na imprensa especializada. Oferecendo buquês de flores
aos jogadores do Chelsea antes do jogo, os soviéticos foram encarados
de início com uma certa curiosidade exótica, com seus calções abaixo do
joelho. Com a bola rolando, assistiu-se a um jogo com muitas variáveis,
com um empate final de 3X3. A milhares de quilômetros dali, na própria
União Soviética, a partida pôde ser ouvida na transmissão de Vadim
Sinyavsky, primeiro grande locutor esportivo do mundo socialista. O

114 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

tom de mobilização nacional explorado por este em suas transmissões


lembrava um pouco as mensagens do camarada Stálin durante os mo-
mentos mais críticos da guerra.
De volta ao gramado, agora no País de Gales, o Dínamo esmagou
o Cardiff por 10X1, partida que causou uma grande alegria e orgulho em
Moscou. Na verdade, poucos chegaram a saber em casa que se tratava de
um time da terceira divisão. A euforia com os dois resultados era grande
entre os próprios jogadores, embora a comissão técnica exigisse cautela,
lembrando a qualidade do próximo adversário, o Arsenal, time em que
jogavam as estrelas Stanley Mathews e Stan Mortensen. Sem dúvida, era
o jogo mais esperado de toda a excursão e os próprios dirigentes ingleses
decidiram tomar providências muito parecidas com aquelas adotadas pelos
soviéticos. Alegando que muitos atletas ainda estavam engajados nas ati-
vidades da desmobilização, craques de outras equipes acabaram ajudando
a compor um time bem mais competitivo. Como o estádio do Arsenal,
o Higbbury Stadium, alvo da blitz nazista, estava sendo reconstruído, a
partida foi realizada no White Hart Lane, naquele dia completamente
coberto pelo fog. Em uma situação normal, possivelmente o jogo seria
suspenso, mas as consequências do adiamento, assim como suas possí-
veis interpretações, concorreram para que ele fosse realizado mesmo sob
essas condições. De fato, assim desejavam os dois lados. Auxiliares do
árbitro – soviético – foram utilizados para demarcar a linha lateral, tal a
dificuldade de visualização.
Apesar de todas estas circunstâncias – e talvez exatamente em
função delas –, a partida foi marcada por muitos gols. Mesmo chegando
a estar perdendo por 3X1, o Dínamo conseguiu virar o jogo para 4X3.
Uma semana mais tarde, no confronto de despedida, um empate com o
Glasgow Rangers, na Escócia, selou a excursão com um empate de 2X2,
assistido por um público de 90.000 torcedores. Voltava o time soviético
invicto para casa, sendo recebido por uma verdadeira multidão. As gran-
des estrelas, o goleiro Komich, apelidado de Tiger pelos ingleses, e o
centroavante artilheiro Konstantin Beskov, que seria técnico da seleção
soviética na copa de 1982 na Espanha. Os resultados da excursão foram
encarados pelos dirigentes esportivos soviéticos como a demonstração da

Gilberto Agostino 115


Futebol e Política no “Socialismo Real”

capacidade futebolística do país. Já em 1946, a URSS ingressou na FIFA,


abrindo múltiplas perspectivas de encontros internacionais envolvendo
clubes e a própria seleção. Muitos planos foram feitos para os próximos
anos. Pensava-se nas Olimpíadas – já anunciadas para Londres – e na
próxima Copa do Mundo, a ser realizada na América do Sul.
Para os menos atentos aos meandros das relações internacionais,
os eventos que se seguiram apresentaram-se como uma desagradável
surpresa. O discurso de Churchill em Fulton, nos Estados Unidos, onde
foi difundida a expressão cortina de ferro, abriu para a opinião pública a
tensão latente que podia ser detectada na própria evolução militar da guerra.
Tornava-se transparenteEraonecessário
clima de hostilidade entre as duas
banir a nomenclatura superpotências
inglesa do esporte, adotando
que emergiam no pós-guerra. Em seguida, a Doutrina Truman selou o com-
expressões genuinamente nacionais.
Criava-se um novo vocabulário futebolístico no país, causando
promisso de contençãoembaraço
do socialismo. Logo depois, em 1948, o Bloqueio de
Berlim concluiu decisivamente a deterioração do diálogo entre os blocos.
para narradores4.

Mal foram lançadas as bases da Guerra Fria, o destino do esporte na União


Soviética se distanciou do “mundo ocidental”. No caso do futebol, a onda
de xenofobia que varreu o país impediu que o futebol promovesse os ansia-
dos intercâmbios com times ocidentais. Para os jogadores, chegava a hora
da lealdade. Assim, as cartilhas do partido com estudos sobre o socialismo
e as obras de Stálin passaram a valer tanto quanto os treinamentos físicos.
As origens inglesas do jogo foram encaradas como uma perigosa
infiltração. Enquanto os ideólogos da propaganda se esforçaram em
enxergar um mujique – como eram chamados os camponeses russos na
época dos tzares – batendo bola entre uma colheita e outra, os dirigentes
partiram para uma solução mais radical. Era necessário banir a nomen-
clatura inglesa do esporte, adotando expressões genuinamente nacionais.
Criava-se um novo vocabulário futebolístico no país, causando embaraço
para narradores4 .

football – nozhnoi myach


golkeeper – vratar
referee – sudya
offsaid – vne igry

116 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

korner – uglovoi
penalty – shtrafnoi

Depois de um bom período de quarentena, apenas em 1952,


nos jogos Olímpicos de Helsinque, a seleção soviética atravessaria as
fronteiras para mostrar seu jogo. Na verdade, era a primeira aparição
do país nas Olimpíadas desde a Revolução de Outubro. A base do time
era formada por jogadores do Exército Vermelho, muito popular no
país, uma vez que identificado com a vitória sobre o inimigo nazista.
A equipe, embora não recebesse mais treinamento nem funções milita-
res, dedicando-se apenas ao futebol, era conhecida como o “time dos
tenentes”. Desta forma, os jogadores eram enquadrados perfeitamente
no modelo de soldados-atletas, uma estratégia tão cara à propaganda
soviética em relação aos esportes.
Chegando as quartas de final da competição, o embate seria com a
Iugoslávia, país que representava a mais importante rachadura no bloco
socialista durante a Era Stálin. Em um jogo eletrizante, os soviéticos foram
buscar o empate depois de estarem perdendo por 5X1 até 30 minutos do
segundo tempo. Apesar de todo o esforço, em uma partida extra, em que
os soviéticos jogaram sem o astro Komich, os iugoslavos venceriam por
3X1, passando à semifinal. O primeiro resultado foi muito comemorado
na União Soviética, mas do segundo nada se falou, com os jornais sendo
proibidos de fazer qualquer tipo de menção ao jogo. Como consequência
imediata da derrota, o time dos tenentes acabou sendo dissolvido, com seus
jogadores sendo distribuídos por outras equipes, não antes de receberem
punições exemplares pela vergonhosa performance, chegando a perder al-
gumas condecorações recebidas no passado por serviços prestados à nação.
Em 5 de março de 1953, quando a notícia da morte de Stálin foi
finalmente anunciada pelo Kremlin, a incredulidade tomou conta da po-
pulação soviética. Depois de tantos anos de maciça propaganda em torno
da infalibilidade do líder, parecia impossível que um dia algo do gênero
pudesse acontecer. Enquanto a exposição do corpo atraía milhares de
pessoas à Praça Vermelha, a disputa pelo poder desenvolvia-se subter-
raneamente entre reuniões secretas e alianças de ocasião. Nesse embate,

Gilberto Agostino 117


Futebol e Política no “Socialismo Real”

levou a melhor o primeiro-secretário do Comitê Central do Partido, Nikita


Kruschov, representando uma ala reformista da cúpula soviética. Assu-
mindo as rédeas do país, ele empreenderia novos rumos em diversas áreas
das políticas interna e externa.
Redimensionando a postura da União Soviética em relação ao bloco
socialista, Kruschov adotou, pelo menos em um primeiro momento, uma
postura conciliatória, afrouxando os laços que ligavam a União Soviética aos
países da chamada Cortina de Ferro. Em 1955, surpreendendo a muitos, o líder
soviético foi pivô de um lance espetacular. Com um largo sorriso estampado
no rosto, promessa de abraços apertados e beijos eslavos, Kruschov desceria
no aeroporto de Belgrado e selaria um acordo de paz com a Iugoslávia de
Tito. Em fevereiro de 1956, durante o XX Congresso do Partido Comunista,
Kruschov denunciou as arbitrariedades do stalinismo, anunciando uma nova
era para o mundo socialista. Derrubavam-se velhos mitos e apresentavam-se
inúmeras perspectivas, abrindo caminho para uma relação mais direta entre
os blocos, que viria ser chamada de Coexistência Pacífica.
Entre as primeiras consequências da postura revisionista que repre-
sentava a ascensão de Kruschov, estava a libertação de inúmeros inimigos
políticos do stalinismo, assim como prisioneiros da II Guerra Mundial.
Foi neste momento que Nikolai Starostin foi libertado, podendo regres-
sar definitivamente ao mundo do esporte, reassumindo uma posição de
comando no Spartak. Na verdade, para o meio esportivo, de uma forma
geral, os novos ares que sopravam na União Soviética eram extremamente
favoráveis, uma vez que se intensificavam as inúmeras possibilidades de
intercâmbios. Neste momento, diversos clubes soviéticos fizeram excur-
sões ao exterior, assim como clubes ocidentais visitaram times da URSS.
Em 1954, merece destaque a visita do Arsenal a Moscou, devolvendo ao
Dínamo a visita que este fizera à Inglaterra ao final da II Guerra Mundial.
No ano seguinte, times soviéticos percorreriam campos ingleses e italia-
nos, projetando internacionalmente suas grandes estrelas: o goleiro Lev
Yashin (o Aranha Negra) do Dínamo de Moscou, e o centromédio Igor
Netto, capitão do Spartak.
Em pouco tempo, chegava a hora de a seleção nacional – a sbornaya –
também entrar em campo, algo que não fazia desde a derrota olímpica em

118 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Helsinque. Entre os jogos deste período, um encontro com a Seleção de


Ouro Húngara, que terminou empatado em 1X1, projetou o futebol soviético
como uma das grandes forças do bloco socialista. Logo viriam também
jogos com países ocidentais, reinaugurados com a visita da seleção francesa
a Moscou em 1955, quando os times empataram em 2X2. No ano seguinte,
foi a vez de os soviéticos apresentarem-se em Paris, batendo o recorde de
público no estádio de Colombes (cerca de 62.000 espectadores). Ao final,
para júbilo da torcida, vitória dos anfitriões por 2X1.
Apesar das transformações promovidas por Kruschov, algo pareceu
retroceder quando, em 4 novembro de 1956, o Exército Vermelho invadiu
a Hungria, esmagando um levante antissoviético. Três semanas mais tarde,
em Melbourne, tinha início a XVI Edição das Olimpíadas, sob protestos
de diversos países contra a ação soviética. Mesmo que um gigantesco
painel do estádio olímpico advertisse que “A classificação por países não
é reconhecida”, ninguém tinha dúvida de que as disputas da Guerra Fria
estavam claramente demarcadas no cenário das Olimpíadas, com cada
medalha obtida sendo comemorada como uma vitória no campo de batalha.
Foi neste clima que a seleção soviética, contando com oito jogado-
res do Spartak, montado por Starostin, voltava a campo para disputar um
jogo oficial. Graças ao gol solitário do ponteiro Illyn, a seleção obteve a
medalha de ouro, vencendo a Iugoslávia. Para os dirigentes, a vitória era
a comprovação de que o futebol soviético estava preparado para disputar
a próxima Copa do Mundo em 1958. Na prática, o peso da repressão es-
tatal não garantiria ao futebol soviético condições de entrar nos gramados
em 1958, na Suécia, com sua força máxima. O principal jogador do país
àquela altura, Eduard Streltsov, acabou não participando da competição,
desfalcando um time que não podia prescindir de sua habilidade e visão
de jogo.
Streltsov jogava no Torpedo e fora “convidado” a integrar ou o
Dínamo de Moscou ou o CSKA Moscou, uma vez que as autoridades
pretendiam reforçar os clubes de maior representatividade política. Iden-
tificado com o grupo a que pertencia, a recusa de Streltsov foi imediata.
O próprio vice-presidente do Torpedo chegou a declarar: Streltsov é como
uma grande montanha que você nunca poderá conhecer totalmente.5  As

Gilberto Agostino 119


Futebol e Política no “Socialismo Real”

autoridades, por sua vez, não aceitaram o jogo de palavras, conduzindo


o jogador a um campo de prisioneiros na Sibéria sob a acusação de ter
assumido um comportamento nocivo à sociedade. Seguia o caminho que
outros craques russos já haviam percorrido. Mesmo sem a estrela, acredi-
tavam os dirigentes no desempenho de sua equipe, orientada para realizar
uma forte marcação e sufocar os inimigos através de disciplina tática e
rigoroso preparo físico, o que se convencionou chamar no Ocidente de
futebol científico.
Chegando em Gotemburgo em 1958, a seleção soviética começou
bem, empatando com a Inglaterra e vencendo a Áustria. A cada jogo dos
soviéticos, a mídia ocidental se agitava, estabelecendo todo tipo de associação
entre o esporte e a disputa por hegemonia a partir dos referenciais da Guerra
Fria. Viria o jogo contra os brasileiros, e esta ansiedade não esmorecia,
cercando o encontro por tipo de especulação. Às vésperas da partida,
no Brasil, até mesmo o Cavaleiro da Esperança, Luiz Carlos Prestes,
foi indagado por repórteres, curiosos em saber para quem torceria. Em
campo, a magia de Pelé e Garrincha suplantaria os soviéticos por 2X0,
registrando alguns momentos mais eletrizantes do Mundial. Na partida
seguinte, os soviéticos jogariam mais uma vez com os ingleses, vencendo
por 1X0 com um gol de Ilyn, eliminando a Inglaterra da competição. Nas
quartas de final, contra os donos da casa, a URSS seria superada por 2X0,
encerrando também sua participação. Mal os soviéticos arrumavam as
malas, rapidamente os ingleses articularam uma revanche, convidando-
-os a jogar em Londres. A partida só seria concretizada de fato três meses
depois da Copa. Em Wembley, em setembro de 1952, a seleção visitante
foi esmagada por 5X0, a maior derrota da história do futebol soviético.
O revés em Wembley diante dos ingleses, em muitos aspectos
mais importante do que a própria eliminação na Copa, favoreceu a
busca por modelos de jogo mais técnicos. Neste prisma, os soviéticos
tinham no Brasil um dos exemplos, passando a reunir todo o tipo de
informações disponíveis sobre a magia do futebol campeão na Suécia.
Não por acaso, logo em seguida, o surgimento de um jogador driblador
e arisco – Alex Metrevelli – faria com que fosse no país chamado de
Garrincha Soviético.

120 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Em 1960, dois grandes triunfos do futebol socialista contribuíram


para manter acesa a chama das rivalidades envolvendo as questões ideoló-
gicas em um mundo marcado pela bipolaridade da Guerra Fria. Em julho,
a União Soviética venceu a Copa Europeia das Nações, um campeonato
em que um dos principais destaques extracampo foi a recusa de Franco
em permitir que os espanhóis travassem relações futebolísticas com países
socialistas. Na final, os soviéticos derrotaram os iugoslavos por 2X1, com
um dos gols de Metrevelli. Alguns meses mais tarde, nos Jogos Olímpicos
de Roma, foi a vez de a Iugoslávia finalmente alcançar a vitória, depois de
três vice-campeonatos – em 1948 para a Suécia, em 1952 para a Hungria,
e em 1956 para a URSS. Superando a Dinamarca na final, os iugoslavos
garantiram o ouro, enquanto os húngaros chegaram na terceira posição.
Dois anos mais tarde, no Chile, os soviéticos apresentavam um
futebol mais solto do que antes, embora não se descuidassem de manter
uma forte marcação. Com o objetivo de preparar a equipe ainda com base
no chamado futebol científico, o treinador Katchaline, renomado instrutor
de educação física, tomara todos os cuidados, até mesmo de procurar
aclimatar seus jogadores em locais secos, com temperaturas entre 14 e
20 graus, como encontrariam em Arica. Apesar de tantos cuidados, os
soviéticos pararam nas quartas de final diante dos donos da casa, com
uma atuação irreconhecível do goleiro Yachin.
Em 1964, em mais uma edição da Copa Europeia dos Campeões, o
anfitrião Franco não podia impedir a participação da campeã da competi-
ção. Afinal, um espetáculo delirante em que 120.000 torcedores gritaram
“Franco!, Franco!, Franco!” nas arquibancadas, colocou frente a frente
espanhóis e soviéticos, embora o ditador da Espanha na tribuna de honra
não estivesse nada disposto a cumprir o protocolo de condecorar os adver-
sários se estes vencessem o jogo. Com a vitória dos espanhóis por 2X1,
entretanto, nada poderia atrapalhar a festa do governo franquista, com a
imprensa conservadora do país associando o triunfo no campo de jogo à
supremacia sobre os comunistas na Guerra Civil Espanhola.
Para os dirigentes esportivos da União Soviética, um bom desempe-
nho na Copa de 1966 na Inglaterra era uma questão crucial. Na primeira
fase, os soviéticos venceram todos os jogos: 3X0 contra a Coreia do Norte,

Gilberto Agostino 121


Futebol e Política no “Socialismo Real”

1X0 contra a Itália e 2X1 contra o Chile. Passando pela Hungria nas quar-
tas de final, viria o confronto com a Alemanha Ocidental, chamado pela
crônica esportiva de Batalha de Stalingrado. A partida foi marcada pela
violência e pelo antijogo, e os alemães venceram por 2X1, disputando a
polêmica final com os ingleses, enquanto a URSS acabaria mesmo com
o quarto lugar – sua melhor colocação em todas as copas disputadas pelo
país.
A partir deste momento, a seleção alternaria bons e maus momentos,
embora o jogo mais retrancado ditasse o ritmo da equipe. Internamente,
entretanto, o futebol soviético vivia intensas transformações, condi-
cionadas pelas antigas rivalidades entre os clubes de Moscou e os das
províncias. Desde 1961, quando o Dínamo de Kiev foi campeão, muni-
ciado pelos recursos do Partido Comunista da Ucrânia e pelas inovações
do técnico Victor Maslov, ficou claro que a hegemonia de Moscou não
era inquebrantável. Os times das províncias, também favorecidos pelos
seus protetores – metsenaty –, detentores de influência nos altos cargos
governamentais, na KGB e nas Forças Armadas, partiram para a busca
de jogadores mais talentosos, não hesitando em oferecer-lhes uma série
de vantagens materiais.
Do início da década de 1970 até a Era Gorbatchev, clubes relati-
vamente desconhecidos no Ocidente conseguiriam grandes resultados,
com destaque para os campeonatos do Zarya Voroshilovgrad, em 1972,
e do Ararat Yerevan, em 1973. Este último, time armeniano, havia sido
fundado também com a denominação Dínamo, transformou-se em Spar-
tak, tendo o nome alterado para Ararat em 1963 – nome de inspiração
religiosa e nacionalista ao mesmo tempo. Segundo o texto bíblico, Ararat
era o monte avistado por Noé quando as águas do dilúvio baixaram. Por
outro lado, Ararat é também o nome da montanha localizada na Turquia,
em uma região que havia pertencido à Armênia. A vitória em 1973, com
um gol no último minuto, foi comemorada durante vários dias pela po-
pulação armênica, festa permitida pelas próprias autoridades socialistas
na Armênia, como uma evidente demonstração de força contra o rígido
centralismo de Moscou. Em 1978, mais um time da “periferia” venceria
o campeonato soviético, desta vez o Dínamo Tbilisi, seguido pelo Dína-

122 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

mo Minsk em 1982, pelo Dnepr Dnepropetrovsk em 1983 e pelo Zenit


Leningrad em 1984.
Na corrida para o Mundial de 1974, a ser disputado na Alemanha,
a seleção soviética foi mais uma vez objeto do poder governamental. O
regulamento da FIFA para as eliminatórias, especialmente naquele Mun-
dial, decidira que uma das vagas seria disputada entre um time europeu
e sul-americano. A disputa em questão acabaria por envolver a URSS e
o Chile. Depois de um empate sofrível de 0X0 em Moscou, a delegação
soviética, alegando indisposições políticas com o governo Pinochet,
negou-se a jogar em Santiago, sendo eliminada por WO. Para muitos,
desta vez, o aspecto político foi o pretexto para satisfazer o esportivo. A
posição assumida pelos soviéticos nesta ocasião até hoje é muito ques-
tionada. Acredita-se que o temor de uma derrota na casa do adversário,
favorecido pelo fator campo, tenha sido a verdadeira causa. Caso essas
opiniões estejam certas, esse foi um momento singular da inversão
da lógica usual entre política e futebol, em que o segundo geralmente
se molda às exigências do primeiro. Sem jogar a Copa de 1974, em
compensação o time soviético seria resguardado para os Jogos Olímpicos
de Montreal em 1976, uma vez que a FIFA proibira que jogadores que
disputassem mundiais pudessem participar também das Olimpíadas,
medida que visava exatamente o enquadramento dos esportes amadores
dos países socialistas.

m m m

Durante toda a experiência do chamado Socialismo Real, a Hun-


gria foi o país que mais empolgou os amantes do futebol no mundo todo,
combinando a disciplina de uma verdadeira “revolução” tática com a
genialidade e a espontaneidade de astros inesquecíveis. Uma de suas
inovações foi o aquecimento antes de os jogadores entrarem em campo.
Não por acaso, os primeiros minutos da partida eram aqueles em que os
ataques húngaros eram mais decisivos, não raro consumando a abertura
do placar. Sua grande aparição foi nos Jogos Olímpicos de 1952, quando

Gilberto Agostino 123


Futebol e Política no “Socialismo Real”

conquistou a medalha de ouro, embora a apoteose tenha ocorrido no


ano seguinte. Até 25 de novembro de 1953, os ingleses jamais haviam
perdido uma partida para uma equipe continental – ou americana – em
Wembley. Entretanto, quando a Seleção de Ouro Húngara entrou em
campo, diante da pressão de cem mil torcedores, o reino do futebol
inglês sentiu o peso, muitas vezes insuportável, de sustentar algumas
tradições. Liderados por Ferenc Puskas, os húngaros marcaram o pri-
meiro gol aos 50 segundos. Não só venceram o jogo, mas impuseram
aos ingleses, em seu próprio templo do futebol, uma humilhante goleada
de 6X3. A imprensa inglesa reagiria apelando para a memória coletiva
de uma nação que sofrera a fúria dos raids nazistas, aplicando todas as
metáforas herdadas da II Guerra Mundial para caracterizar o fracasso.
Para os editores de The Times, a Inglaterra havia cedido “aos assaltos de
um invasor estrangeiro”, enquanto para o News Chronicle “assistira-se à
dominação da seleção pela esmagadora superioridade do inimigo”. Em
um contexto marcado pela rivalidade da Guerra Fria, em que a projeção
internacional do futebol dos EUA era praticamente irrelevante, a derrota
para um time comunista foi considerada como um colapso que ia muito
além dos gramados.
Para os húngaros, a expectativa da disputa com os ingleses tornava
o encontro o jogo mais importante da história do país. Quando a partida
começou, as ruas de Budapeste ficaram vazias. Na verdade, não seria
exagero algum dizer que toda a Hungria parou naqueles noventa minutos.
Transmitida pelo rádio, a vitória foi acompanhada até mesmo nas minas
de carvão, onde o placar era informado com marcações de giz nas gaio-
las que chegavam aos subterrâneos. O comentarista esportivo Szepesi
acabaria recebendo a mesma gratificação programada inicialmente para
os jogadores – 2 mil forints – por seus serviços prestados como o “arauto
da vitória”. O sucesso sobre os ingleses em Wembley foi comemorado,
com a pompa propagandística transformada pelo regime húngaro em um
marco do esporte nacional.
Como fizeram os ingleses, o resultado foi associado aos momentos
mais críticos da II Guerra Mundial, em que os jogadores eram identificados
com os líderes da resistência. De volta à casa, os novos heróis da nação

124 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

foram recepcionados tão logo cruzaram a fronteira e chegaram à pequena


estação de Hegyeshalom. Muitos torcedores já haviam vindo de Budapeste
para homenageá-los em primeira mão. À medida que o trem percorria
seu caminho, centenas de pessoas alinhavam-se na estrada de ferro em
posição de sentido, mesmo sob o frio sepulcral de setembro. Flores foram
lançadas sobre os atletas a cada estação, até que em Budapeste receberam
a calorosa recepção de cerca de 100 mil torcedores, amontoados nas pla-
taformas, em cima de árvores, em qualquer lugar que possibilitasse uma
visão dos campeões. Vivia-se o mais completo estado de êxtase no país.
Como desdobramento das comemorações, os jogadores foram agraciados
com a Ordem do Mérito e Puskas chegou a receber duas premiações Kos-
suth Stakhanovites, entregues aos trabalhadores que se destacavam pelos
índices de produtividade, passando, a partir daí, a ser a personalidade que
entregava anualmente as condecorações aos trabalhadores homenageados.
Em maio de 1954, os ingleses foram a Budapeste para a revanche.
Vivia-se a possibilidade de devolver a goleada, resgatar o prestígio. Em
campo, um novo massacre, ainda mais convincente e arrebatador: 7X1
para os húngaros. Terminava uma era para o futebol inglês, e vinham
se afirmando novas referências para o futebol mundial. Chegando com
toda esta credibilidade à Suíça, em meados de 1954, a seleção húngara
era considerada a grande favorita para o título. Caindo na chave com a
Alemanha, os húngaros passaram por cima do time reserva que o técnico
alemão Sepp Herberger calculadamente colocara em campo. Vencendo
o jogo por 7X1 até os 35 minutos de segundo tempo, a Hungria saiu do
estádio da Basileia com o placar de 8X3. Para Sepp Herberger, a questão
não seria disputar vaga com a Hungria, mas, sim, com turcos e coreanos,
outras seleções do grupo, sabidamente mais fracas. Entrando com o time
reserva, os alemães esconderiam o jogo e poupariam os jogadores.
Chegando à final, a Hungria encontraria novamente a Alemanha.
Alguém da comissão lembraria que a Seleção de Ouro já passara de sua tri-
gésima vitória consecutiva. Em campo, os húngaros começaram na frente,
marcando aos seis minutos com Puskas. O segundo viria logo depois com
Czibor. A Alemanha mostraria, entretanto, um poder de reação admirável,
virando o jogo para 3X2, para surpresa de todos que estavam em Berna

Gilberto Agostino 125


Futebol e Política no “Socialismo Real”

e consideravam os húngaros os virtuais campeões. Parecia mesmo uma


reedição de 1950 com outros atores. Para os derrotados, foi muito difícil
voltar para casa, pois as reações dos torcedores foram bastante hostis, tão
logo a vitória alemã se consumou.
Fotografias dos jogadores foram destruídas nas ruas de Budapes-
te, enquanto ameaças de morte eram feitas ao técnico Sebbes. Cerca de
15.000 manifestantes se dirigiram à redação do jornal Szabad Ner, ligado
ao Partido Comunista, exigindo das autoridades punição exemplar para
alguns jogadores tidos como relapsos ou mesmo vendidos. Corria o boato
de que cada um receberia um carro Mercedes Benz por terem amolecido
o jogo. Gritando slogans anticomunistas, manifestantes tentaram entrar
na redação do jornal, sendo impedidos por uma substantiva força poli-
cial. Fugindo da “recepção” que a aguardava, a comissão desceu de trem
algumas estações antes da capital.
Poucos meses depois da derrota na final contra a Alemanha, em
novembro de 1954, os efeitos daquele vice-campeonato ainda ecoavam
para os integrantes da Seleção de Ouro. Há muito vigiado pela repressão
húngara, considerado muito falastrão, principalmente nas questões políticas,
Grosics foi preso, acusado de espionagem e traição nacional, permane-
cendo encarcerado por alguns meses. Após este período, quando algum
burocrata alegou “falta de provas”, o prisioneiro foi libertado, embora
enviado imediatamente para o clube dos mineiros de Tatabanya, longe
de Budapeste. Exílio interno, no melhor estilo soviético, ali o jogador
ficaria por sete anos.
Logo depois da prisão de Grocsis, quando de uma forma geral pa-
recia que as coisas no país iriam se acalmar, o clima político esquentou,
balançando a ordem política. O processo de desestalinização desencadeado
por Kruschov mexeu com os donos do poder em todo o Leste Europeu, não
sendo diferente na Hungria. Percebendo que seu terreno político estava
ameaçado, o ditador stalinista na Hungria, Matyas Rakosi, procurou se
manter no poder a qualquer preço, sendo, entretanto, obrigado a renunciar.
Prisioneiros políticos foram soltos e antigas lideranças esmagadas pela
ordem repressora foram reabilitadas, abrindo caminho para que manifes-
tações de trabalhadores e estudantes eclodissem em diversos pontos do

126 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

país. A insatisfação ampliava-se momento a momento, motivando questio-


namentos sobre a ingerência da União Soviética nos negócios internos da
Hungria, com a exigência da saída das tropas soviéticas do país. O novo
primeiro-ministro, Imre Nagy, acelerou ainda mais o processo, anunciando
a decisão de retirar o país do Pacto de Varsóvia.
Para o governo de Moscou, a situação na Hungria havia ido longe
demais. Tanques acantonados na Romênia e na Iugoslávia começaram
movimentos para a invasão, que foi consumada no dia 4 de novembro.
Depois de alguns dias de luta, Nagy foi enforcado e a velha guarda vol-
tou ao poder. Nessa hora, o time que abrigava a maior parte das estrelas
das Seleção de Ouro, o Honved – os defensores da Pátria –, equipe do
exército nacional, encontrava-se jogando um amistoso na Suíça. Quando
os jogadores souberam da invasão soviética, comunicaram ao empresário
que não regressariam ao país, preferindo assumir a condição de refugiados
políticos. Imediatamente, a Federação Húngara, ansiosa pela volta do time,
pressionou a FIFA, procurando estabelecer uma punição para os clubes
– e, por extensão, para as federações – que aceitassem travar amistosos
com o Honved. Para o Ministério de Esportes da Hungria, a situação era
desesperadora, uma vez que outros importantes atletas encontravam-se
fora do país naquele mesmo momento, como, por exemplo, toda a dele-
gação olímpica que disputava os Jogos de Melbourne, na Austrália. Se o
exemplo do Honved fosse conhecido, quantos atletas húngaros poderiam
também se recusar a voltar para casa?
Apesar dos inúmeros contatos entre a Seleção de Ouro e interme-
diários do governo, os jogadores decidiram que cumpririam a excursão
já programada anteriormente para a América do Sul, que renderia cerca
de 10.000 dólares à equipe. Desembarcando no Rio de Janeiro no início
de 1957, os húngaros foram muito bem recebidos, fazendo crer que as
tensões entre Brasil e Hungria na Copa de 1954 eram algo já relativamente
esquecido. Apesar dos protestos da FIFA, ameaçando punir quem jogasse
com o Honved, Flamengo e Botafogo não se intimidaram e os torcedo-
res brasileiros puderam assistir pela primeira vez o duelo entre Puskas
e Garrincha, já que na Copa de 1954 o craque húngaro, contundido, não
atuara contra o Brasil.

Gilberto Agostino 127


Futebol e Política no “Socialismo Real”

Finalizada a excursão, chegava a hora mais crítica para a equipe


exilada. Enquanto alguns jogadores voltaram – as ligações familiares foram
decisivas neste sentido –, Puskas decidiu apostar suas últimas esperanças
na possibilidade de um contrato com um grande clube europeu. Com sua
família em segurança na Suíça, vários contatos foram feitos. Depois de
passar pela Itália, o craque húngaro foi contratado por Santiago Bernabéu,
vindo a integrar a fantástica equipe do Real Madri, que brilhou na segunda
metade dos anos de 1950, em uma negociação que chegou a interessar
ao próprio Franco.

m m m

Além da própria União Soviética e da Hungria, em vários outros


países socialistas a relação futebol/poder atingiu uma dimensão bastante
expressiva, embora nem sempre traduzida em importantes conquistas
internacionais. Na Alemanha Oriental, o futebol não se projetou com o
mesmo destaque alcançado na parte Ocidental do país, sendo a medalha
de ouro nos Jogos Olímpicos de Montreal, em 1976, o principal resultado
obtido pela seleção. Dois anos antes, entretanto, na Copa de 1974, uma
vitória viria a transformar-se em um importante referencial da propa-
ganda governamental. Afinal, as duas Alemanhas haviam sido sorteadas
na mesma chave e deveriam se enfrentar no campo de jogo profissional
depois de tantos anos de divisão. Vivia-se um dos momentos mais emble-
máticos da distensão no campo esportivo. Disputado no Volksparkstadion,
de Hamburgo, aos olhos de 60.000 espectadores, apenas dois mil deles
da Alemanha Oriental, o embate foi vencido pela equipe socialista por
1X0, gol do atacante Jürgen Sparwasser. Ironicamente, este, alguns anos
depois, tornar-se-ia um dissidente, atravessando para o lado ocidental do
país, como fizeram muitos dos jogadores de sua geração.
O maior reflexo da intervenção das autoridades da Alemanha Orien-
tal no universo do futebol deu-se de fato em nível clubístico, tendo como
maior expressão o caso do Dínamo de Berlim, time tão hostilizado pelos
torcedores rivais que seus jogadores eram chamados de os “onze porcos”.
Fundado em 1952, assumiu a presidência do Dínamo Erich Mielke, chefe

128 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

da STASI, polícia política alemã equivalente à KGB. Mielke foi um dos


maiores promotores dos títulos que o clube alcançaria, principalmente
a sequência de dez campeonatos entre 1979 e 1988, alguns deles com
pênaltis providenciais, marcado pelo juiz nos acréscimos. Com a queda
do Muro em 1989, o nome do clube foi alterado para FC Berlim, não se
qualificando para a Bundesliga (primeira divisão alemã) após a unificação
do país.
Na Romênia, o futebol foi muito vigiado durante os anos em que o
ditador Ceausescu ocupou o poder, embora a ingerência do Estado no jogo,
assim como na Alemanha Oriental, tenha se dado muito mais a partir do
contato com os clubes do que tendo como referência a seleção nacional.
Contando com uma federação de futebol desde 1908, vale lembrar que
a Romênia foi um dos quatro países europeus que cruzaram o Atlântico
para disputar a Primeira Copa do Mundo no Uruguai, comparecendo
também no Mundial da Itália quatro anos mais tarde. A esta altura, o país
possuía diversas equipes importantes, distribuídas em várias cidades, não
podendo se caracterizar uma supremacia absoluta dos times de Bucareste.
Com o advento da II Guerra Mundial, o futebol do país sofreu os efeitos
diretos do peso nazista, cerceando a peculiaridade dos clubes, submetidos
ao processo de arianização que ocorria em todas as áreas sob influência
do Terceiro Reich.
Tão logo o conflito chegou ao fim, com a Romênia passando para a
esfera de influência soviética, as determinações do Ministério dos Esportes
acarretaram o agrupamento de vários times do país, formando equipes que
viriam a representar instituições do Estado, como ocorrera na década de
1930 na União Soviética. A partir deste momento, duas equipes da ca-
pital se destacaram no país: o Steaua de Bucareste – inicialmente CSCA
–, que representava as Forças Armadas; e o Dínamo, representando o
Ministério do Interior. A seleção nacional, por sua vez, manteve relações
futebolísticas apenas com países socialistas até 1955, só voltando à Copa
do Mundo em 1962.
Alguns anos mais tarde, Ceausescu assumiu plenamente o poder na
Romênia, reforçando a intervenção no esporte com o objetivo de favore-
cer a vitória de times da capital, principalmente o Steaua de Bucareste,

Gilberto Agostino 129


Futebol e Política no “Socialismo Real”

facultado a requisitar qualquer novo talento que aparecesse em qualquer


time do país. Na temporada 1978/1979, entretanto, os tentáculos do ditador
favoreceram também um pequeno e inexpressivo time da segunda divisão,
o Viitorul, da cidade de Scornicesti, longínquo lugar em que Ceausescu
nascera sessenta anos antes. Para chegar à primeira divisão e representar a
cidade, o que se exigia da equipe era praticamente impossível. Comprome-
tido pelo saldo de gols, o Viitorul precisava vencer com uma diferença de
doze gols. Para muitos, não foi nenhuma grande surpresa quando, no final
do jogo, o placar apresentava a vitória do time de Scornicesti por 12X0.
Com o fim do regime, em 1989, talvez também não tenha sido surpresa
que a equipe caísse de produção. Sendo rebatizada de FC Olt’91, passou
a disputar a terceira divisão do país.
Em 1986, o Steaua viveu duas situações singulares. A primeira
foi a vitória na Copa dos Campeões, em que brilhou a estrela do “Ma-
radona do Leste”, o armador George Hagi, um título muito festejado no
país. Para os observadores mais atentos, as comemorações foram muito
além do controle governamental que, como era de se esperar, também
procurou tirar proveito da vitória. No mesmo ano, na decisão da Copa
da Romênia, mais uma intervenção do Estado nos rumos do futebol
marcaria o esporte na Era Ceausescu. O ditador, entretanto, não estava
sozinho, contando com o apoio de seus filhos, os mesmos que ficaram
conhecidos pelos atos de violência e chantagem sexual contra famosas
ginastas do país. Disputando a finalíssima no estádio nacional, encontra-
vam-se, mais uma vez, os times rivais de Bucareste. Vencendo por 1X0, já
nos momentos finais da partida o Steaua foi surpreendido por um gol do
Dínamo. Revoltados com o empate, alegando impedimento, os jogadores
do Steaua abandonaram o campo, sustentados por Valentim Ceausescu,
filho do ditador, que se autoproclamava protetor do time. Tudo isso não
antes de muitas discussões com dirigentes do Dínamo, indignados com
a situação. Em meio ao tumulto gerado pela decisão, imediatamente, por
ordem governamental, a transmissão da partida foi cortada, uma vez que
o comentarista da TV fazia críticas à postura do Steaua.
Pressionado por agentes governamentais, um dos advogados do Dí-
namo, Ioan Andone, foi obrigado a não se pronunciar. No entanto, assumiu

130 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

uma posição absolutamente arrebatadora como protesto ao defecar nas


calças em público, como repúdio à postura de Valentim. O caso terminou
em um julgamento da Federação de Futebol Romena, com pressões de
todos os lados: do Ministério do Interior, das Forças Armadas e da UEFA,
que acompanhava o desdobramento da questão, exigindo que as regras de
punição por abandono de campo fossem cumpridas. Apesar da vitória do
Dínamo, diversos de seus dirigentes foram punidos, com Andone sendo
praticamente banido do futebol.

m m m

Tão logo Mikhail Gorbachev anunciou a reestruturação econômica


soviética – a Perestroika –, o universo futebolístico do país sofreu um
expressivo impacto, pondo em pauta não só a velha questão da profissio-
nalização, como também o modelo organizacional dos clubes. Em 1988,
o amadorismo oficial foi finalmente abolido. Quando, no ano seguinte, o
Dínamo de Kiev comprou de um time de Leningrado o craque Salenko,
pagando 37.000 rublos, o país conheceu a primeira transferência legal de
um jogador, abrindo um tipo de negociação que não pararia de crescer
daí em diante. Diante de uma nova orientação econômica, cada vez mais
dependentes da venda de seus jogadores, os clubes aplaudiram a iniciati-
va do estado em permitir as negociações com o mercado externo. Ainda
em 1988 foi dada a partida para a diáspora do futebol soviético, com os
primeiros “estrangeiros” migrando para gramados da Europa Ocidental.
Zanarov, do Dínamo de Kiev, escolhido craque do ano em 1986, foi ven-
dido para a Juventus por cinco milhões de dólares. O Spartak não ficou
atrás e negociou o zagueiro Khidiatukin para o Toulouse e o goleiro Da-
sayev, que havia sido eleito o melhor jogador na posição, em 1988, para
o futebol espanhol. Tais negociações, se favoreceram as contas dos clubes
por um lado, acabaram, por outro, comprometendo a própria qualidade
do campeonato nacional, minado também pelo desgaste decorrente das
constantes excursões ao exterior, outra potencial fonte de receita propiciada
pelas rendas televisivas. Neste sentido, o estabelecimento de uma nova
ordem, seguida da crise econômica que se instalou no país, apresentou

Gilberto Agostino 131


Futebol e Política no “Socialismo Real”

resultados diretos na própria frequência da torcida nos jogos. Estes foram


marcados por um declínio acentuado de público, se comparado às médias
nos extremos dos anos 1980 (20.000 em 1981 em contraste com 12.000
em 1990). Nesta hora, as regiões que apresentaram os maiores públicos
nos estádios foram exatamente as ex-repúblicas asiáticas, onde o futebol
foi alçado a elemento constitutivo de uma nova identidade nacional.
Paralelamente à nova ordem econômica, a transparência política –
Glasnost –, por sua vez, representaria uma nova realidade também para a
imprensa do país, capaz de atuar com muito mais desenvoltura e liberdade
do que no passado. Favorecida com esta realidade, em 1989, a revista
Sovietsky Sport apresentou uma chocante reportagem sobre um dos piores
– senão o pior – desastres envolvendo torcedores de que se tem notícia,
escondido da população soviética, e do mundo, durante anos pelo gover-
no soviético. O episódio ocorreu em outubro de 1982, no estádio Lênin,
quando jogavam o Spartak e o Haarlem, clube holandês. Com um tempo
frio, os dez mil torcedores presentes estavam agrupados em um canto do
estádio, comemorando a vitória do time soviético por 1X0. Nos segundos
finais da partida, quando muitos torcedores já se dirigiam aos túneis que
conduziam à saída do estádio, o jogador Shezov fez o segundo gol do
time soviético. Ouvindo a comemoração, aqueles que se encaminhavam
para a saída decidiram voltar apressadamente, colidindo com os outros
torcedores e deixando o saldo estúpido de 340 mortos. A reportagem fez
duras críticas à postura dos policiais presentes, que dificultaram os acessos
de saída, contribuindo para agravar a situação.
Na Iugoslávia, a fragmentação da velha ordem montada por Tito
durante a Guerra Fria não se fez sem muitas marchas e contramarchas,
polarizando as tendências centralizadoras do líder comunista sérvio Slo-
bodan Milosevic e a luta das Repúblicas pela independência. Em 1991,
após uma campanha militar frustrada, a Sérvia não conseguiu impedir a
separação da Eslovênia, república que tinha uma forte ligação econômica
com a Alemanha. Logo em seguida, uma nova guerra foi desfechada pela
Sérvia, desta vez contra a Croácia, que também pleiteava a independência,
contando mais uma vez com o apoio dos alemães. A extensão da guerra
civil na Iugoslávia levou o Conselho de Segurança da ONU a adotar a

132 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

resolução 757, estabelecendo o total embargo à Iugoslávia de Milosevic,


questão política que atingiu o meio futebolístico, uma vez que a UEFA
aplicou a decisão ao domínio esportivo, impedindo a seleção da Iugoslávia
de participar da fase final da Copa das Nações. Neste período, o Estrela
Vermelha despontava como um dos grandes times europeus (Campeão
da Copa dos Campeões e do Mundial Interclubes, em 1991), embora os
resultados da guerra civil e das sanções econômicas estabelecidas pela
ONU tenham desfechado duros golpes contra o clube. Mesmo vendendo
diversos de seus craques para o exterior (Prosinecki, Pancev, Savicevic e
Stojkovic), os dirigentes não tiveram imediato acesso ao dinheiro dessas
negociações, uma vez que bancos estrangeiros foram impedidos de reali-
zar as transferências enquanto o embargo da ONU estivesse em vigência.
Os comentaristas esportivos iugoslavos não perderam a oportuni-
dade para criticar a posição dos dirigentes do futebol europeu. Segundo
a imprensa sérvia, a decisão da UEFA, visivelmente progermânica, era
uma tentativa de a entidade destruir o futebol iugoslavo. Em entrevista
à revista Zvezdina Revija, Milan Tomic, diretor do Estrela Vermelha,
declarou em setembro de 1992:

Nós representamos um tipo de perigo para o futebol mundial...


O mundo não pode suportar nosso triunfo. Sobretudo aqueles
que pretendem ser poderosos. Por exemplo, a Alemanha, que nos
esportes de equipe não representa nada. O mesmo se pode dizer
da Inglaterra. Por todas as razões, eu estou convencido de que as
nações ambiciosas no plano esportivo não podem aceitar nossa
dominação cada vez mais evidente.6 

Em um país marcado pela guerra e pelo isolamento internacional,


mais do que nunca o futebol representaria um dos valores fundamentais
da identidade nacional. Para os sérvios, mesmo aqueles que viviam fora
da Sérvia, torcer para o Estrela Vermelha ou para o Partisan, clubes de
Belgrado, era cultivar sua autonomia cultural. Mesmo antes da fragmen-
tação, essa realidade já era um elemento revelador das divisões internas.
Em 1989, torcedores sérvios que foram a Zagreb assistir ao clássico nacional
Dínamo Zagreb X Estrela Vermelha tiveram seus braços tatuados com

Gilberto Agostino 133


Futebol e Política no “Socialismo Real”

símbolos sérvios. No ano seguinte, um violento encontro de torcidas que


deixou vários feridos demarcou uma rivalidade que, em certo sentido,
representava o desgaste da velha ordem. Presentes em estádios dos times
adversários, os torcedores do Estrela Vermelha cantavam hinos de fideli-
dade à Sérvia e a Milosevic:

Nós somos os bravos da Sérvia Orgulhosa.


Livres sobre nossa terra, saudando a raça sérvia.
Do Kosovo ao Knin, só existem de fato sérvios.
Slobo, Slobo, a Sérvia está contigo.
Quem diz que a Sérvia é pequena está mentindo.
Nós somos os bravos da Sérvia Orgulhosa.

Por outro lado, para os habitantes que viviam nos novos países
formados pela fragmentação da antiga Iugoslávia, ainda fragilizados pelas
incertezas de um futuro pouco previsível, chegara a hora de refazer as
referências nacionais. Para Franjo Tudjman, presidente da Croácia, e do
principal time local, o Dínamo Zagreb, era necessário estabelecer novas
tradições. O nome Dínamo, velha herança socialista, estava identificado
demais com o passado bolchevique e balcânico. Neste sentido, o time foi
chamado simplesmente de Croácia Zagreb, sendo considerado um dos
elementos cruciais da elaboração de uma nova identidade nacional. Nas
competições internacionais, este nacionalismo pôde emergir de forma
mais acentuada do que em outros países. Em 1998, na França, tropas da
OTAN chegaram a prover a segurança em algumas regiões do país quan-
do a seleção croata entravam em campo. Na Eurocopa 2000, a Eslovênia
demonstrou o quanto valia para o orgulho nacional uma boa performance
sobre a Iugoslávia.
Talvez o episódio mais curioso da relação entre nacionalismo, en-
volvendo a ex-Iugoslávia, tenha sido citado por Ivan Colovic, ao relatar o
caso do pai que levou o filho para assistir ao jogo entre Estrela Vermelha
e Panatinaikos, disputado em Sofia, fazendo o menino perder dois dias
de aula. De volta à Belgrado, onde viviam, dirigiu-se à professora e disse:

134 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Senhora, eu levei meu filho ao jogo do Estrela Vermelha na


Bulgária para lhe dar lições práticas de patriotismo. Cabe a você
decidir, em vossa alma e consciência, se esta falta vai ser conside-
rada justificada ou injustificada.7 

Notas

 1
Pierre Arnaud e James Riordan, Sports et Relations Internationales, Pa-
ris: L ‘Harmattan, 1998, p.136-137.
 2
Cf. Simon Kuper, Football against the Enemy, London: Phoenix, 1996, p.42.
 3
Bill Murray, Uma História do Futebol, São Paulo: Hedra, 2000, p.118.
Cf. Bob Edelman e James Riordan, URSS/Russia and the World Cup: Come
 4

on you Reds!, Hosts and Champions, Hampshire, 1994, p.270.


 5
Cf. Simon Kuper, Football against the Enemy, op.cit., p. 39.
Cf. Ivan Colovic, Nationalismes dans les stades en Yougoslavie, Manière
 6

de Voir, n.39, mai/jun, 1998, p. 54.


 7
Cf. Ivan Colovic, Nationalismes dans les stades en Yougoslavie, op.cit, p. 56.

Gilberto Agostino 135


Cartaz francês propondo o boicote à Copa do Mundo na Argentina.
Vencer ou Morrer

CAPÍTULO 4

POPULISTAS, DITADORES E GUERRILHEIROS

Era mais do que ganhar uma partida, era mais


do que tirar a Inglaterra do Mundial. Nós, de alguma
maneira, considerávamos culpados os jogadores ingle-
ses por tudo que ocorrera, por tudo que o povo argentino
havia sofrido na Guerra das Malvinas. Sei que parece
uma loucura, um disparate, mas era, de fato, o que sentí-
amos. Era mais forte que nós: estávamos defendendo nossa
bandeira, os rapazes mortos, os sobreviventes... Por isso,
creio, meu gol teve tanta transcendência.
(Maradona)

O nosso estilo de jogar futebol me parece con-


trastar com o dos europeus por um conjunto de qualida-
des de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao
mesmo tempo de brilho e de espontaneidade individual
(...) Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despis-
tamentos, os nossos floreios com a bola, alguma coisa de
dança e capoeiragem que marcam o estilo brasileiro de
jogar futebol, que arredonda e, às vezes, adoça o jogo
inventado pelos ingleses e por outros europeus jogado
tão angulosamente, tudo isso parecia exprimir de modo
interessantíssimo para os sociólogos o mulatismo flam-
boyant e, ao mesmo tempo, malandro que até hoje, em
tudo, é a afirmação verdadeira do Brasil.
(Gilberto Freyre)

Gilberto Agostino 139


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

Naquele outubro de 1930, quando os gaúchos amarraram seus ca-


valos no obelisco da Avenida Rio Branco, poucos duvidavam se tratar de
um momento singular da vida política brasileira. O que ninguém podia
prever, de fato, é que a nova ordem que se instituía seria fundamental tam-
bém para os rumos do futebol no país, uma vez que o Estado organizado
por Getúlio Vargas estabeleceria uma série de imposições disciplinadoras
do universo esportivo, ao mesmo tempo que o encararia como um dos
elementos capazes de moldar a identidade nacional. Um dos primeiros
desafios do novo governo em relação ao esporte mais popular do país
envolvia as inúmeras rivalidades entre as federações do Rio de Janeiro e
de São Paulo, presentes com toda a intensidade no Mundial do Uruguai,
meses antes da eclosão do movimento revolucionário. Naquele momento,
a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), controlada por dirigentes
cariocas, era a responsável pela seleção brasileira e andava em litígio com
a Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA), que pleiteava esta
posição. A situação piorou ainda mais quando os cariocas anunciaram
que não aceitariam nenhum paulista na comissão técnica que embarcaria
para Montevidéu. Em consequência, a APEA proibiu que os jogadores
que atuavam em São Paulo vestissem a camisa da seleção brasileira. E
estes, já convocados pelo técnico Píndaro de Carvalho, formavam mais da
metade do elenco. No final das contas, grandes craques da época, como
Friedenreich e Feitiço, entre outros, não participaram do selecionado bra-
sileiro. Apenas um paulista, Araken Patusca, jogador do Santos, integrou
a seleção, mesmo assim tendo que, praticamente, sair fugido para jogar.
Apesar do empenho do Presidente da República, Washington Luís,
que delegou poderes para que o Ministério da Justiça e Negócios Interiores
amparasse a seleção com uma verba especial, o clima era de discórdia.
Uma sensação de derrota pairava no ar, antes mesmo de o time entrar em
ação. Em meio à desunião, logo no primeiro jogo, o Brasil, que entrara em
campo com a bandeira uruguaia nas mãos, não resistiu à forte seleção da
Iugoslávia, que venceu pelo placar de 2X1. Com as notícias do jogo che-
gando ao Brasil através do rádio, a derrota da seleção não passaria impune
pela rivalidade Rio-São Paulo. Com o desastre consumado, torcedores
paulistas chegaram a comemorar o resultado, o que simbolizava o fracasso

140 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

da organização carioca. Saindo pelas ruas da cidade, realizaram o enterro


simbólico da CBD, atirando um caixão de papelão do alto do viaduto do
Chá. No segundo jogo, dessa vez contra a Bolívia, a seleção brasileira era
a imagem da desesperança. Isso porque, na verdade, já entrara em campo
eliminada, pois os iugoslavos haviam vencido os bolivianos. Mesmo com
a vitória de 4X0, os brasileiros não tinham o que comemorar. De volta à
casa, as tensões entre paulistas e cariocas se acirraram ainda mais. Ambos
culpavam-se mutuamente pelo fiasco, um grupo acusando o outro por ter
traído a nação em um momento crucial da afirmação do futebol brasileiro
no cenário internacional.
Enfrentando inúmeros obstáculos, caberia ao governo Vargas
contornar a rivalidade futebolística entre Rio e São Paulo, procurando
promover a integração entre os dois principais núcleos esportivos do
país. Tal tarefa, entretanto, não seria tão fácil quanto alguns dirigentes
imaginavam. Primeiro, haveria que se consolidar a nova ordem política,
desafio que enfrentou as reações das velhas oligarquias, culminando,
em 1932, no episódio conhecido como Revolução Constitucionalista.
Explodindo em julho, o levante, que inicialmente estava articulado em
vários estados da federação, ficou restrito a São Paulo. Neste sentido,
um dos valores chaves difundidos pela mobilização ideológica do mo-
vimento foi a luta pela soberania dos paulistas, seus valores e tradições,
o que acabou envolvendo também o universo do futebol. Organizada
uma campanha de coleta de ouro para a causa do Estado, alguns clubes
fizeram vultosas doações, embora ninguém tenha levado esta ideia tão
a fundo quanto o Santos, com a diretoria chegando a propor que todos
os troféus do clube fossem doados. Isto só não aconteceu porque, na
última hora, alguns dirigentes organizaram uma coleta visando os re-
cursos necessários para salvar o patrimônio santista, no que acabaram
sendo bem-sucedidos.
Neste momento, muitos jogadores contribuíram para a causa pau-
lista. Friedenreich foi um dos que se envolveram com toda a intensidade,
doando troféus e medalhas obtidos durante anos de vitórias no futebol.
Na verdade, El Tigre, como era conhecido, principalmente nos campos
platinos, fez mais do que isso. Alistando-se no Batalhão de Esportistas

Gilberto Agostino 141


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

que fora formado pelo comando revolucionário, lutou nas trincheiras de


Eleutério, assumindo o posto de sargento. Lidando com soldados de ape-
nas 20 anos, Friedenreich foi tomado como um exemplo a ser seguido,
inspirando muitos daqueles jovens recrutas. Ao final do conflito, mesmo
com a derrota paulista, o jogador foi elevado a tenente, retornando aos
gramados logo em seguida.
Getúlio Vargas, apesar de vencedor em 1932, empenhou-se em
superar as cicatrizes do episódio, anunciando que nenhum tipo de repre-
sália seria impingida à população paulista. No campo esportivo, não foi
por acaso que, em 1933, se idealizou a taça Rio-São Paulo, procurando
promover a aproximação entre as praças. Naquele mesmo ano, o governo
instituiu a profissionalização do futebol, superando os limites do profissio-
nalismo marrom que caracterizara o esporte por tantos anos. Na verdade, os
esforços governamentais foram ainda mais longe, uma vez que se percebera
o quanto o futebol era um importante instrumento para moldar a visão que
o brasileiro tinha de si próprio. Nos anos seguintes, Getúlio tornou-se um
dos patronos da seleção brasileira, enquanto sua filha, Alzira Vargas, seria
transformada em madrinha dos jogadores. Uma das primeiras manifesta-
ções desta interação entre líder e esporte ocorreu em dezembro de 1932,
quando a seleção brasileira foi recebida com festa após uma jornada de
vitórias no Uruguai, onde disputou a Copa Rio Branco, um importante
contraponto em relação ao que havia ocorrido dois anos antes. Desfilando
em carro aberto, os jogadores foram acolhidos por milhares de entusiastas
na capital. Passando pelo Palácio do Catete, lá estava Getúlio Vargas, ainda
Chefe do Governo Provisório, a saudar o scracht com a mão estendida, um
gesto que os brasileiros – querendo ou não – ainda veriam muitas vezes.
Na Copa de 1934, entretanto, os jogadores brasileiros precisariam
bem mais do que um caloroso apoio presidencial. Afinal, muitos clubes
ainda resistiam em ceder seus atletas para a seleção, escondendo seus
craques dos dirigentes da CBD. Lourival Fontes, chefe da delegação bra-
sileira na Itália, irritou-se com esta situação a ponto de tomá-la como uma
das suas prioridades no campo esportivo quando, nos anos seguintes, se
tornaria a peça-chave do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
Embarcada no navio Conte Biancamano, a seleção enfrentou uma viagem

142 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

repleta de escalas, até chegar a Gênova, onde entraria em campo contra a


Espanha. Em um jogo muito disputado, os espanhóis venceram por 3X1.
O Brasil estava desclassificado. A única coisa a fazer era aproveitar a
viagem e excursionar pela Europa, divulgando um dos símbolos do país
de maior projeção internacional: o café.
Voltando a campo oficialmente no Sul-Americano 1936-1937,
disputado na Argentina, a seleção brasileira acabou ficando em segundo
lugar, derrotados pelos donos da casa. O jogo final, marcado por muitos
incidentes, foi transmitido pelo rádio para o Brasil, valendo um comentário
de Vargas em seu diário, demonstrando preocupação com a manutenção
da ordem:

O jogo de football entre argentinos e brasileiros em Buenos


Aires, transmitido por informantes exaltados, deu lugar a algumas
explosões inconvenientes... 1 

Mesmo com o resultado adverso, os torcedores brasileiros foram


recepcionar os atletas na Praça Mauá com uma grande festa, ao som
de salvas de canhão, considerando-os heróis por mostrarem a raça do
povo brasileiro em um solo rival. Em seu discurso, o chefe da delegação
brasileira, Castello Branco, fazia questão de frisar que o êxito se devia
à disciplina, ao patriotismo e à consciência esportiva que os brasileiros
vinham adquirindo. Fechando a solenidade, mais salvas e o hino nacional,
tocado pelas bandas militares que participavam do cortejo.
Viria a implantação do Estado Novo, em novembro de 1937, abrin-
do caminho para que a relação entre Getúlio Vargas e o esporte nacional
atingisse uma dimensão mais expressiva, com a criação do Conselho
Nacional de Desportos (CND), em 1941, que vinculava a organização
de todas as atividades esportivas ao Estado. Em relação ao futebol, logo
como o primeiro desafio da nova ordem instituída, aproximava-se a Copa
de 1938. Esta competição, a mais importante de todo o período, possibi-
litaria ao presidente uma interação mais decisiva com o esporte. Encarado
pela propaganda estadonovista como síntese da capacidade e originalidade
brasileira – dizia-se que os jogadores reinventaram o jogo bretão –, o
futebol assumia uma função crucial nos valores ideológicos governamen-

Gilberto Agostino 143


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

tais. A presença de negros na seleção era apresentada como símbolo da


democracia racial, ideia que ganhava projeção nos anos de 1930 a partir
das teses de Gilberto Freyre. Este, autor de uma série de trabalhos sobre
identidade nacional e desporto, afirmava que um dos trunfos da seleção
brasileira era exatamente a mestiçagem, conferindo aos brasileiros um
estilo de jogo de todo original.
Na despedida dos jogadores, um pouco antes do embarque para a
França, o presidente fez questão de, pessoalmente, desejar sorte ao sele-
cionado nacional. Vestida a caráter, a delegação foi ao Palácio do Catete,
onde Vargas cumprimentou-a, detendo-se um pouco mais no craque da
seleção, Leônidas da Silva, jogador negro que ficaria conhecido como
Diamante Negro. O desempenho brasileiro nos gramados franceses
começou com uma vitória apertada contra os poloneses: 6X5. Leônidas
marcou três vezes, disparando na artilharia da competição. Enquanto a
seleção comemorava, já com os olhos no próximo adversário, no Brasil
Getúlio Vargas recebia diversos telegramas de congratulações. Afinal,
a vitória da seleção fazia parte de seu próprio triunfo. As sementes da
propaganda iam produzindo bons frutos, sendo o rádio um elemento
vital: ao inaugurar a primeira transmissão futebolística para a América,
este permitia captar as glórias brasileiras em gramados tão distantes. Nos
dias seguintes à primeira vitória do selecionado nacional, já se cogitava
nas altas rodas governamentais a possibilidade de o Brasil sediar, quem
sabe, a próxima Copa do Mundo. Falou-se até na construção de um Es-
tádio Nacional, à altura do acontecimento... e de Vargas. Não foi mero
acaso a utilização de estádios esportivos nas grandes manifestações de
massa organizadas ao longo do Estado Novo: primeiro em São Januário,
depois no Pacaembu.
Enquanto os governantes recebiam os louros da vitória no Brasil, a
seleção nacional voltava a campo, desta vez para enfrentar a Tchecoslová-
quia. Como o jogo terminou empatado, e uma nova partida deveria ser
realizada no dia seguinte, o técnico, Adhemar Pimenta, decidiu usar um
time descansado e surpreender o adversário. A estratégia deu certo com a
vitória de 2X1. Leônidas, com mais um gol, já despontava como craque
da Copa. Vinham logo em seguida os italianos, campeões mundiais. Em

144 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

um jogo duro, a Azurra venceu por 2X1, com muitas reclamações bra-
sileiras em relação à arbitragem, principalmente em relação ao pênalti
marcado em favor dos italianos. O locutor Gagliano Neto, o primeiro a
transmitir um jogo de futebol da Europa para a América, considerou o
pênalti legítimo, enquanto muitos cogitavam no Brasil de que o jogo pu-
desse ser anulado. Transparecendo o nacionalismo latente de um mundo
que destilava xenofobia, o locutor foi duramente atacado pelos próprios
brasileiros, passando a ser chamado de “italiano nato” e tendo sua carreira
de radialista seriamente comprometida. Consumada a derrota, o impacto
na sociedade foi desolador, a ponto de Getúlio confidenciar a seu diário,
ainda um tanto perplexo com o poder simbólico do esporte:

O jogo monopolizou as atenções. A perda do team brasileiro


para o italiano causou uma grande decepção e tristeza no espírito
público, como se se tratasse de uma desgraça nacional. 2 

Cabia ao Brasil a disputa do terceiro lugar. Batendo os suecos, a


seleção brasileira ainda saiu da França com o artilheiro da competição,
Leônidas da Silva. De volta à casa, o scracht foi tratado como o campeão
moral, prejudicado por uma arbitragem tendenciosa. O jornalista Mário
Filho, responsável por uma ampla e audaciosa cobertura do evento, che-
garia a usar a expressão “Campeões sem Coroa”, inconformado com o
resultado final.
Nos anos seguintes, novos dilemas se apresentaram ao governo
brasileiro com a eclosão da II Guerra. Quando, em dezembro de 1941, os
japoneses atacaram Pearl Harbor, a entrada dos EUA no conflito acabou
por exigir que o Brasil assumisse uma postura mais transparente em re-
lação aos desdobramentos de uma guerra que, definitivamente, chegara
à América. Neste sentido, em 28 de janeiro de 1942, as relações entre o
governo Vargas e os países do Eixo Roma-Berlim-Tóquio foram cortadas.
Já nesta hora, para os estrangeiros que viviam no país, a situação tornava-
-se cada vez mais crítica. Mesmo que o Brasil (ainda) não estivesse em
guerra, os imigrantes e seus descendentes começaram a sentir na pele uma
hostilidade crescente. Procurando assumir uma postura conciliatória,
o Palestra Itália, de São Paulo, clube que vinha se projetando entre os

Gilberto Agostino 145


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

melhores do futebol paulista, promoveu voluntariamente a alteração de


seu nome para Palestra de São Paulo. Isto ocorreu em março de 1942,
simultaneamente ao torpedeamento de navios brasileiros por submarinos
alemães e italianos, acalentando ainda mais as reações xenófobas de boa
parte da opinião pública. Alguns meses mais tarde, em agosto, o governo
brasileiro declararia guerra aos países do Eixo. Nesta hora, a já combalida
liberdade dos estrangeiros no país sofreu seu mais duro golpe. Rigidamente
vigiados, sendo obrigados a utilizar salvo-condutos para viajar, italianos,
alemães e japoneses foram proibidos inclusive de se comunicar em seu
idioma natal. O método de “culpa por associação” fazia com que um in-
divíduo fosse considerado mais que suspeito, caso um parente, amigo ou
mesmo conhecido estivesse sob a mira da polícia política.
Neste quadro, o Conselho Nacional de Esportes decretou uma porta-
ria proibindo que encontros esportivos fossem transformados em qualquer
tipo de manifestação de caráter nacional. Como consequência imediata
desta medida, diversas entidades esportivas foram obrigadas a alterar
seus nomes e promover mudanças nos uniformes. A esta altura, mesmo
não fazendo mais alusão à Itália em seu nome, o Palestra de São Paulo
também foi obrigado a mudar, transformando-se em Sociedade Esportiva
Palmeiras. Isto porque a “simples” expressão Palestra aludia diretamente
à colônia italiana. Em outros estados, os Palestras também alteraram suas
denominações, como o de Minas Gerais, que veio a se transformar no E.
C. Cruzeiro e o do Paraná, que se transformou no Curitiba Futebol Clube.
Diante das exigências de um conflito que se tornara global, o Gover-
no Vargas não se limitou a ceder bases militares para tropas americanas,
procurando também participar diretamente no próprio campo de batalha.
Neste sentido, foi criada a Força Expedicionária Brasileira (FEB), sendo
enviada ao teatro de operações na Itália. Mais uma vez, o poder mobiliza-
dor do futebol demonstraria suas múltiplas possibilidades em um ambiente
de guerra. Além dos indícios de partidas disputadas nos momentos de folga,
inclusive contra prisioneiros alemães, para os mais aficionados a ligação
com os campeonatos disputados no Brasil esteve presente todo o tempo,
representando uma forma de conexão com os referenciais cotidianos.
Mário Filho, em seu livro Histórias do Flamengo, apresenta fragmentos

146 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

da chamada “A Carta do Coelho”, alusão à correspondência enviada pelo


tenente José Carlos Teixeira Coelho a um amigo no Brasil. A tônica era
exclusivamente a final do campeonato entre Flamengo e Vasco, em que
o time rubro-negro venceu por 1X0. Escrevendo no final de outubro de
1944, logo após uma campanha vitoriosa dos pracinhas, o tenente Coelho
afirmava:

Geraldo, até parece que eu estava no Brasil, vibrando com


todas as forças do meu coração flamengo, pela vitória do team
mais querido. É impossível descrever a alegria da nossa turma
flamenga aqui, neste teatro de operações na Itália. Éramos mais
de uma dezena em torno do rádio, ávidos de emoções e exultantes
de alegria. Comemoramos a vitória de maneira espetacular, pois,
além de tanto representar para nós, ainda coincidiu com a espeta-
cular vitória de nosso team no ‘front’ que, com bola e tudo, varou
as redes do inimigo. 3 

Talvez a mais importante consequência da II Guerra Mundial para


o futebol sul-americano tenha sido a interrupção dos encontros interconti-
nentais. Neste sentido, a disputa dos tradicionais campeonatos da América
do Sul transformaram-se no mais importante referencial da afirmação
nacionalista via futebol, contribuindo para acentuar, em um momento
tão decisivo, as rivalidades entre as três principais forças sul-americanas:
Brasil, Argentina e Uruguai, pronunciadas desde os anos 1910. Não por
acaso, neste momento, cada encontro futebolístico envolvendo estes países
– tanto no nível clubístico quanto no de selecionados – transformava-se em
um verdadeiro combate, comemorado ou criticado à exaustão, de acordo
com o resultado final.
Finda a guerra, deposto Getúlio Vargas, os confrontos platinos ga-
nhariam um relevo ainda mais decisivo no Mundial de 1950. Sobrepondo-
-se aos interesses argentinos, coube ao Brasil, governado por Eurico
Gaspar Dutra, a realização da primeira Copa do Mundo após o conflito
mundial. Com este propósito, o governo brasileiro assumiu com a FIFA
o compromisso de construir um estádio de grandes proporções para re-
alizar o evento. Em 16 de junho de 1950, apenas dois anos depois do

Gilberto Agostino 147


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

lançamento da pedra inaugural, o Maracanã finalmente foi apresentado


ao mundo, transformando-se em monumento do esporte nacional e sím-
bolo da capacidade de realização do país. Não por acaso, neste mesmo
dia, Getúlio Vargas era indicado candidato pelo PTB para o pleito de 3 de
outubro. Pouco depois, tão logo se iniciara a competição, exatamente no
dia seguinte à estreia do Brasil vencendo o México por 4X0, o Brigadei-
ro Eduardo Gomes, da UDN, e Cristiano Machado, do PSD, lançariam
também suas candidaturas, aproveitando a euforia promovida pela vitória
do selecionado nacional.
Durante todo o campeonato, questões referentes ao universo da
política partidária estiveram presentes com toda a intensidade. Nenhum
partido queria perder a potencialidade eleitoral que o Mundial oferecia,
principalmente diante dos grandes desempenhos da seleção. Neste sentido,
o Maracanã era um palanque político extraordinário. Os cinco jogos que
a seleção brasileira disputou no estádio acabaram por reunir um público
total de 725.570 pessoas. Em plena campanha eleitoral, não surpreende
que, em todas as partidas, panfletos pedindo votos circulassem no estádio.
Mostrar-se sintonizado com os rumos vitoriosos do esporte brasileiro
era uma questão primordial para os políticos em campanha. Segundo
muitos depoimentos – não sem intermináveis controvérsias, como quase
tudo que cerca os antecedentes da final Brasil X Uruguai – a mudança
da concentração da seleção brasileira, da distante praia do Joá para São
Januário, região de mais fácil acesso, teria atendido à necessidade de
inúmeros políticos, empenhados em promover suas campanhas eleitorais
às custas da seleção, posando ao lado dos jogadores. Realidade esta que
envolvia o próprio técnico da seleção brasileira, Flávio Costa, candidato
a vereador pelo PTB.
À medida que o jogo decisivo se aproximava, a disputa política
acompanhava este clima de euforia, com todos os candidatos à presidência
procurando estabelecer alguma ligação com o que se esperava ser a vitória
eminente. Dois dias antes da inesquecível partida, por exemplo, o jornal
Globo Esportivo apresentou o seguinte anúncio eleitoral do Brigadeiro
Eduardo Gomes:

148 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Desportista! Amparar, desenvolver e incentivar iniciativas


novas no setor de esportes é um dos pontos do programa do Briga-
deiro! Como desportista que é, o Brigadeiro está tão interessado
quanto você em trabalhar, nos esportes, pela grandeza da pátria.

Chegava finalmente o 16 de julho de 1950, momento aguardado


por um país que vivera os últimos dias em eufórica vigília. Em campo,
um “simples” jogo de futebol, com erros táticos, lances individuais e...
três gols. Dois marcados pelos uruguaios, contra um convertido pelos
brasileiros. Naquele dia, milhares de torcedores presentes no Maracanã
esperavam, com um lenço branco na mão, apenas a hora de saudar a vitória,
como haviam feito anteriormente em outros jogos da competição. Acalen-
tavam, como tantos outros torcedores, em casa ou nas ruas, a esperança de
que Brasil pudesse ser o país do futuro, como anunciavam as tendências
políticas mais diversas do cenário nacional. Terminado o jogo, na vitória
uruguaia que saíra dos pés de Gigghia, estes torcedores deixaram o Ma-
racanã em silêncio, sem entender direito como tudo aquilo era possível.
Com a derrota vieram as mais diferentes explicações. Exorcizaram-se os
culpados. Barbosa falhou, Flávio Costa errou, Bigode tremeu, a torcida
não apoiou quando o time precisava e até o presidente Dutra deu azar!
Por mais que se diga que o tempo tudo é capaz de cicatrizar, o
“fantasma de 50” ainda parece perseguir o sono intranquilo dos brasi-
leiros. Livros, entrevistas, novas explicações. Muda o enfoque mas não
muda a angústia de uma bola rente à trave, um jogo perdido, uma Copa
perdida. Mais ainda, 50 representa a esperança perdida ao longo de tan-
tos desacertos da política nacional. Do naufrágio do projeto populista
às frustrações do modelo neoliberal, passando pelos anos de chumbo da
ditadura militar, foram muitos os brasileiros a acreditar que o país tinha
chance de tornar-se a potência do futuro. E todos estes projetos, à sua
maneira tão otimistas, ficaram pela metade, como ficou o título perdido
naquela tarde no Maracanã. Para os brasileiros, portanto, lembrar 50
é lembrar de um sonho inacabado. Cada vez que o Brasil traz à tona o
gol de Gigghia, a memória coletiva se ressente também do país que não
foi construído, das oportunidades que foram perdidas, das esperanças
que ficaram no meio do caminho. Talvez a lembrança do chute do ponta

Gilberto Agostino 149


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

uruguaio ainda faça muitos brasileiros admitirem, inconscientemente, que


não foi o futebol nacional que fracassou. Afinal, o país fechou o século
como único tetracampeão do mundo, detentor do melhor jogador de to-
dos os tempos e de um estilo de jogo mundialmente respeitado. Talvez o
mais doloroso da lembrança de 50 seja mesmo reconhecer que o futebol
brasileiro deu certo, mas o Brasil, este sim, enquanto projeto de nação,
foi o grande derrotado.
No Mundial da Suíça, em 1954, os ecos de 50 se fizeram sentir com
toda a intensidade. Nas quartas de final, como os dirigentes brasileiros
temiam, o Brasil jogaria contra a Hungria uma partida que descambou em
violência, com uma briga que começou no campo e terminou nos vestiá-
rios, envolvendo jogadores, comissão técnica e até jornalistas. Passaria à
história como a Batalha de Berna. Antes mesmo de entrar em campo no
Wankdorf Stadium, diversos jogadores brasileiros apresentaram problemas
incomuns – contusões inesperadas, diarreias súbitas –, o que seria inter-
pretado mais tarde pela crônica como puro e simples medo de enfrentar
os húngaros, tidos como grandes favoritos.
O juiz inglês que apitou o jogo, Mr. Arthur Ellis, foi acusado
pelos jogadores brasileiros de marcar um pênalti inexistente, favo-
recendo os húngaros. Isto, além de expulsar Nílton Santos e Alberto.
Ellis foi também duramente atacado pela imprensa brasileira. En-
quanto os times digladiavam-se em campo, Mário Vianna, árbitro
brasileiro que comentava o jogo para uma rádio local, esbravejou
que Mr. Ellis era comunista atuando a serviço do Kremlin para que
um país da cortina de ferro chegasse à final. Esta explosiva reação,
aliás, acabou lhe custando o desligamento do quadro de arbitragem
da FIFA. Um pouco mais tarde, o chefe da delegação brasileira, João
Lyra Filho, também protestou veementemente, reclamando da postura
do árbitro. Para ele, a questão em jogo não era tanto a polarização
capitalismo x comunismo, mas, sim, a rivalidade entre sul-americanos
e europeus. Em um livro escrito após a competição – Taça do Mundo,
1954 –, o dirigente compilava os argumentos que utilizara nos docu-
mentos que enviara à FIFA:

150 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Um juiz inglês, particularmente, não se conforma com a


derrocada do futebol da Inglaterra e chega a alvoroçar-se quando
a queda do seu predomínio é decretada por um selecionado de país
sul-americano. Aconteceu na rodada anterior, o esquadrão britânico
foi eliminado do Campeonato pelo quadro uruguaio. O revide caiu
sobre o Brasil, que também participa do continente sul-americano.
O juiz inglês preferiria a eliminação do selecionado sul-americano
igualmente credenciado pela opinião geral, já que outro país sul-
-americano havia forçado a exclusão do selecionado inglês. 4 

Graças às acaloradas transmissões radiofônicas, ficara para os


brasileiros a sensação de que a Hungria fora ajudada, sendo o Brasil
obrigado a se defender de qualquer forma, o que tornara a batalha campal
em Berna uma prova da garra do scracht nacional. Jornais convocaram
a torcida brasileira para que recebesse a seleção no aeroporto do Galeão.
De fato, estes seriam recebidos como heróis, entre discursos anticomunistas
e louvores patrióticos.
Para a CBD, entretanto, em seus relatórios de circulação interna, a
questão não era tão heroica assim. Mesmo os argumentos de João Lyra
Tavares não foram levados tão a sério pela própria entidade. Ganhou mais
relevância algumas das conclusões das muitas comissões instituídas para
esclarecer as razões da derrota. A mais duradoura para os rumos do futebol
brasileiro surgiu em um documento secreto que, segundo alguns relatos,
acabaria sendo chamado de Dossiê Ku Klux Klan5 . Este aconselhava que,
nas próximas escalações da seleção, não fossem convocados jogadores
negros, mulatos ou mesmo descendentes de índios, uma vez que a capa-
cidade de lidar com situações adversas destes elementos era notadamente
inferior à dos jogadores brancos.
Quatro anos depois, na Suécia, tudo indica que as sugestões do do-
cumento secreto ainda estavam sendo levadas em conta. Um dado quase
sempre tomado simplesmente como parte do anedotário dos preparativos
da seleção, a participação do que se dizia ser um psicólogo, o célebre
Doutor Carvalhaes, é uma demonstração de que os dirigentes ainda
se preocupavam com a instabilidade emocional de alguns jogadores.

Gilberto Agostino 151


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

No primeiro jogo, contra a Áustria, apenas um jogador negro havia sido


escalado, Didi, ao que parece por ser o titular absoluto da posição. Nem
Pelé nem Garrincha entraram em campo, só estreando contra a URSS. Os
momentos memoráveis desses dois jogadores contra os soviéticos calaram
as posições mais reacionárias e racistas que ainda rondavam a seleção.
No Brasil, a expectativa crescia a cada jogo, à medida que a sele-
ção ia superando um a um seus adversários. Enquanto as comemorações
ganhavam as ruas depois de cada vitória, o Presidente Juscelino Kubits-
chek explorava ao máximo as oportunidades apresentadas pelo evento.
Dois anos antes, ele próprio fizera sua primeira aparição pública depois
de uma posse bastante conturbada, no estádio do Maracanã, na final do
campeonato carioca. Com o brilhante desempenho brasileiro na Suécia,
JK transformava cada jogo em um verdadeiro ritual político. Mais tarde,
afirmaria ironicamente a João Havelange:

Durante a Copa do Mundo na Suécia, substituí vários minis-


tros e não houve uma única palavra a respeito nos jornais. Estou
pensando em fazer novas mudanças no futuro próximo. Qual é a
data da próxima Copa do Mundo?6 

Logo que Garrincha começou a brilhar nos gramados suecos, o pai


do craque, “Seu Amaro”, foi convidado a ouvir o jogo contra o País de
Gales com o próprio Presidente. Na véspera da final, contra os donos da
casa, o presidente fez questão de aparecer em público fazendo promessa
pela vitória, preocupado e ansioso como qualquer torcedor. Com a con-
quista do título, mobilizou o avião presidencial para apanhar os campeões
do mundo quando estes desembarcaram em Recife, trazendo-os para as
muitas festas que os aguardavam na capital. Na festa principal, no Pa-
lácio do Catete, o Presidente Juscelino Kubistchek foi o único a beber
champanhe na taça dos campeões, imagem que condizia com o clima
de otimismo que marcava o discurso governamental comprometido em
promover cinquenta anos de progresso em cinco anos de governo. Para
muitos analistas, para além dos aspectos oficiais, a Copa do Mundo seria
o primeiro grande momento de interação entre JK e a população, depois
de quase dois anos de governo.

152 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Quatro anos mais tarde, na Copa do Mundo do Chile, João Goulart


também teria seu momento junto à seleção brasileira. Primeiro, havia que
garantir a sua própria posse presidencial, tumultuada pelas articulações
golpistas após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Uma vez
no posto, com um Primeiro-Ministro a lhe fazer sombra, Jango procurou
se aproximar ao máximo da seleção brasileira, configurando uma relação
em que um dos possíveis encontros entre o Presidente da República e
a população se dava fora dos domínios da política. O futebol era uma
possibilidade fantástica neste sentido, e a imprensa da época contribuía,
indiretamente, ao fomentar a escolha do melhor jogador do ano, o mais
popular, eleições “de verdade” com cédula, urna e apuração voto a voto.
Para João Goulart, o futebol era um importante veículo de legiti-
mação política, no momento em que se aproximava o plebiscito que lhe
devolveria plenos poderes presidenciais. Quando o Brasil embarcou para
o Chile, Jango falava em retomar o projeto proposto por Jânio Quadros,
de impedir que os grandes craques nacionais fossem vendidos ao exterior,
configurando um nacionalismo esportivo bem singular, típico dos anos
1960 na América Latina.
À medida que a possibilidade do bicampeonato se aproximava, o
futebol tornava-se uma questão crucial para o governo brasileiro. Ou me-
lhor, para todas as forças políticas que disputavam o governo. Os três mais
importantes partidos do país – PTB, PSD e UDN –, através de suas mais
atuantes lideranças no momento, João Goulart (Presidente da República),
Tancredo Neves (Primeiro-Ministro) e Carlos Lacerda (Governador da
Guanabara), procuraram aproximar-se da seleção. Jango lembrava que ele
próprio havia sido jogador de futebol, atuando como volante no Cruzeiro
de São Borja e no Internacional, até uma infecção o afastar dos grama-
dos. Durante a Copa, acompanhava os jogos com entusiasmo, procurando
evitar que seu interesse pela seleção fosse atacado pelos seus opositores
como falta de compromisso com as questões governamentais. Lacerda,
por sua vez, trazia à lembrança sua luta pela lei do passe dos jogadores,
proposta alguns anos antes, posicionando-se como “o regulamentador” que
o esporte precisava para tão importante questão. Já Tancredo Neves, com
muitos amigos na delegação que partira para o Chile, envolvera-se à dis-

Gilberto Agostino 153


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

tância no episódio da expulsão de Garrincha durante o jogo pela semifinal


contra os donos da casa. Atingindo o violento zagueiro Rojas, a concreta
possibilidade de o craque brasileiro não jogar a finalíssima assustou muita
gente da Comissão Técnica brasileira. Esta agiu rapidamente, segundo
relatos, subornando o auxiliar para que este deixasse o país às pressas
e não fizesse carga contra o jogador. Em seguida, o Primeiro-Ministro
brasileiro foi acionado para intervir e enviou um telegrama à comissão
disciplinadora da FIFA pedindo, em nome do povo brasileiro, consideração
com o caso. Paralelamente, a intervenção do Presidente do Peru, Manuel
Prado y Ugarteche, também foi solicitada, já que o árbitro da partida era
peruano. No julgamento do jogador, alegou-se que este nunca fora expulso
de campo, o que Ruy Castro, em seu livro Estrela Solitária, demonstrou
não ser verdade, uma vez que Garrincha já havia sido expulso de campo
três vezes. Em meio a toda uma série de maquinações políticas, a FIFA
absolveu o jogador, o que para muita gente representou o receio da enti-
dade de que um país socialista, a Tchecoslováquia, adversária do Brasil
na final, ficasse com o título. Com a vitória, Jango recebeu os jogadores
e vibrou como um torcedor comum.
Durante algum tempo, o futebol continuaria sendo encarado pelo
governo como uma das prioridades nacionais. Um pouco mais tarde,
no dia 10 de outubro, quando o Santos disputou a final do Mundial In-
terclubes, jogando contra o Benfica no Estádio da Luz, o Ministério da
Justiça autorizou, pela primeira vez, a mudança do horário do tradicional
programa A Voz do Brasil.
Dois anos mais tarde, em 31 de março de 1964, concretizava-se
a derrubada do governo João Goulart, instituindo-se uma nova ordem,
que perduraria por vinte e um anos. Prisões preventivas foram feitas
– o estádio Caio Martins, em Niterói, abrigou presos políticos – di-
reitos básicos foram cerceados, não poupando todos os considerados
subversivos, expressão fluida a ser utilizada fartamente daí em diante,
ao sabor das conveniências. Naquele momento, consumada a operação
militar, os novos donos do poder procuraram legitimar suas ações a
partir do controle, não só dos postos governamentais, mas também dos
veículos fomentadores da opinião pública. Estações de rádio e TV fo-

154 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

ram tomadas e comunicados urgentes lançados à população. As razões


da “Revolução” precisavam ser expostas, principalmente a partir das
declarações de personalidades confiáveis no conjunto da sociedade. Em
um primeiro momento, nada melhor do que a credibilidade daqueles
envolvidos com a comunicação do dia a dia, para legitimar as “boas
novas”. Ironicamente, nesta hora, os militares que tomaram a TV Rio
exigiram que um jornalista lesse o comunicado das Forças Armadas:
seu nome, João Saldanha. Saindo pela tangente, juntamente com outro
jornalista, Luiz Mendes, Saldanha não leu comunicado algum, alegando
que só falava de improviso.
Em muito breve, ficaria bem claro que um novo momento se apre-
sentava ao futebol brasileiro. Uma das primeiras marcas da interação entre
o esporte e a nova ordem apareceu com o anúncio da CBD de que a par-
tida programada entre Brasil e URSS havia sido cancelada. Desta forma,
desfazia-se uma aproximação esportiva iniciada pelos governos anteriores,
selando, sem deixar margem para nenhuma dúvida, o comprometimento
do governo militar com o bloco capitalista e com a liderança dos EUA.
Logo em seguida, à medida que se aproximava a Copa de 1966, competição
em que o Brasil se apresentava como o grande favorito, a expectativa em
relação à vitória crescia. Alguns dirigentes brasileiros chegaram a propor
que fosse idealizada imediatamente uma nova taça – sugeriu-se o nome
de Winston Churchill – uma vez que era dada como certa que a Jules Ri-
met voltaria com a delegação brasileira para a casa, consumando a posse
definitiva do troféu pela CBD. Nos gramados ingleses, ao contrário das
projeções mais otimistas, a seleção apresentou um futebol muito aquém
de 1958 e 1962, sendo eliminada nas oitavas-de-final pelos portugueses.
De volta ao Brasil, os jogadores desembarcaram no aeroporto do Galeão
com proteção do Serviço Nacional de Informações (SNI), um dos órgãos
mais atuantes da ditadura, uma vez que se temia qualquer tipo de distúrbio
envolvendo o scracht e a torcida.
Tão logo a situação se acalmou, demovidas as intenções governa-
mentais em formar uma CPI para investigar o fracasso brasileiro na Ingla-
terra, João Havelange, presidente da CBD, impôs uma série de mudanças
na estrutura da seleção, principalmente a partir da criação da Comissão

Gilberto Agostino 155


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

Selecionadora Nacional (COSENA), estrutura esportiva claramente


inspirada no modelo militar que caracterizava a política brasileira no pe-
ríodo. Sofrendo a pressão de uma série de interesses – clubes, dirigentes,
federações -, o órgão não conseguiu o resultado que dele se esperava, uma
vez que a seleção brasileira colecionou uma série de maus resultados em
uma excursão feita à Europa, coroada com uma derrota para o México
em pleno Maracanã.
Dissolvida a COSENA, Havelange procurava acertar a seleção bra-
sileira a qualquer preço. Nenhuma estratégia era dispensável, até mesmo
a possibilidade de contratar um técnico contrário aos valores golpistas,
que, ainda àquela altura, a propaganda governamental insistia em chamar
de valores revolucionários. Foi nessas circunstâncias que João Saldanha
assumiu o selecionado, mesmo bombardeado por todos os lados. Os pau-
listas lamentaram que a CBD tivesse se rendido a um carioca, enquanto
os militares mais conservadores também falavam em rendição, só que
a um comunista. Em outro plano, jornalistas surpresos e técnicos que
cobiçavam o cargo insistiam que Saldanha era bom no microfone, mas
treinar uma equipe de futebol, ainda mais como a seleção brasileira, era
coisa muito diferente.
Assumindo o cargo, o novo técnico fez bom uso da geração privi-
legiada que tinha em mãos e angariou uma série de triunfos, aproximan-
do a seleção do homem comum, dos militares e até mesmo de alguns
militantes de esquerda. Uma pesquisa feita no Rio de Janeiro apontava
a popularidade de Saldanha: 71%. Os paulistas, estes, sim, dobrados
pelo bem-sucedido desempenho do técnico, não ficaram muito atrás:
68%. Mesmo com estes índices, por mais que Saldanha estivesse con-
solidado no cargo, as tensões políticas cresciam em um país marcado
pela repressão do AI-5. Detentor do bicampeonato, o futebol brasileiro
não podia passar incólume pela obsessão legitimadora que o governo
militar perseguia permanentemente, passando a interferir cada vez mais
nas esferas do esporte. Futebol e política se encontrariam a todo mo-
mento nos meses seguintes, criando atritos crescentes entre o técnico e
o governo. Este, aliás, passava por uma série de atribulações envolvendo
o comando da presidência a partir do dia 27 de agosto de 1969, quando,

156 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

no Palácio do Planalto, em Brasília, o presidente Costa e Silva sofreu o


que se diagnosticara como um acidente vascular cerebral. Viajando para
o Rio de Janeiro – um cachecol no pescoço sugeria gripe, escondendo a
paralisia do lado direito da face – o presidente foi encaminhado ao Palácio
Laranjeiras. Em poucas horas, entraria em estado de coma, abrindo uma
grave crise governamental. Afinal, seu vice, Pedro Aleixo, não era tido
como homem de confiança pelos militares, o que tornou necessária uma
solução imediata para o caso, encaminhado para o comando das Forças
Armadas. No dia 31 de agosto, o Ato Institucional nº 12, transferindo
os poderes para uma Junta Militar, era anunciado à nação. Talvez não
tenha sido mera coincidência que neste mesmo dia, no Maracanã, o
Brasil jogasse sua última partida das eliminatórias para a Copa de 1970.
Um pouco antes de a seleção entrar em campo, já circulava no estádio o
boato de que alguma coisa acontecera com o presidente Costa e Silva.
Enquanto alguns falavam em gripe, outros enfarte, havia quem dissesse
que o presidente já estava morto, apesar de o governo não se pronun-
ciar oficialmente. Segundo João Máximo, biógrafo de João Saldanha, o
general Elói Menezes, presidente do Conselho Nacional de Desportos
(CND), procurou o técnico antes do jogo:

– Saldanha, o presidente Costa e Silva acaba de falecer –


teria dito. – O que acha de prestarmos a ele um minuto de silêncio
antes do jogo?
Saldanha fez-lhe ver que não era boa ideia. Maracanã cheio,
decisão com Paraguai, Hino Nacional, clima de festa, tudo aquilo.
Melhor não. Citava o amigo Nelson Rodrigues: ‘No Maracanã
vaia-se até minuto de silêncio’.7 

A acreditar em Saldanha, que depois foi desmentido pelo general


Elói Menezes, é possível que o governo tivesse tentado aproveitar aquele
momento para anunciar a morte do presidente, apesar de ele então ainda
estar em coma. O anúncio no Maracanã serviria como um balão de ensaio
para a ditadura testar a reação popular diante de uma notícia que envolvia
os rumos do governo. Sem minuto de silêncio ou pronunciamento oficial,
o público que foi ao estádio viu a seleção brasileira vencer o Paraguai

Gilberto Agostino 157


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

por 1X0, gol de Pelé. Quanto a Costa e Silva, este morreria no dia 17 de
dezembro, no Rio de Janeiro.
Com o Brasil classificado, parecia que o treinador teria um longo
caminho de estabilidade pela frente. Entretanto, uma série de injunções
dificultou a situação para Saldanha, em um momento em que a relação
entre o esporte mais popular do país e o quadro político se intensificava,
principalmente após a posse de Emílio Garrastazu Médici. Este, torcedor
do Grêmio – e admirador do Flamengo –, era apaixonado pelo esporte, a
ponto de interromper reuniões ministeriais para saber os resultados dos
jogos. Grudado no radinho de pilha, foram várias as vezes em que o pre-
sidente se arriscara a frequentar estádios lotados, não raro sendo anunciada
a sua presença pelos alto-falantes. Promovia-se assim uma importante
estratégia de propaganda da Assessoria Especial de Relações Públicas
(AERP), no sentido de transformar o presidente em Torcedor Número 1
da nação, articulando os êxitos futebolísticos à imagem de Brasil-Potência
que o governo se esforçava em difundir
À medida que a Copa se aproximava, as possibilidades da inte-
ração futebol-poder se ampliavam. Ainda em 1969, apresentou-se uma
oportunidade sem igual: a festa comemorativa em torno do milésimo gol
de Pelé. Para a ditadura, o evento deveria ser planejado com uma bem
calculada antecipação. Até porque ninguém podia saber exatamente em
que jogo o tento histórico seria marcado, embora esforços tenham sido
feitos para que este ocorresse em uma grande praça – preferencialmente o
Maracanã. Uma estatística oficial fora encomendada pela CBD e, a cada
jogo, à medida que o gol 1000 se aproximava, a emoção crescia. Em um
desses momentos, em um dos clássicos paulistas de maior tradição, Santos
X Corinthians, quase ninguém percebeu os tiros desfechados contra o
guerrilheiro Carlos Marighella, acreditando que eram os rojões soltados
para comemorar o gol santista.
Em 14 de novembro, em João Pessoa, quando o Santos entrou
em campo para jogar um amistoso contra o Botafogo da Paraíba, na
reinauguração do Estádio José Américo de Almeida, a estatística oficial
apontava 998 gols para o Rei. Com a bola rolando, Pelé marcou de pênalti,
consumando o que seria o gol 999. Daí em diante, segundo o depoimento

158 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

do juiz do jogo, Armindo Tavares de Pinho, tudo foi feito para que Pelé não
tivesse oportunidade de marcar novamente, a ponto de o técnico do Santos,
Antoninho, acertar no intervalo da partida a saída do goleiro e a entrada
de Pelé no gol. Com a manobra, o jogador – e o técnico – foram vaiados
clamorosamente pela torcida local. Vaias que foram diametralmente
transformadas em calorosos aplausos quando o jogador fez uma defesa
espetacular, impedindo o gol certo do adversário.
Cinco dias mais tarde, no Maracanã, jogando contra o Vasco, Pelé
entraria em campo diante de uma expectativa monumental. Todo um proto-
colo oficial fora rigidamente planejado, com o atleta hasteando a bandeira
nacional e recebendo homenagens de todos os lados. Empatado o jogo
em 1X1, um pênalti fora marcado para o Santos, excitando os milhares de
torcedores presentes no estádio. Aos 34 minutos do segundo tempo, Pelé
correu para a bola e bateu no canto direito, fazendo-a explodir na rede para
a irritação do goleiro argentino Andrada. O Maracanã não se continha de
emoção, com o campo invadido por repórteres e admiradores. Nos dias
seguintes, Pelé desfilou em carro aberto em Brasília, sendo recebido pelo
presidente Médici, que lhe concedeu a medalha de mérito nacional e o
título de comendador. No próximo jogo do Santos, no Mineirão, o atleta
recebeu uma Coroa de Ouro do tempo do Império, enquanto era produzida
uma infinidade de marcos comemorativos, como medalhas, selos, bustos,
placas e troféus.
A maior ironia de toda esta questão envolvendo o gol 1000 só apa-
receu em 1995, quando uma reportagem da Folha de S. Paulo, refazendo
a contagem dos gols do atleta do século, percebeu que não havia sido
computado um jogo entre Brasil e Paraguai, realizado em 1959, pelo Sul-
-Americano militar, no qual Pelé marcara. Desta forma, acrescentando o
tento não registrado, o milésimo gol não fora marcado no Maracanã, mas,
sim, naquele esquecido pênalti contra o Botafogo da Paraíba.
Enquanto os ecos do milésimo gol ainda se faziam ouvir no mundo
todo, disputando espaço em todas as retrospectivas de fim do ano com
a epopeia do homem na lua, 1970, pelo menos no campo esportivo, foi
aberto sob o signo da expectativa. Médici assinava o decreto que instituía a
Loteria Esportiva no país, procurando conciliar sorte e futebol, anunciando

Gilberto Agostino 159


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

a chance de mobilidade social para todos. Válido inicialmente para Rio


de Janeiro e São Paulo, o jogo lotérico, conforme o presidente prometia,
até a Copa seria ampliado para todo o Brasil. Enquanto isso, a seleção
vinha acumulando uma série de problemas, entre derrotas em amisto-
sos, polêmicas com outros treinadores e divisões internas. Tudo parecia
conspirar contra a tranquilidade que Saldanha precisava para trabalhar o
time, ainda considerando-se que não contava com uma comissão técnica
de sua inteira confiança.
Para tumultuar ainda mais o ambiente, veio à tona toda uma polê-
mica envolvendo o artilheiro Dario, jogador que encantava o próprio
presidente Médici que, aliás, na sua paixão pelo futebol, também admirava
o esquema de jogo de Saldanha, elogiando os resultados implacáveis nas
eliminatórias. Na verdade, se tudo estivesse correndo bem nas quatro
linhas, possivelmente o caso Dario não ganhasse tanta projeção. Mas com
o time em desacerto, tudo era motivo para o questionamento, levando Sal-
danha a retrucar as opiniões que os repórteres diziam ser de Médici com a
mais célebre de suas tiradas – Pois olha: o presidente escala o ministério
dele que eu escalo o meu time. Não se sabe ao certo se Médici estava
tão empenhado na escalação de um jogador específico, em um momento
em que os desafios governamentais eram muito grandes. Certo, sim, é
que a figura de Saldanha era considerada muito inconveniente pelo seu
destempero e por sua pretensa independência política. Temia-se que o
treinador chegasse ao México com uma lista de presos políticos no bolso,
e, em entrevista coletiva, diante de microfones e câmeras do mundo todo,
denunciasse o desrespeito aos direitos humanos que vinha ocorrendo no
Brasil. Mais do que Dario ou episódios envolvendo outros jogadores
e técnicos, esta era uma preocupação muito séria para a imagem que a
ditadura queria promover de si mesma no exterior. E como bem ou mal
Saldanha era popular, pretextos paralelos contribuíram para a queda do
treinador, principalmente os problemas com Pelé, com Yustrich – técnico
que cobiçava o cargo – e um amistoso com o Bangu, em que a seleção
brasileira apresentou um futebol abaixo da média.
Alguns dias depois, a comissão técnica foi “dissolvida” e Zagallo,
que treinava o Botafogo, foi apresentado como sucessor de Saldanha.

160 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Mesmo afastado do cargo, este, entretanto, seria ainda um motivo de


preocupação para o regime militar durante um bom tempo. No informe
013/16/75 do Serviço Nacional de Informações (SNI), datado de 15 de
maio de 1975, o ex-técnico, que voltara à atividade de comentarista es-
portivo, era alvo das seguintes observações:

Durante a realização de jogos no estádio Mário Filho (Mara-


canã), os comentários agressivos, e por vezes ofensivos promovidos
pelo comentarista de arbitragem da rádio Globo, o sr. Mário Vianna,
vêm provocando na massa de torcedores reações descontroladas
‘que’ normalmente culminam em distúrbios de médias proporções,
chegando a reações indiscriminadas ‘e’ a destruição das instalações
do estádio.

(...) consta que essa provocação subliminar tem como criador


e orientador o comentarista esportivo João Saldanha, elemento
ligado às esquerdas e defensor da ideologia comunista, o qual ‘Sal-
danha’ se utiliza do locutor Mário Vianna, elemento inculto incapaz
de compreender que está sendo utilizado para outros propósitos,
mas que, com sua linguagem rude e grosseira, sem dúvida alcança,
através dos rádios de pilhas dos torcedores, a fácil comunicação
com o alvo desejado, o público presente. 8 

Com as transformações na Comissão Técnica, João Havelange tinha


agora o caminho aberto para a militarização da delegação que conduziria o
Brasil ao México. Esta, chefiada pelo major-brigadeiro Jêronimo Bastos,
tinha a segurança a cargo do major Ipiranga dos Guaranys, além de contar,
ainda, com os militares Cláudio Coutinho, Raul Carlesso e José Bonetti,
alguns deles integrantes da antiga COSENA. Cabelos cortados ao estilo da
caserna, preparação física coordenada por militares, contraditoriamente a
este esquema tão rígido a seleção se transformaria, dentro de campo, em
paradigma do futebol-arte. A cada vitória, uma aclamação popular que
parecia legitimar o regime, com o próprio Médici aparecendo no noticiário
da TV fazendo embaixadinhas. Tudo indica que a presidência fez questão
de aproveitar o embalo da seleção brasileira para anunciar à nação o pro-
jeto da Transamazônica, temendo talvez que o encanto propiciado pelo

Gilberto Agostino 161


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

fantástico desempenho da seleção no México se quebrasse. Consumada


a vitória, o governo explorou o tricampeonato através de todas as formas
possíveis, procurando potencializar o futebol como um fator capaz de
promover a “unidade na diversidade”. Os responsáveis pela AERP não
encontrariam maiores dificuldades para convencer as autoridades da im-
portância do momento. Paralelamente ao presidente Médici, que instituiu
feriado nacional para valorizar a recepção dos jogadores em Brasília, não
foram poucos os governadores, prefeitos e vereadores que fizeram de
tudo para posar ao lado dos craques. Para os ligados mais diretamente ao
governo, repetir o discurso oficial era fácil, uma vez que bastava relacio-
nar o desempenho da seleção ao momento de euforia econômica que se
convencionou chamar de Milagre.
Em 1971, como demonstração de que, para o governo militar, a
interação futebol-poder não se limitaria à Copa do Mundo, tinha início um
campeonato com clubes da maioria dos estados brasileiros, substituindo a
fórmula anterior, que só agregava os cinco maiores estados da federação.
Paralelamente, estádios eram inaugurados em todo o Brasil, geralmente
com a presença de autoridades do governo, em muitos casos do próprio
presidente, enquadrando-se no modelo de grandes obras que marcava o
período. Em 1972, procurando ainda canalizar a fórmula do tricampeo-
nato, João Havelange organizou a Taça Independência, comemorando o
sesquicentenário da independência do Brasil. Vinte seleções atuaram nesta
verdadeira Minicopa, embora as grandes potências do futebol europeu –
Alemanha, Inglaterra e Itália – não tenham participado, afirmando que
a competição possuía fins políticos que se sobrepunham aos esportivos.
Pelé também negou-se a jogar, alegando que sua imagem vinha sendo
utilizada pelo regime para legitimar a ditadura no exterior. Sem empolgar a
nação como o governo esperava, a competição teve um jogo emblemático:
Brasil e Portugal. Cento e cinquenta anos depois, Colônia e Metrópole
se encontravam marcadas por um trágico destino comum: ambos sob
governos ditatoriais.
Mesmo sem Pelé, a seleção não teve dificuldades de vencer a com-
petição. Nos bastidores, entretanto, a situação de Havelange e da CBD
piorava aos olhos da ditadura. A entidade estava no vermelho, devido ao

162 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

grande prejuízo financeiro do torneio, usado para alavancar a candidatura


do dirigente à presidência da FIFA. Entre tantos casos do uso político da
competição, um deles chama a atenção. Enquanto a seleção tricampeã
cobrava 15 mil dólares para jogar um amistoso na Europa, Havelange
pagou 25 mil dólares para trazer a Venezuela ao Brasil. Não pela seleção
venezuelana em si, mas, sim, pelo voto que a federação do país poderia
representar na eleição que se aproximava.
Em 1974, quando Havelange conseguiu ser finalmente eleito para
a FIFA, já na presidência de Ernesto Geisel, o dirigente era vigiado pelo
DOPS, um dos braços repressores do regime. Em janeiro de 1975, Have-
lange acabou finalmente afastado da CBD, tendo o comando da entidade
passado para o Almirante Heleno Nunes. Neste novo quadro, a ingerência
do governo ditatorial no universo esportivo ainda conseguiria conquistar
mais algumas importantes posições. Aprovada pelo congresso, a lei 6.251,
institucionalizando o voto unitário das federações e confederações, im-
pedia que os grandes clubes controlassem o calendário do futebol. O que
aparentemente era o estabelecimento de uma prática mais “democrática”,
na verdade garantiu que as ligas do interior controlassem as federações,
permitindo campeonatos cada vez com mais clubes, boa parte deles sem
expressão futebolística, mas com razoável expressão eleitoral. Em 1978,
a CBD apresentou uma tabela com 74 clubes, número que subiu para 94
no ano seguinte. Foi daí que surgiria a máxima, atribuída à administração
de Heleno Nunes: Onde a Arena vai mal, um time no Nacional.

m m m

Quando Perón chegou ao poder, em junho de 1946, o futebol ar-


gentino vivia um momento auspicioso. Neste mesmo ano, a turnê que
o San Lorenzo fizera na Europa assumiria resultados impressionantes,
culminando com a goleada de 6X1 sobre a seleção espanhola. Em Bue-
nos Aires, La Máquina, como ficara conhecido o time do River Plate nos
primórdios dos anos 40, fora encarada como uma das maiores equipes
do mundo em sua época, contando com um esquema de jogo mágico e

Gilberto Agostino 163


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

astros do porte de Muñoz, José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera, Angel


Labruna e Loustau. Para os torcedores, estes ficariam na lembrança como
Los Caballeros de la Angustia, capazes de dominar o jogo por todo o tem-
po, mas ganhar por um placar apertado, geralmente com diferença de um
gol, deixando represada a sensação da vitória até o apito final. Talvez um
nome ainda mais apropriado para tanta criatividade e improviso do que
La Máquina, um paradoxo que representava o sinal dos tempos, em um
país que atravessava profundas transformações em sua estrutura produtiva
em direção à modernização.
Se os clubes argentinos iam bem, a seleção nacional, por sua vez,
atravessava um momento excepcional, pois acabara de vencer o Sul-
-Americano, disputado em fevereiro em Buenos Aires, repetindo o que
ocorrera em 1945, quando o Brasil ficou em segundo lugar. Um bicampe-
onato que deixaria muitas cicatrizes. A história do jogo final apresentou
uma sucessão de episódios decisivos para a situação singular nas relações
futebolísticas entre Brasil e Argentina durante a Era Perón: a ausência de
confrontos com a seleção brasileira.
Anunciada para o Monumental de Nuñez, a decisão talvez tenha
atingido o ponto mais alto da rivalidade futebolística entre argentinos e
brasileiros, alimentada há várias décadas. Além das costumeiras provocações
de lado a lado, tão comuns nestas decisões, ainda antes de a bola rolar, os
dirigentes argentinos promoveram um espetáculo bastante singular, visando
acalentar o ânimo dos torcedores. Batagliero, jogador que quebrara a perna
em uma partida três meses antes, jogando contra a seleção brasileira no Rio
de Janeiro, desfilou para a torcida carregado em uma maca.
Iniciado o jogo, as tensões cresciam minuto a minuto, culminando,
ainda no primeiro tempo, com o choque entre Jair Rosa Pinto e o capitão
argentino Salomon, com o atleta portenõ fraturando a tíbia e a fíbula.
Indignada com o incidente, a torcida invadiu o campo, obrigando o time
brasileiro a se esconder no vestiário. Depois de mais de uma hora de
paralisação, o policiamento garantiu o restabelecimento da ordem, pres-
sionando para que os brasileiros voltassem ao campo. O jogo continuaria.
Com apenas dez jogadores de cada lado, os argentinos marcaram dois gols
e sagraram-se campeões da competição. De volta ao Brasil, os relatos do

164 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

episódio foram decisivos para promover o início do hiato entre as duas


seleções. Hiato este que acabaria se estendendo durante dez anos.
Com ou sem embates contra o principal adversário sul-americano,
para o governo Perón o selecionado argentino tornar-se-ia um dos trunfos
da propaganda em torno do nacionalismo. Por outro lado, o governo adotou
uma estratégia bastante singular em relação aos clubes, bem diferente do
que os brasileiros faziam à mesma época, empenhados na realização de
um megaestádio para o Mundial de 1950. Investindo na construção, ou
reforma, de estádios de capacidade média para os principais clubes do
país, o governo Perón sustentou a possibilidade de tornar qualquer jogo
uma missão difícil, às vezes quase impossível, para os visitantes. Nenhum
exemplo é mais expressivo que la Bombonera, como ficou conhecido o
estádio do Boca Juniors, o Camilo Chichero, nome de um presidente do
clube. Quanto ao apelido, que ninguém sabe ao certo quem lançou, faz
menção às caixas de bombons em forma de ferradura entregues pelos
padeiros nos idos dos anos 1930. Lançada a pedra fundamental em 1938,
inaugurado dois anos mais tarde – no dia 25 de maio, data nacional –, o estádio
começou a ser ampliado em 1949, recebendo um pouco depois torres de
iluminação e instalações olímpicas.
Perón, admirador do esporte de uma forma geral – havia sido bo-
xeur quando mais novo –, não fazia questão de demonstrar neutralidade
clubística, não escondendo seu amor pelo Racing, clube que brilhou nos
campeonatos argentinos naquela mesma época. O presidente argentino,
da sua parte, leitor de Maquiavel e admirador de Mussolini, assumia uma
posição mais discreta em algumas questões e uma atitude decisiva em
relação a outras, procurando deixar para sempre sua marca no futebol
nacional. Não por acaso o estádio do Racing foi chamado de Presidente
Perón, nome que, depois de tantos anos, permanece sem ter sido suplan-
tado por nenhum apelido ou coisa do gênero, como em muitos casos de
outros estádios sul-americanos. Não por acaso também os torcedores dos
outros times, desdenhosos ou indignados, descontavam a insatisfação em
cima de uma figura muito mais vulnerável, o Ministro da Fazenda, Ramón
Cereijo, também torcedor do Racing, apelidando pejorativamente o clube
de Sportivo Cereijo.

Gilberto Agostino 165


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

Como primeiro trunfo futebolístico do que os ideólogos peronistas


chamavam de A Nova Argentina, a vitória no Sul-Americano de 1947,
disputada no Equador, possibilitou à seleção nacional dar el gusto da
supremacia continental. Isto em uma época em que outros esportes vi-
nham caindo nas graças da população, com o brilho de Fangio nas pistas
europeias e a vitória dos argentinos sobre os americanos no basquete no
Pan Americano de 1950, disputado em Buenos Aires. Competição esta
em que a Argentina conseguiu suplantar até mesmo os Estados Unidos
no número de medalhas, demarcando uma diferença nada desprezível:
150 para 95. Apesar de todas as conquistas, as relações referentes ao
universo do trabalho envolvendo os futebolistas, os dirigentes e o próprio
governo Perón atravessaram um período de turbulência que deixaria
marcas duradouras no futebol do país. Fundada em 1944, a Futbolistas
Argentinos Agremiados (FAA) fora formada como uma entidade defen-
sora dos interesses dos jogadores profissionais, tendo como signatários
alguns craques renomados que já haviam, inclusive, servido à seleção,
como o astro Pedernera, a esta altura jogando no Huracán. Defendendo
uma série de questões delimitadoras entre o profissionalismo e o ama-
dorismo, a FAA alegava, por exemplo, que um jogador que atuasse ao
menos cinco vezes na equipe principal de um clube deveria ser consi-
derado atleta profissional.
À medida que as discussões cresciam, em outubro de 1948, as
propostas dos jogadores iam sendo repudiadas pelos dirigentes da
Asociación de Fútbol Argentino (AFA), tornando a situação explosiva
no meio futebolístico. A gota d’água foi quando o River Plate decidiu
excluir de sua equipe o jogador Pipo Rossi, acusado de comportamento
antiesportivo. No dia 9 de novembro os jogadores declararam-se em
greve. As partidas decisivas do campeonato foram disputadas com
amadores, garantindo o campeonato ao Independiente. No mesmo ano,
o Uruguai também atravessava uma greve de futebolistas, tendo como
um dos grandes líderes do movimento o jogador Obdúlio Varela, capitão
da Celeste em 1950. Neste momento de incerteza, uma porta se abriu
para os jogadores sul-americanos. Tratava-se da Colômbia, que por não
ser filiada à FIFA não se via presa às questões financeiras referentes a

166 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

passes e transferências de atletas, podendo pagar somas astronômicas


aos jogadores. Dezenas deles, de toda a América do Sul – e até mesmo
da Europa –, afluíram para o El Dorado Colombiano, como ficaria co-
nhecida a experiência. Para os jogadores argentinos, em um momento
de crise com os dirigentes, era uma chance imperdível. Assim pensou
uma das maiores estrelas argentinas de todos os tempos, Alfredo Di
Stéfano, e muitos outros craques que formavam a seleção treinada por
Guillermo Stábile, tricampeão sul-americano. O futebol argentino sofria
a sua maior sangria desde a época dos oriundi, só normalizada em 1954,
quando a FIFA impôs rígidas regras ao futebol da Colômbia.
As turbulências políticas envolvendo o movimento grevista dos
jogadores, assim como a ruptura das relações futebolísticas com o Brasil,
levou a seleção da Argentina a não participar do Sul-Americano de 1949,
disputado no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, e também da IV edição da
Copa do Mundo. O presidente da AFA, Valentín Suárez, fora aconselhado
pelo governo a não participar do Mundial de 1950, pois se temia que os
êxitos esportivos que vinham caracterizando a Era Perón fossem mancha-
dos por uma performance desastrosa em gramados brasileiros.
Com a crise do futebol profissional, cabia ao governo peronista
enfatizar o desporto como uma prática acima de interesses individuais,
voltada para a coletividade e para o engrandecimento da nação. Neste
sentido, os atletas, de uma forma geral – e, principalmente, os ídolos
–, deveriam possuir todo um conjunto de qualidades, que os tornasse
modelos para o conjunto da sociedade. Na verdade, desde o início do
governo, Perón já vinha ressaltando a importância de incentivar os va-
lores esportivos nas crianças e na juventude, tendência que se acentuou
com o desgaste do profissionalismo. Anualmente, organizavam-se os
Campeonatos Infantis de Futebol Evita, envolvendo mais de 100.000
crianças em todo o país, com toda a infraestrutura garantida pelo governo.
Nas finais, disputadas nos estádios dos grandes clubes, o próprio Pre-
sidente Perón e a dona da festa, Eva Duarte, premiavam os vencedores
em grande estilo.
Mesmo ausente dos grandes encontros internacionais do período, o
governo peronista mostrava-se ansioso por catalisar todas as manifestações

Gilberto Agostino 167


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

que o futebol suscitava em relação à identidade nacional e, desde 1950, já


havia sondado a possibilidade de a seleção inglesa jogar em Buenos Aires.
Por sua vez, o embaixador inglês, temendo que um embate “mais viril”
entre os jogadores abalasse relações diplomáticas mantidas a tanto custo,
desaconselhava a visita inglesa ao território argentino, instrução esta levada
em conta pela Federação Inglesa. Para o Foreign Office, entretanto, nada
mais conveniente do que um estreitamento das relações através do futebol.
Afinal, neste momento, a Argentina, municiada pelas divisas acumuladas
durante a guerra, adquiria milhas e milhas de estradas de ferro inglesas,
por um preço extremamente vantajoso para os vendedores. Mesmo que
ainda não fosse a hora de os ingleses partirem para Buenos Aires, nada
impediria que os argentinos rompessem seu “esplêndido isolamento” e
fossem à Inglaterra. Em maio de 1951, aproveitando a comemoração do
Festival Britânico, o selecionado argentino cruzou o Atlântico, tão logo
Perón se inteirou de que o futebol inglês – atravessando uma péssima fase
– jamais havia perdido uma partida oficial em Wembley. Ansioso com a
possibilidade de romper a tradição dos inventores do jogo, o presidente
argentino convocou o Ministro da Fazenda e disse-lhe:

Arme a seleção e vamos que vamos enfrentar os ingleses.


Desafia o embaixador inglês que está aqui e vamos acabar com a
invencibilidade destes ‘carne de gallina’.9 

Montada às pressas, mesmo com muitos jogadores fora de forma,


a seleção argentina pisou no gramado de Wembley, não se intimidan-
do com a torcida local. E chegou mesmo a sair na frente no placar. A
pressão inglesa, entretanto, obrigava o goleiro argentino Miguel Ángel
Rugilo, que jogou no Vélez Sarsfield e em seguida seria chamado de
El León de Wembley, a praticar algumas defesas memoráveis. Faltando
onze minutos para a partida acabar, os ingleses conseguiram o gol de
empate. Logo em seguida, com uma jogada extremamente rápida, vi-
raram o marcador, com o banco argentino reclamando do impedimento
do atacante Mortensen. Apesar do resultado final, Perón fez questão
de receber os jogadores com grande pompa, saudando-os como ver-
dadeiros heróis nacionais.

168 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Se para o discurso governamental a brava resistência argentina no


templo do futebol era um motivo de júbilo, para alguns jornalistas o estilo
criollo ainda deixava algo a desejar. Estava aberta a discussão. Esta, aliás,
guardando suas especificidades nacionais, não era muito diferente daque-
las que os brasileiros haviam elaborado antes do Maracanazo. Ricardo
Lorenzo – apelidado de Borocotó –, um dos mais famosos cronistas do
futebol argentino, escreveu a respeito em El Gráfico, duas semanas após
a partida contra a Inglaterra:

Os ingleses são ingleses e nós somos criollos. Existem mar-


cações, táticas, planos [...] Mas existe alguma coisa que não se
pode mudar e nem mesmo aceitar adaptações de nenhuma índole
e que está ligada à idiossincrasia de cada um. Existe uma maneira
de pensar, de sentir, de executar e que está no sangue, no churrasco
e no mate.

No início de 1952, o River Plate fez um giro vitorioso por diversos


países europeus, passando pela Itália, Espanha, França, Portugal, Suíça e
Inglaterra. Neste momento, a maior facilidade das viagens de avião havia
encurtado as distâncias, embora o desastre aéreo sofrido pela equipe do
Torino, em 1949, permanecesse na memória de todos os futebolistas,
fazendo muitas vezes com que as delegações fossem divididas em três
ou quatro voos. De todos os trunfos no Velho Mundo, nenhum teve tanta
relevância quanto a superação do Manchester City, por 4X3, dando aos
torcedores argentinos a confiança e a personalidade que há tanto se espe-
rava do futebol criollo. Afinal, todos sabiam da dificuldade de vencer os
ingleses em seu próprio campo.
No ano seguinte viria a grande prova, uma vez que chegara a hora
de a seleção inglesa retribuir a visita argentina de 1951. Para o governo, a
possibilidade de um encontro internacional daquela magnitude era a chance
de promover manifestações em torno da coesão do povo argentino. Duas
partidas haviam sido programadas para o Monumental de Nuñez, sendo
que na primeira – 14 de maio, uma quinta-feira – os ingleses jogaram com
a maioria de reservas, poupando os titulares para o jogo mais importante,
a ser disputado no dia 17, o domingo seguinte. Para o torcedor argentino,

Gilberto Agostino 169


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

após a vitória por 3X1 no primeiro jogo, no qual Ernesto Grillo marcou um
gol antológico até hoje lembrado pelos saudosistas, cabia apenas esperar
o duelo final. A expectativa em relação ao segundo encontro, entretanto,
seria frustrada por uma tempestade que se abateu sobre Buenos Aires,
cancelando a partida aos 23 minutos do primeiro tempo, diante de quase
92.000 espectadores. No placar: 0X0. E como não havia tempo para um
jogo extra, já que os ingleses partiriam imediatamente para assumir os
compromissos firmados em Montevidéu, valeu mesmo a lembrança do
primeiro jogo. De qualquer forma, para uma crônica eivada pelo discurso
nacionalista que marcava a experiência peronista, o triunfo por 3X1 já
era suficiente para a afirmação definitiva do estilo criollo, demarcando o
que os argentinos ansiavam há tanto tempo: a esperada vitória contra a
Rubia Albión.
Derrubado por um golpe militar em setembro de 1955, o governo
de Perón foi sucedido pelo do general Lonardi e, posteriormente, pelo do
general Aramburu. Neste período, apesar do clima de indefinição que o
país vivia, o técnico Guillermo Stábile tinha em suas mãos uma fantástica
legião de craques que marcaram época no futebol argentino. Vencendo o
Sul-Americano no Chile, a equipe terminou invicta, com o destaque para
a goleada de 6X1 nos uruguaios. Em 1956, reinaugurando oficialmente
as relações futebolísticas entre Brasil e Argentina, a seleções entraram em
campo no Estádio Centenário para mais um Sul-Americano, com a vitória
dos brasileiros por 1X0, gol do corinthiano Luís Trujillo. Na verdade,
poucos perceberam que aquela partida começava a marcar uma impor-
tante virada na rivalidade futebolística Brasil-Argentina, abrindo a fresta
para a superação daquilo que se convencionou chamar de Platinismo. No
ano seguinte, com o campeonato sediado pelos peruanos, Stábille podia
contar com jogadores como Corbatta, Cruz, Maschio, Angelillo e Sívori,
os três últimos passando à história como Los Carasucias. Marcando 25
gols e sofrendo apenas 6, batendo o Uruguai por 4X0 e o Brasil por 3X0,
os argentinos despontavam como a melhor equipe sul-americana e uma
das favoritas para a próxima Copa do Mundo.
Quatorze meses mais tarde, entretanto, às vésperas do início do
certame na Suécia, o quadro do futebol argentino havia mudado. Arturo

170 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Frondizi assumiu a presidência com um discurso otimista – inclusive em


relação às chances argentinas no Mundial –, comprometendo-se a auxiliar
a AFA nos custos da competição, que, segundo previsões, atingiriam a
quantia de 3.000.000 de pesos entre passagens, estadia e pagamento aos
clubes pela cessão dos jogadores. A equipe argentina, entretanto, já não
era a mesma, tendo perdido Los Carasucias para o futebol italiano e o
goleiro Rogelio Domínguez para o Real Madri. A negociação de Sívori,
por exemplo, foi tão importante para o seu time, o River Plate, que com
o dinheiro recebido pela transação foi possível concluir a construção de
seu famoso estádio, o Monumental de Nuñez. Por outro lado, a excessiva
confiança comprometeu a preparação física e tática, uma vez que muitos
acreditavam que o domínio de bola, maior característica daquela equipe,
seria suficiente para a vitória. Mais tarde, alguns jogadores reconheceram
que nada sabiam a respeito dos adversários, como resumiu Angel Labruna,
um dos maiores craques da história do futebol argentino, ao lembrar dos
antecedentes da competição: Para a Suécia... fomos às cegas.
Em campo, a Argentina começou perdendo para a Alemanha Oci-
dental por 3X1. Em seguida, derrotou a Irlanda do Norte pelo mesmo
placar, jogando sua sorte na competição contra a Tchecoslováquia. Neste
jogo, assistiu-se a um verdadeiro massacre, com os gols tchecos se suce-
dendo sem que os homens de Stábile tivessem o menor poder de reação.
Aos quarenta minutos do primeiro tempo, o placar já apontava 3X0. Ao
final, a maior goleada sofrida pelo futebol argentino em todos os tempos:
6X1. De volta à casa, o plantel foi recebido com indignação no aeroporto
de Ezeiza, resguardado pela polícia motorizada. Atirando moedas nos
jogadores, muitos torcedores acusaram a equipe de perder a competição
– e a dignidade do futebol argentino – nos prazeres da noite escandinava.
Surgiria a expressão o fracasso da Suécia, em certo sentido equivalente
ao que os brasileiros amargaram no termo Maracanazo. Stábile foi subs-
tituído por um triunvirato formado por José Barreiro, Victorio Spinetto
e José Della Torre, cujo grande desafio foi o Sul-Americano, disputado
na própria Argentina, em 1959. Era a chance da redenção. No primeiro
jogo, os anfitriões despacharam 6X1 nos chilenos, passando também pela
Bolívia por 2X0 e, em seguida, pelo Paraguai, por 3X1. Paralelamente,

Gilberto Agostino 171


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

em meio aos triunfos argentinos, Brasil e Uruguai vinham apresentando


um futebol pouco convincente, até se enfrentarem em um jogo decisivo
no Monumental de Nuñez. Desde o início, o nervosismo das equipes
se traduzia em choques e empurrões, levando o árbitro a expulsar dois
jogadores, enquanto outros eram substituídos em função das contusões.
Terminado o jogo, com o placar de 3X1 para o Brasil, os incidentes mais
violentos foram deixados para a hora dos cumprimentos, quando jogadores
uruguaios e brasileiros transformaram o campo do River Plate em uma
batalha campal. Mesmo perdendo o título para os argentinos, ao empatar
com os anfitriões em 1X1, a seleção, para a crônica esportiva brasileira,
havia finalmente superado os últimos fantasmas do pesadelo no Mara-
canã, nove anos antes, quando foi capaz de reagir à garra dos uruguaios,
mostrando que não mais se intimidaria com agressões, como muitos acre-
ditavam ter sido a tônica da derrota em 1950. Neste sentido, afirmou-se
que o Sul-Americano de 1959 fechara o ciclo que havia começado para
os brasileiros no ano anterior, na Suécia.
Desclassificado nas eliminatórias para o Mundial de 1962, o se-
lecionado argentino voltava à Copa do Mundo em 1966 na Inglaterra.
Nas quartas de final, argentinos e ingleses fizeram um jogo marcado por
muita violência e provocação, culminando com a expulsão do capitão
argentino, Rattin, seguida de sua recusa em deixar o gramado. Com dez,
os argentinos se esforçaram bastante, embora acabassem derrotados,
deixando o campo com a típica fúria daqueles que saem de uma Copa
do Mundo sentindo-se injustiçados. Rudolf Kreitlein, juiz alemão que
comandou o jogo, foi agredido pelos reservas argentinos tão logo o apito
final ressoou no estádio. A indignação dos jogadores eliminados chegou
ao ponto de cuspirem em um bandeirinha, urinarem nos túneis e baterem
violentamente na porta dos vestiário adversário. Alf Ramsey, técnico
inglês, disparou sua reprovação em relação à conduta argentina em uma
implacável declaração logo depois do jogo: Nosso melhor futebol será
apresentado contra um time que se decida a jogar futebol e não a atuar
como um conjunto de animais!
Do lado argentino, Rattin alegou logo em seguida que apenas havia
interpelado o árbitro em relação às faltas dos ingleses. Em declaração à

172 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

imprensa argentina, criticou não só aquele que seria o anti-herói inglês


na competição, o truculento zagueiro Nobby Styles, como também os
organizadores do Mundial:

Aquele quarto zagueiro Styles é um cavalo. Ele pegou Onega


e Artime. O juiz, o canalha do alemão, viu tudo e nada fez. Reclamei,
mas não o ofendi. Ele me expulsou, alegando ofensas. Como o ho-
mem chegou a esta conclusão, se ele não falava espanhol? Roguei
por um intérprete para esclarecer tudo. Ele não me atendeu. Estava
ajustado com o Rouss. Perdemos no apito. Mas eu mostrei que na
América também tem homem.10 

A declaração é singular, pois transparecia uma questão crucial


para uma competição que ultrapassara todas as fronteiras, inclusive
linguísticas. No próximo Mundial, no México, a FIFA adotaria os car-
tões vermelhos e amarelos, como forma de repreensão em um mundo no
qual o futebol se transformava numa Torre de Babel. Por outro lado, ao
colocar-se como representante dos americanos, Rattin, como já haviam
feito os brasileiros em outras ocasiões, sugeriu que a questão passava
pelo prisma Europa-América. E, nos anos seguintes, nada representou de
forma mais intensa este antagonismo do que os clubes argentinos, princi-
palmente quando encontravam os ingleses em disputas internacionais ou
“amistosos”. Em 1967, preocupado com a imagem do país no exterior, o
general Ongania, ditador que governava a Argentina, chegou a repreen-
der a equipe dos Estudiantes de La Plata pela violência apresentada em
partidas internacionais.
Alguns anos mais tarde, em 1976, um golpe militar alçava ao poder
na Argentina a Junta de Comandantes em Chefe, formada pelo general
Jorge Rafael Videla, o almirante Emilio Eduardo Massera e o brigadeiro
Orlando Ramón Agosti, instalando uma violenta ditadura, que se estenderia
por sete anos. Assumindo a presidência do novo ciclo militar no país, o
general Videla empreendeu uma feroz investida contra as oposições, que
ficaria conhecida como Guerra Suja. Milhares de pessoas consideradas
suspeitas foram sequestradas, submetidas a torturas de toda espécie, sendo
que a maior parte foi eliminada por grupos de extermínio, vindo a confi-

Gilberto Agostino 173


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

gurar o quadro de “desaparecidos”, que, segundo estimativas, ultrapassou


a marca de 20.000 casos.
Cerca de dez anos antes, no entanto, a FIFA já havia decidido que
a Argentina sediaria o Mundial de 1978, com a alegação de que o mundo
do futebol nutria grande admiração pelo estilo de jogo argentino, fator que
se somava às questões de natureza técnica, como as excelentes instalações
hoteleiras e os inúmeros estádios existentes em diversos pontos turísticos do
país. Tão logo Perón voltou ao governo (pela terceira vez), em novembro de
1972, López Rega – el brujo – idealizou o emblema do Mundial de 1978,
um desenho no qual linhas paralelas em torno da Copa simbolizavam um
gesto clássico do peronismo: braços erguidos saudando Perón.
Entretanto, com a tensa situação que os argentinos viviam desde o
golpe de 1976, João Havelange acabou sendo interpelado em relação ao
destino do Mundial. Apesar das expectativas, nenhuma mudança de planos
foi anunciada e a Argentina foi confirmada como país sede da competição.
Conhecida a posição da FIFA, cresceram os protestos contra o even-
to, condenando a possibilidade de um governo que desrespeitava direitos
humanos sediar um campeonato que, ainda por cima, seria utilizado como
mecanismo de propaganda a seu favor. A Anistia Internacional, sediada
em Londres, foi uma das primeiras a se pronunciar. Na França, as colunas
dos jornais Le Monde e Figaro tornaram-se tribunas de um intenso debate
que logo alcançou os programas de televisão, dominando a opinião pública
durante algumas semanas. Intelectuais e artistas como Maurice Clavel,
Simone Signoret e Claude Manceron defendiam o boicote, alegando ques-
tões morais. Seus opositores afirmavam que se os bleus não podiam ir à
Argentina, que o mesmo fosse estendido ao Brasil, à URSS, ao Chile, ao
Zaire, a Cuba, ou mesmo à Inglaterra, uma vez que o conflito no Ulster
afrontava permanentemente os direitos humanos.
Em meio às acaloradas posições, foi formado o Comitê pelo Boicote
da Organização da Copa do Mundo de futebol (COBA), procurando an-
gariar adeptos em vários países. A partir de informações compiladas pela
Anistia Internacional, um documento redigido pelos dirigentes do Comitê
foi distribuído à imprensa, alinhando algumas razões a favor do boicote.

174 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

A Copa do Mundo de Futebol, prevista para junho de 1978,


será disputada em meio aos campos de concentração da Argentina?

A equipe da França, qualificada no dia 16 de novembro último,


jogará a 800 metros do mais terrível centro de torturas do país? Esta
é, de fato, a distância que separa o estádio do River Plate, onde devem
se realizar as principais partidas da Copa do Mundo, da Escuela
de Mecanica de la Armada, sede do sinistro ‘Grupo de Tareas 33’,
verdadeira Gestapo argentina, composto por 314 oficiais e soldados
da Marinha. Há dois anos este grupamento vem servindo às torturas
perpetradas contra prisioneiros políticos. É também da Escuela de
Mecanica de onde decolam os helicópteros que vão lançar os corpos
mutilados das vítimas nas águas do Rio da Prata ou do Atlântico.11 

Apesar de toda a mobilização, os países classificados nas eliminatórias


confirmaram suas presenças. Michel Hidalgo, treinador da equipe france-
sa, alegou que os bleus não iriam à Argentina ao encontro de um regime,
mas de um povo. Argumentos parecidos foram utilizados por esportistas
de outros países. Mesmo a equipe holandesa, que colocara em xeque sua
participação, acabaria marcando presença. Apesar da derrota em seu objetivo
mais imediato, o COBA não foi desmobilizado, continuando ativo por algum
tempo, inclusive durante toda a competição através da divulgação de relatos
das arbitrariedades cometidas no país. Ainda um pouco antes de a Copa
começar, alguns acreditavam ser possível transferir o Mundial para outra
sede. Pretendentes não faltaram, despontando como candidatos a Bélgica,
a Holanda e o Brasil, onde os generais de plantão não perderiam a oportu-
nidade de fazer o mesmo que os congêneres argentinos estavam fazendo.
Na verdade, foi exatamente para os senhores da ditadura argentina que
a confirmação do Mundial em 1978 foi encarada como uma dádiva política.
Estes, aliás, apenas uma semana depois da tomada do poder, haviam inter-
ferido na AFA, substituindo seu quadro dirigente. No dia 8 de abril, quando
Argentina e Uruguai se encontraram no estádio do Velez Sarsfield, pela
Copa Atlântico, a entidade já estava sob o controle de Alfredo Francisco
Cantilo, homem de confiança dos ditadores, que veio a substituir David
Bracutto, identificado politicamente com o governo deposto.

Gilberto Agostino 175


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

Em relação à realização do Mundial, ninguém da nova cúpula dirigente


hesitou um instante sequer em potencializar ao máximo o acontecimento para
favorecer a imagem do regime. Afinal, os militares frequentemente iam a
público se queixar da Campanha Antiargentina que se promovia interna-
cionalmente, desde que o ex-presidente boliviano Juan José Torres fora
assassinado no país. Nesta hora, portanto, em meio às barulhentas mani-
festações do COBA, nenhum esforço podia ser poupado. Como reforço
para a condição argentina de país-sede, o presidente Videla “empenhou
sua palavra” à FIFA, garantindo que, enquanto durasse o Mundial, nenhum
distúrbio político ocorreria no país, uma vez que afirmava estar mantendo
contatos com Rodolfo Galimberti, representante dos Montoneros – grupo
de esquerda envolvido na luta armada contra a ditadura –, objetivando
estabelecer uma trégua durante a Copa. Para tal, o governo comprometia-se
a soltar presos políticos, durante o andamento da competição.
Visando promover o andamento de toda a questão administrativa
referente à competição, a ditadura argentina formou uma comissão or-
ganizadora, a Ente Autárquico Mundial (EAM), chefiada pelo general
Carlos Omar Actis, engenheiro austero, com fama de incorruptível. Actis
era tido como o homem certo no lugar certo para impedir que os valiosos
recursos financeiros de um país em crise fossem desperdiçados. Suas
responsabilidades eram muitas e o orçamento que envolvia a organização
de um evento daquela envergadura era capaz de mobilizar interesses que
iam muito além de questões ideológicas. Neste sentido, não é de estra-
nhar que a EAM tenha sofrido um sem número de pressões, inclusive dos
patrocinadores, dispostos, por exemplo, a exigir que esforços não fossem
poupados para que a competição fosse transmitida em cores.
Irredutível em algumas de suas posições, Actis não viveu o suficiente
para impor suas ideias à organização do Mundial, sendo assassinado em
Wilde, periferia de Buenos Aires, quando se dirigia a um encontro com
jornalistas. A morte foi atribuída aos militantes de esquerda, embora es-
tes tenham negado terminantemente a autoria do atentado. Enquanto as
investigações arrastavam-se lentamente, assumia o controle da EAM o
vice-presidente de Actis, o intempestivo Almirante Carlos Alberto Lacos-
te. Este encarnava o discurso do regime em nome de uma Argentina que

176 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

encontrava seu verdadeiro caminho, capaz de superar o passado peronista


marcado pela agitação inconsequente. Em relação a este passado, Lacoste
afirmava de forma truculenta:

Entre 1973 e 1976, eles [os peronistas] falavam muito, mas


nada fizeram para preparar esse grande torneio. Estamos substituin-
do suas conversas, o papelório, por prédios, por estádios. Sob os
peronistas, vocês tinham três dias de trabalho e trezentos e sessenta
e dois dias de greves. Hoje não há mais greves. Nós as proibimos.12 

Lacoste vinha gastando somas astronômicas com a organização


do evento, algo que Actis sempre relutara em fazer. Além da reforma
de vários estádios, três novos foram construídos especialmente para o
Mundial, enquanto um moderno Centro de Imprensa era instalado em
Buenos Aires. Um filme foi encomendado, procurando demonstrar a
monumentalidade do evento: La fiesta de todos. De Sergio Renán-Hugo
Sofovich, apresenta como primeira tomada a vista aérea do estádio do River
Plate e os gritos da torcida: Argentina! Argentina! À medida que a orga-
nização caminhava a largos passos, alguém percebeu que seria necessário
um slogan que pudesse representar o sentido coletivo do momento. Logo
promoveu-se a ideia de que “vinte e cinco milhões de argentinos” torciam
juntos para a seleção. A mensagem era clara. Aquele que não abraçasse
a causa da seleção não podia ser considerado argentino de fato. No dia a
dia do Mundial, um refrão de torcedores parecia sintetizar a mensagem:

Pan e vino
Pan e vino
El que no grita Argentina
Para que carajo vino?

Repetia-se uma estratégia tantas vezes utilizada por outros modelos


ditatoriais. E, mais uma vez, os resultados foram positivos para os donos
do poder. Não por acaso, portanto, historiadores do futebol argentino
são unânimes em afirmar que a Copa de 1978 foi a mais bem-sucedida
operação da ditadura militar argentina na esfera da opinião pública. Para

Gilberto Agostino 177


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

a esquerda que amava o esporte, um dilema que os brasileiros já haviam


vivido oito anos antes: a culpa do gol. Torcer ou não torcer...? Por outro
lado, para os críticos da fórmula futebol-nação, vivia-se um momento de
alienação. Em uma declaração repleta de sarcasmo, o escritor Jorge Luis
Borges afirmou:

Não é possível que um país se sinta representado por jo-


gadores de futebol. É como se os dentistas nos representassem. A
Argentina tem duas coisas que nenhum outro país possue: a milonga
e o doce de leite. Que identidade a mais pretendem?13

Chegada a hora, a cerimônia de abertura foi caracterizada pela pom-


pa tipicamente militar e ufanista que marcava o período. Muitos jornalistas
compararam-na, em muitos aspectos, à estética política do Nazismo. Em
meio à censura latente do regime, quase nada foi divulgado a respeito de
uma bomba encontrada um pouco antes do jogo inaugural no Centro de
Imprensa. Nas tribunas, o general Videla condecorou João Havelange,
o que para muitos presentes soou como um agradecimento por aquela
oportunidade sem igual. Diante dos repórteres do mundo todo, a tarde
foi coroada por infelizes declarações. Havelange afirmava, em um tom
professoral, ser aquele momento de festa reflexo da verdadeira imagem
argentina, enquanto o convidado especial, Henry Kissinger, plantando
sementes para levar a Copa de 1990 para os EUA, discorria a respeito do
futuro brilhante que estava reservado ao povo argentino, graças à conse-
quente política econômica do governo.
Um pouco antes do jogo de estreia dos anfitriões, marcado para 2 de
junho, no Monumental de Nuñez, o presidente Videla fez uma espécie de
preleção política para os jogadores, procurando conscientizá-los da im-
portância daquele torneio para o engrandecimento nacional. Em campo,
a adversária era a Hungria. Um jogo difícil em que o árbitro expulsou
dois jogadores húngaros, facilitando as coisas para a seleção da casa, que
venceu por 2X1. Júbilo dos 70.000 espectadores presentes ao estádio,
cantando em uníssono o refrão que marcaria indelevelmente o cântico dos
torcedores argentinos a partir de então: Vamos, Vamos Argentina/ Vamos,
Vamos a ganar/que esta barra bullanguera/no te deja/no te deja de alentar.

178 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Mal se iniciara o Mundial, as tensões políticas se ampliaram ainda


mais. Apesar da trégua anunciada anteriormente, ações violentas conti-
nuaram por parte do governo. Em um desses momentos, quando alguns
peronistas mais fiéis saíam da missa em homenagem a quatro anos da
morte de Perón, a truculência governamental se fez presente. De uma
forma geral, os montoneros reagiram e responderam com diversas ações
de represália, jogando por terra a esperança de trégua que os militares
anunciaram nos meses que antecederam o evento.
Logo depois, a seleção argentina voltou a campo, vencendo nova-
mente por 2X1. Desta vez o adversário era a seleção francesa, que também
vivia seus conflitos, se bem que com os patrocinadores. Platini e compa-
nhia chegaram ao ponto de entrar em campo com as três listras típicas da
Adidas na chuteira pintadas com tinta branca. Nas ruas de Buenos Aires
multidões festejavam cada triunfo como se fora a conquista do próprio
campeonato, enquanto nos momentos de maior equilíbrio discutiam-se
a seleção em si, suas estrelas e seu técnico. Este, César Luis Menotti, El
Flaco, tornou-se uma das figuras mais conhecidas do futebol argentino
nas últimas décadas. Simpatizante do Partido Comunista – chamado por
alguns brasileiros de “o João Saldanha deles” – Menotti havia assumido a
seleção argentina em 1974, ainda antes do golpe, depois de brilhar como
jogador em gramados tanto da Argentina quanto do exterior, chegando a
jogar no Santos com Pelé.
Desde 1976, convivendo com os reacionários generais que assu-
miram o poder, o maior dos técnicos essencialistas procurava atribuir
as vitórias da seleção não às questões referentes à raça argentina, ou a
qualquer dos argumentos similares, amplamente utilizados pela ditadura.
Para ele, o grande trunfo estava de fato na habilidade e criatividade do
jogador argentino, formando um estilo de jogo próprio, típico da identi-
dade nacional. Na visão de Menotti, os verdadeiros inimigos não eram os
subversivos da esquerda, como difundiam os ditadores, mas, sim, aqueles
futebolistas que incentivavam um futebol medíocre, marcado pelo antijogo,
o que el Flaco denominava de el outro fútbol. Neste sentido, a referência
negativa era o time dos Estudiantes de la Plata, treinado por Osvaldo
Zubeldia, no qual havia jogado e depois dirigido Carlos Billardo, futuro

Gilberto Agostino 179


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

técnico da seleção argentina campeã em 1986. Já era o primeiro sintoma


de uma discussão que se estenderia por muitos e muitos anos. Billardo ou
Menotti? O pragmatismo do billardismo seria considerado um esquema
de jogo contrário ao menottismo, uma questão que ia muito além de um
campo de futebol, pois projetava o próprio reconhecimento que o povo
argentino tinha de si mesmo em uma fase de redemocratização do país.
Entre tantas opiniões, talvez a mais instigante seja do jornalista Chris
Taylor14 . Para ele, na verdade, estes estilos alinhavam-se como o verso e
o anverso de uma mesma moeda, funcionando como um complemento,
com Menotti e Billardo configurando uma espécie de Dr. Jekyl e Mr. Hyde
do futebol argentino.
Apesar de todas as pretensões à magia do jogo proposta por Menotti
em 1978, a seleção deixaria muito a desejar na terceira partida do Mundial,
quando, já classificada, perdeu de 1X0 para a Itália. Na fase seguinte,
depois de derrotar os poloneses, viria o famoso embate com os brasilei-
ros em Rosário. Em campo, com a conivência do juiz, um 0X0 violento,
registrando 90 minutos de um futebol truncado e feio, que frustrou as
expectativas daqueles que encaravam o encontro como “o jogo da Copa”.
Na edição de 24 de junho, logo depois da partida, a revista O Cruzeiro
anunciava o fim do futebol alegria, apesar de lembrar que o Brasil ainda
estava no páreo. Ecos de uma imprensa pessimista, principalmente se
comparada aos veículos argentinos, notadamente a revista El Gráfico, que,
como uma espécie de boletim oficial, seria uma das grandes promotoras
do discurso ufanista que envolvia a seleção argentina. Durante o Mundial,
a revista promoveu através de seus jargões uma forma que se adequava
perfeitamente aos objetivos governamentais de promover o futebol como
catalisador da identidade nacional. Utilizando chamadas na primeira pes-
soa do plural – Cada vez estamos mais próximos, Entramos na história...
– El Gráfico explorou ao máximo uma estratégia narrativa voltada para a
mobilização do “ente nacional coletivo”, incluindo-se no próprio discurso
que anunciava. Por outro lado, boa parte do discurso vinculava-se a uma
nostalgia que procurava resgatar um passado idealizado, através de um
jogo que pudesse retomar o sentido do futebol argentino. Em síntese, como
afirmavam os editores da revista, jogar de acordo com nossa história.

180 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Alejandro Turner15  alinhou os recursos do repertório oficial que


foram amplamente utilizados pela imprensa esportiva argentina em 1978,
estabelecendo como temáticas principais da nostalgia cívica e esportiva
que marcou o processo:

- Reorganizar as instituições
- Devolver o sentido da ordem
- Reafirmar o valor da família
- Voltar ao caminho do progresso
- Recuperar a visão da realidade
- Restituir à República o destino perdido
- Reencontrar os valores tradicionais

Em campo, à medida que a competição ia chegando a seus momentos


decisivos, novos embates testavam não só a capacidade do futebol argen-
tino, como também os limites a serem transpostos pela própria ditadura no
sentido de estender sua mensagem futebol-nação até o fim da competição.
No início de junho, uma transmissão televisiva em La Plata foi ao ar por
13 minutos, driblando todas as normas de segurança. Sua mensagem,
assinada pelos montoneros, criticava o regime e chamava a atenção do
mundo para a Argentina real: “cinco mil mortos, vinte mil desaparecidos
e milhares de presos torturados.”
Apesar do trauma, viria o jogo mais comentado do Mundial, Ar-
gentina X Peru, muito mais que a própria finalíssima, já que a diferença
do saldo de gols entre Brasil e Argentina seria decidida no embate entre
argentinos e peruanos. Em campo, portanto, uma partida decisiva para os
rivais sul-americanos. Na verdade, o favorecimento argentino começou
na disposição dos horários dos jogos, pois os anfitriões já sabiam quantos
gols teriam que marcar para chegar à próxima fase. E não eram poucos – 4
gols –, para um time que nunca assinalara mais de duas vezes por jogo.
A reclamação dos brasileiros foi em vão. O chefe da delegação bra-
sileira, o Almirante Heleno Nunes, protestou, juntamente com o técnico
Cláudio Coutinho, em uma das raras vezes em que os dois pensaram, e

Gilberto Agostino 181


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

falaram, a mesma coisa. Até então, os atritos entre eles eram notórios,
envolvendo tudo que se possa imaginar: escalação, treinamento, estilo
de jogo e até mesmo detalhes administrativos. Ninguém fazia questão de
esconder a hostilidade e volta e meia a imprensa anunciava, com cautela,
alguma tensão. Cautela porque, afinal, o Brasil continuava sob uma dita-
dura e era sabido que o Almirante Nunes era uma peça-chave do governo
no meio futebolístico. Iniciado o jogo com o Peru, os torcedores assistiram
extasiados – alguns um tanto incrédulos – à chuva de gols que caía como
los papelitos que marcaram o cenários dos jogos argentinos em todo o
Mundial. 1, 2, 3... 6. Bem mais que o suficiente para a Argentina chegar
à final, deixando aos brasileiros a disputa do terceiro lugar. E, dentro do
discurso oficial divulgado pelos meios esportivos, superar a seleção bra-
sileira era reencontrar o tempo em que esta respeitava, admirava e temia
o jogo argentino, algo que, de certa forma, se perdera ao longo das duas
últimas décadas. Vencer o Brasil, mesmo indiretamente, era, portanto, um
retorno ao orgulho argentino dos “bons tempos”. Os torcedores, sentindo
a sensação de poder sobre o rival da bola, a cada gol marcado contra o
Peru cantavam a plenos pulmões:

Y siga, siga el baile, E siga, siga o baile,


al compás del tamboril no compasso do tamboril
que Argentina está de fiesta que a Argentina está em festa
y el velorio es en Brasil. E o velório é no Brasil.

Cláudio Coutinho afirmou que a seleção brasileira acabara como a


verdadeira campeã moral da competição. O Jornal da Tarde, na edição de
22 de junho, afirmou em tom alarmista: Faltaram gols para o Brasil e
vergonha para os peruanos. Na verdade, foi também indignação o que
sentiram os torcedores do Peru que viram a partida pela televisão. Munidos
de paus e pedras, muitos deles foram ao encontro dos jogadores quando
eles desembarcaram em Lima. Emblematicamente, um dos atletas chegou
a desabafar que eles não haviam perdido uma guerra, mas, sim, um jogo
de futebol.

182 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Durante muitos dias, as especulações se multiplicavam. Uma delas


era que Ramon Quiroga, goleiro da seleção peruana, nascido em Rosário,
na Argentina, teria facilitado as coisas em campo em troca de polpudas
propinas distribuídas pelo governo de Videla. Muito se falou, mas, na
realidade, na época, nada ficou provado. Não havia, de fato, espaço para
qualquer investigação mais minuciosa. À medida que os anos foram pas-
sando, entretanto, jornalistas independentes conseguiram desfiar boa parte
da trama que envolveu os bastidores do jogo, aproveitando-se do clima
de redemocratização que atravessou o país, juntamente com a prisão de
alguns generais e a morte de outros.
Mesmo depois de tanto tempo, os fatos ainda não foram apurados à
exaustão, embora poucos hesitem em afirmar que o próprio general Videla
empenhou-se em transmitir a Lacoste suas preocupações com o jogo. Este,
munido de uma linha de crédito da ordem de 50 milhões de dólares, além
de 35.000 toneladas de grãos, teria negociado com membros da delegação
peruana, que repassariam as cifras à Junta Militar em Lima. A partir do aval
de generais peruanos, favorecidos financeiramente, a delegação teria feito
contatos diretos com alguns membros da comissão técnica e jogadores, na
verdade, nunca identificados especificamente.
Apesar das suspeitas que pairavam na época, para o governo dita-
torial o que importava de fato é que a seleção argentina estava na final.
Imagens de Videla comemorando nas tribunas cada gol argentino contra
o Peru foram exibidas na televisão várias vezes, logicamente com as de
Mario Kempes, artilheiro argentino que a propaganda não podia prescindir
em uma hora destas. Entre os beques adversários, com cabelos ao vento,
El Gráfico o anunciava: como Pelé em 1970, como Cruyff e Beckenbauer
em 1974: Kempes, o melhor de todos. Ao mesmo tempo, nas ruas, a re-
pressão não estancara; ao contrário, se acentuara. Para as Mães da Praça
de Maio, por exemplo, este foi um momento terrível:

Nos levavam presas a cada instante. Nos batiam. (...) Nos atira-
vam gases. (...) Mulheres maduras, que nunca havíamos saído da cozi-
nha, aprendemos o que haviam feito a tantos jovens anteriormente. [E
o Mundial] escondeu, ou quis esconder, tudo o que estava ocorrendo.16

Gilberto Agostino 183


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

Se, aparentemente, a propaganda em torno da seleção argentina


encontrara seus limites de mobilização, alguns membros do governo
pensaram de fato em ir ainda mais longe. Acreditava-se que o sentimento
coletivo angariado pelo futebol pudesse ser revertido, como base de apoio,
em uma ação mais concreta, possibilitando à Argentina uma posição de
maior destaque no conjunto de disputas pela hegemonia do Cone Sul. A
questão suscitada por alguns generais envolvia algumas ilhas do Canal do
Beagle, região que argentinos e chilenos disputavam já há algum tempo.
Em 1977, uma comissão internacional havia arbitrado o litígio em favor
do Chile, decisão que não fora aceita pelo governo de Buenos Aires. Foi
nessa hora, em meio à euforia do Mundial, que um grupo de generais
idealizou uma ocupação militar dos territórios reivindicados. Instruções
chegaram a sair dos quartéis exigindo, por exemplo, que leitos hospitalares
fossem desocupados. Nos momentos decisivos de organização, Videla, que
nunca se entusiasmara verdadeiramente com a ideia, abortou o plano.
Às vésperas da final, todos os olhos voltaram-se para o árbitro
da partida, o italiano Sergio Gonella, que não escaparia das críticas em
torno de “frouxidão” e/ ou conivência com o objetivo dos anfitriões.
Os holandeses deixaram propositalmente escapar a declaração de que,
caso fossem campeões, não admitiriam receber a taça das mãos do
Chefe de Estado Argentino. Chegado o dia há tanto esperado, Menotti
fez sua preleção, explorando todas as possibilidades que o momento
propiciava:

Rapazes, agora, quando sairmos ao campo de jogo, não


olhem para as tribunas onde estão as autoridades, olhem sim para
as arquibancadas. Lá estão as pessoas que sempre acreditaram
em todos nós. Operários, padeiros, gente do povo. Não podemos
desapontá-los. Vamos dar a vida nesta partida. 17 

Jogo digno de uma final de Copa do Mundo, a seleção argentina


cumpriu a sua parte em campo, vencendo os holandeses por 3X1. Para
Videla, uma vitória que também era do governo. Cabia agora a come-
moração, iniciada ainda no campo de jogo, na entrega das premiações, e
estendendo-se por toda a noite nas ruas de Buenos Aires. Em uma recep-

184 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

ção de gala, Videla trocou elogios com Havelange diante dos repórteres.
Como El Gráfico estampara em sua edição especial, era de fato a hora
mais gloriosa do Futebol Argentino. As festas continuariam nos dias
seguintes, engalanadas oficialmente com frases de efeito em torno do
reencontro com as tradições do bom jogo e com o progresso da Nação,
resgatando o sentido da verdadeira Argentina. O sucesso daquele momento
seria estendido ao máximo, com a propaganda oficial entrando em ação
novamente para valorizar o Mundial sub-20, disputado no ano seguinte
no Japão. Um habilidoso jogador, Diego Maradona, roubaria a cena, le-
vando a seleção ao final da competição e à conquista de mais um título.
Entretanto, a repetição de uma série de jargões do ano anterior ofuscara a
real situação e foram poucos os que perceberam que se tratava do início
de uma nova era do futebol argentino.
Em 1982, ainda antes do Mundial da Espanha, o general Leopoldo
Galtieri ousaria fazer aquilo que Videla receara em 1978: uma ação militar
que pudesse angariar o apoio popular ao governo. Ocupando as Malvinas,
como eram chamadas pelos argentinos o conjunto de ilhas sob o domí-
nio inglês desde o século XIX, o governo militar pretendia fortalecer a
identidade nacional voltando-se contra um dos referenciais do “inimigo
comum”, alimentado há tempos pelos governantes do país. A fórmula
futebol-nação foi recuperada pela ditadura através do cântico de 1978,
Vamos, Vamos, Argentina, Vamos Vamos a ganar, retomada agora com
um sentido claramente militar. Fracassada a campanha das Malvinas, a
ditadura foi finalmente superada. Por uma curiosa coincidência, a rendi-
ção das tropas argentinas no Atlântico Sul ocorreu no mesmo dia em que
a seleção argentina caía diante do jogo irresistível da seleção brasileira
nos gramados espanhóis. Encerrava-se finalmente uma fase do futebol
argentino, marcada pelo menottismo e pela interferência sistemática do
Estado autoritário na busca de legitimação política através da seleção.
Entretanto, ainda seriam necessários alguns anos para que os reflexos
projetados pela ação governamental no universo futebolístico fossem
finalmente superados.
Um desses fantasmas foi exorcizado no dia 22 de junho de 1986, no
Estádio Asteca, quando Argentina e Inglaterra disputaram uma vaga para

Gilberto Agostino 185


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

a semifinal do 13° Mundial. Mal começara o segundo tempo e a mão de


Maradona alcançou a bola, abrindo caminho para a vitória, uma perfeita
representação do chamado billardismo. Logo depois, com a magia que
só é permitida a uns poucos artistas, mais um gol que mostrou o talento
lúdico de quem parece tomar o rumo da partida em seus pés, fazendo o
que todos que um dia jogaram bola sonharam em fazer. Alguns anos mais
tarde, em 1998, os próprios ingleses – em uma enquete da revista Four
Four Two – chegaram a considerá-lo “O Gol do Século”.
Ao final, vitória argentina: 2X1. E nenhuma menção mais explícita
ao adversário. Um adversário duro, mas como outro qualquer, esse era
o depoimento do time platino. Apenas dissimulação. Como declarações
deixaram escapar ao longo do tempo, os argentinos consideravam este
encontro como o jogo da vingança. Um pouco antes de a partida começar,
diante da espera de 115.000 espectadores, uma corrente entre os jogadores
no vestiário tomou a partida como a possibilidade de redenção depois da
trágica derrota para a Inglaterra nas Malvinas, quatro anos antes. Em seu
livro Yo Soy El Diego, Maradona relembra que os argentinos entraram em
campo pensando nos rapazes mortos na guerra, como o irmão do apoiador
Ardiles, um dos craques de 1978. Seria então orgulho ferido o trunfo dos
vencedores? Quem poderá saber? Certeza, sim, é que Maradona foi um dos
muitos naquela equipe a sentir o jogo como uma responsabilidade nacional
e, talvez, inconscientemente, a assumir a ideia de que “o futebol é a con-
tinuação da guerra por outros meios”. Neste sentido, a vitória possibilitou
não só o troco aos ingleses, como também um ajuste com o mundo do
futebol, uma vez que a glória argentina de 1978 continuava marcada pelas
suspeitas de suborno e irregularidades. Certo ainda é que Maradona viveu
toda a plenitude de muitas das possíveis experiências humanas. E, entre um
leque de vitórias e fracassos, seu futebol representaria o mesmo. Vaidade,
paixão, rompantes de raro talento, frieza, intuição e terribilitá, homem e
jogador conheceram o sabor doce da vitória e o amargo da derrota. Tão
novo conduzido para o campo de jogo, este foi o palco de suas glórias e
seus dramas, repassados com a típica magia porteña em sua emocionante
despedida, em novembro de 2001. De modelo nacional a viciado em co-
caína, todos os rótulos recaíram sobre seus ombros. E, como herói e vilão,

186 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

foi capaz de assumir cada um deles, como quem vive permanentemente à


beira dos limites humanos.

m m m

Apesar de Brasil e Argentina terem se apresentado como as grandes


potências futebolísticas da América Latina, estimulando permanentemente
a interação esporte-política, em praticamente todos os países latino-
-americanos, em maior ou menor grau, e nos mais diversos sentidos,
o futebol foi também encarado como veículo de aspirações políticas e
nacionais, nem sempre de forma exclusiva pelos governantes. No início
da década de 1960, por exemplo, quando o futebol boliviano vivia um
momento bastante auspicioso – campeão sul-americano de 1963 –, os
torcedores cantaram à memória da Guerra do Pacífico (1879-1883), con-
fronto em que a Bolívia perdeu seu litoral para o Chile. Momento crucial
do nacionalismo boliviano, o conflito foi retomado no refrão Bo-bo-bo;
li-li-li; via-via-via; Vi-va Bo-li-via to-da-la-vi-da con-su-li-to-ral. Como
tantas outras vezes, parecia que a vitória no futebol alimentava a redenção
nacional, projetando o que poderia ter sido.
No Chile, palco de uma das experiências socialistas mais originais
da América Latina, um violento golpe de Estado derrubou o governo do
presidente constitucional, Salvador Allende, e conduziu ao poder o gene-
ral Augusto Pinochet. Este, tão logo chegou ao poder, vinculou o esporte
às diretrizes governamentais, estabelecendo um rígido controle sobre
os clubes de futebol e o selecionado. No mundo todo, ficou conhecida a
utilização do Estádio Nacional como campo de prisioneiros políticos. Exi-
lados chilenos na Europa responderam a esta realidade de forma original,
organizando campeonatos de futebol que se transformavam em momentos
de sociabilidade política, com os nomes dos troféus expressando a men-
sagem que pretendiam representar: Simón Bolívar, Primeiro de Maio,
Nelson Mandela, Gabriel García Márquez, Pablo Neruda...
No Paraguai, controlado com mão-de-ferro pelo general Stroessner,
todos os presidentes de clubes da primeira divisão eram obrigatoriamente
filiados ao Partido Colorado e controlados pela Comisión Nacional de

Gilberto Agostino 187


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

Deporte, órgão governamental ligado diretamente ao presidente. Em


muitos casos, a subserviência de tais dirigentes transformava partidas em
homenagens aos donos do poder. O Libertad, clube de Assunção, chegou
ao ponto de mudar o nome de seu estádio de Club Libertad para Alfredo
Stroessner, nome que não resistiu à queda do ditador em 1989.
Na Colômbia, as relações entre os grandes cartéis que controlavam o
narcotráfico e o futebol tornaram-se cada vez mais evidentes para a opinião
pública mundial a partir da década de 1980. Afinal, a divisão das áreas de
poder do tráfico, definida a partir de critérios regionais, estimulava inúme-
ras rivalidades entre os cartéis, o que contribuía para tornar o futebol uma
importante manifestação de hegemonia e influência dos traficantes. Por
outro lado, utilizando o esporte como um meio de lavar parte do dinheiro
obtido com as drogas, os traficantes colombianos apoiavam determinados
clubes, o que os levava a exercer uma pressão mafiosa sobre técnicos,
jogadores, juízes e dirigentes, influenciando o resultado de partidas e
mesmo comprometendo o andamento de campeonatos.
Em Cali, o todo-poderoso traficante Miguel Rodriguez Orejuela
atuou diretamente sobre os dois principais clubes da cidade, o América e
o Millonarios. Tendo a Argentina campeã de 1978 como modelo, Orejuela
investiu pesado no America e contratou diversos jogadores argentinos,
como o atacante Gareca e o zagueiro Brown, assim como o técnico Bilar-
do. Em 1979, o América de Cali conseguiu seu primeiro título nacional,
chegando, na década seguinte, a disputar três finais da Copa Libertadores,
apesar de não conseguir ganhar o título em nenhuma das oportunidades.
Seguindo os passos dos rivais, a ação de Pablo Escobar, homem forte
do Cartel de Medelín, ganhou relevância não só a partir dos investimentos
realizados no Atlético Nacional de Medelín, como também através da
construção de inúmeros campos populares, assim como por sua ligação
pessoal com grandes nomes do futebol colombiano, como o excêntrico
goleiro René Higuita. Considerado o time mais rico da Colômbia no final
da década de 1980, o Atlético Nacional partiu para a conquista de títulos
expressivos, quando, em 1987, contratou o técnico Francisco Maturana e
formou uma grande equipe, conseguindo chegar à Copa Libertadores da
América de 1989. Em uma campanha vibrante, o Atlético foi batendo um a

188 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

um seus adversários, sentindo o gosto da decisão se aproximar ao derrotar,


nas quartas de final, o rival caseiro Millonarios. Chegando à final com o
Olympia, do Paraguai, a equipe colombiana perdeu o jogo em Assunção,
2X0, investindo suas últimas esperanças na partida de volta. Chegava o
momento decisivo e o presidente do Olympia, Osvaldo Domingues Dibb,
anunciou que seus jogadores haviam sido ameaçados de morte pelos trafi-
cantes ligados a Pablo Escobar, além de alegar que as dimensões do estádio
em Medelín – Atanasio Girardot – não estavam dentro das exigidas para
uma final da Libertadores da América. A estratégia de Dibb era levar o
jogo para Cali, onde contaria com o apoio das torcidas rivais do Atlético
Nacional. Seus planos se viram frustrados quando o jogo foi marcado para
o estádio El Campín, em Bogotá. Em uma partida emocionante, decidida
nos pênaltis, o Atlético Nacional sagrou-se o primeiro clube colombiano
a ganhar a Libertadores, levando a população a uma comemoração sem
precedentes nas ruas de Medelín.
O crescimento da influência do narcotráfico contribuiu para acirrar
as rivalidades clubísticas, levando a uma onda de violência sem prece-
dentes em torno do futebol no país. Em novembro de 1989, no momento
decisivo do campeonato nacional, o juiz que atuara na partida entre
Deportivo Independiente de Medelín e América de Cali, Alvaro Ortega,
foi morto a tiros nas ruas de Medelín. Ganhando grande repercussão, o
assassinato foi encarado pelas autoridades do país como a gota d’água,
levando à paralisação da competição. Além das suspeitas que recaíam
sobre os homens de Pablo Escobar, surgiram boatos de que a máfia da
bolsa de apostas podia estar envolvida. Enquanto o mundo desfiava a
teia que envolvia o futebol ao narcotráfico, a FIFA preferia acreditar que
nada estava acontecendo. Em meio à crise do futebol colombiano, João
Havelange, ao ser inquirido sobre as providências da entidade em relação
ao caso, alegou que não existiam dados concretos, encarando as denúncias
apenas como “rumores”.
No momento em que providências legais eram tomadas pelo governo
colombiano, setores da extrema-direita do país formaram um grupo que se
autodenominava LIFUCOL (Limpeza do Futebol Colombiano), ameaçan-
do eliminar alguns jogadores da seleção, como René Higuita e o próprio

Gilberto Agostino 189


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

técnico, Francisco Maturana. Foi desarticulada pelo serviço secreto do


Presidente da República, Virgílio Barco. Alguns membros do movimento
alegavam que a moralização do futebol colombiano só começaria de fato
caso a seleção não se classificasse para a Copa do Mundo da Itália.
No início da década de 1990, a repressão do governo colombiano
conseguiu desfechar duros golpes contra os grandes cartéis, com o assas-
sinato de Pablo Escobar e a prisão dos irmãos Orejuela. A averiguação
das contas e as ligações dos cartéis não deixavam dúvidas em relação ao
envolvimento entre o narcotráfico e o futebol. Paralelamente, os clubes
sentiram a redução dos antigos investimentos, e jogadores envolvidos com
o tráfico foram atingidos, como ocorreu com Higuita, que chegou a ser
preso diante da acusação de intermediação de um sequestro. A campanha
para a Copa do Mundo de 1994, entretanto, representou um momento de
grande expectativa para o futebol colombiano, fazendo com que tudo mais
pudesse ser adiado. No último jogo das eliminatórias, os colombianos foram a
Buenos Aires, e, em pleno Monumental de Nuñez, desfecharam uma goleada
de 5X0 nos donos da casa. Enquanto El Gráfico estampava uma capa toda
preta com a palavra Verguenza!, os heróis colombianos foram agraciados
pelo próprio presidente da República, Cesar Garcia, com a Cruz Boyaca,
a maior condecoração que um civil pode vir a receber no país.
Tida como uma das favoritas para o Mundial de 1994, disputado nos
Estados Unidos, a seleção colombiana chegou aos gramados americanos
mexendo com as expectativas dos apostadores, principalmente depois
que Pelé declarou que considerava a equipe colombiana a virtual favorita
da competição. Em campo, uma série de más atuações fizeram com que
todas as esperanças se frustrassem, com os colombianos eliminados logo
na primeira fase da competição. Alguns dias depois, o mundo estarrecido
recebeu a notícia do assassinato de Andrés Escobar, jogador que marcara
um gol contra no jogo em que a Colômbia perdeu de 2X1 para a equipe
anfitriã, selando sua passagem de volta para casa. Os testemunhos afir-
mavam que a cada tiro os assassinos gritavam GOL!, fazendo com que
as suspeitas recaíssem sobre o narcotráfico. Foi necessário algum tempo
para que uma outra versão do episódio viesse à tona: Escobar era amante
da mulher de um poderoso empresário colombiano, tendo sido morto por

190 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

motivos passionais. Apesar dos novos indícios, o caso continuou ligado


na memória coletiva à influência dos traficantes, tal a identificação entre
narcotráfico e futebol no país.

m m m

Mesmo para os países que não tinham tanta tradição futebolística


internacional, o poder de mobilização desencadeado pelo futebol assu-
miu uma dimensão bastante relevante. Em 1969, Honduras, El Salvador,
Haiti e Estados Unidos (formando um dos subgrupos da CONCACAF)
disputavam apenas uma vaga para o Mundial do México. Quis o destino
que a decisão ficasse entre Honduras e El Salvador, países que viviam,
já há alguns anos, em um quadro de hostilidades crescentes. Além dos
interesses das elites nacionais envolvendo as oportunidades abertas – e
fechadas – pelo Mercado Comum Centro Americano (MCCA), a imigração
de salvadorenhos para Honduras, disputando empregos e oportunidades,
incitava a xenofobia, alimentando tensões promovidas pelos círculos
oficiais. Afinal, a alta densidade populacional de El Salvador, com 240
habitantes por Km2, contrastava com o país vizinho, que possuía, aproxi-
madamente, um índice oito vezes menor. Incendiando a questão, uma lei
hondurenha, de 1963, proibia que as empresas contratassem mais de 10
por cento de estrangeiros – leia-se salvadorenhos –, enquanto um decreto,
firmado em 1968, impediu que estes pudessem escriturar terras no país.
Neste quadro de tensões, como tantas e tantas vezes, o futebol seria o
elemento catalisador de conflitos que iam muito além do campo de jogo.
Em um domingo de junho de 1969, o time de El Salvador chegou
ao Estádio Nacional, maior estádio de Honduras, para jogar a primeira
partida decisiva para a tão cobiçada vaga. Na noite anterior, os salvadore-
nhos não haviam conseguido descansar nenhum momento, tal o barulho
ensurdecedor que os torcedores hondurenhos fizeram todo o tempo diante
do hotel, cantando, buzinando e soltando fogos. Mal dormidos, talvez não
tivessem se alimentado muito bem, já que a imprensa salvadorenha alertava
para os riscos de envenenamento. Em campo, Honduras 1X0, com um
gol no último minuto marcado por Roberto Cardona. Em El Salvador, o

Gilberto Agostino 191


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

resultado foi recebido com extrema indignação pela população, que saiu
às ruas em sinal de protesto. Entre quebradeiras e explosões de violência,
um caso chocou a nação. Revoltada com o tratamento dispensado à sua
seleção, a adolescente Amelia Bolaños matou-se com o revólver do pai
logo após o jogo. Marcado por rompantes de nacionalismo e ódio, o funeral
foi televisionado, sendo acompanhado por um cortejo militar, tornando
ainda mais tensa a expectativa para a partida de volta.
Não foi surpresa, portanto, que o desembarque da seleção de Honduras
na capital San Salvador fosse marcada por um clima muito pesado, com os
jogadores visitantes hostilizados por uma multidão enfurecida. Apresentando
retratos de Amelia Bolãnos, a esta altura tida como heroína nacional, a popu-
lação cercou o hotel e atirou desde ovos podres e ratos mortos até excrementos
nas janelas dos quartos onde estavam hospedados os jogadores do time “ini-
migo”. Um veículo blindado foi mobilizado para levar a equipe hondurenha
até o estádio Flor Branca, onde seria realizada a partida.
Um pouco antes do jogo, uma bandeira hondurenha foi queimada
na arquibancada, demonstrando o estado de ânimo da torcida. Em campo,
a vitória dos “anfitriões” por 3X0 levou o técnico de Honduras, Mario
Griffin, a declarar que graças a Deus seu time tinha perdido. Na ruas,
depredações e hostilidades contra os torcedores visitantes, levando dois
deles à morte, além da destruição de cerca de cento e cinquenta veículos.
Enquanto isso, em Honduras, salvadorenhos também foram alvos de várias
manifestações de violência, articuladas pela milícias paramilitares que
tradicionalmente “protegiam” os hondurenhos dos imigrantes.
As tensões cresceram ainda mais nos dias seguintes. Em 25 de junho,
El Salvador acusou na ONU os hondurenhos de cometerem genocídio,
enquanto, de fato, milhares de salvadorenhos fugiam do país vizinho. O
estado de emergência foi decretado pelo presidente salvadorenho, Fidel
Sanches Hernandez, seguido da ruptura das relações diplomáticas e co-
merciais entre os dois países. Tropas foram mobilizadas na fronteira, até
como prevenção para o jogo decisivo entre as duas equipes, marcado pela
FIFA para o dia 27 de junho, no Estádio Asteca, na Cidade do México.
Objeto de cuidados muito especiais do anfitrião da Copa, empenhado
em demonstrar a capacidade de suas instalações e a competência de suas

192 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

equipes de segurança, o público no estádio foi limitado, além de agentes


especiais terem sido infiltrados entre os torcedores. Os cerca de 15.000
salvadorenhos presentes no estádio gritaram Assassinos, Assassinos quan-
do os jogadores hondurenhos entraram em campo. Empatada a partida em
2X2 no tempo normal, o gol de Rodriguez aos 11 minutos da prorrogação
garantiu a vitória de 3X2 para El Salvador. Imediatamente, ao final do jogo,
brigadas de policiais surgiram de todos os lados, ocupando as cercanias
do estádio para impedir possíveis incidentes.
Enquanto se pensava que a ação da diplomacia costa-riquenha
e guatemalteca poderia colocar um ponto final no impasse, as tensões
continuavam a crescer, não obstante a decisão futebolística já estivesse
consumada. Utilizando o rádio, um dos veículos chaves na promoção de
hostilidades durante todo o conflito, o presidente, Fidel Sanches Hernan-
dez, de El Salvador, exortou seu povo a cumprir as responsabilidades que
a pátria exige, pois os poderes públicos estão de acordo com os vossos
propósitos de salvaguardar a todo custo a soberania, a integração terri-
torial e a honra de El Salvador.
No dia 14 de julho, a situação explodiu com o ataque aéreo salva-
dorenho dirigido a quatro cidades de Honduras. A retaliação ocorreu no
ataque de blindados e bombardeios aéreos, deixando um saldo de quatro
mil mortos e milhares de camponeses desabrigados, computando as perdas
de ambos os lados. As ações militares duraram cerca de quatro dias, daí
a denominação Guerra das Cem Horas, para muitos uma expressão mais
justa que Guerra do Futebol, como geralmente o conflito é conhecido.
Suas repercussões permaneceram em evidência ainda durante muitos
anos. Apesar da importância do episódio, os jogadores salvadorenhos
não só chegaram ao Mundial do México mal preparados, como também
mal remunerados, o que comprometeu a performance de uma seleção
que já não possuía a qualidade técnica dos adversários. O resultado foi a
eliminação logo na primeira fase, derrotada nos três jogos que disputou.
Além dos casos que se referem diretamente ao uso do esporte como
um projeto político governamental, não foram poucas as vezes em que
o futebol cruzou o caminho da guerrilha latino-americana. Em 1963,
guerrilheiros da Venezuela chegaram a sequestrar o craque argentino Di

Gilberto Agostino 193


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

Stéfano, utilizando o jogador como forma de chamar a atenção da opinião


pública internacional para a causa que defendiam, libertando-o pouco
tempo depois. Sete anos mais tarde, cinco guerrilheiros que haviam sido
capturados pela polícia mexicana afirmaram que havia um esquema pronto
para sequestrar Pelé tão logo se iniciasse o Mundial no México, o que
causou grande apreensão não só na Comissão Técnica brasileira, como
também nos círculos responsáveis pela segurança da competição. Como
medida preventiva, mal pisou no país, o jogador foi acompanhado por um
inconveniente serviço especial, que o “obrigava” a não dormir duas noites
seguidas no mesmo lugar, além de fazê-lo obedecer a infinitas normas de
segurança. Na verdade, o boato alarmou o chefe do serviço secreto me-
xicano, Eduardo Estrada Ojeda, que passou a “colar” agentes especiais
em vários jogadores importantes de diversas seleções, além de guarnecer,
com sua vasta equipe, áreas como concentrações, campos de treinamento
e pontos turísticos geralmente visitados por jogadores estrangeiros.
Em 1980, na Colômbia, o Movimento Dezenove de Abril (M-19)
– data em que os guerrilheiros roubaram a espada de Simon Bolívar,
“O Libertador”, de um museu no país – realizou uma ação espetacular,
marcada por uma audácia incomum. Batendo bola fora da embaixada da
República Dominicana, em Bogotá, os guerrilheiros pareciam inocentes
jogadores de rua durante uma recepção que o embaixador promovia para
vários diplomatas, e que contava, inclusive, com o representante norte-
-americano. De repente, a bola foi chutada por cima dos muros da embai-
xada, fazendo com que um dos jogadores a pedisse de volta. Quando os
portões foram abertos, em frações de segundo os guerrilheiros entraram,
rendendo os guardas. Ali permaneceram dois meses, exigindo um resgate
de 1 milhão de dólares. Ao final, escaparam para Cuba.
Em dezembro de 1996, no Peru, o Movimento Revolucionário Tupac
Amaru ocupou a Embaixada do Japão, permanecendo 126 dias com os
reféns, exigindo a libertação de prisioneiros políticos. Durante este período,
as forças de segurança do governo Fujimori, contando com apoio norte-
-americano, organizaram um cerco à embaixada, vigiando todos os passos
dos guerrilheiros e esperando o momento certo para agir. Após muitas
discussões, os analistas chegaram à conclusão de que havia uma chance de

194 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

surpreendê-los. Durante várias semanas, os jovens guerrilheiros – alguns


tinham apenas 17 anos – por alguns momentos deixavam as armas de lado
para jogar partidas de futebol, utilizando uma bola improvisada, feita de
pano. E, exatamente neste momento, a vigilância em relação aos reféns
era relaxada. Para os homens de Fujimori, este era o grande instante. No
dia 22 de abril, a ação foi desencadeada. De forma fulminante, todos os
guerrilheiros acabaram mortos.
Quatro anos mais tarde, na Colômbia, a guerrilha colocou em dúvi-
da a possibilidade da realização da Copa América. Na verdade, o torneio
chegou mesmo a ser anunciado como adiado. Contornada a situação,
com os líderes guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias (Farc)
afirmando que não se opunham à realização do campeonato, a Colômbia
acabou mesmo organizando a competição, prometendo um gigantesco
esquema de segurança para as seleções participantes. Mesmo com todas as
promessas, a Argentina não enviou sua equipe, alegando falta de garantias.
Na verdade, em várias delegações pairava um clima de apreensão. Não
por acaso, a competição ficaria conhecida como a Copa do Medo, sendo
vencida pelos anfitriões e comemorada com grande festa pelo governo.
Entre tantos e tantos episódios envolvendo guerrilha e futebol,
existem poucos indícios de que o grande símbolo dos guerrilheiros latino-
-americanos, Che Guevara, tenha vivido uma ligação com o jogo, como
aquela que tivera com o rugby, esporte que o fascinou na adolescência. Em
suas andanças pela América Latina, entretanto, junto de seu companheiro
de aventuras, Alberto Granado, Che envolveu-se com o futebol muitas
e muitas vezes. Para os dois argentinos, cruzando o continente em uma
motocicleta, o jogo era uma forma de estabelecer um primeiro contato,
uma espécie de carta de apresentação diante de sociedades tão diferentes.
Jogando geralmente como goleiro, posição compatível com as crises de
asma que o acompanhariam até o final da vida, Che conheceu os infinitos
campos de terra batida que ainda marcam algumas paisagens do interior
latino-americano. Segundo as lembranças de viagem, em uma partida em
Cuzco, as habilidades da dupla argentina foram tão elogiadas – segundo
Che, “estupendas” – que lhes valeram hospedagem grátis por alguns
dias. Na Colômbia, chegaram a encontrar Di Stéfano, jogador argentino

Gilberto Agostino 195


Populistas, Ditadores e Guerrilheiros

atraído pelo Eldorado Colombiano. Lembranças que ficariam pelo meio


do caminho, um longo caminho. Logo em seguida viria Cuba, Sierra
Maestra e a Revolução.
Mesmo que alguns ainda queiram ver o mito Che como parte desta
ou daquela identidade nacional, sua imagem mais expressiva supera tais
horizontes, projetando a ideia de que os latino-americanos são integrantes
de uma experiência comum. Neste sentido, Che tornou-se também uma
referência para as identidades coletivas do mundo do futebol em vários
países da América Latina. Não o Che com a bola nos pés, em Cuzco, mas
o mito que sugere a eterna superação, a ousadia e a luta. Para além de
conotações ideológicas ou nacionais, diversas torcidas estampam enormes
bandeiras e faixas com sua imagem. Do México até as arquibancadas da
Bombonera – refletido na tatuagem de Maradona –, passando pelo In-
ternacional de Porto Alegre e pelos torcedores do Flamengo espalhados
de norte a sul do Brasil, Che está presente em toda a parte. E sempre na
clássica representação do guerrilheiro de boina, com o olhar voltado para
algum lugar do futuro. Na verdade, toda esta identidade corresponde à
compreensão que Che tinha de si mesmo. E no que transformou sua pró-
pria vida. Capturado na Bolívia em 1967, foi interrogado duramente pelos
oficiais um pouco antes de ser assassinado. Perguntado a respeito de sua
nacionalidade, o prisioneiro respondeu: Sou cubano, argentino, boliviano,
peruano, equatoriano, etc (...) O Senhor entende, não?18

196 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

NOTAS

Getúlio Vargas, Diário, São Paulo: Siciliano, Rio de Janeiro: Fundação


 1

Getúlio Vargas, 1995, v.2, p. 122.


 2
Getúlio Vargas, Diário, op. Cit., p. 140.
 3
Mário Filho, Histórias do Flamengo, Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Edi-
tores, 1945, p. 238-24.
João Lyra Filho, Taça do Mundo, 1954, Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti
 4

Editores, 1954, p. 71-77.


 5
Roberto Porto, Didi, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 44.
David A. Yallop, Como eles Roubaram o Jogo, Rio de Janeiro: Record,
 6

1988, p. 47.
 7
João Máximo, João Saldanha, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 102.
 8
Folha de S. Paulo, 8 de junho de 1988.
 9
Hugo Martínez de León, El Superclásico, op. cit., p. 108.
Teixeira Heizer, O Jogo Bruto das Copas do Mundo, Rio de Janeiro: Editora
 10

Mauad,1997, p. 178.
Patrick Vassort, Football e Politique, Paris: Les Éditions de la Passion, 1999,
 11

p.181.
 12
David A. Yallop, op. cit., p. 159.
Cf. Abel Gilbert e Miguel Vitagliano, El Terror y la Gloria, Grupo Editorial
 13

Norma, Buenos Aires, 1998, p. 88.


 14
Chris Taylor, The Beautiful Game, op. cit., p. 75.
Alejandro Turner, In : Deporte y Sociedad, Buenos Aires, Eudeba, 1998, p.
 15

143-150.
 16
Cf. Abel Gilbert e Miguel Vitagliano, El Terror y la Gloria, op. cit., p. 213.
Cesar Luís Menotti, Como Gananmos la Copa del Mundo, Buenos Aires:
 17

El Gráfico, 1978, p. 175.


John Anderson, Che Guevara, uma biografia, Rio de Janeiro: Editora
 18

Objetiva, 1997, p. 843.

Gilberto Agostino 197


Equipe africana na década de 1920: jogadores negros e treinadores brancos. Com a inde-
pendência, este quadro mudou, com o futebol assumindo um papel decisivo na identidade
das novas nações.
Vencer ou Morrer

CAPÍTULO 5

VELHOS IMPÉRIOS, NOVAS NAÇÕES

Não é fortuita a constatação que, entre as pri-


meiras manifestações de afirmação dos novos estados
independentes, está a adesão à FIFA, encarada de
forma tão essencial quanto a adesão à ONU: como se
a definição de Estado não se limitasse mais aos três
elementos tradicionais – um território, uma população,
um governo – acrescentando-se também um quarto
elemento essencial: uma equipe nacional de futebol.
(Pascal Boniface)

A África produz alguns dos melhores jogadores


para o mundo e não recebe nada em troca. O mundo
ainda nos vê como escravos. Vivemos uma segunda
escravidão.
(Roger Milla)

Gilberto Agostino 201


Velhos Impérios, Novas Nações

Parece surpreendente a afirmação de que existem mais países filia-


dos à FIFA do que à ONU. Parte indelével desta realidade configurou-se
na segunda metade do século XX, quando o mundo assistiu a um fluxo
ininterrupto da formação de novas nações, resultado do processo de des-
colonização afro-asiático. Neste momento, para aqueles que lutavam pelo
direito de autodeterminação, ficava claro o quanto valia o reconhecimento
de uma Federação Esportiva como um dos componentes essenciais da afir-
mação da soberania. Neste sentido, o futebol atingiu uma projeção bastante
relevante, sendo um dos elementos decisivos na formação da identidade na-
cional que se seguiu à implosão dos velhos impérios. Em muitas áreas, este
processo começou a ser constituído, de fato, desde a época colonial, apesar
do cuidado das autoridades metropolitanas, que sempre procuraram evitar
jogos multirraciais ou mesmo encontros esportivos que pudessem sugerir
a ideia de uma experiência comum entre grupos dominados. Na África, a
possibilidade de jogos pan-africanos já havia sido levantada pelo Barão de
Coubertin, jamais chegando a entusiasmar os dirigentes metropolitanos,
ciosos da manutenção da ordem através da perpetuação das rivalidades
locais. Mesmo com estes cuidados, o período entre-guerras viu crescer nas
áreas coloniais o aprimoramento militar através da educação física, com
as atividades esportivas tornando-se não só uma prática disciplinadora
como também um exercício de arregimentação de tropas, essencial para os
desafios de uma ordem internacional marcada por hostilidades crescentes
e constantes reorientações territoriais. Por outro lado, à medida que os
contatos entre as culturas se ampliavam, com filhos de chefes locais indo
estudar na Europa, aumentava o envolvimento mais direto com diversas
práticas esportivas. Eram os dilemas do efeito bumerangue. De volta à
casa, estes traziam não só as ideias de autodeterminação, como também
o gosto pelo esporte. Não por acaso, os dois juntos alcançariam um papel
decisivo na ruptura com a dominação metropolitana e na construção de
uma ordem nacional.
Um dos primeiros casos relevantes a envolver a questão da iden-
tidade nacional e o futebol ocorreu na Argélia, colônia francesa desde a
primeira metade do século XIX. Região que não recebeu o esporte através
dos ingleses, seria natural que os melhores jogadores argelinos fossem

202 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

durante muito tempo cooptados pelo futebol francês. Um deles, Ahmed


Bem Tifour, um meia-esquerda clássico, chegou mesmo a disputar a
Copa de 1954 jogando pela seleção francesa, o que para um observador
desavisado poderia sugerir algum tipo de harmonia – pelo menos no plano
esportivo – entre Metrópole e Colônia. Na verdade, apenas poucos meses
depois que Ben Tifour apresentou seu jogo elegante nos gramados da Suíça,
a luta pela emancipação da Argélia viveria um momento crucial com o
início da guerra de independência, organizada pela Frente de Libertação
Nacional (FLN). Durante alguns anos, entretanto, o quadro de confrontos
não chegou a alterar de forma significativa os rumos do futebol francês.
Em 1957, a seleção francesa que disputava um torneio militar em Buenos
Aires ainda contava com um dos grandes craques argelinos de todos os
tempos, Rachid Mekhloufi, que jogava no Saint-Etiènne. No dia 14 de
julho, os franceses enfrentaram o Brasil – que trazia Pelé como revelação
–, vencendo por 4X1 e ficando com o título da competição. Logo depois,
a amplitude de uma guerra que se arrastava havia quatro anos acabaria
refletindo diretamente no universo do futebol franco-argelino. Afinal,
não eram poucos os craques coloniais que sofriam todo tipo de agressões
racistas dos setores mais conservadores da sociedade francesa. Nesta hora,
muitos deles decidiram abandonar o futebol francês, juntando-se à causa
rebelde. Muito mais que Tifour, o símbolo desta adesão foi Mekhloufi,
na época com 22 anos, seguido por Zitouni, Boubekeur, o próprio Ben
Tifour e Bekloufi (Monaco); Kermali (Lyon); Rouiaï (Angers); Brahimi,
Boutchouk (Toulouse) e Bouchache e Soukhane (Le Harvre).
Chamados de desertores pelos franceses mais conservadores, estes
jogadores representaram um importante elemento de prestígio para a le-
gitimidade do movimento de independência, que os denominou “patriotas
consequentes”. Muitos se perguntavam o que levava jovens craques com
promissoras carreiras internacionais a abandonarem “tudo”, voltando-se
para uma causa que não parecia ser mais a deles. Entretanto, a posição
dos craques argelinos não ficou por aí, pois estes também participaram
da luta. Neste caso, fazendo aquilo que mais sabiam, ou seja, jogando o
jogo. Integrando uma seleção da FLN, denominada Revolucionário XI, tais
jogadores saíram em turnê pelo mundo, apresentando de forma bastante

Gilberto Agostino 203


Velhos Impérios, Novas Nações

simpática a causa da libertação argelina. Mesmo antes de a independência


ser consumada, portanto, a FLN já contava com um poderoso meio de
propaganda, passando em vários países (14 ao todo) e fazendo com que a
questão da independência fosse debatida. Por outro lado, já se esboçavam
também futuras alianças diplomáticas. Como militantes que atuavam fora
da “legalidade futebolística”, os jogadores da seleção da FLN deixaram um
resultado bastante positivo. Afinal, vivia-se uma época em que as imagens
da guerra de independência argelina chocavam o mundo, e, neste sentido,
o contraste destas com as cenas de amistosos jogadores com a bola nos
pés contribuía para desgastar ainda mais o decadente Império Colonial
Francês. Não por acaso, portanto, a pressão francesa contra federações
que haviam jogado com os argelinos foi muito intensa. Em 1958, uma
delas, a Federação Marroquina, foi alvo da fúria francesa, chegando a ser
expulsa temporariamente da FIFA.
Em relação aos anos do Revolucionário XI, mais tarde Mekhloufi
afirmou :

Durante quatro anos, eu fui um jogador obscuro e anôni-


mo, disputando partidas muito fáceis, seguidas de treinamento
sem rigor. Em alguns momentos, eu me sentia perdendo o gosto
pelo esforço. Entretanto, quando lembrava dos húngaros, artistas
mas também combatentes, sentia mais disposição para continuar
lutando.1 

Concluída a luta pela independência, em 1962, a Argélia imediata-


mente fundou a Féderation Algeriene de Footaball, filiando-se à FIFA já
no ano seguinte. Logo, foi implementada uma Copa Nacional, enquanto
o governo esboçava um plano de construção de estádios e incentivo ao
futebol. Quando tudo parecia se encaminhar perfeitamente dentro dos
objetivos oficiais, Mekhloufi e outros jogadores que atuaram durante os
anos de guerra discordaram dos rumos assumidos pelo futebol no país,
onde o profissionalismo não foi adotado. Após uma fase de indefinição,
Mekhloufi tomou a decisão de voltar ao Saint-Etiènne, brilhando nova-
mente em campo. Em 1968, chegou a receber a Copa da França das mãos
do General De Gaulle. Neste sentido, a imagem em torno de sua trajetória

204 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

pôde ser utilizada tanto por argelinos – que o viam como símbolo da au-
tonomia – quanto por franceses – que o consideravam uma referência na
luta pela profissionalização. Mais uma vez de volta à Argélia, agora para
encerrar a carreira, Mekhoufli tornou-se treinador da seleção nacional, em
um momento de expansão do futebol argelino no cenário internacional.
Este, favorecido com os investimentos estatais advindos das rendas do
petróleo, contribuiu com seu brilho e dinamismo para que o período ficasse
conhecido como os “Anos de Ouro da Argélia”.
Nos anos 1990, o país viveu um novo caso de envolvimento de
um renomado futebolista com as tensões do panorama político. A esta
altura, em um verdadeiro clima de insatisfação com o governo secular,
muitos estádios de futebol já haviam se tornado espaços de contestação
política, utilizados pelos integrantes da Frente Islâmica de Salvação (FIS).
Aderindo ao movimento, Salah Assad, jogador que brilhou pela seleção
nacional na Copa de 1982 e passara por vários clubes franceses, acabou
sendo detido, sob acusação de contrabando de armas. Encarcerado na
prisão militar de Blida, uma das mais terríveis do país, Assad enfrentaria
três anos de detenção.
No continente africano como um todo, à medida que o processo de
independência se consolidava, o interesse dos Chefes de Estado em relação
à questão esportiva aumentava cada vez mais. Nesta hora, disputando in-
fluência com o atletismo e o boxe, o futebol marcou presença, tornando-se
uma prática comum a presença de autoridades políticas nas arquibancadas
dos estádios. Tal realidade levou muitos analistas internacionais a demons-
trarem indignação com a preocupação dos líderes africanos com o futebol.
Argumentava-se que enquanto tantos problemas tinham que ser resolvidos,
os espetáculos futebolísticos africanos, simples encontros esportivos,
pareciam ganhar relevância de expedições oficiais. Na verdade, esta não
era uma opinião isolada. O que muitos não conseguiram perceber é que
uma das grandes preocupações dos governos recém-formados era suscitar
o sentimento de fidelidade nacional, fundamental para o estabelecimento
de um estado unitário e centralizado, capaz de superar a pluralidade dos
poderes tradicionais baseados em comunidades familiares. Neste sentido,
os líderes africanos encaravam o esporte como um dos instrumentos da

Gilberto Agostino 205


Velhos Impérios, Novas Nações

formação de uma identidade, tratando o assunto como uma questão de


Estado. Os exemplos são inesgotáveis. Na Costa do Marfim, um caso
merece destaque. Logo após a independência, Coffi Gadeau acumulava
os cargos de presidente da Federação de Futebol do país e ministro do
Interior, demonstrando claramente o quanto estas esferas encontravam-
-se superpostas nos projetos governamentais. Na Mauritânia, tornou-se
uma tradição o presidente, Moktar Ould Dada, entregar pessoalmente
o troféu ao clube de futebol vencedor da Copa Nacional. No Senegal,
Amadou Babacar Sar, ministro da Juventude e dos Esportes, chamava
a atenção para a profunda identidade entre os valores cultivados pelo
esportista e pelo patriota, lembrando que um recorde no esporte é como
a independência de uma nação: deve ser conquistada e reconquistada
permanentemente.
Apesar de muitos países africanos incentivarem os esportes típicos
– como a corrida de pirogas – a paixão pelo futebol tornava este jogo uma
referência em qualquer cerimônia oficial, geralmente abrindo ou fechando
o evento. Paralelamente, a monumentalidade dos estádios foi encarada
como um instrumento simbólico da superação de heranças coloniais.
Além de materializar a ideia do desenvolvimento e da possibilidade de
abrigar um público marcado pela diversidade racial, os grandes estádios
permitiam a interação entre habitantes das cidades e das áreas rurais, o
que contrastava com o período colonial, em que os últimos se sentiam
inferiorizados. Para os países que aderiram ao socialismo, tais questões
eram ainda mais relevantes, uma vez que o universo esportivo conferia
a possibilidade de uma lógica unitária. Em Mali, por exemplo, onde o
esporte foi estruturado a serviço da ideologia oficial, os estádios eram,
antes de tudo, espaços políticos. Na Guiné, o campeonato de futebol cria-
do pelo Partido Democrático Guineano (PDG) encarava o time vencedor
como aquele que cumprira exatamente seu dever de militância em nome
do partido e da nação.
Em pouco tempo, paralela às tendências Pan-Africanas desenvolvi-
das no pós-guerra, a possibilidade de competições esportivas envolvendo
diversas nações africanas ganhava projeção. A Confederação Africana de
Futebol (CAF), fundada no Cairo, em 1957, aproveitava-se do prestígio

206 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

político de Gamal Abdel Nasser, que acabara de se projetar no universo


terceiro-mundista após a Crise de Suez, superando as velhas pretensões
colonialistas anglo-francesas. Neste período, inaugurou-se a Copa Afri-
cana das Nações, embora apenas três países tivessem participado de sua
primeira edição: o Sudão, o Egito e a Etiópia, tendo a África do Sul sido
expulsa antes do início dos jogos, uma vez que não permitia que jogadores
brancos e negros atuassem juntos. Os sudaneses, anfitriões do torneio,
abriram o evento com festa, comemorando a independência conquistada
no ano anterior. Em Khartoum, um estádio foi construído especialmente
para os jogos da competição. Em campo, entretanto, o Sudão não obteve
tanto sucesso. A seleção do Egito levou a melhor ao vencer a Etiópia por
4X0 na finalíssima, sagrando-se a primeira campeã. Gradativamente,
novos países foram ingressando na competição, o que fez com que os
organizadores repensassem os critérios dirigentes, que passaram a ser
compartilhados entre as diferentes regiões geográficas do continente. Em
1963, a competição já contava com seis integrantes, número que triplicou
em 1968, quando se instituiu uma fase de qualificação, fórmula que se
manteve até os anos 90, quando novos modelos tiveram que ser adotados,
uma vez que novas equipes exigiam participar do torneio.
Bem antes, entretanto, de a Copa Africana das Nações ganhar no-
toriedade, uma série de competições marcou a realidade futebolística de
países da África que perseguiam o direito de autodeterminação. Em 1959,
foi instituída a Copa Nkrumah, que reuniu dezessete países africanos,
muitos ainda sob estatuto colonial. Três anos mais tarde, surgiu a Copa
dos Trópicos, envolvendo, além do futebol, uma série de outros esportes.
No ano seguinte, como grande marco da ordem pós-colonial, o governo
senegalês organizou os jogos de Dakar – Jogos da Amizade –, que con-
taram também com a participação dos estados anglófonos e arabófonos.
Mais uma vez a grande atração esportiva foi o futebol, levando verdadeiras
multidões ao Estádio da Amizade, construído especialmente para a ocasião.
Já na abertura, quando a seleção senegalesa estreava, milhares de pessoas
tentaram desesperadamente entrar no estádio, que possuía capacidade para
cerca de 60.000 espectadores, mas que, certamente, recebeu um público
muito maior, suscitando o seguinte comentário do jornal l’Equipe:

Gilberto Agostino 207


Velhos Impérios, Novas Nações

Não se pode avaliar em definitivo o número de pessoas que


se amontoaram nas grades, ocupando lugares que não eram seus,
nem tampouco o número de espectadores que pagaram ingresso e
não puderam entrar no estádio. Em meio ao tumulto, os muros que
apresentavam cimento ainda fresco foram arrombados em diferentes
lugares. 2 

Mesmo se considerando as expressivas variações regionais, os Jo-


gos de Dakar demonstraram o quanto a identidade entre nacionalismo e
futebol já era uma realidade inquestionável nas jovens nações africanas.
A derrota da seleção de Alto Volta (atual Burkina Faso) para a Costa do
Marfim levou os voltanianos a organizarem uma greve geral de 24 horas.
Na final, no encontro histórico entre o Senegal e a Tunísia, mais uma vez
a multidão parecia estar fora do controle. Nem mesmo o arame farpado
que cercava o estádio conseguiu impedir tumultos. Nas tribunas, diante
do presidente, Leopold Senghor, a seleção senegalesa venceu, embora
o jogo terminasse com uma briga generalizada, durante a qual o goleiro
tunisiano acabou atingido por um homem que apareceu repentinamente
entre os guardas. A seleção da Tunísia recusou-se a receber a medalha
de prata, enquanto o embaixador do país disse à imprensa local que fora
a primeira e a última vez que seu país participava de um encontro desta
natureza. Em meio a um impasse diplomático que estremeceu as relações
entre os dois países, Leopold Senghor condecorou o diretor da Juventude
Tunisiana com a Ordem do Mérito Nacional, pedindo desculpas em nome
do país pelos excessos cometidos, segundo ele, por alguns fanáticos.
Na década de 1960’, a Copa das Nações Africanas dividiu o espaço
com uma série de outras competições. Em 1964, foi lançada a Copa da
África dos Clubes Campeões, logo seguida por um torneio só com os
vencedores – a Copa dos Vencedores da Copa –, não muito diferente de
modelos europeus e sul-americanos. Com a popularização do esporte, não
foram poucos os líderes políticos que despertaram para a força do futebol
como elemento de legitimidade política. Na Zâmbia, o presidente, Keneth
Kaunda, envolveu-se tão diretamente com o jogo que o selecionado nacional
chegou a ficar conhecido como Keneth Kaunda XI (KKXI)3 .

208 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

À medida que o futebol africano alcançava maior projeção, o direito


de participação de seleções da África na Copa do Mundo tornava-se uma
realidade inquestionável. Na organização da Copa de 1966, tal dilema
aparecia pela primeira vez como uma grande questão política. Logo nas
primeiras reuniões visando o planejamento da competição, os problemas
apareceram, notadamente aqueles que envolviam o sistema das elimina-
tórias e a disponibilidade das vagas, uma vez que 72 países anunciaram
interesse em participar do torneio. Insatisfeitos com os critérios adotados
pela FIFA, que previa um único subgrupo para todas as equipes da África
(16) e da Ásia (6), os países africanos desistiram de participar e abandona-
ram o torneio classificatório antes mesmo que este começasse. Alguns anos
mais tarde, João Havelange, em sua campanha para chegar à presidência da
entidade, colheria o apoio destes desafetos que Stanley Rouss, presidente
na época, deixara no meio do caminho. Havelange apresentou-se como
representante do futebol do Terceiro-Mundo, tendo como cabo eleitoral o
tricampeão Pelé. Desde o final dos anos 60, a relação entre os dois vinha
se estreitando, muito em função das necessidades financeiras do jogador,
que perdera dinheiro com uma série de negócios realizados em Santos. Em
1969, em um dos lances mais citados da carreira do Rei do Futebol, Ha-
velange organizou uma excursão da equipe santista à África, já pensando
nos votos das federações africanas. Após passarem por diversos países, o
pretendente ao cargo maior da FIFA divulgou a história de que o carisma
de Pelé interrompera a guerra civil na Nigéria, versão até hoje repetida
como demonstração não só do mito em torno do jogador, como também
da capacidade de conciliação que o esporte possui. Mais recentemente,
à medida que a relação entre Havelange e Pelé foi esfriando, o último
apresentou uma versão um pouco menos romântica da história:

Nós jogamos na Capital da Nigéria (a região de Biafra estava


em guerra, iniciada em 1967 e encerrada três anos mais tarde), e
o que aconteceu foi que o governo destacou um baita contingente
militar para nos proteger, impedindo que a cidade fosse invadida
enquanto estivéssemos lá. 4 

Apesar do esclarecimento em relação ao episódio, é inegável que


o futebol brasileiro exerceu uma influência decisiva sobre o jogo africa-

Gilberto Agostino 209


Velhos Impérios, Novas Nações

no. Na final da Copa Africana das Nações, disputada nos Camarões,


em 1972, Congo e Mali demonstravam o quanto o estilo dos africanos
vinha se transformando, deixando de lado uma atitude acentuadamente
defensiva, e adotando uma postura mais ousada, inspirada no futebol
que os brasileiros apresentavam na mesma época. Emmannuel Maradas,
editor da revista African Soccer, chegou a se referir a este período como
a era de ouro do futebol africano. Em 1974, já qualificado para a Copa
da Alemanha, o Zaire venceu a Copa Africana das Nações, derrotando a
arquirrival Zâmbia, com grande atuação do atacante Ndaye, em um jogo
extra disputado no Cairo aos olhos de 120.000 espectadores. Projetava-se
uma grande esperança na performance do time africano nos gramados
alemães, dali a poucos meses. Afinal, até então apenas duas nações
africanas haviam tomado parte na Copa do Mundo: o Egito, em 1934,
e o Marrocos, em 1970.
Em gramados alemães, entretanto, a atuação dos jogadores do
Zaire foi muito inferior à de seus antecessores. Na estreia, perderam de
2X0 para os escoceses, até então um placar absolutamente normal. No
segundo jogo, entretanto, veio o cataclisma. Enfrentando a Iugoslávia,
o time tomou dois gols nos primeiros minutos da partida. Logo depois
do terceiro tento, o treinador do Zaire, Blagoyev Vidinic, curiosamente
um iugoslavo, fez uma substituição que causou surpresa. Substituiu o
goleiro titular, Kazadi, o que não contribuiu em nada para melhorar o
desempenho da equipe, que, no final, saía de campo derrotada por 9X0.
Na coletiva, após o jogo, o técnico do Zaire recusou-se a discutir sua
misteriosa substituição. Mais tarde, Vidinic esclareceu o assunto, ale-
gando que recebera uma comunicação simples e direta do ministro dos
Esportes: troque o goleiro. Na verdade, tudo indica que a ordem viera
de um escalão superior, nada mais, nada menos, que do próprio presi-
dente, Mobutu. Este, diretamente de Kinshasa, tomara a participação
do Zaire na Copa como uma questão de Estado e, segundo alguns, teria
encarnado Mussolini ao enviar um telegrama à equipe com os dizeres
“vitória ou morte”. No terceiro jogo, a equipe africana perdeu para o
Brasil de 3X0, deixando a competição de forma melancólica, voltando
para casa sob “proteção” do serviço se segurança do país.

210 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

A imprensa internacional foi implacável com o time do Zaire, de-


monstrando, de fato, uma forte carga de má vontade em relação ao futebol
africano e preconceitos quanto à própria cultura africana. Acusados de
violentos e desleais, os jogadores do Zaire – alguém “lembrou” – comiam
macacos. Os comentários mais frequentes na época diziam respeito às
práticas conhecidas como ritual muti. Considerado uma tradição em várias
partes da África, com as evidentes variações regionais, trata-se de uma
cerimônia de preparação esportiva, consistindo basicamente em retirar
sangue dos jogadores através de pequenos cortes. Logo em seguida, os
jogadores urinam sobre uma bola, enquanto animais são sacrificados, de
acordo com as necessidades do jogo em questão. Se um atleta específico
precisa de velocidade, por exemplo, uma ave é sacrificada. Apesar de
banido do Zaire, o ritual muti foi fartamente comentado por jornalistas
esportivos, que não perderam a oportunidade de citá-lo como sinal de
barbárie. Como consequência, alegava-se que jogadores da África eram
incapazes de assimilar táticas e esquemas e nem mesmo um treinador
europeu poderia ser capaz de fazê-los aprender.
Apenas uma minoria da imprensa apresentou a questão a partir
de uma especificidade cultural, presente – à sua maneira – na mitologia
esportiva de qualquer país. Estes lembraram ainda que o mais importante
não era a crítica à equipe do Zaire, mas, sim, às ditaduras africanas. Foi
lembrado que nas eliminatórias da África, o general Bokassa, da República
Central Africana, punira com castigos físicos os jogadores da seleção,
quando estes não se classificaram para o certame final.
Na Copa de 1978, a Tunísia apresentou um desempenho brilhante,
vencendo o México na estreia. Era a primeira vez que uma seleção
africana vencia em um Mundial, para delírio de muitos torcedores no
continente. Em seguida, empatou com a Polônia e com a Alemanha
– campeã do mundo – sendo eliminada apenas no saldo de gols. O
grande destaque da equipe treinada por Abdelmajid Chetali acabou
sendo Tarak Dhiab, eleito melhor jogador de futebol da África no ano
anterior. Em 1982, duas seleções africanas foram à Espanha: Camarões
e Argélia, não conseguindo chegar às oitavas-de-final também pelo sal-
do de gols. Já em 1986, juntamente com a Argélia, o Marrocos marcou

Gilberto Agostino 211


Velhos Impérios, Novas Nações

presença, tendo chegado à fase seguinte após vencer os portugueses


e empatar com a Inglaterra e a Polônia, embora acabasse eliminado
pelos alemães por 1X0.
Na década de 1990’, o mundo sentiu com toda a intensidade a
força do futebol africano e sua capacidade de angariar simpatizantes nos
cinco continentes. Boa parte desta realidade deveu-se à participação da
equipe de Camarões no Mundial da Itália. No jogo inaugural, os Leões
Indomáveis fizeram uma partida de igual para igual contra a Argentina,
embora tenham abusado das faltas violentas, chegando a ter dois jogado-
res expulsos. Mesmo assim, venceram os campeões do mundo por 1X0,
gol de Oman Biyik, para delírio do presidente camaronês, Paul Biya, que
sacudia agitadamente as mãos na tribuna. Surpresa para muitos analistas,
o resultado foi motivo de regozijo para a torcida conservadora do norte da
Itália, hostis a Maradona e a seus fiéis torcedores napolitanos.
Viria o segundo desafio e a equipe de Camarões começou a empolgar
de fato, vencendo a Romênia por 2X1, com dois gols do veterano Roger
Milla, que deliciava o mundo inteiro com a “dança ritual” em torno da
bandeirinha, trazendo momentos de alegria em um Mundial que ficaria
marcado pelo baixo índice técnico. Já classificados, os Leões Indomáveis
relaxaram, perdendo de 4X0 da União Soviética. Pouco importava, pois
o país estava em festa, aguardando ansiosamente o próximo adversário:
a Colômbia. Em Nápoles, as duas equipes entravam em campo, sabendo
que só uma delas passaria às quartas-de-final, feito inédito tanto para os
colombianos quanto para qualquer seleção africana em toda a história
dos Mundiais. Um empate sem gols no tempo normal, levou o jogo
para a prorrogação. Em meio ao nervosismo, mediante o qual ninguém
queria arriscar muito, Milla fez 1X0, ampliando três minutos depois,
quando René Higuita perdeu a bola na frente do atacante camaronês.
Mesmo com o gol de Redin, não havia mais tempo para uma reação
colombiana, e os Leões Indomáveis chegavam à fase seguinte. Enquanto
muitos analistas se rendiam ao talento do futebol africano, a projeção
dos camaroneses no mundo todo extrapolava as fronteiras do esporte.
Uma revista transformou o veterano Roger Milla, que jogava no futebol
francês, em herói dos homens de meia-idade, ao passo que as pesquisas

212 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

realizadas nos países que não disputavam o Mundial apontavam a equipe


africana como a preferida para levar o título.
O próximo desafio era contra a poderosa Inglaterra. Apesar de Ca-
marões ter sido colônia francesa, obviamente muitas comparações foram
feitas envolvendo a relação Metrópole-Colônia, como já ocorrera no mes-
mo Mundial quando os ingleses derrotaram a seleção egípcia. Em campo,
Inglaterra e Camarões demonstravam toda a emoção que o futebol podia
proporcionar. Platt abriu aos 25 minutos do primeiro tempo a contagem
para os ingleses cobrando uma penalidade. No segundo tempo, a virada
camaronesa, primeiro com Kunde, aos 15 minutos, e apenas quatro minutos
depois com Ekeke. Aos 37, os ingleses empataram com Lineker, também
de pênalti. Na prorrogação, mais uma vez o artilheiro inglês marcou, mais
uma vez de pênalti, liquidando o jogo.
As múltiplas reações suscitadas pela eliminação da seleção de
Camarões começaram ainda no estádio. Os camaroneses deram a volta
olímpica, aplaudidos de pé pelos torcedores napolitanos, certos de que
haviam assistido ao melhor jogo do Mundial. Os torcedores ingleses, por
sua vez, tentavam a todo custo entoar a Rule Britannia. No mundo todo,
a sensação foi de pesar, embora muitos torcedores africanos sentissem a
derrota com muito mais angústia, pois consideravam a vitória sobre os
ingleses mais importante do que o título mundial em si.
Mais tarde, Roger Milla afirmou sobre o significado deste jogo:

Eu vou dizer uma coisa: se nós tivéssemos vencido a Ingla-


terra, a África poderia ter explodido, ex-plo-di-do. Muitas mortes
teriam acontecido. O bom Deus sabe o que faz. Agradeço pela equipe
ter parado nas quartas-de-final. Chegar até aí já nos permitiu viver
uma doce alegria..5 

Mais do que uma dimensão africana, a identificação com a seleção


camaronesa assumiu uma projeção terceiro-mundista. Em alguns casos
atingiu uma dramaticidade impressionante, como no episódio de uma
mulher em Bangladesh que se enforcou após a vitória inglesa, deixando
um bilhete no qual dizia que a eliminação de Camarões representava o
fim de sua vida.

Gilberto Agostino 213


Velhos Impérios, Novas Nações

Ainda na década de 1990, o futebol africano viveria mais um mo-


mento de afirmação da nacionalidade através do futebol. Desde o final da
II Guerra, com a ascensão do Partido Nacional e a consequente instituição
do Apartheid, a África do Sul ficara conhecida como a capital mundial da
discriminação racial. Como ocorreria em todas as áreas culturais e esporti-
vas do país, o universo futebolístico não passou impune às determinações
do regime. A Associação de Futebol da África do Sul estabeleceu uma
série de critérios esportivos de forma a vetar os possíveis encontros mul-
tirraciais, segregando times e formando campeonatos em separado. Em
1959, à medida que esta posição tornava-se mais evidente, a tramitação da
suspensão da entidade começou a ser analisada pela FIFA, sendo concluída
em 1962. Apesar de vetada das grandes competições futebolísticas inter-
nacionais, alguns dirigentes sul-africanos ainda alimentavam esperanças
de participar das próximas Copas do Mundo, chegando a sugerir que em
1966 pudessem disputar as eliminatórias com um time só de jogadores
negros e, em 1970, com um time só de jogadores brancos!
Isolado do meio esportivo mundial, o futebol na África do Sul
permaneceu durante décadas enredado em sua própria estrutura segrega-
cionista, ancorado na hegemonia do poder branco, além de considerado
pelos próceres do regime como um esporte de niggers, inferior ao rúgbi,
este, sim, praticado pelos “deuses loiros de olhos azuis”, descendentes
da elite anglo-saxã e bôer. Em 1976, corroborando as tendências gover-
namentais do presidente, Pieter Botha, juristas de Pretória aprovaram um
pacote de medidas estabelecendo regras ainda mais claras para a estrutura
esportiva do país:

1. Cassar as federações unificadas e criar associações específicas para


mestiços, indianos e africanos;
2. Criar novas federações raciais, impedindo associações livres;
3. Financiar e ajudar a composição de uma elite esportiva negra, re-
conhecendo sua existência como forma de manter o status quo, e
justificar a política segregacionista do regime.

214 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Vindo a público, tais posições foram fatais para que a Federação


do país, até então suspensa pela FIFA, fosse expulsa da entidade. Para
os marginalizados, estes, sim, amantes do jogo, o momento era bastante
difícil. Nesta hora, não por acaso o futebol transformou-se em um dos
catalisadores da luta contra o apartheid, tornando-se um dos espaços pos-
síveis de contraponto com o autoritarismo do regime. Um clube, mais do
que qualquer outro, assumiu esse papel: Winnie Mandela Football Club,
atuando como ponto de referência – e refúgio – para líderes políticos e
sindicais que caíam na lista negra do regime.
Com o fim do apartheid, em 1991, a África do Sul foi readmitida no
cenário esportivo internacional, reingressando na FIFA no ano seguinte.
Como marco esportivo desta nova ordem, a seleção nacional – chamada
de Bafana Bafana (Garotos, em uma das línguas nacionais negras) –,
marcada por um caráter multirracial, venceu a equipe dos Camarões
por 1X0 em Durban, vitória que, apesar de nada desprezível no campo
esportivo, teve seu maior significado no plano político, uma vez que foi
encarada não só como o renascimento do futebol africano, como também
o renascimento da nação.
Em meio às reviravoltas políticas que o país vivia, em ritmo de
aceleradas transformações em direção à democracia, vários partidos emer-
giram no cenário político reivindicando mudanças. Um deles, denominado
Partido do Futebol, anunciava em seu manifesto à nação sul-africana:

As manobras dos partidos políticos majoritários para con-


quistar o poder, particularmente nestes tempos incertos de mudança,
provocam grandes divisões no povo. Nós acreditamos que a liberdade
e a verdade triunfam quando a alegria, a unidade e a dignidade
são os denominadores comuns de uma sociedade. O Partido do
Futebol defende o desenvolvimento de uma nação unificada sobre
uma plataforma de proposições que venham do esporte, da música
e das artes. Estes domínios colocam de lado as divisões políticas
e tocam as pessoas na vida cotidiana. Eles criam otimismo, es-
pírito de equipe, confiança e unidade. Uni-vos em torno de seus
interesses comuns.6 

Gilberto Agostino 215


Velhos Impérios, Novas Nações

Com a vitória de Nelson Mandela, o futebol foi encarado como


um poderoso fator de coesão nacional, um dos pilares da democracia sul-
-africana, de certa forma vindo ao encontro das propostas do Partido do
Futebol. Já em 1995, a África do Sul sediou a Copa do Mundo de rugby,
conquistando o título em disputa e demarcando sua inserção definitiva
no cenário esportivo internacional. No final deste mesmo ano, um ex-
celente resultado empolgaria o futebol sul-africano. Jogando no estádio
Houphouët-Boigny, em Abidjan, na Costa do Marfim, o Orlando Pirates,
de Soweto, venceu o campeão local, o ASEC Abidijan, ficando com o título
da 31ª Copa Africana de Clubes Campeões. Derrota inesperada, o saldo
político para o Chefe do Estado anfitrião, Henri Konan Bédié, não poderia
ter sido pior, uma vez que este ocupara a tribuna presidencial para assistir
a uma vitória dada como certa. Ao final do jogo, milhares de espectado-
res gritavam a plenos pulmões todos os insultos possíveis e imagináveis
contra Bédié, retirado às pressas do estádio. Em compensação, do outro
lado, Mandela dançava e comemorava a vitória do time sul-africano.
Para muitos jornalistas, sua vibração não deixava dúvidas a respeito de
seu time do coração, apesar de o líder ter afirmado que torcia para todas
as equipes da mesma forma. Afinal, o Orlando Pirates – que retirou seu
nome dos velhos filmes protagonizados por Errol Flyn – além de ser um
dos clubes mais populares do país, é originário de Soweto, região que
havia se tornado um símbolo da resistência contra o apartheid.
No ano seguinte, o futebol cumpriria mais uma vez um papel funda-
mental na composição do conjunto de valores que delineavam a identidade
nacional sul-africana. Depois de tantos anos excluída do contexto mundial,
a África do Sul sediaria a fase final da Copa Africana das Nações. Com
quase tudo acertado para um fantástico evento que reuniria dezesseis
seleções, uma questão política interferiu no processo, comprometendo
a qualidade técnica do campeonato. Ainda em 1995, o regime ditatorial
da junta militar do general nigeriano Sani Abacha havia executado nove
opositores da etnia ogoni, gerando grande indignação em diversos países
africanos. Nesta hora, Nelson Mandela acabou se posicionando de forma
mais contundente, conclamando a comunidade internacional a submeter o
regime de Abacha a um embargo total. Em represália, o governo nigeriano

216 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

anunciou a decisão de não participar da final da Copa Africana das Na-


ções, renunciando até mesmo a defender o título conquistado em 1994,
na Tunísia. A alegação oficial dos dirigentes nigerianos foi feita em tom
de provocação, uma vez que invocaram a questão da precária segurança
em Johannesburgo para justificar o não comparecimento. Neste momento,
além da Nigéria, várias outras equipes tiveram problemas extra-campo:
Libéria, Angola e Moçambique enfrentavam guerras civis; Serra Leoa, um
golpe de estado, enquanto o Zaire sofria os males do ébola. Mesmo com
tantos obstáculos, a competição teve seus momentos de emoção, como, por
exemplo, a semifinal entre a jovem equipe da África do Sul, treinada por
Clive Barker, e a veterana seleção de Gana, uma das principais favoritas
ao título. Cerca de 80.000 pessoas – entre elas, Nelson Mandela –, batendo
o recorde de público no país, veriam a Bafana Bafana vencer por 3X0 um
jogo que parecia impossível. Consumada a vitória sobre os ganeses, só
faltava mesmo a decisão, a ser disputada com a Tunísia. Mais uma vez, os
sul-africanos viviam o momento em que uma partida de futebol valia muito
mais do que uma afirmação esportiva. Em campo, um embate duro, com
superioridade das defesas sobre os ataques. Aos 27 minutos do segundo
tempo, o atacante sul-africano Mark Williams – jogador do Wolverhamp-
ton – conseguiu vencer o goleiro tunisiano, repetindo o feito 2 minutos
depois. Com a vitória, a África do Sul viveu uma nova euforia nacional.
Ao lado de Goodwill Zwelithini, líder cultural da mais tradicional tribo
do país – os zulus –, Nelson Mandela desfilou pelo campo, dançando ao
lado dos jogadores e vestindo a camisa 9 da Bafana Bafana.
Alguns meses mais tarde, o futebol africano viveu mais um grande
momento. A Nigéria conquistou a medalha de ouro nos Jogos de Atenas,
sagrando-se o primeiro país da África a conquistar um grande título inter-
nacional. Em uma campanha fantástica, os nigerianos derrotaram, além
de outros adversários, Brasil e Argentina, em duas reações surpreendentes
que entrariam para a história das Olimpíadas. Enquanto o futebol africano
comemorava o ouro olímpico, na África do Sul vivia-se a expectativa
de mais um desafio: a classificação para a Copa da França. Com este
propósito, todas as energias futebolísticas do país foram investidas nas
eliminatórias, nas quais cada jogo era uma disputa de vida ou morte, con-

Gilberto Agostino 217


Velhos Impérios, Novas Nações

tra adversários como Congo, Zâmbia e Zaire, todas equipes com muito
mais experiência do que a seleção sul-africana. Apesar das dificuldades,
a Bafana Bafana finalmente cumpriu o maior desafio de toda sua história
ao vencer o Congo em Johannesburgo por 1X0, classificando-se em pri-
meiro lugar no seu grupo. Enquanto a festa tomava conta do país, mais de
300 pessoas eram hospitalizadas, sem contar aquelas que entrariam nos
hospitais nos dias seguintes. Não se contendo de emoção, o técnico Clive
Barker desabafou exultante:

Hoje, eu me sinto mais participante em relação à causa pro-


movida por Mandela. Esta qualificação é a nossa contribuição. Vo-
cês sabem, a Bafana Bafana é o símbolo da democracia sul-africana.
O rugby é branco. O cricket é branco. Nós representamos todas as
camadas da população. Nós somos a equipe do povo.7 

Sorteadas as chaves do Mundial, a equipe da África do Sul caiu em


um grupo bastante difícil, que contava com a França, a Dinamarca e a
Arábia Saudita, sendo os dois países europeus os francos favoritos. Logo no
primeiro jogo, no Vélodrome de Marselha, viria a anfitriã, empurrada por
sua vibrante torcida. Visando levantar a moral da equipe, Mandela enviou
diversas mensagens: uma ao novo técnico da seleção, o francês Philippe
Troussier: Estou de fato impressionado com seus métodos de treinamento;
outra ao capitão Lucas Radebe, que jogava no Leeds, na Inglaterra: Estou
muito orgulhoso de você ter sido escolhido capitão.
Em campo, contra os franceses, a equipe sul-africana não conseguiu
deslanchar seu melhor jogo. Ao final, 3X0 para os donos da casa, resultado
não tão desesperador para uma seleção que estreava em Copas do Mundo,
jogando contra uma das grandes postulantes ao título. No segundo jogo,
contra a Dinamarca, assistiu-se a um encontro bastante violento, com 3
cartões vermelhos e 7 amarelos (um recorde no torneio). Curiosamente,
neste mesmo jogo, encerrado com o placar de 1X1, dois jogadores dina-
marqueses, Colding e Paulsen, receberam o troféu Fair Play por terem
compartilhado a água com jogadores sul-africanos, uma premiação marca-
da pelas circunstâncias da estreia da seleção sul-africana na competição e
pela mensagem pluralista que o futebol podia proporcionar. A África do

218 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Sul voltou a campo contra a Arábia Saudita, empatando por 2X2 e sendo
eliminada da competição, embora alcançasse o terceiro lugar da chave,
ainda na frente dos sauditas.
Encerrada a participação na Copa da França, novos desafios se
apresentavam para o futebol sul-africano. Uma competição a ser travada
não dentro das quatro linhas, mas em um campo mais difícil, a arena
política da FIFA. O objetivo era sediar a Copa de 2006, uma disputa que
envolvia outro país africano, o Marrocos, e duas potências europeias:
Inglaterra e Alemanha. Com os momentos conclusivos tramitando em
julho de 2000, a candidatura da África do Sul chegou a empolgar muita
gente. Afinal, sabidamente, as chances marroquinas era bem menores
e até mesmo Just Fontaine, o embaixador da candidatura do Marrocos,
admitia que o mais importante era o Mundial ficar na África. Por outro
lado, enquanto a Alemanha já havia sediado o Mundial em 1974, apenas
há 26 anos, a Inglaterra via suas possibilidades comprometidas pelas
truculentas ações dos hooligans. Além de tudo isso, o próprio sistema
de votação, composto por vinte e três delegados, parecia favorecer os
sul-africanos: oito da Europa (maior número de filiados), quatro da Ásia,
quatro da África, três da América do Sul, um dos países da CONCACAF
e um para a Oceania, sendo que a participação do presidente da FIFA
na eleição só se consumaria como voto de Minerva. Contando com os
votos da própria África, da Ásia, da América do Sul, da CONCACAF
e da Oceania, tudo indicava, nos dias que antecederam a votação, que
a África do Sul iria ser a escolhida.
Tendo como embaixadores da candidatura Roger Mila e Abedi
Pele, dois dos maiores craques africanos de todos os tempos, o país
apresentou em sua carta de intenções a possibilidade de 9 cidades-sedes:
Johannesburgo (3 estádios), Pretória (2 estádios), Cidade do Cabo (2 es-
tádios), Durban, Porto Elizabeth, Bloemfontein, Rustenburgo, Maikeng,
Pietersburg. Milla e Abedi Pele chamaram atenção não só pelo ineditismo
de uma sede africana como também para o forte apelo social que o campe-
onato representaria, não só para a África do Sul. Não por acaso, o slogan
da candidatura afirmava ser a Copa “Um desejo africano”, procurando
apresentá-la como uma conquista de todo o continente.

Gilberto Agostino 219


Velhos Impérios, Novas Nações

Chegada a hora da votação, a comitiva da Alemanha desembarcou


em Zurique, tendo à frente o Kaiser Franz Beckenbauer, o chanceler
Gerhard Schroeder, o ex-tenista Boris Becker, o ex-jogador Guenter Netzer
e a top model Claudia Schiffer. Em um dossiê de mais de mil páginas, os
alemães apresentavam-se como detentores não só de estádios modernos,
como de um sistema de comunicações impecável, além de uma rede de
transportes de última geração, contando com uma infinidade de aeroportos
e um sistema ferroviário bastante veloz, capaz de ligar as cidades-sedes
em um espaço de tempo extremamente vantajoso para a competição.
Consumada a escolha, a sensação que ficou foi a de que a vitória
alemã ocorreu na prorrogação, praticamente no dia que antecedeu a
votação. Com a divulgação, a televisão flagrou a exultante cantoria dos
torcedores alemães em cervejarias, contrastando com o semblante sem
esperança dos sul-africanos, que viram a vitória escapar por entre os
dedos. Um dia depois da decisão, graves denúncias de corrupção foram
feitas pelo representante de Trinidad-Tobago, Jack Warner, que disse ter
recebido uma proposta de suborno para votar em favor da Alemanha e
que o mesmo teria acontecido com outros delegados.
Diante da grande desilusão nacional, Nelson Mandela procurou
evitar que o repúdio nacional à escolha da FIFA pudesse provocar distúr-
bios no país. Em um tom contemporizador, afirmou: Nós assumimos tão
bem o nosso papel que deveríamos nos alegrar em vez de nos lamentar.
Mesmo esta declaração não impediu que a indignação tomasse conta de
muitos simpatizantes da candidatura sul-africana em todas as partes do
Terceiro Mundo. Em vários países da África protestos foram realizados.
Intelectuais se posicionaram contra a insensibilidade da FIFA em não
perceber que uma Copa na África do Sul representaria um importante
passo na consolidação do orgulho nacional em um país que enfrentava
graves problemas como violência, tensões étnicas e desigualdade social.
Em Cuba, Maradona chegou a chamar os dirigentes da FIFA de mafiosos,
apresentando-se chocado com a decisão da entidade. Em meio a tantas
declarações, ninguém demonstrou maior indignação do que Roger Milla,
que chegou a propor que os países africanos boicotassem o Mundial 2006,
enquanto outras forças políticas do continente defenderam a proposta de

220 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

boicote imediato para a Copa de 2002. Apesar das tensões latentes entre
estados africanos, Jonh Fashanu, ministro de Esportes da Nigéria, mostrou-
-se revoltado com a posição da FIFA, declarando: Se você é africano tem
que ser cinco vezes mais brilhante que os brancos europeus no futebol.

m m m

Enquanto o futebol na África decolava, no Oriente Médio, já há


algum tempo, o gosto pelo jogo ia superando os esportes tradicionais e
ganhando um papel fundamental na construção da identidade islâmica e
dos movimentos em torno da autonomia nacional. Na segunda metade do
século XX, um dos casos mais relevantes nesse sentido envolveu o futebol
iraniano, instrumento da ação do poder estatal desde 1921, momento em
que o país viveu transformações políticas decorrentes da ascensão de Reza
Khan. A nova ordem imposta no país possibilitou um expressivo avanço
dos esportes, sendo a fundação da Federação Iraniana de futebol, sediada
em Teerã, um marco expressivo deste processo. Favorecendo os intercâm-
bios futebolísticos com outros países, já em 1926, em Baku, no Azerbaijão,
confrontos entre a seleção persa e equipes locais foram travados. Nos anos
seguintes, equipes soviéticas visitaram Teerã, consolidando os contatos es-
portivos entre os dois países. Apesar deste tipo de aproximação, a inserção
do Irã nas grandes competições internacionais foi bastante tardia. No plano
interno, entretanto, o governo não só controlou o futebol, como passou
também a investir em instalações esportivas, como atesta a construção do
estádio Amjadiyd, daí em diante principal palco dos grandes encontros
locais. Em 1967, o Shanin, um dos clubes mais populares do país, foi
simplesmente fechado, uma vez que era um inconveniente concorrente
para o time do Exército, o Taj Club. Viria a década de 1970’, marcada
pelos bons resultados da seleção nos campeonatos regionais como a Copa
Asiática das Nações, conquistada em 1968, 1972 e 1976. Com a classifi-
cação para o Mundial de 1978, o Irã foi o primeiro país do Oriente Médio
a chegar a uma Copa do Mundo, conquista realizada em um momento
de progresso do esporte no país. Alguns meses depois, entretanto, com a
Revolução Fundamentalista e a chegada do Aiatolá Khomeini ao poder, o

Gilberto Agostino 221


Velhos Impérios, Novas Nações

futebol iraniano enfrentaria uma série de restrições. Os principais clubes do


país tiveram seus nomes alterados, uma vez identificados com o governo
anterior. Nos campeonatos internos, os jogadores eram constantemente
obrigados a posar ao lado de fotos do aiatolá; já o destino da seleção seria
mais cruel, uma vez que os oito anos da Guerra com o Iraque suspenderam
as participações internacionais.
Com a morte do aiatolá Khomeini, em 1989, a pressão sobre o
meio esportivo arrefeceu, favorecendo uma conjuntura menos coercitiva
no universo futebolístico, embora as “profissões de fé” que conduziam
a nação continuassem bem sólidas. Indício desta continuidade tornou-se
evidente em 1993, quando em Teerã, na Copa da Ásia, o Pirouzi enfrentou
o Nissan, equipe japonesa financiada pela empresa homônima. Apesar dos
cartazes de propaganda serem proibidos, as faixas da torcida colocavam
à mostra as grandes questões nacionais, como “Abaixo EUA” e “Israel
deve ser destruída”.
Mesmo com uma situação mais relaxada que no tempo de Khomei-
ni, materializada na eleição de Mohammad Khatami para a presidência
do país, a interferência do estado sobre o campo futebolístico continuou,
aparecendo nas constantes alterações feitas por círculos dirigentes na Co-
missão técnica do selecionado nacional. Em dezembro de 1997, em meio
a um clima de indefinição, a seleção iraniana foi a Melbourne jogar com
a Austrália. Depois de estar perdendo por 2X0, até cerca de 30 minutos do
segundo tempo, os iranianos conseguiram empatar, conquistando o direito
de participar da Copa do Mundo de 1994. Com a vitória, milhares de pesso-
as saíram às ruas em Teerã para comemorar aquele tão esperado momento,
cantando e dançando a noite toda. A alegria era tanta que o diário islâmico
Yomhure Islami chegou a anunciar a morte de 15 torcedores durante a
partida em um tom tragicômico, algo impensável no dia a dia da cultura
jornalística iraniana: “Alguns morreram de tristeza quando a Austrália fez
dois gols e outros de alegria quando o Irã empatou.” Em meio à festa, até
mesmo os rowhâni (religiosos) e os basijj (voluntários encarregados de
manter a ordem) foram convidados a participar das comemorações em um
clima de festa que há muito não se via no país, fazendo aquela data, o 8
âzar 1376 (27 de novembro de 1997) ganhar relevância histórica. Neste

222 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

ambiente, milhares de mulheres “invadiram” as comemorações no estádio


nacional, demarcando uma experiência cultural significativa para um país
cioso em restringir a presença feminina em ambientes futebolísticos. Para
acalentar ainda mais a alegria dos iranianos, o rival Iraque não só havia
sido desclassificado, como também ganhava evidência internacional com
a notícia de que o filho de Sadam Hussein teria mandado os guardas da
família castigarem os jogadores derrotados, sob acusação de relaxamento
em relação aos deveres nacionais.
No Mundial da França, nada podia ser mais emblemático para a
equipe iraniana do que um sorteio de chave projetando um confronto com
a seleção dos EUA. Considerando que desde a Revolução Islâmica, nove
anos antes, os dois países haviam rompido relações, muitos apresentaram
o encontro como a partida mais “politizada” do mundial. E à medida que
esta se aproximava, as expectativas movimentavam intelectuais, jornalistas
e políticos nos dois países. O jornal Le Monde apresentou uma charge em
que Madeleine Albright, secretária norte-americana de Estado, tocava a
bola de calcanhar para Mohammad Khatami. Por sua vez, o New York
Times afirmou que talvez chegara a hora de o futebol representar para
as relações internacionais norte-americanas o que o tênis de mesa
tinha representado trinta anos antes, quando o país se aproximava
da China, dentro da estratégia de diplomacia triangular de Richard
Nixon. Não por acaso, nesta hora, o próprio presidente, Bill Clinton,
se pronunciou, chegando a afirmar que, de fato, o jogo poderia ajudar
a melhorar o relacionamento entre os dois países. E, de certa forma,
tanta repercussão acabou por se refletir em campo. No dia 21 de junho,
no Estádio Gerland, em Lyon, Irã e Estados Unidos se enfrentariam em
um jogo marcado pela cordialidade, em que as delegações promoveram
uma bela confraternização um pouco antes do apito inicial. Em campo,
uma partida sem turbulências, com domínio de bola dos americanos,
embora com maior objetividade do ataque do Irã, que marcou duas vezes
contra um gol dos Estados Unidos. Logo após a consumação da vitória
iraniana, as autoridades governamentais não desperdiçaram a oportuni-
dade histórica que se apresentava, agradecendo à seleção nacional em um
pronunciamento oficial:

Gilberto Agostino 223


Velhos Impérios, Novas Nações

Em nome de Deus, o Misericordioso, o Compassivo.

Esta noite, em um honorável e corajoso jogo, marcado pela


técnica e pela força, vocês derrotaram nossos oponentes. Esta
foi uma marcante demonstração da capacidade de luta da nação
iraniana em toda sua revolucionária existência. Mais uma vez, o
arrogante e prepotente inimigo – o Grande Satã – sentiu o amargo
gosto da derrota em suas mãos. Vocês são privilegiados por fazer
a nação iraniana feliz.8 

No conjunto do Oriente Médio, não foi apenas no Irã que as


autoridades interferiram diretamente no universo do futebol. No Ira-
que, o governo de Sadam Hussein manteve-se sempre muito vigilante
com as múltiplas possibilidades do jogo, temendo especificamente que
os curdos utilizassem o esporte como instrumento de identificação
nacional contra o domínio iraquiano. Já nos diversos pequenos países
produtores de petróleo, a interferência apresentou-se com o futebol
se tornando uma dimensão privada dos governantes, situação que
assumiu toda sua plenitude no Kuwait. Protetorado inglês até 1961,
durante muitos anos o futebol foi dominado pela família do magnata
Fahd Alsabah, controlando desde a organização de campeonatos –
como a Copa do Emir – até a punição de jogadores e dirigentes que
não se enquadravam nas determinações governamentais. Na déca-
da de 1970, muitos investimentos foram feitos no futebol do país,
principalmente através da contratação de técnicos estrangeiros. Em
1976, Zagallo e Parreira (dupla que levara o Brasil ao tricampeonato
no México) chegaram ao país, conquistando, logo em seguida, em
1978, a Copa do Golfo Pérsico. Dois anos depois, já sem Zagallo mas
ainda com Parreira, a seleção do Kuwait chegou às quartas de final
nas Olimpíadas de Moscou, derrotada apenas pela equipe anfitriã por
2X1. Classificado para a Copa de 1982 na Espanha, o Kuwait empatou
com a Tchecoslováquia, perdendo para Inglaterra e França, embora o
momento mais marcante da participação da equipe tivesse sido a cena
protagonizada por Fahd Alsabah, que invadiu o campo de jogo para
reclamar da arbitragem.

224 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Como fato social total, o futebol no Oriente Médio não passaria


impune à mais relevante questão internacional da região: o conflito
árabe-israelense. Desde a partilha proposta pela ONU, em 1947, de-
limitando a formação de dois estados na Palestina, um judeu e um
palestino, as tensões entre Israel e diversos países do mundo árabe não
pararam de crescer, envolvendo conflitos militares diretos e indiretos,
assim como sanções diplomáticas e embargos. Devido à fragilidade
técnica de seu jogo, assim como às diferenças acumuladas por anos
de conflito, sendo boicotado futebolisticamente pelos países inimigos,
Israel foi o único país que disputou partidas de qualificação para a
Copa do Mundo em cinco continentes diferentes. Sua única partici-
pação na Copa do Mundo ocorreu em 1970, no México, onde perdeu
para a seleção uruguaia, mas chegou a empatar heroicamente com os
italianos e suecos.

Gilberto Agostino 225


Velhos Impérios, Novas Nações

Partidas disputadas por Israel nas Eliminatórias até 1998

ÁFRICA
1934 - Egito
1962 - Etiópia

ÁSIA
1974 - Japão, Coreia do Sul, Malásia e Tailândia
1978 - Japão e Coreia do Sul
1986 - Taiwan

EUROPA
1938 - Grécia
1950 - Iugoslávia
1954 -Grécia e Iugoslávia
1958 -País de Gales (play off)
1962 -Chipre e Itália
1966 - Bélgica e Bulgária
1982 - Irlanda do Norte, Suécia, Portugal e Escócia
1994 -Bulgária, Suécia, Finlândia, França e Áustria
1998 - Bulgária, Rússia, Chipre e Luxemburgo

OCEANIA
1990 - Nova Zelândia e Austrália

AMÉRICA
1990 - Colômbia (play off)

226 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Muitas vezes, países que admitiam relações esportivas mais


frequentes com os israelenses eram alvos de pressões, como o caso da
Tunísia, que, acusada por países islâmicos da África de manter contatos
amigáveis com o inimigo, foi boicotada pelo Egito e pelo Sudão na quinta
edição da Copa Africana das Nações, em 1965. Com o passar do tempo,
à medida que as tensões no Oriente Médio se tornavam mais complexas,
as hostilidades em relação à seleção israelense tornaram-se ainda mais
acentuadas. Em 1974, apenas um ano após a Guerra do Yom Kippur, mais
uma vez virtuais adversários israelenses nos Jogos da Ásia recusaram-se
a entrar em campo contra a seleção de Israel. Em 1992, a UEFA admitiu
a Federação Israelense em seu quadro, permitindo que a seleção nacio-
nal e os times do país disputassem campeonatos na Europa. O destaque
ficou para o Maccabi Haifa, que chegou às quartas de final da Liga dos
Campeões em 1999. Por outro lado, o processo de negociação de paz
aberto com os acordos de Oslo, em 1993, garantiu maior espaço também
para o futebol palestino. Em 1995, a Federação Palestina foi aceita como
membro provisório da FIFA, enquanto um selecionado palestino saía em
excursão enfrentando times europeus. Três anos mais tarde, a Federação
ingressou definitivamente na entidade, afiliando-se à Confederação de
Futebol Asiática. Em função da própria constituição territorial do país,
foram criadas duas ligas, uma na Faixa de Gaza e outra na Cisjordânia.
Em meio às marchas e contramarchas das negociações de paz no
Oriente Médio, a inserção de Israel na UEFA mostrar-se-ia não uma adesão
provisória, como os mais otimistas acreditavam. Quando todos pensavam
que o grande desafio do futebol no início do século XXI era a superação
da violência política em torno da Copa América, disputada na Colômbia,
em julho de 2001, os acontecimentos de 11 de setembro em Washington
e Nova York projetaram novas tensões sobre a ordem mundial. Ainda no
calor da hora, enquanto o mundo atordoado buscava uma explicação para
o ocorrido, a UEFA adiava os jogos da Liga dos Campeões e da Copa da
UEFA, previstos para os dias 12 e 13 de setembro. O presidente da entida-
de, Joseph Blatter, entretanto, temendo que as competições internacionais
pudessem ser desorganizadas, o que prejudicaria os preparativos para a
Copa 2002, anunciou que a FIFA não mudaria seu calendário e nem o local

Gilberto Agostino 227


Velhos Impérios, Novas Nações

dos jogos internacionais. Não por acaso, os primeiros efeitos contrários à


posição da entidade apareceram quando jogadores austríacos, preocupados
com a segurança em relação à partida pelas eliminatórias contra Israel,
recusaram-se a viajar para Tel Aviv. Logo em seguida, muitos dos outros
jogos decisivos, principalmente envolvendo países do Oriente Médio,
foram considerados eventos de alto risco. Em alguns casos, as velhas
rivalidades contribuíram para tornar a questão da segurança ainda mais
delicada. Foi o caso do jogo entre Irã X Iraque, disputado um mês após o
atentado, que habilitaria apenas uma das seleções para seguir com chan-
ces de classificação. Em torno de 100 mil torcedores, a reduzida torcida
iraquiana presente ao estádio nacional de Teerã exibia fotos dos opositores
de Sadam Hussein. Em campo, os iranianos venceram por 2X1, o que
promoveu tensões envolvendo torcedores em diversos pontos da cidade,
notadamente no bairro de Haft-Hoze, onde as forças de segurança agiram
com rigor, isolando a região e fazendo dezenas de prisões.
Para os organizadores do Mundial Japão-Coreia, todos estes aspectos
eram, de fato, preocupantes. Entretanto, o pior dos pesadelos se anunciou
quando, em outubro de 2001, a seguradora AXA, a maior empresa do
ramo no mundo, declarou sua intenção de cancelar o contrato de seguro
da competição. Alegava a empresa que a localização do Mundial, próxima
dos prováveis focos de tensão, assim como a inédita disposição em duas
sedes, tornava a questão da segurança muito mais difícil. Afinal, ainda um
ano antes do evento, nem mesmo as simulações do sistema de segurança
contra a possível “invasão” de hooligans chegaram a entusiasmar os
especialistas. Diante de uma realidade muito mais crítica, dirigentes sul-
-coreanos e japoneses procuram encontrar soluções preventivas, a partir da
organização de uma força especial e uma severa vigilância nos aeroportos
e proximidades. Tais iniciativas contaram com o apoio do governo norte-
-americano, que anunciou a mobilização de porta-aviões para auxiliar na
segurança do evento. Por outro lado, outras iniciativas propagandísticas
procuravam apresentar o futebol como uma força capaz de levar a paz e
a conciliação, através de uma série de campanhas de publicidade. Uma
destas, por exemplo, procurava demonstrar o quanto as antigas rivalidades
entre japoneses e coreanos (a Coreia havia sido uma colônia do Japão até

228 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

o final da II Guerra Mundial) haviam sido superadas com a aproximação


esportiva. Ainda nesse sentido, em 15 de fevereiro de 2002, a FA promo-
veu um jogo em Cabul entre uma seleção dos melhores jogadores locais
e um combinado das chamadas forças de paz. Para o tenente alemão
Dietman Jeserich, o jogo seria uma prova de que o futebol voltava a ser
uma prática segura na região, além de expressar simbolicamente a derrota
não só militar, como também cultural dos talibãs. Afinal, a partida teve
como palco o mesmo estádio que o governo afegão deposto utilizava para
promover demonstrações de seu poder. Neste período, além das ferrenhas
restrições à indumentária e comportamento dos torcedores – o único grito
permitido nas arquibancadas era “Alá é grande!” –, não era raro que uma
partida fosse interrompida para que os prisioneiros políticos, encarcerados
no próprio estádio, fossem executados aos olhos da torcida.
Na Palestina, os reflexos do 11 de setembro logo se fizeram sentir,
estimulando o acirramento das tensões com Israel, o que restringiu ainda
mais o trânsito entre as duas áreas que formam o território palestino. Tal
realidade levou os dirigentes do futebol no país a adotarem uma estratégia
bastante original. Eles acabaram decidindo criar dois selecionados para
representar o país, considerando que este vive um momento tão decisivo
no âmbito das relações internacionais: a seleção da Faixa de Gaza foi
denominada Al Aqsa (nome da mesquita sagrada de Jerusalém) enquanto
a da Cisjordânia ficou conhecida como Al Quds (Jerusalém, em árabe).
Ambas foram confiadas ao mesmo técnico, o polonês Anji Pisansky, que
afirmara se sentir no comando de uma força-tarefa em nome da soberania
palestina.

Gilberto Agostino 229


Velhos Impérios, Novas Nações

NOTAS

Pierre Lanfranchi, Mekloufi, un footballeur français dans la guerre d’Algerie,


 1

Actes de la Recherche, n.103,jun, 1994, p.70-74.


 2
Cf.Deville-Danthu, Le sport en noir et blanc, op.cit.,.p. 429.
 3
Bill Murray, Uma História do Futebol, op. cit., p. 188.
 4
Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 1999.
 5
Cf. Simon Kuper, Football against the Enemy, op.cit., 102.
Cf.Frédéric Couderc, Afrique du Sud, l’équipe du peuple, Manière de Voir,
 6

n.39, mai/jun, 1998, p.69.


 7
Cf.Frédéric Couderc, Afrique du Sud, l’équipe du peuple, p. cit., 67.
 8
Cf. John Ballard e Paul suff, The Dictionary of Football, London: Box-
tree,1999, p. 320.

230 Gilberto Agostino


A tragédia de Heysel, em 1985, colocou em evidência a fúria das torcidas.
Vencer ou Morrer

CAPÍTULO 6

TORCEDORES E NOVA DIREITA:


VIOLÊNCIA E (DES)CONTROLE

Muito além dos limites do esporte, a atual violência


dos hooligans é reveladora da evolução de uma parte da
juventude europeia, voltada para um mundo onde estão
presentes, o tempo todo, tanto a violência quanto a ima-
gem. Nos grandes estádios, estes jovens, frequentemente,
encaram suas ações como um prazer ritualizado, uma
aventura renovada semana a semana. Para esta geração,
do video game e da multimídia, a violência encontra-se
tão banalizada, que aparece como um produto de fast-
-food, logo consumida, logo esquecida (...)
(Philippe Broussard)

Por quê um torcedor é capaz de matar outro?


Sigmund Freud o chamaria de narcisismo das pequenas
diferenças. Também podíamos chamá-lo de teoria do
inimigo mais próximo. O futebol, temos que admitir, é
um eficaz caldo de cultivo da lógica tribal. E das lógicas
intertribais às múltiplas possibilidades de representação
da guerra, há, de fato, uma margem muito estreita.
(Walter Vargas)

Gilberto Agostino 233


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

Escrevendo na virada do século XIX para o XX, um humorista in-


glês vislumbrou que, por volta de 1950, uma realidade bastante singular
controlaria o universo do futebol na Inglaterra:

O campo de futebol deverá ser cercado por toda volta com


telas de arame ou barras de ferro (...) [quanto ao juiz] este usará um
casaco à prova de balas, tendo a sua disposição um automóvel ou
uma máquina de voar. Todos os clubes deverão, antes de qualquer
jogo começar, colocar no seguro a vida do juiz.1 

Exageros à parte, as pernósticas impressões do humorista não eram


meras alucinações futuristas, tão comuns no prometeico ambiente da Belle
Époque. Relatos envolvendo todo o tipo de violência em torno do futebol são
tão antigos quanto a própria regulamentação do jogo, demonstração cabal
de que as pulsões – tanto dos jogadores quanto do público – não eram tão
facilmente controladas. Já em 1890, o jornal londrino The Times afirmava:
Nossos holligans vão de mal a pior, e o pior é que se multiplicam. Eles são
a excrescência monstruosa da nossa civilização2 . A expressão hooligan,
utilizada amplamente ao longo do século XX, parece ter surgido como refe-
rência a uma família irlandesa – houlihan – que viveu na Londres Vitoriana,
notoriamente conhecida por sua insociabilidade. Posteriormente, dentro do
quadro de homologias e aproximações que marcam experiências sociais nas
grandes cidades, o sentido da expressão foi deslocado para designar uma
gangue que passou a controlar áreas do submundo londrino, indo daí para
as torcidas violentas.
Na Inglaterra, a relação entre a violência e o futebol começou a cha-
mar a atenção das autoridades já nos anos 1950. Entre 1946 e 1959, cerca de
138 incidentes de alta intensidade foram registrados nos estádios ingleses,
embora nas décadas seguintes esta questão tenha assumido uma amplitude
até então desconhecida, período em que o hooliganismo foi encarado como
um problema social no país. Vivia-se um momento decisivo no tocante a
uma série de modernizações no futebol inglês, processo que foi marcado
pelos contratos com a televisão, pelas transferências milionárias (não só
entre clubes ingleses) e melhorias das instalações esportivas. Perdendo
seu caráter local ou regional, esta nova realidade permitiu a divulgação,

234 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

em escala nacional, dos símbolos das torcidas – cantos, slogans e emble-


mas –, acirrando antagonismos e, consequentemente, ampliando a arena
de confronto, antes representada potencialmente pelo campo de jogo.
Por outro lado, no momento em que os dirigentes passaram a estabelecer
negociações com agentes cada vez mais diversificados, tais como meios
de comunicação, federações nacionais e internacionais, o processo de
marginalização dos torcedores tornou-se mais evidente, configurando o
que Patrick Mignon chamou de despossessão, ou seja, a perda da influência
direta sobre o clube, cada vez mais burocratizado3 . Nesse sentido, adquiriu
muita relevância a cultura dos Ends, expressão oriunda das instalações
do FC Liverpool, designando a parte do estádio onde os torcedores mais
exaltados se reúnem, representação simbólica dos espaços a serem resguar-
dados, ou, principalmente, conquistados. Denominados especificamente
de Kop na Inglaterra – nome de uma batalha travada pelas tropas inglesas
durante a Guerra dos Bôeres (1899-1902) –, os Ends transformaram-se, a
partir da década de 1980, em espaços de contestação às mutações não só
do futebol, como também da sociedade, reunindo extremistas de direita,
marcados pelo culto da virilidade, pela xenofobia e pelo racismo. Tendo
como pano de fundo a política neoliberal de Margaret Thatcher e o declí-
nio do proletariado inglês, assim como o crescimento da imigração para
a Europa, o hooliganismo devolveu diferenças perdidas – ou relegadas
– entre os trabalhadores, estabelecendo novas formas de sociabilidade e
acirrando desigualdades e hostilidades entre as torcidas.
Neste quadro de crescente violência, o Newcastle United e o Chelsea
figuraram entre os primeiros clubes ingleses a possuir torcedores ligados
a organizações direitistas, como o British Movement e o National Front,
empenhados em recrutar jovens operários desempregados, potencialmente
hostis aos estrangeiros. Em pouco tempo, entretanto, esta realidade ganhou
projeção em outros clubes, alcançando relevância também nas partidas
de times ingleses no exterior. Mais de um século depois do lançamento
das bases do futebol moderno, a expressão “doença inglesa” voltava à
evidência, desta vez não como referência ao jogo em si, mas, sim, aos
torcedores exaltados. Um dos episódios mais marcantes desta realidade
ocorreu em 1985, na final da Copa da Europa, em Bruxelas, quando joga-
vam a Juventus de Turim e o Liverpool no estádio de Heysel. Torcedores

Gilberto Agostino 235


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

ingleses arrombaram uma barreira que dividia as torcidas e esmagaram os


italianos contra um muro, deixando um saldo de trinta e nove mortos. No
relatório final acerca do caso, logo denominado “A Tragédia de Heysel”,
o juiz responsável afirmou que uma grande quantidade de bandeiras com
suásticas foram recuperadas ao final do jogo, incluindo uma onde se lia “A
Inglaterra para os ingleses” e outra com “A Europa para os ingleses”. Logo
após o episódio, um grupo foi visto partindo da estação principal de Bruxelas,
e identificado como sendo formado por torcedores do Liverpool: carregava
bandeiras do Reino Unido e exibia tatuagens do National Front e suásticas.
Bill Buford, jornalista que viveu cerca de quatro anos infiltrado entre
os hooligans, escrevendo posteriormente o livro Entre os Vândalos, per-
cebeu o quanto a visão de mundo destes torcedores é expressa claramente
através dos gestos, slogans e cânticos repetidos durante o jogo. Estes tendem
a representar uma das mais importantes experiências coletivas vivencia-
das no universo dos estádios, momento privilegiado na projeção de uma
sensação de pertencimento a um grupo. Neste sentido, as arquibancadas
transformam-se num dos poucos espaços onde a possibilidade de extrava-
sar ódios acumulados não passa por nenhum tipo de pressão moralizadora
ou “politicamente correta” da sociedade. Geralmente adaptando marchas
militares, marcados por uma percussão pesada e monótona, os hinos dos
hooligans ingleses expressam todas as formas de intolerância, assumindo
caráter de verdadeiros cânticos de guerra. Um deles, baseado em parte no
The Battle Hymn of the Republic (Glória, Glória, Aleluia), é cantado ge-
ralmente quando os torcedores estão em trânsito, ou no momento em que
estes acabam de chegar a uma cidade onde haverá jogo.

Glória, glória, Man United


Glória, glória, Man United
Glória, glória, Man United
Tuas tropas vencerão! ão! ão! ão!

Na espiral deste tipo de manifestação, diversos são os alvos da


ofensiva hooligan: desde torcidas de outros times, passando por jogadores

236 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

ou técnicos e chegando a personalidades políticas. Neste último caso, até


mesmo o Papa é um dos objetos de repúdio. Em um destes hinos, um dos
mais executados pelos protestantes, principalmente quando o adversário
é de um país católico, não há “letra” nem mais nada que não seja o refrão
Fuck the Pope, Fuck the Pope, repetido até a exaustão. Outros cânticos
atacam especificamente os jogadores negros, muitas vezes acompanhados
de sons que sugerem ruídos de macacos e slogans que falam de bananas.

Fora negrada! Poder Branco!


Fora negrada! Poder Branco!
Fora negrada! Poder Branco!

Buford listou as preferências de um grupo específico de hooligans


com os quais conviveu, torcedores do Manchester United, chegando à con-
clusão de que, antes de tudo, eles não admitem qualquer tipo de diferença,
sendo incapazes de gostar de outras pessoas, a não ser deles mesmos.
Dentre uma listagem apurada pelo jornalista, a menção ao futebol propria-
mente dito aparece atrás de uma série de outros “valores” fundamentais:

1) Cerveja em garrafas de meio litro


2) Cerveja em garrafas de dois litros
3) A rainha
4) As ilhas Falkland
5) O Manchester United

No governo Margaret Thatcher, a ação do Estado inglês em relação


aos hooligans se intensificou, dentro das diretrizes governamentais da “Lei
e Ordem”. Por outro lado, a discussão em torno das questões da violência
entre torcedores ganhou espaço entre os intelectuais, polarizando opiniões
de historiadores, antropólogos e sociólogos em uma série de interpretações a
respeito do fenômeno. No início dos anos 80, veteranos da Guerra das Malvi-
nas ingressaram no universo do hooliganismo, o que trouxe mais elementos
para o debate. Na esfera repressiva, a discussão dos parlamentares propiciou

Gilberto Agostino 237


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

uma legislação mais rigorosa, o que por extensão foi acompanhada de uma
ação policial mais intensa – chegaram a ser utilizados métodos de infiltração
semelhantes aos usados contra o IRA, no Ulster. Paralelamente, foi estabe-
lecida uma mobilização conjunta com aparatos repressivos de outros países,
uma vez que, na virada dos anos 70-80, o fenômeno acabou extrapolando
os horizontes ingleses e a própria expressão hooligan passou a ser utilizada
para caracterizar torcedores exaltados de outras nacionalidades.
Apesar de toda a estrutura montada para limitar o raio de ação das
torcidas violentas na Europa, os avanços neste sentido foram limitados, não
chegando a impedir os usuais confrontos e a disseminação da desordem.
No Mundial da França, um rígido esquema foi estruturado para garantir
a militarização dos espaços esportivos, procurando garantir a prevenção
contra qualquer forma de violência. A primeira medida neste sentido foi a
implementação de um rigoroso controle nas fronteiras, considerado o mais
importante de todos procedimentos para a segurança do evento. Segundo
o jornal L’Équipe, no total, cerca de 900 milhões de francos foram investi-
dos na renovação dos sistemas de segurança das instalações já existentes,
enquanto 62,5 milhões destinaram-se a um eficaz controle nos acessos aos
locais de jogos ou mesmo áreas de possíveis comemorações das torcidas,
além de garantir a proteção das equipes e profissionais de imprensa. Nos
estádios, as arquibancadas foram milimetricamente setorizadas, com o
objetivo de reduzir ao máximo o trânsito dos torcedores, enquanto um
sistema de monitoração por vídeo foi instalado. Simultaneamente, os
famosos gendarmes franceses foram orientados especialmente para lidar
com torcedores exaltados, tendo recebido instruções de comissários deno-
minados correspondentes de hooliganismo. Estes haviam sido destinados,
com vários meses de antecedência, a manter intercâmbios com policiais
ingleses e alemães. Às vésperas do jogo inaugural, um pequeno manual
foi distribuído nas cidades onde seriam realizados os jogos, apresentando
indicações básicas para reconhecer os hooligans, alertando para o perigo
em potencial dos ingleses, alemães, belgas, holandeses e argentinos.
Mesmo com toda a rigidez, que chegou a proibir temporariamente a
venda de bebidas alcoólicas em alguns lugares, o hooliganismo marcaria
presença no Mundial, causando inúmeros distúrbios. Já na cerimônia de

238 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

abertura do evento, 34 policiais saíram feridos nas operações visando conter


a exaltação de torcedores escoceses. Em Marselha, ainda na primeira fase
da competição, no dia 14 de junho, véspera da partida entre Inglaterra e
Tunísia, os hooligans ingleses entraram “verdadeiramente” em ação, afron-
tando a polícia e quebrando carros e bares, deixando transparecer com toda
a intensidade o quanto a rotina das cidades-sede seriam transtornadas com a
exaltação das torcidas. No dia seguinte, com a vitória inglesa a comemoração
continuou a ser marcada pela violência, com a prisão de alguns hooligans
categoria C, classificação mais perigosa segundo os agentes de segurança.
Em sua edição de 16 de junho, o jornal Le Monde não poupou crí-
ticas aos episódios em Marselha.

Eles são bêbados. Eles são violentos. Eles são racistas. Eles
são muito mais do que isso. Embriagados, o esporte para eles não
é mais que um pretexto para dar cotoveladas [...] Estes jovens, ma-
nipulados por movimentos extremistas, fazem a saudação nazista, e
se dizem orgulhosos de serem brancos. Se não fossem tão perigosos,
seriam dignos de pena.

Cinco dias depois, quando a Alemanha empatou gloriosamente com a


Iugoslávia – depois de estar perdendo por 2X0 –, torcedores alemães levaram
pânico às ruas de Lens, ferindo policiais e jornalistas, em uma demonstração
de força e terror. Esta jornada de violência deixou David Nivel, policial fran-
cês, em coma, com danos celebrais irreversíveis. A equipe médica chegou à
conclusão de que os hooligans alemães tiraram o capacete do policial, para
golpeá-lo com um objeto pesado, possivelmente de metal. Alguns dias depois,
o jornal alemão Bild publicou a declaração de três torcedores que participaram
da agressão. Um deles afirmou : Eu vi um dos nossos quebrar a arma do
policial em dois pedaços e depois dar coronhadas em sua cabeça.
Mais pertubador ainda para as autoridades francesas foi que, em
muitos destes casos, alguns torcedores extremistas do Paris Saint Germain
também acabaram se envolvendo na escalada de violência que marcou a
Copa. Estes chegaram ao ponto de não apoiar a seleção francesa, já que a
consideraram ilegítima para representar o país, uma vez que contava com
jogadores negros e de origem árabe. Neste contexto, Jean Marie Le Pen,

Gilberto Agostino 239


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

líder do partido ultradireitista francês, Front Nacional, não chegou – pelo


menos em público – ao extremo de condenar a seleção, embora lamentasse
que alguns jogadores tivessem se naturalizado para jogar na equipe da
França. Em relação à violência na Copa, em uma entrevista ao correspon-
dente do jornal Folha de S. Paulo, logo após os distúrbios em Marselha e
Lens, o líder da direita francesa conseguiu inverter a interpretação sobre
o hooliganismo, na verdade, nenhuma grande surpresa vinda de alguém
que se esforça em promover a revisão do Holocausto.

Folha – Hooligans ingleses e alemães cometeram vários atos de


violência durante a Copa do mundo. Estes torcedores são constan-
temente associados à extrema-direita e ao racismo. O Sr. vê relação
entre esta violência e os ideais de extrema-direita ?
Le Pen – Não. As polícias inglesa e alemã desmentiram formalmente
que os hooligans tivessem qualquer relação com a extrema-direita.
A mim me inquieta que, por outro lado, nunca se diga que alguns
atos violentos que envolveram ingleses bêbados foram também
provocados por certos elementos imigrantes franceses.
Folha – O Sr. quer dizer que imigrantes atacaram ingleses?
Le Pen – Sim. Os torcedores ingleses fizeram um certo barulho,
como de hábito. Mas foram sobretudo eles que foram atacados.4 

À medida que a Copa transcorria, os casos de violência se repro-


duziam, demarcando uma experiência que, mesmo, acompanhando o
calendário dos jogos, parecia ganhar uma forma autônoma. Ainda em
Marselha, no dia 22 de junho, um fotógrafo inglês foi atacado pelos tor-
cedores ingleses, fraturando a clavícula. Três dias mais tarde, em Lille,
distúrbios entre hooligans e jovens locais deixaram vários feridos. Logo
depois foi a vez dos barrabravas argentinos causarem distúrbios às vés-
peras do jogo Argentina X Croácia. Em seguida, torcedores iugoslavos
foram presos antes do confronto Iugoslávia X Holanda.
Em meio a toda esta espiral de violência, na contracorrente do espírito
do Mundial, um jornal inglês afirmou: A Europa poderia ser bem mais calma
e feliz se o futebol fosse abolido. Finalizada a competição, o Ministério do

240 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Interior, responsável pela segurança na França, apresentou o balanço policial


de ocorrências envolvendo hooligans, chegando a registrar cerca de mil de-
tenções, com muitos destes casos submetidos a julgamentos de urgência. Nos
inquéritos, foi apurado que até mesmo rádios de comunicação eram usados
pelos torcedores para orquestrar as ações e mobilizar a dispersão quando as
forças da repressão se faziam presentes. Apesar das declarações em torno da
aplicabilidade de medidas de segurança em caráter transnacional, bastaria
que outras grandes competições ocorressem na Europa para que novos espe-
táculos de violência fossem registrados. Na última edição da Copa da UEFA
no século XX, torcedores ingleses do Leeds United e turcos do Galatassaray
se encontraram em Istambul na semifinal da competição. Após confrontos
dantescos nas ruas da cidade às vésperas da partida, dois torcedores do Leeds
foram mortos, deixando uma apreensão muito grande em relação ao jogo de
volta. Foram necessários – além dos seguranças do clube – a proteção de 11
agentes do grupo antiterrorismo inglês para escoltar o time turco que foi à
Inglaterra. Passando pelo Leeds, o Galatassaray chegou à final enfrentando
mais uma vez uma equipe inglesa: o Arsenal. Novos confrontos e novas
mortes marcaram o jogo decisivo, disputado em Copenhague. Com a vitória
do Galatassaray, conquistando o primeiro título europeu para o futebol turco,
o mundo todo assistiu às imagens das comemorações nas ruas do país. Logo
em seguida, viria o choque com a notícia da morte de uma menina de três
anos, atingida por uma bala perdida em meio à violenta euforia da torcida
campeã. Na verdade, para os observadores do futebol na Turquia, tal tipo de
reação de alguns de seus torcedores não era uma completa novidade. Desde a
segunda metade da década de 1990, à medida que o futebol do país ganhava
projeção mundial, favorecido pelo intercâmbio promovido pela Comunidade
Europeia, episódios envolvendo a fúria das torcidas ganharam relevância,
pondo em evidência não só a carga de violência que envolvia encontros
entre os times turcos e de outros países, como as rivalidades locais. A grande
questão é que muitas das notícias que correm o mundo sobre a violência nos
estádios acabaram banalizadas, transformando-se em lugar comum em meio
à violência geral. Em alguns casos, são tratadas com uma certa dose de exo-
tismo. Um destes casos envolveu a filial do McDonald’s, inaugurada perto
do estádio do Besiktas, em Istambul. Tão logo a loja começou a funcionar de
fato, a empresa viu suas tradicionais cores – amarelo e vermelho – hostilizadas

Gilberto Agostino 241


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

pelos torcedores das redondezas. Afinal, tais cores são simplesmente a marca
registrada do Galatasaray, tradicional rival do Besiktas. Temendo o prejuízo,
a multinacional não perdeu tempo. Em Istambul, portanto, encontra-se a única
loja da gigantesca cadeia mundial onde não aparecem nem o amarelo nem o
vermelho. São o preto e branco, as cores do Besiktas, que predominam. Mais
do que a flexibilidade pós-fordista, ou mera curiosidade urbana, a questão
merece ser analisada através de um prisma que demonstre uma maior preo-
cupação com a onda de ódio e violência que ganha cada vez mais projeção
no universo do futebol mundial.
Na Eurocopa 2000, a questão dos hooligans foi o principal tema em
pauta, uma vez que os organizadores estavam empenhados em, pela pri-
meira vez, utilizar duas sedes – Bélgica e Holanda – para um evento de tal
envergadura. Preocupados com os distúrbios da recém terminada Copa da
UEFA, os países sedes chegaram a suspender temporariamente o Tratado
de Schengen, empenhados em promover uma ostensiva fiscalização na
fronteira entre os dois países. Apesar de toda a segurança, mais uma vez
os hooligans compareceram e chamaram a atenção. Vendas de ingressos
controlada, cerveja com menos teor de álcool, “Robocops” nas ruas e
cooperação internacional, todas as precauções não foram suficientes para
impedir as manifestações dos torcedores ingleses. A situação chegou a um
ponto tão crítico que um dia após 450 hooligans ingleses terem sido presos
após ferirem 56 pessoas em suas manifestações de rua, o Comitê Executivo
da UEFA chegou a cogitar a expulsão da Inglaterra da competição.
Mesmo que esta ameaça não tenha se concretizado, o saldo final
foi péssimo para o futebol inglês, que tinha esperanças de sediar a Copa
2006. Tal realidade preocupou tanto a FA que esta “apelou” para o pri-
meiro-ministro Tony Blair, que, em audiência na FIFA, garantiu que uma
lei anti-hooligan estava sendo encaminhada ao Parlamento e exibiu um
filme politicamente correto em que imigrantes jogavam em um campo de
várzea. Para o ex-jogador Bobby Charlton, embaixador da candidatura da
Inglaterra - 2006, os hooligans foram um dos fatores que comprometeram
a possível vitória do país na disputa com a Alemanha. Segundo ele, se
os hooligans se sentem orgulhosos de seu país, têm uma forma bastante
curiosa de demonstrar.

242 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

m m m

Em 1989, na esteira das transformações promovidas por Gorba-


tchev, um vendaval derrubou os regimes comunistas instalados desde o final
da II Guerra Mundial no bloco soviético. Nos anos seguintes, o Pacto de
Varsóvia e o Conselho para Assistência Econômica Mútua (COMECON),
respectivamente base militar e econômica do bloco soviético, finalizaram
suas operações, enquanto a derrubada do Muro de Berlim e a consequente
aproximação das Alemanhas anunciaram um reordenamento no equilíbrio
de forças na Europa, condicionado também pela própria desagregação do
Império Soviético. Conduzida pelo conservador Helmut Kohl e consolida-
da no final de 1990, a reunificação da Alemanha apresentou aos alemães
orientais um auspicioso ganho econômico: a paridade monetária, o que, no
primeiro momento, parecia ser a solução de todos os problemas dos traba-
lhadores da parte oriental do país. Com o tempo, entretanto, os custos da
reunificação mostraram-se muito maiores do que se esperava, uma vez que
as importações dos bens de consumo destinadas à antiga Alemanha Oriental
acabaram por causar um declínio do superávit estimado na ordem de 43
bilhões de dólares (em 1991). Mais difícil, entretanto, seria medir o custo
social deste processo. Do outro lado da nova ordem econômica anunciada
com a reunificação, o desmonte da estrutura burocratizada da Alemanha
comunista, paralela à privatização de inúmeras empresas públicas, pôs
termo aos tradicionais subsídios estatais e acelerou um intenso processo de
desemprego. Ao final de 1991, uma inflação de 4,1% e uma expectativa de
crescimento muito sombria para quem precisava superar problemas urgentes
abriram caminho para o crescimento dos movimentos neonazistas, mobiliza-
dos especialmente contra os imigrantes. Na verdade, como em vários outros
países do leste europeu, o racismo e a intolerância em relação ao estrangeiro
não começaram simplesmente a partir da Queda do Muro de Berlim. Se tais
tendências vieram à tona com tanta violência neste momento, foi justamen-
te porque as condições estruturais já estavam presentes há algum tempo.
Neste sentido, o amplo universo de possibilidades suscitadas a partir das
experiências associativas das torcidas de futebol tornou-se um importante
instrumento de sociabilidade para aqueles que compartilhavam de ideias

Gilberto Agostino 243


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

xenófobas. Em outubro de 1987, uma partida disputada entre os clubes rivais


Berlin Union e Leipzig, na Alemanha Oriental, reuniu um número jamais
visto de hooligans e skinheads. A torcida do Berlin gritava coisas do tipo
“tenho orgulho de ser alemão” xingando os torcedores do Leipzig, clube
da Saxônia, de todas as formas possíveis. Um torcedor presente no estádio
aquela tarde declarou que mais de quatrocentos nazistas assistiam ao jogo:

Costumava ir a jogos de futebol todas as semanas e nunca


tinha visto tantos deles, em toda a minha vida. Todos os fascistas
de Berlim deviam estar lá. Foi um verdadeiro inferno e a polícia
perdeu o controle.5 

Tão logo a reunificação foi concretizada, o crescimento da intolerân-


cia e do racismo fez com que muitos episódios movidos por movimentos
de extrema-direita se multiplicassem. Na cidade portuária de Rostock,
muitos dos jovens que participaram do ataque a um abrigo de vietnamitas
foram identificados como pertencentes às torcidas organizadas sintonizadas
com o neonazismo, demonstrando claramente que os atos de violência destes
grupos não ficavam restritos às adjacências dos estádios. Nestes, obviamente,
a violência era uma constante não só entre torcedores rivais, como também
contra os jogadores negros que atuavam na Alemanha. Como reação a tais
atos, a Federação Alemã organizou uma campanha contra a xenofobia. Em
dezembro de 1992, todos os jogadores da primeira divisão entraram em
campo vestindo camisas nas quais se lia “Meu amigo é um estrangeiro”.
Para um analista, 1992 ficaria conhecido como o ano da direita, como
1968 havia sido o ano da esquerda. Na verdade, apesar da pertinência do
comentário, ninguém àquela altura podia prever o que viria em seguida. Em
1993, só na Alemanha, o número de atentados xenófobos foi mais de duas
vezes o que havia sido no ano anterior. Enquanto as fileiras do neonazismo
engrossavam, as autoridades começaram a atuar de forma preventiva. Foi
o caso, em 1994, do cancelamento do jogo entre Alemanha e Inglaterra,
marcado para o dia 20 de abril, no estádio Olímpico de Berlim. Dia de ani-
versário de Hitler, data com um valor simbólico especial para os neonazistas,
os organizadores do evento acabaram por temer que a partida pudesse con-
tribuir para explosões de violência por parte de grupos de extrema-direita.

244 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Em outros países europeus, onde o desmonte das bases do Welfare


State traziam à tona os velhos fantasmas conservadores, a escalada contra
os estrangeiros também ganhou projeção. E em meio a todos estes medos
que a nova ordem promovia, o ódio contra os judeus ressurgiu quase que
em toda a parte, mesmo nos países onde estes se apresentavam em número
muito reduzido, caracterizando o que Paul Hockenos classificou como
antissemitismo sem judeus6 . Neste contexto, na Holanda, torcedores do
Feyenoord Rotterdam colocaram uma bomba de fabricação caseira na
tribuna do Ajax Amsterdam, uma vez que consideram este clube represen-
tante da comunidade judaica. Ferindo dezenove pessoas, nove em estado
grave, os agressores estenderam a provocação nas arquibancadas, imitando
o barulho de gás com assobios, uma explícita alusão ao Holocausto.
Na Hungria, os protestos contra o MTK, clube fundado no fim do
século XIX com uma expressiva participação de segmentos judaicos,
assumiram uma ênfase marcadamente antissemita, principalmente com
o final do comunismo neste país. Hinos contra judeus e ciganos foram
entoados contra o clube pelos torcedores rivais do Ferencvaros, embora
o MTK há muito já tivesse perdido suas características originais, não
contando àquela altura com nenhum jogador judeu.

Ciganos conduzem os judeus!


Ciganos conduzem os judeus!
Eles são cúmplices! Eles são cúmplices!
Eles merecem! Eles merecem!
Câmaras de gás! Câmaras de gás!

Na Polônia, onde a questão do antissemitismo nunca foi completa-


mente resolvida durante a experiência socialista, as manifestações envol-
vendo posturas da extrema-direita e torcidas de futebol também ganhariam
relevância. Em fevereiro de 2000, o assunto ganhou evidência na mídia,
depois que torcedores do Widzew e do LKS, dois clubes de Lodz, pro-
moveram uma verdadeira batalha campal na cidade. Segundo os slogans
cantados pelos torcedores neonazistas do LKS, o

Gilberto Agostino 245


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

Widzew é uma aldeia judaica,


E Nós, do LKS, somos a tropa SS,
Somos a tropa SS

Após o jogo, apesar de a Prefeitura da cidade garantir que impediria


tal tipo de comportamento, os torcedores do LKS começaram a distribuir
panfletos contra os judeus, recebendo adesão mesmo daqueles elementos
de extrema-direita que não têm maior identidade com o esporte. Em um
dos panfletos apreendido pelas autoridades, lia-se: O Widzew tem torce-
dores em toda a Polônia porque, por azar, nem todos os judeus foram
exterminados por Hitler.

m m m

O termo ultra passou a ser utilizado em países latinos da Europa


para caracterizar o comportamento de torcidas organizadas, ganhando
bastante relevância no caso do denominado tifosi (expressão oriunda
de tifo), torcedor italiano mais exaltado. Neste sentido, em um primeiro
momento da análise, parecia natural aproximá-lo dos moldes já esboça-
dos pelos hooligans ingleses, embora tal abordagem tenha sido superada
diante das peculiaridades de cada uma dessas experiências. Na Itália, o
processo de evolução destes grupos teve uma dimensão bastante específica
ao longo da segunda metade do século XX, assumindo um perfil próprio
e terminando por transformar-se em modelo para movimentos em várias
outras regiões, notadamente em países mediterrâneos, como Espanha,
Grécia e Repúblicas da antiga Iugoslávia, além de áreas do sul da França.
A origem do ultras italianos remonta à polarização ideológica
decorrente do espectro político do país ao final da II Guerra Mundial.
O confronto entre as forças conservadoras, de um lado aquelas com um
expressivo recorte clerical, e do outro os grupos marcados por uma visão
de mundo baseada nos pressupostos comunistas, refletiu-se no universo
do futebol, condicionando, no final da década de 1960, a formação de
torcidas organizadas e, consequentemente, estimulando o conflito entre

246 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

elas. Diversos exemplos podem ser citados, como o Bologna – time de uma
região notadamente comunista, a Emilia –, em contraste com o Verona,
equipe que, tradicionalmente, expressava o conservadorismo da região de
Veneto. Um dos primeiros destes grupos, La Fossa dei Leoni (O Covil dos
Leões), fundado em 1968, reunia torcedores do AC Milan, sendo seguido
por uma série de experiências semelhantes em outros clubes. Estabelecidos
na Curva – congênere do Kop inglês – os ultras italianos estabeleceram
associações amplas entre torcedores com as mesmas tendências políticas,
não necessariamente oriundos do mesmo estrato social, e não necessa-
riamente do sexo masculino, o que possibilitou criar uma sociabilidade
muito mais ampla do que no caso inglês.
No final da década de 1970, o crescimento da violência destes
torcedores passou a se tornar um problema de grandes proporções
para as autoridades, principalmente depois da morte de um torcedor
antes do jogo Roma X Lazio, em 1979. Nos estádios as hostilidades
cresceram, com a utilização de um arsenal que contava desde facas
e barras de ferro até foguetes, lançados contra os torcedores rivais.
Seguindo as tendências políticas em curso, alguns grupos passaram
a se autodenominar Brigadas – alusão às Brigadas Vermelhas, que
marcaram o cenário político italiano naqueles anos, transformando
hinos comunistas em cânticos de torcida.
A partir dos anos 1980, a violência ultra alcançou estádios de cidades
menores, ganhando espaço também nos times da segunda e terceira divi-
sões, até então relativamente imunes aos “elitismos” dos grandes clubes.
Em muitos destes novos casos o perfil dos torcedores comportava pessoas
com formação superior, empregos estáveis e casamentos aparentemente
sólidos, seduzidos pela sociabilidade das torcidas em um momento de
apatia em relação à política convencional. Neste momento, como reação
às transformações estruturais que o país vivia, as manifestações contra
jogadores estrangeiros, favorecidos pela política de livre circulação de mão
de obra estabelecida pela União Europeia, começaram a se tornar cada vez
mais frequentes, passando a ser uma constante para times identificados com
a política conservadora. Neste quadro, a Lazio, time historicamente ligado
ao Fascismo, conseguiu assumir a liderança das manifestações racistas no

Gilberto Agostino 247


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

cenário futebolístico italiano nas duas últimas décadas. Dentre o conjunto


de seus torcedores, destaca-se um grupo autodenominado Irriducibili
(Irredutíveis), que ganhou projeção nos últimos anos ocupando o espaço
das tradicionais torcidas racistas do clube, como os Eagles Supporters e os
Vikings. Nas arquibancadas, os Irriducibili dominaram a Curva Norte do
Estádio Olímpico, após terem expulsado a pontapés os próprios torcedores
da Lazio que não compartilhavam das mesmas tendências conservadoras.
Tendências estas demonstradas por grandes suásticas, faixas provocativas
contra negros e judeus e italianos do sul, além de velhos cânticos fascistas
como a Giovinezza e Facceta Nera. Além do Nápoli, outro alvo especí-
fico é o time da Roma, não só pela rivalidade futebolística em si, como
também pela sua identificação com as tendências políticas de esquerda.
2001 foi um dos anos mais críticos no que diz respeito à intolerân-
cia no futebol italiano, registrando o maior índice de todos os tempos de
episódios envolvendo o racismo de determinados torcedores. Em diversas
partidas, torcedores da Lazio passaram por cima de uma legislação aprovada
no ano anterior que permitia ao árbitro de futebol interromper uma partida
em que fossem pronunciadas mensagens racistas, quer seja a partir de hinos,
slogans ou mesmo faixas. No jogo contra o principal rival, disputado em 29
de abril, foi exposta a faixa “Equipe de Negros, Corja de Judeus”, atacando
os jogadores brasileiros Cafu, Aldair e Antônio Carlos Zago, assim como
o francês Jonathan Zebina. Complementando as hostilidades, não só vaias
como também diversos sons sugerindo grunhidos de macacos.
A atitude desta fração da torcida, entretanto, vista na televisão por
cerca de um bilhão de pessoas no mundo todo, custaria muito caro à equipe
da Lazio. Além de interditar o Estádio Olímpico – o que significou perder
o mando de campo do jogo seguinte –, o clube foi multado em 26,7 mil
dólares pela Liga Italiana. Tais imposições levaram o presidente do clube,
Sergio Cragnotti, a uma postura inédita. Pela primeira vez que se tem re-
gistro, um dirigente de clube lançou um pedido tão veemente à polícia para
que punisse seus próprios torcedores. Por outro lado, Cragnotti anunciou a
contratação de um jogador negro e um judeu, esperando que tal iniciativa
representasse uma prova de que a direção não compactua com as posições
racistas de parte de seus torcedores. Apesar da “promessa”, a questão não
seria resolvida tão simplesmente assim. Poucos dias mais tarde, ainda no

248 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

calor da discussão, o site da Lazio foi “invadido” por hackers brasileiros,


torcedores do Corinthians. Estes, alegando vingar os jogadores Cafu e
Aldair, conseguiram mudar a configuração da página de abertura do site
da equipe italiana, www.sslazio.it, substituindo o símbolo da equipe – a
águia nazifascista – pelo brasão corinthiano.
Além de enfrentar as grandes manifestações racistas das torcidas,
a grande questão da violência no futebol italiano reside na dificuldade de
combater uma nova geração de torcedores agressivos, favorecidos pelas
suas próprias estruturas organizacionais, que possibilitam que escapem
das ações repressivas. Abandonando – quando preciso – as bandeiras,
cores e outros símbolos reveladores da identidade, muitos destes grupos
se movimentam de carro, evitando os usuais transportes de massa, sobre
os quais o controle das autoridades acaba sendo mais atuante. Esta nova
realidade coincide com a perda de hegemonia de grupos mais antigos,
dando espaço a um torcedor mais autônomo, que atua de forma mais
perigosa, pois acaba sendo mais facilmente encoberto em seu isolamento.
No final do século, foram chamados de cani schiolti (cães errantes), e não
se limitam a enfrentar grupos extremados de torcidas rivais, atacando até
mesmo o chamado torcedor clássico, geralmente em uma ação rápida e
facilmente dispersiva, o mais longe possível das forças policiais. Em certa
escala, representam a chegada da “guerra assimétrica” ao universo das
relações entre autoridade X violência nos estádios italianos.

m m m

Na Argentina, desde o início do século XX, notícias anunciando


atritos entre torcedores violentos – denominados barrabravas – come-
çaram a ser amplamente divulgadas na imprensa. Embora a disputa entre
o Boca Juniors e o River Plate tenha sido historicamente o fator de maior
tensão entre torcidas do país, com o primeiro grande confronto do pro-
fissionalismo ocorrendo em 1931, não são nada desprezíveis as inúmeras
rivalidades entre clubes vizinhos que disputam espaço na primeira divi-
são. Em Avellaneda, merece destaque os atritos entre o Racing Club e o
Independiente. Já em Rosario, a disputa é polarizada entre o Newells Old

Gilberto Agostino 249


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

Boys e o Rosario Central, enquanto em La Plata as tensões apresentam-


-se entre as torcidas do Gimnasia y Esgrima e do Estudiantes de la Plata.
O levantamento realizado pelo jornalista Amílcar Romero apurou que,
entre 1924 e 1957, 12 pessoas foram mortas nos estádios argentinos em de-
corrência de confrontos entre torcedores. Para Romero, a partir deste período,
situações envolvendo não apenas choques entre torcidas, como também entre
estas e as forças repressivas se radicalizariam no país, coincidindo com o
impacto sociopolítico da queda de Perón (1955). Neste momento, o modelo
econômico estabelecido pelo presidente, Arturo Frondizi, favorecendo as
inversões do capital internacional, gerou protestos de setores nacionalistas,
insuflando manifestações de estudantes em várias partes do país. 1958, ano
marcado por muitas manifestações neste sentido, apresentou uma postura
cada vez mais violenta de policiais e militares, o que acabaria também tra-
zendo consequências para o universo dos torcedores, já que muitos estavam
envolvidos com a política partidária e passaram a ser vistos não como tor-
cedores violentos que precisavam ser enquadrados na lei, mas inimigos em
potencial do estado. Neste ano, Mario Linker, torcedor do Boca Juniors, foi
morto em uma ação repressiva da polícia, abrindo caminho para uma série
de ações semelhantes que marcariam o futebol argentino nos próximos anos.
Em 1960, o jogo entre Boca Juniors e Independiente terminou em confusão,
com as tensões crescentes entre as torcidas sendo interrompida a tiros pela
polícia, causando uma correria que deixou dezenas de feridos. Com a queda
de Frondizi, em 1962, a instabilidade política no país aumentou expressi-
vamente, tornando as ações policiais cada vez mais radicais, notadamente
contra os inimigos políticos do governo. Paralelamente, a violência crescente
fora de campo coincidia com as desastrosas campanhas do futebol argentino
no cenário internacional, com a perda de hegemonia na América do Sul e os
reveses nas Copas da Suécia e da Inglaterra, o que, por conseguinte, tornava
o próprio jogo argentino também mais violento.
Em abril de 1967, Racing e Huracán disputavam uma partida que
terminou mais uma vez em morte. Antes do jogo, barrabravas do Hurácan
exibiam provocativamente bandeiras do time inimigo que haviam sido
obtidas à força nas imediações do estádio. Durante a partida, torcedores do
Racing foram atacados em uma briga de arquibancadas. Héctor Souto – ca-

250 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

sualmente primo de famoso jogador Roberto Perfumo –, de apenas 15 anos,


foi literalmente massacrado por treze torcedores do Hurácan, morrendo antes
mesmo de chegar à enfermaria do estádio. Com a repercussão na mídia, o
governo agiu rápido, procurando demonstrar força. Os agressores foram
identificados por testemunhas, julgados e punidos, embora, como muitos
deles fossem menores, não chegassem a ser sentenciados com a prisão.
À medida que a agitação política argentina ganhava maiores pro-
porções, o ciclo de violência no país atingia uma dimensão ainda mais
ampla. Protestos estudantis em 1968, acompanhando o tom do que ocorria
em Paris à mesma época, foram tratados com extremo rigor, contribuindo
para a violência nos estádios. Este foi o ano de uma das piores tragédias
envolvendo torcedores do Boca Juniors e do River Plate, custando a vida
de mais de setenta torcedores que assistiram à partida no Monumental de
Nuñez. Por outro lado, grupos de guerrilha urbana foram articulados, tra-
zendo novas realidades para o espectro político. Os montoneros viam nos
estádios lotados – e na prévia politização de torcedores – a possibilidade
de angariar simpatizantes para a causa, o que não passou desapercebido
pelas autoridades. Depois de 1976, quando a ditadura militar foi instau-
rada, bandeiras dos montoneros foram vistas em alguns jogos, gerando
investigações especiais por parte dos agentes da repressão. Em um des-
tes momentos, num encontro entre Estudiantes de la Plata e Huracán,
quando grupos de esquerda procuraram exibir os símbolos da guerrilha
nas arquibancadas, a ação policial foi rigorosa, levando à morte de um
torcedor do Huracán. Existem denúncias de que durante o ciclo militar
(1976-1983) algumas mortes em estádios foram, na verdade, álibis para
disfarçar crimes políticos. Apesar da repressão crescente, durante todo o
período dos generais, a relação entre a reação à ditadura e o universo dos
torcedores continuou marcante. Após a Copa de 1978, quando a segurança
nos estádios argentinos relaxou um pouco, veio das arquibancadas um
grito de repulsa ao governo:

Vai acabar!
Vai acabar!
A Ditadura Militar!

Gilberto Agostino 251


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

Com a derrubada da ditadura, em 1983, a violência no futebol


argentino não desapareceu, ganhando, entretanto, novos sentidos na
ordem democrática. A crise econômica em curso acentuou o clima de
rivalidade entre os clubes, trazendo à tona uma série de hostilidades e
preconceitos, antes atenuados pelo clima de fechamento político. Assim,
torcedores do Chacarita passaram a repetir seus infindáveis cânticos
antissemitas contra o rival Atlanta, clube da comunidade judaica. Apesar
de ganhar muita repercussão em torcidas menores – nas quais o senti-
do de identidade é mais forte –, a questão envolve também os grandes
clubes. Em 1982, quando o Boca Juniors foi jogar contra o Quilmes –
time representativo da cidade onde se encontra a mais famosa fábrica de
cerveja da Argentina –, os torcedores locais trataram os visitantes com
hostilidade. Tal postura foi incentivada pelo chefe da torcida organizada
do Quilmes, Negro Thompson, um dos maiores representantes do estilo
barrabrava de toda a história do futebol argentino. Durante o jogo, os
torcedores do Quilmes cantaram nas arquibancadas:

Você precisa de duas coisas


Para ser torcedor do Boca
Um barraco na favela
E um disco chamamé

Expressando características que demarcam o perfil estereoti-


pado do torcedor do Boca – elemento das camadas populares, mais
paraguaio que argentino (chamamé) – os aficionados do Quilmes repro-
duziram preconceitos que estavam enraizados em outras torcidas. No
jogo da volta, em janeiro de 1983, quando o Boca recebeu o Quilmes
em Buenos Aires, um gigantesco aparato policial foi montado para
coibir conflitos dentro e fora do estádio, o que não impediu confrontos
e a morte de um torcedor.
Por outro lado, com o estabelecimento da ordem democrática, muitos
barrabravas que controlam torcidas organizadas passaram a ter ligações
cada vez mais expressivas com partidos políticos, sindicatos e clubes. Em
alguns casos articulam campanhas de apoio ou oposição a este ou aquele

252 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

candidato. Em outros, chegam a cobrar propinas de dirigentes e até mesmo


de jogadores, pressão que até mesmo um jogador do porte de Maradona
chegou a sofrer. Um destes casos, entretanto, ganhou notoriedade. Em 1994,
José Barrita, apelidado de El Abuelo, chefe da torcida organizada do Boca
Juniors – La Doce (A Doze) –, foi preso, acusado de extorsão de dirigentes
e associação ilícita. Barrita tinha em seu currículo a organização de uma
investida contra torcedores ingleses na Copa do México, em 1986, quando
uma bandeira da Inglaterra foi “expropriada” pela Doce, permanecendo
durante alguns anos como um troféu nas arquibancadas da Bombonera.
Na Copa de 1998, dezenas de barrabravas marcaram presença
nas cidades por onde a Argentina passou. Um pouco antes, um “pacto
de cavalheiros” tinha sido firmado entre a AFA e os dirigentes do país,
comprometendo-se a erradicar os barrabravas do futebol argentino.
Entretanto, principalmente da parte dos últimos, o acordo ficou só na
palavra. Afinal, tais torcedores podem ser extremamente úteis como
cabos eleitorais ou mesmo instrumentos de pressão contra técnicos e
até jogadores. Por isso, muitos deles foram para a França com todas
as despesas de passagem e estadia bancadas por dirigentes. Um des-
tes exemplos foi o presidente do Nueva Chicago, Luis Barrionuevo,
ligado no plano político a Carlos Menem, que pagou todos os gastos
de pelo menos dez torcedores. Já os Defensores Belgrano contaram
com representantes que integram também o partido ultranacionalista
Nueva Argentina. Chegando a receber apoio da Frente Nacional de
Jean Marie Le Pen, que garantiu hospedagem aos argentinos, estes
marcaram sua passagem na Copa distribuindo panfletos que defendiam
a posse argentina das ilhas Malvinas. Não por acaso o jogo Argentina
X Inglaterra disputado em 30 de junho em Saint-Etiànne foi precedido
por um verdadeiro clima de guerra, com hooligans e barrabravas se
enfrentando na praça Jean Jarrés, no centro da cidade.
Em 1999, a espiral de violência que varreu o futebol argentino
interrompeu mais de uma vez o campeonato nacional, colocando em
evidência o juiz Victor Juan Perrotta, responsável pelas paralisações.
Ex-miltante peronista, Perrotta exigiu maior segurança nos estádios
e aplicou pesadas indenizações aos clubes e até mesmo na AFA por

Gilberto Agostino 253


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

danos físicos causados a torcedores. Criticado por setores da imprensa


e por dirigentes, ambos acumulando prejuízos imensos a cada inter-
rupção dos jogos, o juiz acabou sendo odiado pelas torcidas de forma
geral. As duas maiores do país, a do Boca Juniors e a do River Plate,
sempre discordam em tudo, mas, neste caso, ambas posicionaram-se
contra as decisões do Judiciário, transformando Perrota em inimigo
comum. Mesmo nestas circunstâncias, entretanto, a rivalidade entre
os clubes não foi atenuada. Nos superclássicos disputados em 1999,
os torcedores do River cantam a plenos pulmões:

Boca, no rompas las pelotas


Que vos sos de la banda
La banda de Perrota

Do outro lado das arquibancadas, os torcedores do Boca respondem:

Che, bostero vigilante


Andate com Perrota
A la concha de tu madre

Apesar de toda a pressão das autoridades contra os barrabravas –


importando técnicas policiais inglesas utilizadas no combate aos hooligans
– o problema da violência no futebol argentino está longe de ser resolvido.
Mesmo com os avanços na legislação para conter os torcedores violentos
– conhecida como Lei De la Rúa –, promulgada em 1985 e reelaborada
em 1993, os esforços não foram suficientes para estancar o problema.
No que diz respeito à manipulação política dos torcedores, a crise
econômica e política que marcou a virada de 2001 para 2002 apresentou
novos horizontes para a questão. Adiando a final da Copa Mercosul e do
torneio Clausura, além de colocar em risco o início da Copa Libertadores
da América, a crise no país não diminuiu o interesse da população pelo
futebol, embora tenha demonstrado o desgaste da política convencional.
Por outro lado, os problemas que afetaram o país não chegaram nem mes-
mo a arranhar a projeção do esporte como um dos valores permanentes

254 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

da expressão nacional. Pelo contrário, em uma crise de referenciais tão


generalizada no país, em que pela primeira vez as grandes pressões da
sociedade não são coordenadas por partidos políticos, a seleção argentina
se transformou em um dos poucos motivos de orgulho nacional. Neste
sentido, a camisa azul e branca pôde ser vista em todos os panelaços e
demais manifestações de rua, transformando-se em um referencial de
nacionalidade acima de qualquer outra força institucional.

m m m

À medida que os episódios envolvendo hooligans – ou seus congêne-


res em outros países – ganharam maior visibilidade, surgiu na Europa uma
série de movimentos visando desmoralizar o ódio envolvendo torcidas de
futebol. Revistas, associações (como a Aliança dos Torcedores de Futebol
Antifascistas), encontros e festas procuravam recuperar os valores do fair
play, dentro e fora do gramado, destacando-se, na Inglaterra, o Projeto
Kick Out (Chute para Fora), empenhado em combater o racismo no meio
futebolístico. Na Itália, o Projeto Ultra, organização que recebeu apoio de
várias comunidades de todo o país, busca, desde sua criação nos anos 1990,
criar uma série de mecanismos que possibilitem a repressão aos torcedores
violentos. Em agosto de 2000, em Zurique, o mundo do esporte assistiu
ao lançamento da Fundação Daniel Nivel, empenhada em promover uma
grande campanha contra a violência no futebol. Tendo como presidente
de honra Joseph Blatter, e contando com o apoio das federações alemã
e francesa, o nome da fundação é uma homenagem ao policial que foi
atingido na Copa da França pelos hooligans alemães na cidade de Lens.
A fundação buscará se valer da capacidade organizacional não só da
FIFA, como de todas as federações que venham a se filiar para promover
campanhas, principalmente a partir de jogos beneficientes – visando não
só prevenir manifestações hooligans, como também a garantir assistência
às vítimas de torcedores violentos, aonde quer que estes atuem.
Neste contexto de discussão em relação à violência das torcidas, os
próprios meios de comunicação foram acusados de promover e alimentar

Gilberto Agostino 255


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

permanentemente todo o tipo de alienação através do esporte. Em um


relatório do Conselho da Europa, apresentado em 1988, a imprensa foi
acusada de amplificar o fenômeno hooligan, criando expectativa nos
próprios torcedores violentos – um tipo de profecia autocriadora –, além
de “encomendar” imagens de violência. Dez anos mais tarde, intelectu-
ais de diversos países do mundo reunidos durante a Copa da França, em
1998, discutiram questões como racismo e violência no Mundial, voltan-
do à questão e apontando a mídia como coprodutora do hooliganismo.
Em relação aos episódios envolvendo torcedores ingleses em Marselha,
constatou-se que a imprensa francesa deu mais ênfase à violência das
torcidas do que às partidas de futebol, chegando-se à conclusão de que a
mídia vive o paradoxo de criticar tais ações, embora acabe incentivando-as,
ao divulgá-las amplamente. Para o mais importante intelectual argentino
ligado a pesquisas neste campo, Eduardo Archetti, o problema é ainda mais
grave, uma vez que a mídia difunde sinais de identidade entre torcedores
sem vínculos entre si, evocando fetiches e preconceitos nacionais e raciais,
criando estereótipos da nacionalidade que contribuem para fazer crescer a
sensação da diferença valorativa e, consequentemente, a xenofobia. Diante
de tais considerações, alguém se deu ao trabalho de procurar nos jornais
franceses as menções feitas a torcedores e jogadores de outros países antes
e durante o Mundial de 1998, encontrando de fato associações do tipo: o
austríaco é vigilante, o irlandês é voluntarioso, o basco é sólido, e assim
por diante, prática não absolutamente nova – como já se vira no Mundial
de 1978, na Argentina –, mas cada vez mais frequente e independente
do sistema político vigente. Em 1999, como resultado dos incidentes
promovidos na Copa da UEFA, quando dois torcedores foram mortos, a
carga contra a imprensa aumentou. Gerhard Aigner, chefe executivo da
entidade, abriu uma investigação contra jornalistas sensacionalistas, logo
depois de torcedores ingleses e turcos terem deixado 19 feridos e mais de
40 presos na Dinamarca, na final da Eurocopa 1999-2000. Markus Studer,
outro executivo da entidade, acredita que neste plano as televisões têm
uma grande cota de responsabilidade. Segundo ele, por que as câmeras
de TV estão sempre na hora em que a primeira garrafa ou a primeira
pedra é atirada? Por que os torcedores reagem quando veem os jorna-
listas filmando-os?

256 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

Por outro lado, em meio a uma espiral de violência que parece


incontrolável, algumas notícias apresentam dados novos e otimistas. Na
Dinamarca, em 1984, formou-se um grupo com um nome bastante curioso,
os Roligans, expressão oriunda da palavra rolig, calma, em dinamarquês,
que alcançou grande repercussão na mídia, sendo considerados a antítese
dos hooligans ingleses. Integrantes da Associação Roligan Foreningen, tais
torcedores são geralmente trabalhadores qualificados, na faixa de 30 anos
– contra 23 anos dos hooligans –, contando com um número expressivo
de mulheres, uma das marcas registradas do movimento. Presentes em
várias competições europeias, há muito os roligans divulgam mensagens
pacifistas, sendo facilmente reconhecidos pelos rostos coloridos – muitas
vezes com as cores da equipe adversária –, pelas músicas alegres, ban-
deiras chamativas e coreografias, transformadas em signos da possível
alteridade nos estádios. Em 1984, no campeonato europeu da França, a
UNESCO reconheceu a postura dos roligans, concedendo a estes torce-
dores o troféu Fair Play.
Cada vez mais, fica claro para os observadores do fenômeno hoo-
ligan que este não é majoritário entre aqueles torcedores que frequentam
os estádios. No mundo todo, manifestações pacíficas envolvendo músicas
e gestos nas arquibancadas – como a OLA, por exemplo – sugerem que
é possível acreditar na capacidade de conciliação do esporte, apesar das
rivalidades e diferenças. Em um jogo do campeonato inglês, o famoso
escritor Salman Rushdie, autor do polêmico Versos Satânicos, livro que
levou sua cabeça a prêmio pelo governo do Aiatolá Khomeini, ciceroneava
na Inglaterra o não menos famoso escritor peruano Mario Vargas Llosa,
interessado em ver de perto a vibração do futebol inglês. No estádio do
Tottenham Spurs – time de Rushdie – Vargas Llosa ficou maravilhado ao
ouvir a cantoria dos torcedores do Spurs: One team in Europe; There’s
only team in Europe (Um time na Europa; Só existe um time na Europa),
tendo como melodia a conhecida canção Guantanamera. O escritor latino-
-americano viveu a sensação de uma experiência comum com torcedores
tão diferentes, algo semelhante ao que ocorreria no Mundial de 1998, em
que o mundo assistiu ao inesquecível espetáculo em torno da Marselhesa,
entoada com vibração em várias oportunidades pela maioria dos torcedo-

Gilberto Agostino 257


Torcedores e Nova Direita: Violência e (Des)Controle

res presentes nos estádios. Apesar da cínica satisfação dos representantes


da extrema-direita francesa, a Marselhesa não foi tratada simplesmente
como um hino francês, mas, sim, como uma experiência possível a todos,
sendo cantada por torcedores de diversos países. Um momento mágico,
em que o futebol Fin de Siècle foi capaz de reunir elementos da diversi-
dade global, criando uma comunidade imaginada para além de fronteiras
e nacionalidades.

Notas

 1
Cf. Peter Gay, O cultivo do Ódio, op.cit., 448.
 2
Cf.Eduardo Galeano, Futebol a Sol e à Sombra, op. cit., p. 189.
 3
Patrick Mignon, La Passion du Football, Paris: Editions Odile Jacob, 1998.
 4
Folha de S. Paulo, 12 de julho de 1998.
 5
Cf. Paul Hockenos, Livres para Odiar, São Paulo: Scritta, 1995, p.99
 6
Paul Hockenos, Livres para Odiar, op.cit., p. 313-344.

258 Gilberto Agostino


1937. Jogadores do Arsenal capturam a câmera na primeira retransmissão da BBC.
Vencer ou Morrer

CONCLUSÃO

Futebol, Mundialização e Mídia

Nós, jogadores, somos frangos de granja: mo-


vimentos controlados, regras rígidas, comportamentos
fixos que devem ser sempre repetidos.
(Paul Gascoigne, jogador inglês)

Futebol sem drible fica sem graça. É como poesia


sem metáfora.

(Armando Nogueira)

Gilberto Agostino 261


Futebol, Mundialização e Mídia

Jacques Attali, em seu controverso Dicionário do Século XXI, esta-


belece um argumento instigante em relação ao futuro do futebol. Segundo
o autor, o esporte vai perder sua identificação com o sentimento nacional
ou regional, sendo completamente controlado não só pelas grandes corpo-
rações econômicas, como também pela mídia, com sua dinâmica vinculada
às exigências de uma programação televisiva intensa, capaz de potenciali-
zar toda a emoção e a violência do jogo em um espaço concentrado entre
um comercial e outro. Possível ou não, a “experiência” proposta por Atalli
se coaduna perfeitamente com o processo de espetacularização do futebol
promovido ao longo de todo o século XX, mas de fato acelerado nas suas
últimas décadas, acompanhando pari passu as sucessivas revoluções tec-
nológicas que marcaram o período. As expectativas já apresentadas para
a Copa de 2002 e as projeções para 2006 indicam que não há nenhuma
tendência em vista de que tal processo seja atenuado no século XXI.
Um olhar para o passado nos faz ver que o momento capital da de-
colagem da interação futebol-mídia foi a Copa da Suíça em 1954, tendo
como destaque o desempenho de um meio que marcaria indelevelmente o
destino do esporte daí em diante: a televisão. Genebra, sede da União Euro-
peia de Radiodifusão, já havia coordenado, dois anos antes, a transmissão
colorida da coroação da Rainha da Inglaterra para cinco países europeus.
Com o Mundial, entretanto, evento marcado por interesses muito mais
amplos, o público consumidor das imagens do futebol possibilitava uma
cobertura ainda mais expressiva. Marcel Bezançon, jornalista suíço, foi o
responsável pela transmissão dos jogos para oito países europeus. Era o
nascimento da Eurovisão e o encerramento da Era de Ouro do Rádio, pelo
menos em relação às transmissões esportivas. Estas haviam sido por um
bom tempo praticamente um monopólio dos radialistas, que desfrutavam
da onipotência em relação ao que acontecia nas quatro linhas. Um dos
momentos deste grand-finale de tão fascinante capítulo da história do
rádio transcorreu no Brasil, em 1 de abril de 1951, quando uma emissora
paulista transmitiu um jogo fictício entre São Paulo e Milano, aproveitando
a excursão do time brasileiro à Itália. Partida que, simplesmente, não foi
realizada, pelo menos naquela data, a transmissão imaginária, ao melhor
estilo Orson Welles, foi mantida ao longo dos noventa minutos, permeada

262 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

com todas as variáveis possíveis e com um resultado chocante, para que


o jogo não passasse desapercebido: 4X0 para o time italiano. Episódio
marcante da interação Esporte-Mídia-Público, seria lembrado por alguns
como “O Jogo da Mentira”.
Na Suécia, em 1958, transmissões televisivas foram realizadas para
quase todos os países da Europa, enquanto outros continentes podiam
assistir aos jogos com um certo atraso, geralmente algo em torno de 24
horas. Em 1966, na Inglaterra, as redes de televisão começaram a pagar
direitos de transmissão, já operando satélites artificiais que possibilita-
vam que jogos ao vivo fossem vistos por 2 bilhões de pessoas. Só a final
entre Inglaterra X Alemanha mobilizou trinta e seis países e cerca de 400
milhões de telespectadores.
Nos Mundiais seguintes, tais números não parariam de crescer,
enquanto as receitas envolvendo direitos de transmissão tornavam-se uma
das principais formas de arrecadação da maioria dos clubes, alimentando
um carrossel cada vez mais frenético de novas competições, condicionando
os horários dos jogos às exigências da programação. Na Copa do México,
em 1986, algumas partidas foram realizadas ao sol de meio-dia, uma lógica
que demonstrava claramente o quanto o esporte em si já parecia estar em
um segundo plano diante da potencialidade do produto futebol. Foi a partir
deste momento que também a avalanche da propaganda invadiu todos os
espaços do gramado, da camisa dos jogadores às placas publicitárias. A
tendência se acentuaria nos anos seguintes, à medida que todas as zonas
geográficas do globo começavam a participar das retransmissões dos
jogos das Copas.
Paralelamente a esta aceleração do impacto televisivo, homens da
mídia passaram a se envolver com o universo futebolístico de uma forma
tão intrínseca que se tornou quase impossível perceber a tênue linha de
demarcação destas esferas. Na França, a associação entre o Paris Saint-
Germain e uma rede de televisão deu cara nova ao clube. Na Itália, o
presidente, Silvio Berlusconi, tornou-se o exemplo mais notório e radical
desta interação ao final do século XX – embora a prática estivesse disse-
minada no mundo todo – desde a Televisa no México até as redes asiáticas
a transmitir o mundial de 2002, favorecidas pelas novas opções criadas

Gilberto Agostino 263


Futebol, Mundialização e Mídia

com o sistema pay-per view, possibilitando toda uma gama de opções para
além dos canais convencionais.
Além disso, o futebol viveu também, e com toda a intensidade, a
espiral das grandes transformações promovidas pela Revolução Microe-
letrônica e Digital, não escapando da absorção tentacular de um mundo
ligado em rede, embora as primeiras experiências neste universo tenham
causado grandes surpresas até mesmo à FIFA, sempre inteirada em rela-
ção às novidades tecnológicas que despontavam à sua volta. A entidade
demorou a entender a força, por vezes incontrolável, da Internet, o que
ficou bastante claro no episódio que envolveu a homenagem ao craque
do século, realizada em 2001. Havia sido adotado um critério para a es-
colha envolvendo a opinião dos internautas, que deveriam votar em Pelé
ou Maradona. Com a vitória do argentino, entretanto, a FIFA teve que
desdobrar o protocolo para também homenagear o brasileiro, que havia
sido escolhido praticamente de forma unânime por entrevistados ligados
ao mundo do futebol. Ainda em 2001, um outro episódio apontara um
caminho da interação futebol-rede, não muito distante do que já ocorrera
anteriormente com a televisão. Na Alemanha, um clube tradicional como
o Hamburgo alugou por cinco anos o nome de seu estádio para a empresa
norte-americana America Online, uma transação de quase 13 milhões de
dólares, recurso fundamental para estabilizar sua enorme receita.
O Mundial de 2002 teria a oportunidade de ser a primeira Copa do
Mundo a ser transmitida virtualmente pela Internet, alimentando especu-
lações no mundo todo. Entretanto, tal possibilidade foi frustrada porque
a empresa alemã que comprou os direitos de negociação das imagens do
Mundial, a Kirch, rejeitou as propostas para transmitir a Copa em rede,
preferindo priorizar contratos com a televisão. Nesta decisão, a dimensão
técnica foi um aspecto que também pesou, uma vez que a transmissão
ao vivo de um evento com a grandiosidade da Copa do Mundo parecia,
pelo menos até 2002, uma tarefa acima dos limites da própria rede, o que
comprometeria decisivamente a qualidade das imagens. Mesmo com tal
limitação, o portal Yahoo!, contando com a procura dos países ocidentais,
desfavorecidos com o fuso horário, estabeleceu uma parceria com a FIFA,
oferecendo um serviço de fornecimento das imagens dos melhores mo-

264 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

mentos das partidas para algumas horas depois dos jogos – um serviço,
aliás, no qual muitos clubes investiram na virada do Milênio. No dia 23
de abril de 2001, a partida Liverpool X Manchester United bateu o recor-
de de acessos ao site do liverpoolfc.tv, onde o assinante recebeu o jogo
completo apenas quatro horas depois de sua realização.
Com tal escalada frenética, não foram poucos os especialistas que
apontaram para os perigos desse processo ininterrupto de espetaculariza-
ção do futebol. Talvez o mais evidente de todos seja a transformação do
esporte não só em exercício de produtividade – cronometrado, rankeado,
tabelado –, como também em um manufaturado tecnológico e, portanto,
mero produto de propaganda, exigindo-se dele e de seu público respostas
que já não estão no jogo em si, mas no mercado, na televisão ou na rede.
Desse processo poucos conseguirão sair ilesos, nem mesmo os superatletas
multimilionários, hoje transformados em paradigmas do self-made man
pós-moderno. Para o sociólogo Domenico de Massi, principalmente eles
serão tragados pelos dilemas da sociedade pós-industrial:

O esporte não escapa desses dilemas. Infelizmente, no estado


atual das coisas, o esporte me parece mais encaminhado para a
estrada do mercantilismo do que para aquela da sabedoria. Quanto
mais os atletas ganharem, mais serão prisioneiros da espiral consu-
mista, incapazes de crescer equilibradamente no corpo e na alma.
Por isso,...tornar-se-ão veículos de desequilíbrio, de alienação, de
infelicidade.1 

Premido por tais circunstâncias, não é nenhum exagero afirmar que


são muitos os desafios que se apresentam ao futebol no século XXI – e
não simplesmente em termos que envolvam esquemas táticos ou técni-
cos. Em relação a estes, sempre foram encontradas saídas mais ou menos
criativas, mais ou menos revolucionárias. A questão é que há muito tem-
po um grande jogo de futebol é aquele que foi cercado pela publicidade
e não simplesmente o que promoveu as jogadas mais espetaculares, os
lances mais emocionantes, os gols mais bonitos. Um retrospecto das úl-
timas Copas demonstra que o torcedor vem recebendo muito pouco dos
eventos futebolísticos propriamente ditos, predominando doses cada vez

Gilberto Agostino 265


Futebol, Mundialização e Mídia

maiores de espetacularização midiática que antecipam as percepções so-


bre o jogo, os seus atores e a ação das torcidas, ferindo em larga medida
a sua espontaneidade. O que parece mais assustador em tal processo é a
perda daquele fascínio que Nelson Rodrigues dizia ter o futebol, quando
interrogado sobre seu enigmático segredo. Dizia o dramaturgo que aquilo
que todos procuravam em uma partida de futebol – da pelada ao grande
clássico – era simplesmente a poesia, ou seja, a possibilidade de recriar
e dar sentido a um evento, a abertura para o imprevisível, o descontrole
relativo sobre aquilo que se pretende alcançar.
Para o bem ou para o mal, justamente por ser demasiadamente
humano, o futebol corre o risco de cair – se já não o fez – em uma espiral
de alienação e consumo tal qual boa parte do mundo globalizado. E as
provocativas projeções de Jacques Attali talvez não estejam tão longe
da realidade – quem sabe até ampliadas com a criação de uma geração
de superatletas produzidos a partir do projeto GENOMA, reelaborando,
assim, os sonhos eugenistas que pareciam sepultados ao final da II Guerra
Mundial. Ou então um campeonato em que só sejam permitidas inscrições
de atletas dopados, testando os limites dos homens e das drogas, em que
doses cada vez maiores de violência seriam permitidas, transformando o
jogo em um gigantesco Rollerball. E como tudo é possível, em um mundo
em que a televisão promete “emoções reais” – com homens e mulheres
competindo alucinadamente por dinheiro e fama (aqueles poucos minutos
que alguém mencionou em mansões-prisões ou paraísos naturais) –, quem
se arriscaria a duvidar que o futebol venha a ser ainda mais encenado,
reticulado, transformado, enfim, em uma grande produção nos moldes
de Hollywood? Astros – ainda não estrelas, é verdade – diante de câmeras
cuidadosamente posicionadas, exibição de contratos milionários e sonhos
de sucesso individualizado, bastidores efervescentes, sendo o espontâneo
deixado de lado em favor de roteiros cuidadosamente articulados por
especialistas...
Talvez seja possível resistir a esta estandardização do jogo, da
mesma forma que é possível resistir à extrema aceleração que o mundo
globalizado nos impõe, tornando-nos seres passivos e irreflexivos, o que
um historiador recentemente chamou de síndrome do loop,2  tomando a

266 Gilberto Agostino


Vencer ou Morrer

metáfora da montanha-russa e seus efeitos em nossos corpos e mentes


quando submetidos às suas curvas mais acentuadas. Nesse sentido, o tempo
histórico é uma ferramenta fundamental, pois nos permite, no mínimo,
perceber que nenhuma sociedade está condenada a ser o que é, imune ou
refém às suas próprias contradições e desajustes. Em um cotidiano voltado
para o consumo veloz de eternos presentes vendidos em écrans, mais do
que nunca a História nos serve para deseternizar o cotidiano, demonstrar
o encanto criativo da capacidade humana de criar com igual intensidade
o voo, a torrente e a corrente...
Longe de ser apolítico, o futebol serviu em diferentes contextos
tanto contra os poderes opressivos quanto como veículo para ações
revolucionárias. Seria ingênuo enxergar nele neutralidade. Das origens
modernas à globalização, pelos cinco continentes, foram pontuados alguns
momentos em que o jogo serviu desde os ditadores mais sanguinários,
passando pelos políticos mais oportunistas, até os ideais mais nobres em
busca da liberdade. Portanto, com uma visão unidimensional sobre o
fenômeno, será impossível pensar de forma mais crítica nossos próprios
desafios e acreditar em nossos infinitos horizontes. Tal reflexão permitir-
nos-á repensar o que de fato esperamos em relação ao mundo e – por que
não? – em relação ao futebol. No que diz respeito a ele, não há dúvida:
queremos reencontrar a sua poesia...

NOTAS

 1
Jornal do Brasil, 16 de setembro de 2001.
 2
Nicolau Sevcenko, A corrida para o século XXI: no loop da montanha-
-russa, São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Gilberto Agostino 267


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