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O ANJO TORTO
ESQUERDA (E DIREITA) NO BRASIL
editora brasiliense
Copyright © by Emir Sader, 1995
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reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia da editora.
ISBN 85-11-14002-6
95-1086 CDD-324.10981
. '
~
"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."
(Carlos Drummond de Andrade)
Sumário
Introdução..... ............................................13
DA SALVAÇÃO À DANAÇÃO
A esquerda fica à esquerda............. 21
As surpresas da toupeira................ 37
A guerra que era fria........ ......................... 47
O assalto ao céu ........................................ 53
A descida aos infernos................... 57
Introdução
vor dos 20% do hemisfério norte e contra as desigualdades são um fatalismo, que é
os 80% do hemisfério sul, que buscam tra- preciso aceitá-Ias, desde que o mundo é
balho porque o capital flui cada vez mais mundo sempre foi assim, não há nada a
do sul para o norte. Para onde vai o capi- fazer - sempre esteve e estará à direita.
tal ,vão os candidatos ao trabalho. Assim como a esquerda nunca deixará de
Nesse quadro, que sentido há em se fa- ser identificada nos que dizem que os ho-
lar de direita e de esquerda? O desmoro- mens são iguais, que é preciso levantar os
namento da URSS e dos países socialistas que estão no chão, lá embaixo."
do leste europeu teria decretado realmen-
te o fim dessas alternativas? As sociedades
pós-modernas, centradas na robótica e na Em outras palavras, os que acreditam
informática, teriam mesmo desqualifica- que o mercado supostamente livre defi-
do o movimento dos trabalhadores, jus- ne o destino de cada um são a direita. Os
tamente aquele em que sempre se apoiou que acreditam, ao contrário, na justiça so-
a esquerda? Estaríamos condenados pelo cial e norteiam suas crenças, sua palavra
"fim da história" ao capitalismo e ao li- e sua ação nesse sentido são a esquerda.
beralismo e, portanto, só no marco des- Nessas condições, nunca como hoje a
tas tendências é que seria possível pensar contraposição mercado x justiça social
no destino da humanidade? foi tão essencial. Jamais esta contradição
Perguntado sobre o sentido que ainda cruzou tanto nossas sociedades, desde os
poderiam ter esses termos; direita e es- 30 milhões de desempregados do próprio
querda, no mundo contemporâneo, o fi- hemisfério norte, junto à discriminação e
lósofo italiano Norberto Bobbio res- segregação de suas dezenas de milhões de
pondeu: imigrantes, até as grandes maiorias do he-.
"No nosso tempo, todos os que defen- rnísférío sul, vivendo em sociedades ca-
dem os povos oprimidos, os movimentos da vez mais apartadas. As minorias ricas
de libertação, as populações esfomeadas se sentem ilhadas e buscam a proteção das
do Terceiro Mundo são a esquerda. Aque- . cercas, dos muros, dos guardas particu-
les que, falando do alto de seu interesse, lares, contra as grandes maiorias expro-
dizem que não vêem por que distribuir priadas e marginalizadas.
um dinheiro que suaram para ganhar são Neste livro buscaremos retomar a tra-
e serão a direita. [ ... ] Quem acredita que jetória do termo esquerda - e, por opo-
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com alma social. Colocar o tema do so- riam trabalhadores, produzindo e consu-
cial intrinsecamente ligado ao político sig- mindo sem usufruir do trabalho alheio.
nificava superar os horizontes do libera- Esta visão se consagrou como a teoria
lismo e iniciar a elaboração de uma con- mais importante da esquerda, aquela que
cepção que não apenas criticava o velho busca a superação do capitalismo pelo so-
regime, mas já apontava para a crítica do cialismo para se chegar a uma sociedade
capitalismo como sistema que reinstaura- sem classes, sem exploração, sem Estado:
va a desigualdade social sob uma capa de a sociedade comunista.
igualdade jurídica. A proliferação de movimentos antica-
O ano de 1848 é também o da publi- pitalistas em vários países, de diferentes
cação do Manifesto Comunista, de Karl ideologias - anarquista, comunista de di-
Marx e Friedrich Engels, e do início da tra- ferentes matizes -, levou à construção de
jetória da teoria comunista como ideolo- uma coordenação internacional dessas lu-
gia das classes trabalhadoras, como refe- tas, que teve o nome de Associação Inter-
rência central para a evolução das várias nacional dos Trabalhadores e ficou co-
correntes de esquerda que se deu ao lon- nhecida posteriormente como a Primei-
go do século passado e deste. ra Internacional. Como os trabalhadores
O Manifesto Comunista fazia uma ra- eram considerados uma classe internacio-
diografia da evolução da história da hu- nal, com traços comuns em todos os paí-
manidade até desembocar no capitalismo, ses, igualmente explorados e subjugados,
concluindo que as contradições entre ex- e como as burguesias se apropriaram do
ploradores e explorados, dominadores e conceito de nação, os trabalhadores de-
dominados caracterizam a história dos ho- veriam se organizar internacionalmente,
mens. O capitalismo teria simplificado es- buscando derrubar o poder do capitalis-
sas contradições, colocando face a face mo, coordenadamente, e construir uma
burgueses e proletários. Estes teriam uma sociedade internacional de auto-emanci-
função histórica especial, dado que sua lo- pação de todos aqueles que respondem
calização estratégica no capitalismo - on- efetivamente pela criação das riquezas do
de produzem toda a riqueza existente - mundo.
lhes possibilita, sendo a classe que vive Alguns anos depois, pela primeira vez
de seu próprio trabalho, destruir o capi- na história, trabalhadores tomaram o po-
talismo e colocar as bases de uma socie- der. Foi em Paris, em 1871, logo depois
dade sem exploração, em que todos se-
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28 EMIR SADER
revelavam dificuldades que Marx não sus- Nem Marx poderia supor onde seria
peitava no seu tempo. Vivendo em me- a primeira irrupção da velha toupeira. O
lhores condições do que os trabalhado- primeiro país onde os trabalhadores to-
res das outras regiões do mundo, até mes- maram o poder não foi nenhuma das po-
mo porque as burguesias de seus países tências capitalistas, nem estava no cora-
se enriqueciam brutalmente com a explo- ção da Europa desenvolvida; nem foram
ração das colônias e distribuíam uma pe- os Estados Unidos em rápido desenvol-
quena parte dessa riqueza a alguns estra- vimento. Foi a Rússia. País que combina-
tos dos trabalhadores, diminuindo assim va uma estrutura social agrária atrasada
os conflitos de classe, os trabalhadores da com um Estado com pretensões de com-
Inglaterra, da França e da Alemanha se partilhar do butim colonial, a Rússia se
mostraram menos propensos a romper transformou no que o marxista e princi-
com o capitalismo do que os dos países pal dirigente da Terceira Internacional,
periféricos desse sistema. Os partidos so- Lenin, chamou de "elo mais fraco da ca-
cial-democratas tinham mais força que os deia imperialista". Com isso ele estava
comunistas, ao contrário do que aconte- querendo dizer que o capitalismo se ha-
cia nos países da periferia capitalista, on- via transformado num sistema mundial,
de as condições de exploração eram mais que havia integrado à sua cadeia todas as
brutais, as perspectivas de luta legal para regiões do mundo, com os elos mais for-
a esquerda eram quase nulas e as possibi- tes - os países mais desenvolvidos e mais
lidades da luta insurrecional a via mais resistentes à ruptura do capitalismo - e
os mais fracos, onde a luta de classes ha-
possível.
via adquirido um caráter mais tenso.
Marx dizia que a revolução era como
A Rússia, na compreensão de Lenin,
uma' 'velha toupeira", que circula inces-
era um desses elos mais frágeis,
santemente por baixo da terra, sem que
justamen-
se perceba sua trajetória, até que, de re-
pente, irrompe bruscamente na superfí- te porque o Estado desenvolvia uma ex-
cie. Com isso queria dizer que, apesar de ploração mais radical de seu povo, para
períodos de calmaria, a luta de classes - tentar arrecadar recursos e se transformar
considerada por ele como o "motor da numa potência imperialista mundial. Po-
história" - não se detinha e surpreendia rém, isso se fazia calcado na população
a muitos, reiteradamente, pelos lugares e atrasada e pobre de um país que tinha
formas que assumia. apenas umas poucas regiões
industrializa-
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M
das, cercadas por um imenso cordão de "Paz" significava a retirada russa do con-
zonas agrícolas pré-capitalistas. flito, no qual o povo não tinha nenhum
O Estado russo czarista era ditatorial interesse e os trabalhadores russos luta-
e já havia sofrido uma séria derrota mili- vam contra os trabalhadores de outros
tar contra o Japão, no começo do sécu- países. "Pão" era a forma de designar a
lo, na sua tentativa de avançar sobre a necessidade de saciar a fome da popula-
Mandchúria. Aliado às potências ociden- ção, que havia piorado ainda mais com a
tais dirigi das pela Inglaterra e França, o prioridade dada pelo Estado russo aos gas-
czar russo pretendia disputar o despojo tos bélicos. E "Terra" simbolizava uma
dos vencedores da guerra, repartindo os maneira de dar aos milhões de campone-
domínios dos vencidos, e por isso entrou ses o direito de produzirem os alimentos
na guerra contra o Japão e a Alemanha. para matar a fome do povo russo.
A participação da Rússia na guerra só A péssima performance do mal-arma-
piorou as condições sociais internas do do e famélico exército russo diante do po-
país e gerou uma situação favorável para deroso exército alemão agravou os pro-
a esquerda se lançar à conquista do po- blemas internos da Rússia e desarticulou
der. Significou o recrutamento para o a hierarquia do exército, criando as con-
exército de milhões de camponeses, até dições para que o regime czarista caísse,
ali dispersos, incultos, desinformados e em fevereiro de 1917, antes do final da
despolitizados, junto a operários em pro- guerra. Como o governo dirigido pelos
cesso de mobilização e organização polí- mencheviques não mencionava retirar a
tica, colocando-se armas nas suas mãos. Rússia da guerra e, tampouco, resolver os
A intensa propaganda do partido co- dois outros problemas do país - a fome
munista russo - chamado partido bol- e a terra -, isto fez com que o poder fi-
ehevique, por propor um programa de casse com os bolcheviques, em outubro
grandes transformações anticapitalistas, daquele ano.
ao contrário do partido social-democrata, Revelava-se assim que a resistência do
chamado de menchevique, favorável a poder das elites ao ataque dos trabalha-
transformações de menor alcance, dentro dores era menor nos países da periferia
do capitalismo - politizou os campone- capitalista do que nos do centro. Mas, em
ses, forjando a aliança com os operários, compensação, o atraso econômico, social
sob o lema "Paz, pão e terra". O termo e cultural tornava muito mais difícil a
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DA 41
SALVAÇÃO À
DANAÇÃO?
42 EMIR SADER DA SALVAÇÃO À DANAÇÃO? 4
3
ficando com a socialização da produção havia os que criticavam a URSS pela es-
querda, isto é, considerando que os ca-
e seu planejamento.
minhos escolhidos pelo stalinismo, ao ter-
Como resultado da opção feita por Sta-
minar a democracia no partido e na so-
lin, foi privilegiado o desenvolvimento
ciedade, determinaram o surgimento de
econômico em detrimento da democra-
um regime que havia expropriado a bur-
cia política. A União das Repúblicas So-
guesia - o que devia ser feito -, mas que
cialistas Soviéticas (URSS), nome que pas-
havia colocado no poder, no lugar dos
sou a ter a federação constituída em tor- trabalhadores, uma triste burocracia.
no da Rússia, conseguiu dar um impres-
sionante salto econômico nas décadas de
1930 e 1940, mas isto foi feito mediante
uma socialização militarizada da proprie-
dade agrícola, com a morte maciça de
camponeses que a ela resistiam, com a im-
posição de um regime sem nenhuma li-
berdade interna no partido bolchevique
e com a constituição de um Estado dita-
torial.
Dissociaram-se assim democracia e de-
senvolvimento econômico na primeira
experiência de construção de uma socie-
dade anticapitalista. A esquerda mundial
dividiu-se entre os que apoiavam a URSS
_ especialmente os partidos comunistas
- e os que criticavam o caminho assu-
mido por aquele país sob a direção de Sta-
lin. Dentre estes, os social-democratas
consideravam que os trabalhadores não
deviam ter tomado o poder na Rússia atra-
sada, porquanto o país deveria passar ain-
da por uma etapa de desenvolvimento ca-
pitalista antes de chegar ao socialismo. E
A guerra que era fria
querda. Um novo regime de extrema-di- taram da ocupação nazista com a ajuda di-
reita ascendeu, reprimindo violentamen- reta ou indireta da URSS durante a guer-
te a esquerda, os movimentos populares ra, no leste europeu. Mediante um acor-
e tudo o que representasse obstáculo à do no final da guerra, foram definidas zo-
sua trajetória, com os conhecidos campos nas de influência entre as duas maiores
de concentração e de extermínio. Na Es- potências emergentes: os Estados Unidos
panha, depois de um governo de- esquer- e a União Soviética. Esta ficou com espa-
da eleito democraticamente, o franquis- ço livre para expandir sua influência no
mo ascendeu ao governo; em portugal, o leste europeu, contanto que reconheces-
salazarismo. Ambos regimes estreitamente se a hegemonia norte-americana na Euro-
aparentados e apoiados pelos governos pa ocidental. Com isso, a Tchecoslová-
nazista e fascista da Alemanha e da Itália. quia, a Bulgária, a Albânía, a Polônia, a
A esquerda viu-se na necessidade de Hungria, a Iugoslávia e, mais tarde, a Ale-
se colocar na defensiva. Em lugar de bus- manha Oriental, a China, a Coréia do Nor-
car políticas de luta pelo poder, os parti- te e o Vietnã do Norte se agregaram a es-
dos comunista e social-democrata passa- se campo.
ram a lutar por 'grandes frentes com ou- Os países do leste europeu constituí-
tras forças na defesa das liberdades demo- ram regimes sob o modelo soviético: pla-
cráticas e pela derrubada dos regimes de nejamento econômico centralizado, par-
extrema-direita. Essa conjuntura desem- tido único, sistema político fechado e for-
bocou na Segunda Guerra Mundial, que te presença da própria URSS. Na Ásia, a
marcou uma nova etapa no desenvolvi- China, a Coréia do Norte e o Vietnã do
mento da esquerda no mundo. Norte realizaram revoluções anticapítalis-
A URSS emergiu da Segunda Guerra tas, apoiadas em guerrilhas rurais, defen-
Mundial como uma potência econômica. dendo uma plataforma de revolução agrá-
Ela foi capaz de resistir à ofensiva da Ale- ria e lutando pela expulsão do inimigo
manha nazista, dobrou o poder de Hitler japonês .- no caso da China - e dos fran-
e se constituiu no fator decisivo para a ceses - no caso do Vietnã do Norte.
derrota do eixo nazi-fascista na guerra. Instalaram-se regimes espelhados no so-
Além disso, foi se organizando um gru- viético, sob a direção de partidos comu-
po de países que se denominariam" campo nistas, em países mais atrasados ainda do
socialista" , a partir daqueles que se líber- que tinha sido a Rússia em 1917.
DA SALVAÇÃO À DANAÇÃO? 5
1
Com isso, criou-se uma bipolaridade para todos, instituiu a educação e a saú-
no mundo entre as esferas de influência de gratuitas para a população, generalizou
dos Estados Unidos e da União Soviética. o acesso à cultura e ao lazer. Cuba de-
As alternativas para os povos foram se es- monstrou assim que, para ter justiça so-
treitando, especialmente na periferia do cial, um país não necessita ser rico. Bas-
mundo, entre se subordinar ao domínio ta, em princípio, romper com o capitalis-
norte-americano, com todas as desigual- mo e seu sistema seletivo de só atender
dades, mercantilização e falta de sobera- aos que têm recursos financeiros, enquan-
nia nacional que isso significava, ou lutar to, por outro lado, restringe cada vez mais
por um tipo de ruptura com o capitalis- o número dos que podem dispor desses
mo que significasse retomar o modelo so- recursos.
viético _ desenvolvimento econômico e Mas, para poder desenvolver-se eco-
bem-estar social sem democracia política riô~ica e socialmente, Cuba teve que se
nem liberdades pessoais. apoiar no planejamento econômico inter-
No entanto, os países que em seguida nacional do campo socialista, organizado
fizeram revoluções anticapitalistas toma- e~ torno da União Soviética, sem o qual
ram esse caminho sem os partidos comu- nao poderia ter evoluído tanto quanto o
nistas. Esse foi o caso de Cuba. A 140 qui- fez ao longo de três décadas. Produzin-
lômetros do território dos Estados Uni- do açúcar, cítricos, níquel, fumo, para ex-
dos, a pequena ilha do Caribe, acostum~- portação, Cuba não teria conseguido no
da a produzir açúcar para o poderoso Vi- mercado capitalista os recursos para im-
zinho do Norte e dele comprar tudo o portar os produtos necessários a seu de-
que necessitava, servindo como lugar de senvolvimento, a começar pelo petróleo.
turismo, jogos em cassinos, consumo ~e No entanto, a ilha caribenha se trans-
drogas, prostituiçãO, de repente se afir- formou numa referência para a esquerda
mou como país socialista. do Brasil, da América Latina e do Tercei-
Sob a liderança de Fidel Castro e Che ro Mundo, por seus exemplares sistemas
Guevara, Cuba rompeu com a dominação de saúde e educação, pela soberania na-
norte-americana, realizou uma reforma ~ional adquirida, pela justiça social que
agrária que entregou terra aos campone- implantou. Mas, mesmo lá, não foi possí-
ses, uma reforma urbana que fez cessar a vel se construir um regime político de am-
especulação imobiliária e assegurou casa plas liberdades para todo o povo. Um re-
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SER DE ESQUERDA NO BRASIL 65
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e início dos 70. A terceira foi a uela -
20, expressou a rebelião social brasileira
rada .na resistência
. à ditadura n qos anos ge
70
contra a república oligárquica que termi-
e pnmeira metade dos 80
nou caindo em 1930. Como um dos líde- daí se consolid e que a partir
res daquele movimento, Prestes chefiou lid d ou, representando a atua-
l a e da esquerda brasileira.
uma coluna guerrilheira que circulou pe-
lo interior do Brasil fazendo propaganda
dos ideais do movimento dos tenentes.
posteriormente, em meados da década de
30, esteve à frente de uma tentativa de re-
belião, já como dirigente do Partido Co-
munista, contra o regime de Vargas, que
foi rapidamente derrotada. Continuou
sendo o principal dirigente do PCB e nes-
sa qualidade teve papel importante na po-
lítica brasileira, especialmente entre 1945
e 1964.
A figura de Prestes esteve sempre as-
sociada à imagem do revolucionário dos
anoS 20 e 30 e, depois, à de secretário-
geral do Partido Comunista, força de es-
querda mais importante do país até o gol-
pe de 1964. Embora sem larga tradição,
a esquerda já produziu no Brasil três ge-
rações diferentes de movimentos de es-
querda. Os comunistas, os anarquistas e
os socialistas das primeiras décadas do sé-
culo representam a primeira geração, mui-
to vinculada à tradição da esquerda euro-
péia.
A segunda geração é a dos movimen-
tos ligados à luta armada no Brasil, que
se desenvolveram ao longo dos anos 60
A primeira geração:
ser comunista no Brasil
no país as correntes modernistas nas vá- tos básicos de cidadania. Embora não fos-
rias atividades artísticas, surgindo uma no- se dirigido pelos trabalhadores - e até tra-
va geração de escritores, pintores, escul- balhasse para que estes ficassem subordi-
tores, que marcariam por todo o século nados a suas políticas, como se verá mais
as artes no Brasil. Nesse mesmo ano foi adiante -, o movimento, que significava
fundado o Partido Comunista do Brasil e incorporar à cidadania camadas importan-
também se deu o episódio de rebelião mi- tes da sociedade, como os operários urba-
litar conhecido como "Os 18 do Forte", nos e as classes médias, e que modificava
acontecido no Forte de Copacabana, no substantivamente as políticas econômica
Rio de Janeiro. e social do Estado, trazia ganhos reais pa-
O triunfo do movimento dirigido por ra os trabalhadores e para a própria es-
Getúlio Vargas e que levou ao governo querda.
I'! boa parte daqueles que haviam partici- O problema se apresentou porque Ge-
pado das mobilizações da década de 20, túlio Vargas - assim como, mais tarde, Pe-
entre eles a maioria dos tenentes, na cha- rón, na Argentina - copiou esquemas im-
mada Revolução de 30, colocou um gran- portados do fascismo italiano para seu go-
de dilema para a esquerda. Por um lado, verno. Quais eram eles e como era possí-
era apenas uma mudança' de governo. vel que um governo' 'progressista" tives-
Caíam os governantes ligados à chamada se vínculos com um regime radical de di-
Primeira República e uma equipe que pro- reita como o de Mussolini, na Itália?
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clamava, explicitamente, "Façamos a re- O fascismo atuava fortemente contra as
volução, antes que o povo a faça", isto instituições democráticas, especialmente
é, caracterizava o movimento como mais as organizações dos trabalhadores e as da
um pacto de elite na história brasileira, esquerda; assumia uma espécie de "antica-
que bloqueava a irrupção direta do povo pitalismo" e antiliberalismo, como tenta-
através de suas representações políticas e tiva de captar as simpatias de setores popu-
o substituía. lares, mas agia em função dos interesses do
Por outro lado, a nova equipe no go- capital financeiro, amparado numa ideolo-
verno representava o fim de um período gia nacionalista que não se opunha à domi-
, nação externa, mas servia, como serve, pa-
de domínio do Estado brasileiro pela oli-
garquia do café e 'de exclusão política da ra afirmar a supremacia de uma nação so-
maioria do povo brasileiro de seus direi- bre a outra. Por isso, essa ideologia é cha-
72 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 7
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mada de chauvinista, isto é, uma forma lismo político, a Primeira República sig-
xenófoba de privilegiar o seu país em de- nificou o fim da monarquia e o começo
trimento d0S outros, baseada numa su- da república no Brasil, mas os direitos de
posta superioridade racial, cultural e cidadania estavam restritos às elites oligár-
social. quicas, que definiam os governos e suas
No Terceiro Mundo e, em particular na políticas, com a exclusão da maioria es-
América Latina, o antiliberalismo e o es- magadora da população brasileira. Havia
tatismo que daí decorrem tiveram uma uma democracia formal, vazia, que pres-
significação diferente. Na Europa, o libe- cindia da participação efetiva dos homens
ralismo foi a ideologia da burguesia indus- e mulheres, sem direitos de cidadania.
trial ascendente e da democracia política O movimento getulista promoveu a in-
que ela promovia. Ser antiliberal era, por- dustrialização, e teve de impor uma pro-
tanto, se opor à democracia, contrapon- teção ao mercado interno, para defendê-
do a ela o estatismo que, se nos primór- 10 da concorrência de países com econo-
dios do capitalismo significava o Estado mias industriais muito mais desenvolvi-
absolutista, depois passou a estar perso- das, como os do Primeiro Mundo. Essa in-
nificado nos regimes totalitários - o fas- tervenção na economia não se limitava a
cismo, o nazismo. isso, mas promovia políticas sociais, au-
Na América Latina, o liberalismo foi mentava as dimensões do Estado, opon-
apropriado pelas oligarquias tradicionais, do-se concretamente aos princípios do li-
centradas na exportação de produtos pri- beralismo econômico e, mais especifica-
mários e na importação de mercadorias mente, à forma que ele havia assumido no
industriais das metrópoles. Elas se opu- Brasil, no corpo da oligarquia exporta-
nham a qualquer restrição ao comércio, dora.
à ação protetora do Estado em relação ao Mas Getúlio Vargas não foi antiliberal
mercado externo e, nesse sentido, reivin- apenas nesse aspecto. Ele criou uma le-
dicaram o aspecto econômico do libera- gislação trabalhista, importada da Itália
lismo, o laissez-faire, a não ingerência es- fascista, segundo a qual os sindicatos de-
tatal na economia. Para essa oligarquia tra- pendiam estreitamente do Estado: rece-
dicional, interessava manter intocado p biam recursos extraídos da folha de pa-
comércio de exportação e importação e gamentos dos trabalhadores, que não iam
por isso ela era liberal. Quanto ao libera- diretamente aos sindicatos, mas passavam
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ideais dos trabalhadores e chegar a lutar nos quartéis, onde sobreviviam quadros
pela derrubada do capitalismo no Brasil. sob influência de Prestes. a apelo à luta
Foi assim que os comunistas se aproxima- armada se justificava não somente porque
ram de Luís Carlos Prestes, a partir da no- se pretendia introduzir transformações
tável experiência de sua expedição pelo tão radicais no país que era necessário
interior do país, para tentar convencê-Io derrubar todo o arcabouço institucional
a ingressar no Partido Comunista. existente, mas também porque Getúlio
Prestes acalentava uma crítica radical Vargas já demonstrara claros sinais dita-
contra o movimento liderado por Getú- toriais, fechando os caminhos para sua
lio Vargas, considerado por ele como uma substituição por via eleitoral.
traição aos ideais dos tenentes dos anos a movimento foi descoberto ainda an-
20, e encontrou no marxismo proposto tes de ser deflagrado, sendo violentamen-
pelo PCB um marco mais geral para inse- te reprimido. a episódio ficou conheci-
rir sua visão política. Uma viagem à URSS do como "a Intentona de 35", segundo
consolidou no jovem revolucionário suas versão difundida pelo Exército brasileiro,
concepções socialistas e ele retornou de e serve até hoje às campanhas anti-
Moscou para dirigir um plano revolucio- comunistas como suposto exemplo de
nário de tentativa de tomada do poder no traição à pátria por parte da esquerda, que
Brasil, em 1935. levaria o Brasil à subordinação da União
Aderindo ao PCB e ao modelo socia- Soviética.
lista da URSS, Prestes trazia para o Brasil Prestes e grande parte dos sobreviven-
aquelas concepções, que seriam domi- tes - entre eles o jovem Marighella - fo-
nantes na esquerda até 1964. Naquele mo- ram presos e torturados. A companheira
mento, os comunistas lutavam por um re- de Prestes, alga Benário, alemã que o ha-
gime de "libertação nacional", que signi- via acompanhado desde a URSS, foi en-
ficasse a ruptura da dependência do Bra- viada aos campos de concentração da Ale-
\,
sil em relação à dominação norte-ameri- manha hitlerista. Comunista e judia, grá-
li' vida, alga Benário seria assassinada pelos
cana, a realização de uma transformação
radical da estrutura rural e a democrati- nazistas, com a complacência da ditadu-
zação do país sobre um poder dirigido ra de Getúlio Vargas.
por operários e camponeses. Para isso or- A URSS, apesar da repressão interna
ganizaram uma sublevação que se iniciaria desenvolvida por Stalin, teve de novo sua
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imagem fortalecida no exterior, pela re- No Brasil, apesar das simpatias de Ge-
sistência que opôs às forças hitleristas. No túlio pelo eixo Alemanha-Itália na Segun-
Brasil, ainda que enfraquecidos pela re- da Guerra, as posições nacionalistas e de
I pressão, os comunistas resistiram na pri- defesa dos interesses dos trabalhadores
são na segunda metade dos anos 30 e co- conquistaram os comunistas. Eles prefe-
meço dos 40, até que, como resultado da riram deixar de lado as questões demo-
cráticas - abertamente violadas por Ge-
virada de orientação da Internacional Co-
túlio - e privilegiar os problemas sociais
munista, o PCB se reconciliaria com Ge-
e de soberania nacional. Isso representa-
túlio Vargas, que havia sido responsável
va uma aplicação ao Brasil dos mesmos
pela prisão, morte e tortura de tantos den-
critérios de prioridade da URSS com Sta-
IJ tre eles. lin: conceder maior importância ao de-
Para a Internacional Comunista -
com o Partido Comunista da URSS à ca-
I senvolvimento econômico e às conquis-
tas sociais do que à democracia.
beça -, nos anos 30 tinham despontado, Os liberais, no Brasil, que eram con-
como forças ameaçadoras em escala mun- servadores e haviam mandado na Primei-
dial, o nazismo e o fascismo, regimes de ra República, se apropriaram assim, du-
extrema-direita. O fascismo na Itália, o na- 1 rante muito tempo, do tema da democra-
zismo na Alemanha, o franquismo na Es- cia, deixado de lado por Getúlio e, com
panha, o salazarismo em Portugal eram as ,ele, pelos comunistas. Assim, durante
principais expressões de um movimento muitas décadas a oposição na política bra-
li' que se fortalecia no mundo e cuja conse- sileira se fazia entre os que reivindicavam
1
qüência direta foi a Segunda Guerra a defesa da liberdade e da democracia -
Mundial. a direita - e os que privilegiavam as con-
Assim, os partidos comunistas decidi- quistas sociais e a defesa da nação brasi-
ram que o mais importante deixava de leira - a esquerda, personificada nos co-
ser, pelo menos durante um tempo, a lu- munistas.
ta pela tomada do poder, para se tornar Reproduzia-se entre nós a mesma se-
!I!
a luta defensiva contra o avanço da paração introduzida pela URSS com Sta-
I
extrema-direita. Essa resistência devia ser lin. Em lugar de defender simultaneamen-
I
83
84 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 85
As eleições de 1955 serviram para re- Deu-se aqui a primeira cisão de origem
compor, através do PCB, as alianças da es- maoísta de um partido comunista. Diri-
querda com a burguesia industrial. Como gentes e militantes fiéis às orientações de
continuadora da herança getulista se apre- Stalin e às concepções chinesas, segundo
sentou a chapa]uscelino Kubitschek-]oão as quais a URSS estava se conciliando com
Goulart, dando prosseguimento à dobra- o imperialismo norte-americano contra os
dinha PSD-PTB, com um programa que destinos da revolução mundial, tornando-
prometia estender a industrialização subs-
se uma força conservadora e até mesmo
titutiva de importações, acelerando o de-
imperialista, fundaram o Partido Comunis-
senvolvimento capitalista, que, segundo
ta do Brasil (PC do B), valendo-se de que
os comunistas, fazia falta para se impor a
soberania nacional, a reforma agrária e o o PCB, para tentar sua legalização, havia
progresso social. mudado seu nome para Partido Comunís-
Ao contrário de 1950, então, o PCB . ta Brasileiro.
participou ativamente das eleições, O novo partido foi fundado em agosto
apoiando ]K e lançando candidatos pró- de 1960, disputando com o PCB a legíti-
prios na lista do PTB. Na atuação sindical ma herança dos comunistas no Brasil. En-
também se realizava uma aliança com os tre os dirigentes do novo partido encon-
"pelegos" getulistas, em troca dos espa- travam-se]oão Amazonas, Diógenes Arru-
ços cedidos por estes para o PCB. Foi se da Câmara, Maurício Grabois e Pedro Po-
delineando uma atuação semilegal dos co- mar, todos ex-dirigentes do velho PCB.
munistas ao longo dos anos 50, que se Sua força era, naquele momento, clara-
consolidaria até o golpe de 1964. mente menor que a do PCB. Pregava a lu-
Enquanto isso, à medida que a hege- ta armada, porém para buscar uma revo-
monia internacional inquestionável da lução de libertação nacional, em aliança
URSS começava a sofrer abalos - primei- com a burguesia industrial. Suas diferen-
ro com as denúncias de Kruschev sobre ças então com o PCB se centiavam nas
as atrocidades de Stalin, agora reconhe- questões de métodos de luta, porque o no-
cidas pela própria direção do Partido Co- vo partido também acreditava que o Brasil
munista da União Soviética, depois com : deveria ainda passar por uma fase de
as divergências entre a URSS e a China -, desenvolvimento capitalista democrático,
no Brasil também foram surgindo forças
antes de poder superá-Ia pela construção
alternativas ao PCB.
do socialismo.
92 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 9
3
o PC do B se filiava diretamente ao Sua força inicial foi mais de caráter in-
PC telectual e estudantil, com certa penetra-
I
da China, assumia a figura de Mao Tsé- ção nos meios sindical e rural. As análi-
tung como seu expoente máximo e pre- ses da Polop, no entanto, tiveram influên-
gava no Brasil o desenvolvimento de uma cia duradoura e extensa em vários seto-
guerra camponesa de cerco das cidades res da esquerda brasileira, especialmente
pelo campo, à semelhança do processo depois do golpe de Estado de 1964. En-
revolucionário vitorioso na China nos tre seus principais dirigentes estavam o
anos 30 e 40. Sua força centrou-se nos austríaco-alemão Eric Sachs, Rui Mauro
movimentos estudantil e camponês, Marini, Eder Sader e Teotônio dos Santos.
apoiada no que desenvolveu posterior- No campo do pensamento cristão, foi
mente a guerrilha do Araguaia. se firmando, a partir da ascensão do pa-
No mesmo campo de crítica ao PCB pa Ioão XXIII ao Vaticano (com sua encí-
foi fundada uma outra organização - a clica Pacem in terris, de 1958), um pro-
Política Operária, conhecida como Polop. cesso de radicalização política e ideoló-
Ela foi resultado da fusão de grupos so- gica, que mais tarde. desembocaria na teo-
cialistas do Rio de Janeiro, de Minas Ge- logia da libertação. No Brasil isso se re-
rais e de São Paulo, que até ali atuavam fletiu na evolução das posições das enti-
dentro do Partido Socialista, do Partido dades estudantis e de juventude da Igre-
Trabalhista Brasileiro ou de forma inde- ja Católica - Juventude Estudantil Cató-
pendente. Tinha orientação marxista, mas lica aEC), Juventude Universitária Cató-
crítica à URSS e ao stalinismo, diferen- lica aUC), Juventude Operária Católica
ciando-se assim do PC do B. Suas análi- aOC), congregadas na Ação Católica -,
ses caracterizavam o Brasil como um país que deram nascimento a uma organização
já basicamente capitalista, embora perifé- cristã de esquerda: a Ação Popular (AP).
rico e, por isso, com seu desenvolvimen- A Ação Popular herdou a força das
to deformado e bloqueado pela domina- suas entidades originárias e se estendeu
III ção internacional e pela natureza de suas para outros setores dos movimentos po-
classes dominantes internas. Propunha
uma revolução socialista dirigida pelos
l
I
pulares, tornando-se rapidamente a orga-
nização mais importante do movimento
trabalhadores, a ser realizada através de estudantil. Entre seus principais dirigen-
uma insurreição armada. tes encontravam .:>e Herbert de Sousa e
\
Vi-
-~
~ •. ---------------------------------~~~--~
~~--------------------~------------------------j~~-------------------------------------------
9 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 95
4
de João Goulart e apoiada pelos comunis- embora não fosse um nome representati-
I tas, que supunha um setor importante da
burguesia - sua fração industrial - ado-
vo das FFAA. Sua falta de carisma pessoal
contrastava com o apelo popular que ha-
tando uma orientação democrática e de via levado Jânio Quadros a uma carreira
!'Iil contradições com o imperialismo e com fulminante - em sete anos ele havia pas-
os latifundiários. Supunha, também, que sado de prefeito de São Paulo a governa- I
um setor de peso das Forças Armadas dor desse estado e dali à presidência da
(FFAA), adotando o nacionalismo, acom- República. I
panhasse essa frente democrática e desse Jânio ganhou com uma grande diferen-
apoio ao governo. ça de Lott, mas o vice-presidente, eleito
Esse processo encontrou, no entanto, separadamente até aquele momento, foi
vários obstáculos, que desembocaram no João Goulart, da chapa da esquerda. Os
golpe militar de 1964. Já antes disso, a es- comunistas apoiaram Lott e jango, en-
quanto as outras forças esquerdistas ain-
querda havia enfrentado dificuldades, nas
, da eram muito frágeis para ter candidato
II
eleições de 1960. Depois do governo de
Juscelino Kubitschek, apoiado pelos co- alternativo e marcar suas distâncias em re-
munistas, as eleições presidenciais de lação ao PCB e a João Goulart.
1960 foram venci das por Jânio Quadros, Poucos meses após sua posse, em agos-
to de 1961, Jânio renunciou depois de
um populista de direita, apoiado na UDN
uma confusa e nunca provada ingerência I
mas principalmente em seu caris ma pes-
de "forças ocultas" por ele denunciadas.
soal e em sua pregação contra a corrup-
Iniciou-se uma crise nacional. Jango esta-
ção, personificada na construção de Bra-
va viajando pela China, mas -o principal
sília por JK.
problema eram as acusações que pesavam
A esquerda lançou um candidato mi- sobre ele de conivência com os comunis-
litar, o marechal Henrique Lott, que ha- tas, oriundas da direita e especialmente
I
Brizola era do PTB, casado com a ir- exterior, enquanto à direita se pregava
mã de Jango, e decidiu apoiar a posse des- que a democracia e a liberdade estavam
9
te, apelando para mobilizações populares
8 em perigo, pela ação de um Estado con-
e buscando o apoio da Força Pública do trolado pelos nacionalistas, mero disfar-
Rio Grande do Sul, contingente militar ce dos comunistas, de Cuba e da União
sob seu comando. Ofereceu a Iango o re- Soviética.
torno ao país pelo Sul e, mediante a amea- Enquanto as mobilizações sociais dos
ça de uma guerra civil, chegou-se a um trabalhadores da cidade e do campo, dos
acordo: Jango tomaria posse, mas não estudantes, dos artistas apoiavam as refor-
com todos os poderes presidenciais. mas, a direita, incentivada política e finan-
Instaurar-se-ia um parlamentarismo, co- ceiramente pelos grandes empresários e
mo forma de retalhar seus poderes. pelo próprio governo dos Estados Uni-,
O setor nacionalista de Jango e de Bri- dos, promovia um processo de desesta-
zola ganhava assim importância dentro da bilização do país. As "marchas com Deus
esquerda. Chegou ao governo pregando pela família" colocavam em ação amplos
reformas de base que democratizariam o setores de classe média, acentuando a po-
capitalismo, especialmente a reforma larização social.
agrária e o controle das remessas de lu- Um outro setor se integrava à luta da es-
cros das empresas internacionais ao ex- querda, pela primeira vez na história recen-
terior. te do país: os soldados e marinheiros, rei-
O governo de J ango representou um vindicando os direitos políticos de associa-
período de recrudescimento da luta de ção e de representação no Parlamento. Es-
classes, com os interesses das classes po- te fator terminou de consolidar a decisão
pulares e das elites dominantes se polari- da grande maioria da alta oficialidade das
zando acentuadamente. O desenvolvi- FF AA de romper com a legalidade e impor
mento capitalista continuado desde o fi- um golpe militar, em 1 c: de abril de 1964.
nal da Segunda Guerra começava a per- Essa articulação vinha de longe, desde que.
der força e os conflitos entre trabalhado- militares brasileiros se integraram às ações
res e burguesia pela apropriação da ren- da oficialidade norte-americana durante a
da se acentuaram. À esquerda se lutava pe- Segunda Guerra Mundial, de onde surgiu
la reforma agrária e pela reforma urbana, a fundação da Escola Superior de Guerra,
pelo controle das remessas de lucros ao que trabalhou longamente a doutrina de
SER DE ESQUERDA NO BRASIL
99
I
o golpe militar de 1964 foi central- raso Várias mortes foram registradas logo
~---- mente dirigido contra os trabalhadores e
a esquerda. Aqueles viram a decretação de --------- nos primeiros dias do novo regime.
Diante de tal virada, instaurou-se ine-
----- um arrocho salarial, além da multiplica-
ção do desemprego e da deterioração de --------- vitavelmente na esquerda um processo de
discussão e balanço para serem avaliadas
suas condições de vida. A esquerda foi
----- perseguida desde os primeiros dias do no- --------- as conseqüências do golpe militar e da di-
tadura e para encontrar formas de resis-
vo regime, pois encarnava precisamente
-~~~- o "inimigo interno" que a doutrina de se- --------- tência. Já não se tratava de avançar nas
transformações sociais pregadas antes de
gurança nacional vitoriosa buscava erra- 1964, mas de resistir da melhor forma
----- dicar. --------- possível à contra-revolução que se instau-
O Estado brasileiro, aliado da linha rava.
----- predominante na esquerda, deixava de sê-
10, tornando-se, ao contrário, seu princi-
-------~- Essa era uma situação que a esquerda
em escala mundial conhecia muito bem.
---~ pal inimigo. Desenvolveu-se rapidamen-
te um processo depurador do sistema po-
Cada vez que um processo de transforma-
ções revolucionárias ou graduais não con-
lítico e jurídico: cassações de deputados seguia se concretizar} o movimento po-
e governadores considerados de esquer- pular pagava um preço alto por sua der-
da, junto a outros acusados de corrupção, rota. A revolução era polarizada no outro
prisões e exílio de dirigentes políticos, mi- lado pela contra-revolução. Foi assim na
litantes, simpatizantes da esquerda, em to- Itália antes de Mussolini impor o fascis-
dos os partidos existentes. mo, tinha sido assim na Alemanha dos
Exemplar foi o caso do comunista Gre- anos 20, antes da subida de Hitler ao po-
gório Bezerra. Auxiliar do governador de der, entre outros casos.
Pernambuco, Miguel Arraes - também No Brasil, o debate tinha os holofotes
um dos primeiros detidos pelos militares voltados para o PCB. Afinal, não somen-
-, Bezerra foi preso, despido e arrasta- te era o partido mais importante até ali,
do em cueca pelas ruas de Recife, puxa- como sua orientação tinha prevalecido no
do por um carro. Era o efeito demonstra- período anterior. Foi no seu interior, mes-
ção, para mostrar o que esperava os co- mo sob intensa ação repressiva, que co-
munistas e esquerdistas da parte da dita- meçou a se desenvolver um processo de
dura que se apressava em exibir suas gar- avaliação, busca de responsabilidades e
redefinição de orientação.
106 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 107
saída a que foi levado o movimento po- Guatemala, na Nicarágua. O Vietnã cata-
pular e a esquerda a partir da linha do PCB lisava a solidariedade internacional, de-
de aliança subordinada com a burguesia monstrando que mesmo um dos meno-
nacional e sua caracterização como uma res países do mundo pode resistir e der-
força democrática e antiimperialista. Em rotar a maior potência bélica da história
segundo lugar, todos se opunham à linha se contar com o apoio da população or-
de resistência legal preconizada pelo PCB, ganizada e armada.
dado que os espaços institucionais eram Nesse marco, as posições que prega-
absolutamente inexistentes para a oposi- vam a resistência armada e a luta clandes-
ção à ditadura, que só podia ser combati- tina contra a ditadura tendiam a triunfar.
da pela resistência clandestina. Ainda mais que a via institucional tinha
É preciso recordar que, conforme se I levado ao golpe militar e à ditadura.
mencionou na análise dos anos 60 no Porém as oposições internas foram
I" mundo, o contorno internacional favore- derrotadas pelo controle que a direção do
cia posições radicalizadas e ligadas à luta PCB mantinha sobre os canais organiza-
armada. Na América Latina, o capitalismo tivos, ainda ficando reduzidas à minoria.
se encontrava em crise, enquanto a revo- Medidas de expulsão foram minando a
lução cubana reivindicava o socialismo e oposição, como aquela aplicada contra
dava soluções positivas. aos problemas Marighella, que viajou para comparecer a
educacionais, sanitários, culturais, em uma reunião de movimentos revolucioná-
meio a enormes mobilizações populares rios latino-americanos realizada em Cuba,
de defesa do regime revolucionário, com sem autorização da direção do PCB, e lá
Fidel Castro e Che Guevara à frente. se pronunciou a favor da luta armada.
Enquanto isso, sucediam-se os golpes Os opositores foram assim sendo ex-
no restante do continente. Ao lado das di- pulsos aos poucos, ou abandonaram o
taduras de Trujillo na República Domini- PCB para fundar novas organizações. Ma-
cana, de Somoza na Nicarágua, de Duva- righella e os .que o acompanharam deram
lier no Haiti, entre outras, ocorria um gol- nascimento à Aliança Libertadora Nacio-
pe militar na Bolívia e, pouco depois, em nal (ALN), que pregava a luta armada ru-
1966, também na Argentina. ral como caminho fundamental de ação,
As guerrilhas rurais se estendiam na apoiada em ações urbanas de preparação
Colômbia, na Venezuela, no Peru, na da guerrilha no campo. Tratava-se de der-
I
"L .. ~ ____________________________________________________________________ ~ ________________________________~-- ________________ ~ _______________________________________________________________________~ __ -JJ
11 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 11
0 1
rubar a ditadura para instaurar um gover- luta armada que propunha. Não o preo-
no de libertação nacional, que conduzi- cupava uma análise mais detida da situa-
ria o país em direção ao socialismo. ção econômica e social do país, mas a dis-
Com ele estavam a grande maioria dos posição de não perder muito tempo em
jovens do PCB e setores populares de vá- discussões e abreviar ao máximo o tem-
rias regiões do país. Embora não tivesse po até partir para a ação concreta. O mo-
participado das polêmicas anteriores do delo da revolução cubana, difundido por
PCB de forma muito ativa, Marighella era um francês, Régis Debray, em uma ver-
considerado um dirigente rebelde, ten- são muito simplificada, mas que teve mui-
dente a aceitar posições mais radicaliza- to sucesso na América Latina e, em parti-
das, pelas suas raízes populares. cular, no Brasil, evidentemente atraía Ma-
Mulato baiano, havia participado, mui- righella e os que o seguiam.
to jovem ainda, do movimento do PCB Um outro grupo saiu do PCB com a
em 1935, quando se deslocou da Bahia disposição de fundar um partido, porém
para o Rio de Janeiro. Foi preso, violen- de orientação revolucionária, ao contrá-
tamente torturado, mas conquistou na rio do partido que deixavam, considera-
prisão uma liderança e a fama de dirigen- do reformista. Entre os participantes des-
te solidário e combativo, o que marcou se grupo estavam Mário Alves, jacob Go-
para sempre sua figura. render, Apolônio de Carvalho, que fun-
Em 1964, reagiu à ordem de prisão daram o Partido Comunista Brasileiro Re-
mas terminou preso, apesar de ferido. A volucionário (PCBR). O novo partido pre-
partir dali escreveu um livro ao qual deu gava também a luta armada como forma
o nome Por que resisti à prisão, demons- de combate à ditadura, porém se preocu-
trando a disposição de não dar trégua à pava igualmente com a construção de es-
ditadura e convocando os militantes de truturas partidárias e com o trabalho de
esquerda para uma resistência ativa con- massas.
tra o novo regime. Ainda originário do PCB foi o Movi-
Marighella saía do PCB propondo não mento Revolucionário 8 de Outubro
a formação de um novo partido, mas de (MR-8), data da morte de Che Guevara na
um movimento adaptado às condições da Bolívia, congregando principalmente es-
tudantes do PCB no Rio de Janeiro, que
se somavam à luta armada.
11 EM IR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 11
2 3
Por outro lado, um grupo de militares tos em prosa que, de uma ou outra for-
radicalizados abandonou os quartéis e se ma, canalizavam o espírito de rebeldia de
juntou a marinheiros, sargentos e cabos amplas camadas da população.
expulsos das FFAA com o golpe militar, Logo a Bossa Nova na sua configura-
para, unidos a militantes vindos de outras ção inicial daria lugar à música de protes-
organizações, fundarem um movimento to, com o começo da carreira de Chico
de características similares à ALN, a Van- Buarque, Geraldo Vandré, Caetano Velo-
guarda Popular Revolucionária (VPR). so, Edu Lobo, Carlos Lira. O Teatro de
Neste grupo estava o principal daqueles Arena, com Augusto Boal à frente, ence-
militares, o capitão Carlos Lamarca, que nava obras que ressaltavam aspectos he-
se tornaria a principal figura da nova or- róicos da nossa história - o episódio de
ganização. A VPR e a ALN viriam a ser as Zumbi dos Palmares, a conjuração de Ti-
principais organizações do período da lu- radentes - a que depois se somaria a ir-
ta armada urbana no Brasil. reverência do Teatro Oficina, de Iosé Cel-
Ao lado delas, estavam organizações so Martinez Correia, com Os pequenos
que já existiam anteriormente ao golpe burgueses, de Máximo Gorki, e O rei da
militar, como a Polop, a AP, o PC do B, vela ,de Oswald de Andrade, assim como
.
às quais se juntaram dezenas de outras or- a encenação de Morte e vida severina, de
ganizações que, de diferentes formas, pre- João Cabral de Mello Neto, pelo Tuca,
gavam também a luta armada, mas que, Teatro da Pontifícia Universidade Católi-
inicialmente ao menos, ficaram num pa- ca de São Paulo. O cinema brasileiro pas-
pelsecundário em relação à ALN e à VPR. sava à sua fase mais criativa, com Glau-
No início a resistência à ditadura se ex- ber Rocha produzindo Terra em transe,
pressou através de manifestações artísti- Ruy Guerra dirigindo Os fuzis e Nelson
cas, das quais a mais importante nesta pri- Pereira dos Santos, seu Vidas secas.
meira fase foi a peça musical Opinião, ini- Artistas e intelectuais protestavam atra-
cialmente interpretada por Nara Leão, Zé vés de manifestos ou declarações à im-
Kéti e João do Vale, e que posteriormen- prensa sobre as prisões, arbitrariedades,
te teve a cantora substituída por Maria Be- censura aos jornais, enquanto um dos jor-
tânia, que assim fazia sua estréia artística. nais que personificava a oposição à dita-
O espetáculo combinava músicas de pro- dura, o Correio da Manhã, era avidamen-
testo com outras, junto a poesias e tex- te disputado nas bancas, por causa de seus
11 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 115
4
tear e a obter maior liberdade mais cedo Recebidos por cargas de cavalaria, os
do que seus pais, que em geral só saíam estudantes reagiam atirando bolinhas de
. de casa para se casar com moças virgens vidro com estilingues, que faziam os ca-
que não trabalhavam. Esse universo co- valos tropeçar. Vinham os jatos de água,
meçou a mudar aceleradamente, coinci- às vezes tiros para o ar, detenções. Mas
dindo com um período de grande repres- a repressão ainda não tinha assumido o
são política, mas que por isso mesmo in- caráter de extermínio que teria depois de
citava à reação, a dar um conteúdo polí- 1968.
tico à rebelião pessoal, a casar liberdade Enquanto isso, o regime ia afirmando
pessoal com militância política. seu poder, demonstrando, para decepção
O começo do acesso às drogas tam- da direita civil, como a UDN de Carlos
bém fazia parte daquele mundo, ainda La-
que de forma marginal. Viver novas ex- cerda, e mesmo o centro, liderado por
periências, ao mesmo tempo que se to- Juscelino Kubitschek, que não teria uma
mava contato com a literatura - de Hux- passagem efêmera pelo Estado, mas que
ley a Kerouac - e com a música - dos vinha, como pregava a doutrina de segu-
Beatles a Roberto Carlos - que incitava rança nacional, para reformá-lo radical-
a novos comportamentos. mente, militarizando-o, assim como todo
Mas foi o movimento estudantil que o sistema político. Derrotada em Minas
primeiro saiu massivamente às ruas con- Gerais e no Rio de Janeiro nas primeiras
tra a ditadura. Depois dos primeiros anos eleições para governador, a ditadura dis-
de protestos relativamente isolados ou solveu todos os partidos políticos, permi-
sem presença de grande número de pes- tindo a criação de apenas um do gover-
li soas nas ruas, foi em 1966 que se deram no, a Aliança Renovadora Nacional (Are-
as primeiras manifestações públicas leva- na), e outro da oposição, o Movimento
das adiante por centros estudantis em São Democrático Brasileiro (MDB).
Paulo e no Rio de Janeiro. As faculdades A oposição legal ao regime ganhava
tinham sido particularmente atingidas pe- as-
los Inquéritos Policiais Militares (IPMs) da sim ares de oposição consentida, aceita
ditadura, que eliminavam dos quadros e nos marcos definidos pelo regime. Com
processavam os professores comprome- grande quantidade de deputados, senado-
tidos com a democracia ou considerados res e governadores cassados, e outros po-
fomentadores da rebelião estudantil. líticos com direitos suspensos por muito
tempo, com a censura à imprensa, com
SER DE ESQUERDA NO BRASIL 119
118 EMIR SADER
a imposição de um regime de força, fazer pelo PCB, sustentava que a queda da di-
tadura não se faria pelo restabelecimento
i oposição dentro dos limites estabelecidos
de um tipo de democracia como a que ha-
pelo sistema de poder era resignar-se à im-
potência. Até mesmo porque era claro via existido antes de 1964, mas por um
que o poder real residia nas instituições poder de outro tipo, de libertação nacio-
dasFFAA e não nos órgãos institucionais. nal ou socialista, conforme a organização
O primeiro presidente da ditadura, o ma- política antiimperialista, contra o latifún-
rechal Castelo Branco, havia sido escolhi- dio, na direção da hegemonia dos traba-
do pelas FF AA e ratificado pelo lhadores, da ruptura com o capitalismo.
Parlamen- Alguns intelectuais chegaram a falar da al-
to, revelando a subordinação deste àque- ternativa "socialismo ou fascismo", extre-
las, assim como a anulação do Judiciário :. mando as opções.
como instância de defesa do Estado de di- A partir de 1967 começaram a ser rea-
reito. I lizadas ações armadas. As primeiras foram
Tudo isso levava à desmoralização dos roubos a bancos, que, como não eram rei-
canais institucionais de oposição à dita- vindicadas por nenhuma organização po-
dura. Um espaço semilegal restante era lítica, passavam por assaltos feitos por
ocupado precisamente pela imprensa marginais. Aos poucos, a organização de-
opositora, . pelo movimento estudantil, monstrada, a multiplicação dos assaltos e
pelos artistas e intelectuais, que não per-
algumas manifestações políticas dos co-
diam uma oportunidade para demonstrar
mandos que atuavam foram revelando o
sua rebeldia. Aos poucos foram aumen-
fundo político das ações. Elas eram deno-
tando os setores descontentes, à medida
minadas "recuperações", no sentido de
que a ditadura ampliava sua lista de cas-
que se trataria de levantamento de recur-
,I sações, incluindo precisamente os políti-
cos burgueses de oposição, como Carlos sos expropriados aos trabalhadores por
Lacerda, Juscelino Kubitschek, Adhemar meio da exploração de seu trabalho ou da
de Barros. própria corrupção e que assim retorna-
Setores crescentes foram aderindo à vam a organizações dos trabalhadores.
idéia da luta armada, da resistência clan- Seu objetivo imediato era recolher fundos
destina à ditadura. Essa linha, comparti- para financiar a preparação da guerrilha
lhada pela quase totalidade dos grupos de rural.
esquerda, com diferenças menores, salvo
I I
lidar seu prestígio como vanguarda na luta impuseram um fechamento ainda maior
de massa contra a ditadura. No segundo do sistema político, mediante o decreto
semestre de 1968 a UNE organizou um de um novo Ato Institucional, este de nú-
Congresso Nacional clandestino em Ibiú- mero 5 - que ficou conhecido como
na, próximo da cidade de São Paulo, num AI-5 -, em dezembro de 1968, numa res-
sítio, mas não pôde evitar que os órgãos posta a resistências dentro do Congresso
de repressão localizassem o evento, da- a medidas da ditadura. O Parlamento ha-
da a enorme quantidade de estudantes de via sido depurado e permaneceu aberto,
todos os estados do país que se haviam mas esvaziado de poder e com uma rela-
deslocado para o Congresso. O lugar foi ção de forças favorável à ditadura, porém
invadido por forças repressivas que toma- com setores que resistiam ao regime de
ram presos centenas de estudantes, incluí- força. O AI-5, no entanto, colocava, me-
dos seus principais líderes: Vladimir Pal- diante medidas ditatoriais, todo o poder
meira, José Dirceu, Luís Travassos. político e repressivo, sem contrapesos, na
Os setores extremistas de direita tam- mão do Executivo.
bém se organizavam para apoiar o gover- O AI-5 representou a passagem ao pe-
no e combater a esquerda, através de gru- ríodo de maior repressão da ditadura,
pos paramilitares teledirigidos pelas FF com a intensificação das prisões, o uso sis-
AA. temático da tortura e do assassinato, es-
Organizou-se o Comando de Caça aos Co- tabelecendo um verdadeiro regime de ter-
munistas (CCC), que passou a atacar os ror no país. As organizações armadas de
militantes de oposição à ditadura. Na rua esquerda responderam com ações mais
Maria Antônia, no centro de São Paulo, sofisticadas, como o desvio de aviões pa-
envolveram-se em combate aberto os es- ra Cuba, levando militantes que deseja-
tudantes da Faculdade de Filosofia da Uni- vam sair do Brasil, ou o seqüestro de di-
versidade de São Paulo, de esquerda, e os plomatas estrangeiros para serem troca-
do Mackenzie, de direita, com estes ati- dos por presos políticos que estavam sen-
rando bombas no prédio daquela facul- do torturados nas prisões.
dade. O primeiro e mais famoso desses se-
Quando a ditadura percebeu que co- qüestros foi o do embaixador norte-
meçava a perder o controle da situação, americano, que ainda residia no Rio de Ia-
prevaleceram os setores ligados à chama- neiro, em condições relativamente vulne-
da "linha-dura", de extrema-direita, que
II
ráveis. Um comando do MR-8 apoiado pe- Por detrás do sucesso das ações cor-
la ALN conseguiu sem muita dificuldade ria um processo surdo de corrosão nas fi-
fazer um levantamento sobre a circulação las da guerrilha. Utilizando os mais vio-
do embaixador e, constatando frágeis me- lentos processos, os órgãos de repressão
didas de segurança existentes, pôde se- antecessores do DOI-Codi foram fazendo
qüestrá-Io. prisões e, através destas e de mais tortu-
O comando guerrilheiro colocou uma ra, causando baixas sucessivas nos grupos
série de condições para a libertação do de esquerda. Alguns ex-militantes chega-
embaixador, entre elas a leitura por cadeia ram a ir à televisao, como guerrilheiros ar-
de rádio e televisão de um manifesto ex- rependidos, fazendo apelos a seus ex-
plicando o sentido da ação e a libertação companheiros para que abandonassem
de quinze militantes, entre eles os líderes uma luta que consideravam perdida. Mui-
estudantis presos no Congresso da UNE. to jovens, tinham ingressado fazia pouco
A ditadura ficou numa situação extrema- tempo na militância política e não haviam
mente difícil, porque aceitar as condições resistido à tortura.
dos guerrilheiros era dobrar-se a uma for- Estendeu-se o processo de recolhi-
ça inimiga, negociar em igualdade de con- mento de informações por parte dos ór-
dições, romper a censura à imprensa e dar gãos de repressão, baseado em torturas
liberdade a dirigentes opositores ao regi- dos presos, que entregavam à polícia da-
me. Mas sua resistência a aceitar as con- dos sobre seus companheiros, sob amea-
dições se chocava com a pressão do go- ças de sofrimentos ainda maiores, além do
verno norte-americano, que pugnava pe- risco iminente da morte. Foi possível, as-
la vida de seu embaixador. Aceitar as pres- sim, aos órgãos repressivos das FFAA ir
sões dos EUA significava, também, para infligindo pouco a pouco reveses nos gru-
o regime militar, confessar sua dependên- pos de esquerda, até que chegaram aon-
cia em relação a Washington. de mais queriam: a Carlos Marighella.
O seqüestro teve sucesso, o manifes- Isolado pelo cerco repressivo, Mari-
to dos guerrilheiros foi lido por rádio e ghella buscou refúgio junto a padres do-
televisão, os quinze presos foram liberta- minicanos de esquerda, sem saber que al-
dos e seguiram de avião para Cuba. Foi guns estavam presos e outros sob contro-
o auge da luta guerrilheira urbana no le dos órgãos da repressão. Assim, ao mar-
Brasil.
126 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 127
Médici, que representou a vitória da cha- sucesso para libertar militantes presos.
mada "linha-dura" dos militares, aquela Mas já eram ações defensivas, para dimi-
mais disposta a resolver a fogo e sangue nuir os desgastes impostos pela repressão.
os conflitos para fazer triunfar a "pátria A guerrilha havia ficado confinada nas ci-
grande" prometida pela doutrina de se- dades. Apenas um acampamento de trei-
gurança nacional. Elaborada pela Escola namento guerrilheiro rural se estabelece-
Superior de Guerra ao longo dos anos 50 ra, no Vale do Ribeira, pela VPR de
e 60, sob a influência direta dos EUA, es- Lamar-
ta doutrina caracterizava o corpo social ca, mas foi desbaratado também pela re-
como um órgão vivo, no qual só se ad- pressão. O sucesso nas cidades e as difi-
mite a solidariedade de cada parte com o culdades para a organização da guerrilha
todo. Qualquer divergência ou conflito é rural estenderam o tempo de ação nas ci-
considerado como ação de um corpo ex- dades, enquanto as bases possíveis de
terno - "inimigo externo", no caso, so- apoio para a luta armada eram neutraliza-
viético, chinês ou cubano -, afetando o das ou se distanciavam da oposição.
funcionamento harmônico da totalidade. No começo de 1971 foi feito o último
É uma doutrina totalitária, que deu cober- seqüestro de embaixador, que promoveu
tura ideológica às ditaduras do cone sul a libertação de mais 70 presos políticos.
latino-americano. Essa ação foi realizada pelo capitão
Os movimentos guerrilheiros perde- Lamar-
ram capacidade de ação e de iniciativa. O ca, que, em seguida, discordando da linha
tempo passou a contar favoravelmente à considerada militarista - por privilegiar
ditadura, que conquistava suas bases so- os enfrentamentos armados, deixando pa-
ciais, se não para um apoio ativo, pelo me- ra segundo plano o trabalho político de
nos para se manterem neutras, uma espé- massas -, mudou de organização políti-
cie de apoio passivo, de fechar os olhos ca e foi tentar desenvolver um trabalho
para a repressão, desde que tivessem aces- com os camponeses no interior da Bahia.
so aos privilégios que lhes eram prome- Ali Carlos Lamarca foi descoberto pela re-
tidos. pressão e morto, desaparecendo assim a
Houve ainda o prolongamento herói- segunda grande figura da luta armada da-
co de ações guerrilheiras, entre elas ou- quele período da esquerda brasileira.
tros seqüestras d~ diplomatas, todos com O PC do B havia se preparado direta-
mente para a guerrilha rural e começou
a desenvolver um foco guerrilheiro no
130 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 13
1
A terceira geração:
o socialismo democrático
I para a frente.
O outro fator que contribuiu para
acentuar as debilidades do governo foi
param o lugar de vanguarda no setor in-
dustrial, tanto por seu desenvolvimento
tecnológico, quanto pela quantidade de
que o capitalismo internacional concluía trabalhadores empregados. A indústria au-
seu período expansivo começado no pós- tomobilística passou a desempenhar pa-
guerra e entrava num ciclo de caráter re- pel central na nova composição do pro-
Geisel agiu contra os militares respon- cessivas greves - em 1978, 1979 e 1980
sáveis por esses atos, classificando-os co- -, obter o atendimento de reivindicações
mo "excessos" que deviam ser punidos. que contrariavam a política econômica do
Embora conivente com seus órgãos re- regime.
pressivos, Geisel se viu obrigado moral- Em segundo lugar, graças ao imenso
mente a agir dessa forma, sob pena de I apoio dos trabalhadores e da solidarieda-
desmoralização completa de seu projeto de da população em geral, os movimen-
de abertura política. tos grevistas conseguiram resistir às ofen-
Em 1977, o governo Geisel teve que sivas repressivas, que incluíram a inter-
retroceder quando, diante de resistências venção no sindicato, a prisão de líderes
do Congresso em aprovar medidas do dos movimentos e a dissolução à força de
Executivo, este foi fechado e os militares assembléias dos trabalhadores.
voltaram a apelar para atos institucionais, Essas assembléias eram realizadas no
que introduziram a figura do senador bió- estádio de futebol de São Bernardo do
nico e determinaram a extensão do man- Campo, com a participação de dezenas de
dato presidencial, entre outras medidas milhares de operários, com helicópteros
1
Por sua vez, o esgotamento do PMDB cando compensar essa orientação com
como partido dirigente da transição de- políticas sociais. O projeto de moderni-
1
mocrática
5 gerou crises internas, produzin- zação neoliberal os seduziu, a ponto de
2
do, numa delas, o surgimento do Partido a direção do PSDB ter se pronunciado
da Social Democracia Brasileira (PSDB). majoritariamente pela participação no go-
A verno de Fernando Collor, um mês antes
nova formação - que tomou o "tucano" da eclosão dos escândalos que levaram a
como seu símbolo - se propôs a reivin- seu irnpeacbment, A negativa desse par-
dicar entre nós a ideologia social-demo-
tido de dar esse passo não impediu que
crática, de forma diferenciada em relação
vários de seus principais intelectuais (co-
à versão nacionalista de Brizola, em con-
mo Hélio ]aguaribe e Celso Lafer, entre
comitância com os novos perfis exibidos
outros) ingressassem no governo de
pelos partidos da Internacional Socialista
ao longo dos anos 80. Collor.
O PSDB passou a congregar boa parte Expressavam-se aí confluências entre
dos quadros mais prestigiados do PMDB a nova orientação do PSDB e as forças
(como Fernando Henrique Cardoso, Ma- conservadoras brasileiras - especialmen-
rio Covas, Pimenta da Veiga), sem contu- te o PFL - que passaram a fazer da mo-
do conseguir abrigar toda a esquerda do dernização neoliberal do Estado sua prin-
partido do qual se originava. No entanto, cipal bandeira política e ideológica.
passou a figurar como nova alternativa de O PSDB foi redefinindo sua interpre-
centro-esquerda no espectro partidário tação da crise brasileira, passando da crí-
brasileiro, uma novidade para um cená- tica à privatização do Estado feita pelos
rio com poucos partidos com definições setores conservadores para a versão se-
ideológicas claras. gundo a qual reside no déficit público o
Logo, porém, o PSDB passou a viver nó que. bloquearia o desenvolvimento
os mesmos problemas da social-democra- econômico do país. Este, uma vez reto-
cia européia e, posteriormente, latino- mado, após um combate radical à infla-
americana: com o esgotamento do Esta- ção, levaria ao desenvolvimento social.
do de bem-estar social, que havia diferen- O impeacbment de Collor levou à pre-
ciado esses partidos das formações polí- sidência Itamar Franco, um político sem
ticas conservadoras, os social-democratas expressão própria, a ponto de formar um
foram aderindo ao neoliberalismo, bus-
SER DE ESQUERDA NO BRASIL
153
15 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 15
4 5
governo com todas as forças políticas que A atuação de FHC se caracterizou por
se dispusessem a isso, da direita - atacar o déficit público - considerado a
incluindo os partidos que haviam gover- raiz do processo inflacionário - median-
nado com Collor - até os setores de es- te drásticos cortes nas políticas sociais,
querda disponíveis. Após um período de que viram reduzidos em vários bilhões de
indefinições, com ministros da Economia dólares seus recursos no ano em que es-
fracos, que davam continuidade às polí- teve no Ministério da Fazenda e no perío-
ticas gradualistas neoliberaís iniciadas no do em que sua equipe deu continuidade
último ano do governo Sarney, numa das a suas orientações. Enquanto isso, essa
crises geradas pela continuidade e aumen- equipe formulou um plano de combate
to da inflação, foi chamado a assumir o ao elemento inercial da inflação, mediante
Ministério da Fazenda Fernando Henrique a introdução de uma nova moeda, "des-
Cardoso, até então ministro das Relações contaminada" desse elemento inercial.
Exteriores. O PSDB participava do gover- Essa nova moeda, introduzida gradual-
no, revelava-se o partido mais identifica- mente, se lastrearia numa taxa de câmbio
do com a presidência de Itamar Franco, desvalorizada e num controle salarial.
mas somente a partir daquele momento Ao mesmo tempo que esse plano era
é que pôde dispor do controle do cora- formulado, se articulava a candidatura do
ção fundamental de suas políticas, com a próprio FHC para a sucessão de Itamar
nomeação de FHC para o posto econô- Franco, como capitalizador dos efeitos
mico chave. antiinflacionários imediatos do plano e
A partir de maio de 1993, FHC come- como garantia de sua continuidade.
çou a articular um plano econômico que As forças conservadoras brasileiras,
materializaria sua concepção sobre o ca- que já haviam passado por uma situação
ráter da crise brasileira. Como reiterou aflitiva em 1989, com a ameaça de vitó-
tantas vezes o então ministro da Fazenda: ria de Lula nas eleições presidenciais, vol-
"A economia privada vai bem, o Estado tavam a chegar à sucessão sem um candi-
é que vai mal". Esse mote passou a resu- dato forte e sem partidos consistentes que
mir a nova concepção que presidiria a garantissem a reprodução das condições
ação do PSDB e do governo Itamar Fran- de sua dominação.
co, que teve em FHC uma espécie de su- No momento da queda de Collor,
perprimeiro-ministro. atribuiu-se a Roberto Marinho - o pode-
15 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 15
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16 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 16
0 1
inflação que já beirava os 50% mensais em pequena medida". Por detrás deste ar-
coincidissem com os meses prévios às gumento, está a adesão ao argumento de
eleições. Isso, mais o apoio generalizado que terminou a divisão entre direita e es-
dos grandes meios de comunicação, me- querda.
diante uma campanha que projetava a re- Finalmente, o terceiro discurso foi di-
solução da crise brasileira em todas as suas recionado às classes populares, para quem
dimensões pela introdução da nova moe- a introdução da nova moeda foi decisiva.
da, identificada com o candidato do go- Sua mensagem foi o resgate da esperan-
verno, propiciou que Fernando Henrique ça, a partir da recuperação - real ou su-
Cardoso passasse de 17% a 45% das in- posta - do poder aquisitivo da moeda (e,
tenções de voto em pouco mais de um por meio dela, do salário).
mês. No seu conjunto, muda a própria ideo-
Sua candidatura se apoiou entre dis- logia do que seria a social-democracia bra-
cursos diferentes justapostos. O primei- sileira e, com ela, a análise sobre o poder.
ro dirigiu-se à direita e à própria elite do Este deixa de estar nas mãos das oligar-
poder, e tinha um conteúdo claro: "Só eu, quias tradicionais para desaparecer como
um candidato originário da esquerda, pos- temática direta. Substitui-se pela idéia de
so derrotar a esquerda, que ameaça a sua que é possível, por meio da persuasão, da
continuidade no poder". Será preciso, pa- razão tecnocrática e de uma certa dose de
ra isso, entregar os anéis - alguns, pelo esperteza, não apenas neutralizar a opo-
menos - para preservar os dedos. A for- sição desses setores, como até tê-los so-
ça da candidatura de Lula nas pesquisas mados a um projeto de modernização do
e o fortalecimento do PT desde 1989 ser- Estado.
viram como pano de fundo desse argu- Claro que essa nova ideologia teve de
mento. mudar de natureza, deixando de lado a
O segundo discurso voltou-se para os democratização do Estado, para adequá-
setores médios, aos que desejam transfor- 10 às necessidades da nova etapa do pro-
mações no Brasil sem convulsões sociais, cesso de acumulação de capital baseado
a quem ele disse: "Vamos transformar o na desregulamentação, na prívatízação e
país desde cima, devagar, convencendo na abertura da economia ao exterior, is-
as elites de que isso é necessário, até por- to é, nos postulados centrais do neolibe-
que não afetará seus interesses ou o fará ralismo. Nesse sentido, o programa oficial
16 EMIR SADER
2 SER DE ESQUERDA NO BRASIL 16
3
- --
166 EMIR SADER SER DE ESQUERDA NO BRASIL 167
Com a eleição de Fernando Henrique tar um bloco no poder que conseguiu gal-
Cardoso, a vida política brasileira entrou vanizar a simpatia popular mediante o en-
em uma nova fase, mais complexa e, ao frentamento - ainda que provisório e
mesmo tempo, mais de terminante para os epidérmico - da inflação. Esse bloco pre-
destinos do país nas próximas décadas. tende, a partir da força acumulada, inscre-
Por um lado, o bloco no poder se reno- ver seu triunfo no plano institucional, me-
vou, com um contingente significativo de diante reformas constitucionais que faci-
quadros originários da esquerda, de seus litem ainda mais a livre circulação do ca-
setores mais moderados. O governo de pital, conforme os novos requerimentos
FHC representa uma tentativa de reforma do processo de acumulação capitalista in-
do Estado e da economia em aliança di- ternacionalizado. Assim como pretendem
reta com os representantes dos detento- introduzir as reformas do Estado e de suas
res das principais alavancas de poder no políticas sociais, para consolidar um mo-
país - os banqueiros, os donos dos gran- delo de sociedade apartada, que garante
des meios de comunicação, os proprietá- condições de reprodução melhorada pa-
rios dos grandes monopólios empresa- ra setores minoritários da população, en-
riais, nacionais e estrangeiros, incluídos, quanto relega à falta de cidadania uma
entre estes, os bancos internacionais. maioria crescente da população.
É uma aposta arriscada. A regra - vin- Redefinem-se os termos direita e es-
da de outras experiências históricas, mas querda, em vez de desaparecer. Resta re-
também da nossa - é que a cooptação discutir seu significado neste novo qua-
se faça a favor do bloco conservador, no dro, neste fim de século.
fenômeno conhecido como transformis-
mo, na linguagem de Gramsci, ou de gat-
topardismo, na versão mais populariza-
da, em que a mudança da forma garante
a continuidade do conteúdo das forças
hegemônicas.
De qualquer forma, o enfrentamento
entre direita e esquerda, longe de ser su-
perado, ganha novos contornos, exigin-
do desta uma readequação para se enfren-
•
NOlM DIREITA?
NOlM ESQUERDA?
•
Desde que a Revolução Francesa gerou
e as barricadas de 1848 consolidaram os
termos direita e esquerda, nunca como
agora o questionamento dessas categorias
foi tão amplo. Uma periodização que ten-
ta dar conta do fenômeno localiza em
1848 sua primeira expressão organizada:
"Em algum lugar na metade do século de-
zenove - 1848 é uma boa data simbólica -
surgiu uma inovação sociológica de profun-
da significação para a política da economia-
mundo capitalista. Grupos de pessoas envol-
vidas em atividades anti-sistêrnicas começa-
ram a criar uma nova instituição: a organiza-
ção sistemática com membros, funcionários
e objetivos políticos específicos (ambos, de
longo e de curto prazo).,,2
--
174 EMIR SADER NOVA DIREITA? NOVA ESQUERDA?
175
o igualitário, para Bobbio, é aquele tio nada frontalmente. Qualquer que seja
que parte de que as desigualdades t~m ~ri- a característica que se tenha atribuído à
gens sociais e, por isso, sã? su~~r~vels e sociedade instaurada na antiga Rússia a
negativas, enquanto o deslgual1tano par- partir de 191 7 - socialismo, socialismo
te da convicção oposta, ou seja, de seu de Estado, capitalismo de Estado ou ou-
caráter natural, inevitável, e qualquer ação tra -, a ordem capitalista foi centralmen-
para superá-Ia se constitui num ex?e~ien- te quebrada. Um tipo de sociedade "pós-
te negativo. A conclusão de Bobbío e cla- capitalista" passou a existir, sob modali-
ra: "a distinção entre direita e esquerda, dades distintas daquelas contidas na obra
para a qual o ideal da igualdade sempre de Marx e que demonstrou, com sua de-
foi a estrela polar pela qual ela sempre se saparição, tanto o equívoco da idéia de
orientou e continua a se orientar, é mui- que "a roda da história não volta para
to clara". (Id., ib., p. 86.) O aprofunda- trás" quanto a idéia da naturalização do
mento da desigualdade no mundo con- capitalismo.
temporâneo apenas dá a medida do cami- No primeiro caso, a própria idéia do
nho que a esquerda somente começou a que está "atrás" ou na "frente" fica ques-
percorrer. tionada e, com ela, a reivindicação do
Os anos transcorridos desde a queda "progresso" como elemento positivo, em
do muro de Berlim e o fim da URSS per- contraposição aos "reacionários" que se
mitiram refletir com mais clareza sobre o oporiam a ela. Se a história "avança", o
que sobrevive e o que fica superado na que se opõe a esse avanço é negativo. Es-
teoria da história. Em primeiro lugar, o sa concepção se nutria de uma das inter-
próprio fim da URSS coloca uma série de pretações do marxismo, aquela que des-
questões antes "resolvidas" ~u não col?- cansa no desenvolvimento das forças pro-
cadas pela inexistência de parametros hís- dutivas como o "motor da história", aqui-
tóricos para sua compreensão. lo que lhe dá significado e que qualifica
Inicialmente, a idéia de um movimen- cada fenômeno e todo o movimento da
to da história (por vias diretas ou trans- história.
versas) que avançou do comunismo pri- No momento em que o neoliberalismo
mitivo em direção à superação do capita- se apropriou da idéia de "progresso eco-
lismo, para a instauração de uma socieda- nômico", a partir da crise e do esgota-
de sem classes e sem Estado, ficou ques- mento do Estado de bem-estar social, essa
EMIR SADER NOVA DIREITA? NOVA ESQUERDA? 18
18
1
0
desse tipo de Estado, do qual foram re- do, as empresas estatais passaram a ser
flexos a inflação internacional e a baixa ob-
da produtividade do trabalho nos princi- jeto de interesse por parte deste. Entre es-
pais países capitalistas industrializados. O tas empresas se encontram as de serviço
Estado, de solução para o problema das público, como a eletricidade, a telefonia,
crises, passava a ser parte do problema. as estradas, a telecomunicação, além das
O neoliberalismo foi uma contra- empresas que exploram matérias-primas,
ofensiva dos setores dominantes no capi- como o petróleo, o cobre, o estanho.
talismo, na direção de uma política alter- Quanto ao corte no déficit público,
nativa. Seus fundamentos são a desregu- trata-se precisamente de diminuir os gas-
lamentação da economia, a privatização e tos estatais com pessoal e com políticas
o corte no déficit público. A desregula- sociais, isto é, aquelas que beneficiam as
mentação significa fazer exatamente o ca- camadas médias e populares. O diagnós-
minho oposto ao do Estado do bem-estar: tico neoliberal considera que a inflação e
liberar as travas para a livre. circulação do o descontrole dos gastos estatais viriam
capital, na crença de que as regras do mer- da folha salarial do Estado e de seus gas-
cado tenham a virtude de repartir devida- tos em educação, saúde, habitação, sanea-
mente os recursos na sociedade. É uma mento básico, considerados populistas.
crença clássica do liberalismo do século Uma parte destes seria absorvida pelo
XVIII, retomada no final do século XX, mercado, na medida em que as pessoas
diante do esgotamento das políticas de re- dispusessem de recursos para se associar
gulamentação do mercado, consideradas a planos privados de saúde ou para colo-
como travas para a livre circulação do ca- car seus filhos em escolas particulares.
pital, que teria a virtude de alocar de for- O neoliberalismo acentua assim o ca-
ma equilibrada os recursos da sociedade. ráter mercantilista do capitalismo em de-
A privatização também se dirige no trimento da presença do Estado, com seu
mesmo sentido: diminuir a presença do papel regulador e de correção das defor-
Estado na economia, abrindo simultanea- mações introduzi das na economia e na vi-
mente mais espaço para o capital privado. da social pelas relações de mercado. Além
Em grande parte financiadas pelo Estado disso, ao favorecer a livre circulação de
quando não interessavam ao capital priva- capital em escala nacional e internacional,
8 privilegia a hegemonia do capital interna-
19 EMIR SADER NOVA DIREITA? NOVA ESQUERDA? 19
0 1
cional, que, no período atual do capita- quisa tecnológica, além das desigualdades
lismo, é, em grande medida, o capital fi- sociais que se acentuaram, como a des-
nanceiro. proteção de idosos, negros, mulheres, jo-
Com o domínio neoliberal, ganham os vens, pobres.
setores do grande capital, principalmen- Em seguida o neoliberalismo genera-
te o capital monopolista e o financeiro, lizou-se como modelo hegemônico do ca-
mais ainda aquele internacionalizado. Per- pitalismo, incorporando aos governos
dem os que, via luta política, haviam con- social-democratas, como os de Mitterand
seguido conquistas sociais garantidas pe- na França, de Felipe Gonzalez na Espa-
lo Estado. Com a política neoliberal mul- nha, até estender-se aos ex-regimes do les-
tiplicam-se também o desemprego - tan- te europeu e da ex-URSS.
to estatal, via diminuição dos gastos pú- O neoliberalismo é um remédio amar-
blicos, como privado, através da raciona- go que os países do Primeiro Mundo não
lização da produção - e a economia in- tomam na dosagem que propõem ao Ter-
formal, com o aumento radical das pes- ceiro Mundo ou, se o tomaram, já passa-
soas sem carteira assinada e sem cober- ram a corrigir seus rumos, com a substi-
tura previdenciária, dos quais a terceiri- tuição de seus mandatários neoliberais.
zação é um dos fatores. No Brasil, o neoliberalismo - apoia-
O neoliberalismo foi pregado pelos do por muitos partidos de centro e de di-
países do Primeiro Mundo, mas inicial- reita, e pela maioria da grande imprensa
mente apenas alguns, entre eles os Esta- - aparece como a via de modernização
dos Unidos e a Inglaterra, colocaram-no do país. Seria necessário diminuir o tama-
em prática, ainda assim não de maneira nho do Estado, como forma de comba-
tão radical quanto a que é proposta aos ter a inflação, privatizar para desenvolver
países do Terceiro Mundo. E, mesmo as- tecnologicamente as empresas, abrir a
sim, os EUA de Ronald Reagan e George economia para internacionalizá-Ia e espe-
Bush e a Inglaterra de Margaret Thatcher cialmente desregulamentar a economia,
foram precisamente os países do Primei- para fazer com que as leis do capital (do
ro Mundo que mais se atrasaram econo- grande capital, bem entendido) reinem
micamente. O neoliberalismo, nesses paí- soberanamente.
ses, implicou deterioração do sistema
educacional, do sistema de saúde, da pes-
f)
I
Esse caminho é apresentado como ine- Ser de direita hoje no Brasil consiste
vitável e não como uma alternativa de di- nisso. A ação da direita começa por des-
reita, que beneficia o grande capital mo- qualificar suas divergências com a esquer-
nopolista e financeiro privado e interna- da. Faz parte do pensamento de direita di-
cionalizado. A modernidade é concebida zer que direita e esquerda não existem
apenas na sua dimensão econômica. Mes- mais. Porque se sabe que a direita está his-
mo que fosse assim, os países que mais toricamente identificada com o conserva-
se desenvolveram nas últimas décadas - dorismo, com a elite, com a desigualdade
Japão, Alemanha, Coréia do Sul- não o social.
fizeram por essa via. E a verdadeira mo- O neoliberalismo, como proposta de
dernidade significa a superação do atra- reorganização da sociedade em função do
so, a implantação dos direitos de cidada- livre mercado, deixa entregues ao espíri-
nia para todos, e tem assim uma inerente to mercahtilista os direitos à saúde, à edu-
dimensão ética, espírito público e preo- cação, à vida, enfim. Representa a versão
cupação social. moderna das ideologias que alimentaram
Ao representar um sistema excluden- a perpetuação do poder das elites e das
te, que relega ao abandono amplos seto- mentalidades conservadoras e antidemo-
res da população que não têm oportuni- cráticas, desde que os ideais de igualdade
dades para alcançar uma vida digna, o foram levantados com força na Revolução
neoliberalismo traz no seu bojo outro as- Francesa. Representa hoje a consolidação
pecto da ideologia de direita: o aprofun- de uma sociedade de apartação social.
damento do racismo, do chauvinismo, da A esquerda nasceu com a Revolução
discriminação. A quantidade de exceden- Francesa, que deu sentido a essa qualifi-
tes no mercado de trabalho só aumenta. cação. Tratava-se ali de tornar real a liber-
Meninos e jovens de rua, quase sempre dade, a igualdade e a fraternidade. De não
nordestinos, negros e mulatos, passam a permanecer na igualdade e na liberdade
ser vítimas de total abandono, de indife- formais, mas de permeá-las intrinseca-
rença por parte de um sistema social mal- mente da fraternidade. A reivindicação da
thusiano, no qual, em vez de se aumen- justiça social definiu a esquerda desde
tar o número de chapéus, ou se distribui- suas origens.
rem os chapéus que já existem, propõe-se
ignorar as cabeças necessitadas, para se
adequar a procura à oferta.
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194 EMIR SADER NOVA DIREITA? NOVA ESQUERDA? 195