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Sumário

coluna
Francisco Bosco
Marcia Tiburi
Vladimir Safatle

entrevista Sueli Carneiro

dossiê Variações sobre a luta de classes


Apresentação
Direito ao aborto e maternidade: gênero, classe e raça na vida das mulheres
O urbano no contexto do subdesenvolvimento
Chão de estrelas
Da “justiça dos pobres” ao golpe de toga

reportagem
Laboratório social

livros
Vozes subterrâneas
Entre governados e ingovernáveis
Rousseau a passeio

colaboraram nesta edição


coluna

O futebol, o Brasil e o mundo


FRANCISCO BOSCO

Nos últimos anos, como se sabe, o futebol brasileiro experimentou uma profunda crise, sem precedentes
em toda a sua história, desde que, com a conquista de sua primeira Copa do Mundo, superou o complexo
de vira-latas e assumiu o protagonismo do esporte mais popular da terra. Durante esse período,
conhecemos, é claro, melhores e piores momentos. Tivemos derrotas inesperadas, fases de renovação,
um longo período sem vencer a Copa do Mundo.
Mas as derrotas, mesmo as contundentes, eram pontuais e se deviam a fatores como times
desorganizados, jogadores negligentes, brilhos fugazes de adversários sem grande tradição. Era a época
dos “vexames”: derrota para Honduras, goleada para o Chile etc. Houve também breves períodos de
entressafra, em que apareciam no cânone dos cânones que é a seleção brasileira jogadores sem renome e
sem qualidade técnica à altura. E sobre nossas sucessivas derrotas em Copas do Mundo – até o tetra de
1994 que inaugurou três finais consecutivas – elas se deveram mais ao acaso constitutivo do futebol do
que a problemas estruturais indicadores de transformações profundas.
A partir dos anos 1990, entretanto, começava a se chocar o ovo da serpente. Seu embrião se revelava
na expressão “não tem mais time bobo”, que alguns, sentados no trono de uma suposta soberania
vitalícia, procuravam desacreditar. O fato, contudo, era que a globalização havia intensificado as trocas
culturais no futebol; as informações circulavam, técnicos e jogadores passavam por equipes de todo o
mundo, e com isso foi-se formando um patamar médio de técnica e tática que diminuiu o fosso antes
existente entre países de tradição futebolística e outros desprovidos dela. Já não se podia, como observou
a boutade de Felipão, “amarrar cachorro com linguiça”.
Nada disso, entretanto, nos impediu de retomarmos (sem que nunca a tivéssemos realmente perdido)
a hegemonia do futebol mundial disputando três finais de Copas seguidas e vencendo duas delas. Em
todas, contamos com a excepcionalidade técnica de craques como Romário, Bebeto, Rivaldo, Ronaldo e
Ronaldinho Gaúcho. Naquela que seria a esperada quarta final, uma geração extremamente talentosa
sucumbiu de forma estranha, simbolizada pelo enigma depressivo de Ronaldinho. O mesmo Ronaldinho,
sem o saber, estava envolvido na grande transformação por que o futebol passaria. O fim do seu time no
Barcelona, comandado por Rijkaard, daria início à revolução de Guardiola, Xavi, Messi e companhia.
Foi essa revolução que fez o Brasil perder o compasso da história e mergulhar por longos seis ou sete
anos na maior crise de sua história.
Essa crise teve dois marcos principais. O primeiro, em 2011, quando o Santos de Neymar e Ganso (as
maiores promessas de nosso futebol) levou um verdadeiro sapeca-iá-iá do Barcelona de Guardiola. Não
foi uma derrota normal, nem mesmo uma goleada normal. O time do Santos mal tocou na bola o jogo
inteiro. Levou, como disse Neymar ao fim do jogo (numa atitude que deveria representar – mas não
representou – a forma de o país encarar o que estava acontecendo), “uma aula de futebol”.
O segundo, claro, foi o 7 × 1 contra a Alemanha, quando o bumerangue da antiga boutade voltou
com todo o peso de uma reviravolta da história e atingiu em cheio a cabeça perdida de Felipão. No caso,
a linguiça que ele amarrou foi simbolizada pela escalação de Bernard, vulgo “alegria nas pernas”,
consolidando de vez uma incompreensão tática profunda, prontamente devorada pelo cachorro alemão,
que ainda teve, como viemos a saber depois, “humildade em gol”.
Muito se disse, durante esse período, que tínhamos nos afastado de nossa própria tradição de
“futebol-arte”. Chamaram Mano Menezes, que entregou à malta o espelho perdido do protagonismo-
espetáculo. Deu errado. Chamaram Felipão e Parreira, insistindo na perspectiva de que a história não
existe, e portanto o Brasil precisava apenas voltar a ser o que já fora. Levamos a maior goleada da
história. Chamaram, por fim e de novo (!), Dunga, porque o clamor por “raça” e autoritarismo é o último
recurso da incompreensão. A CBF se comportou, nesse tempo, como a Corte Celestial chinesa durante o
século de humilhação que teve início com a Guerra do Ópio e só foi se encerrar na revolução maoista:
décadas de primazia distorceram o seu senso de realidade e a impediram de reconhecer o movimento da
história e a perda do protagonismo.
Mas a verdade histórica esteve todo o tempo alhures. Não era que o Brasil tinha se afastado da sua
forma de jogar futebol (e por isso entrara em decadência) – é que a forma de se jogar futebol tinha se
afastado do modo de ser do Brasil (e por isso o relegara à inferioridade). O futebol como jogo singular
em que prevaleciam o improviso, o descompasso entre a produtividade e o resultado, o talento
excepcional; esse jogo foi se transformando em mais um esporte em que tem grande peso o
planejamento, a racionalidade, o pensamento tático, a organização coletiva. No fundo, é o modo de ser
anglo-saxão dominando um dos últimos redutos culturais do mundo que lhe ofereciam resistência.
Quando o Barça aplicou no Santos aquele chocolate desnorteante, Guardiola disse que seu time se
inspirava no futebol brasileiro de antigamente. Não era verdade. Seu time representava uma
transformação histórica, cujo sentido era basicamente o privilégio da tática, da ocupação dos espaços, da
valorização da posse de bola, da importância conferida ao passe, mais do que ao drible (por isso, para
mim, o símbolo dessa era é Xavi, mais até do que Messi).
Essa revolução, como qualquer outra, não surgiu do nada. Ele se apoiou na tradição do futebol
europeu, os “donos do campo”, como disse Chico Buarque, diferenciando-os de nós, os “donos da bola”.
Na cultura do futebol de “prosa”, em oposição ao de “poesia”, nos termos de Pasolini. Mas essas
diferenças nunca antes na história haviam se manifestado do modo como passou a acontecer a partir do
time de Guardiola. Esse time marca o advento de uma era da tática, instaurador de uma técnica
correspondente. O salto tático não anulou a importância do drible, do improviso, da genialidade – mas
como que a submeteu a si mesma: um craque absoluto já não faz a diferença sozinho, contra um time
bem armado taticamente. A disposição tática – linhas organizadas, equipe compacta, aproximação,
passes curtos, triangulações, muita movimentação etc. – passou a ser condição para o destaque
individual.
Assim, o próprio sentido da técnica foi transformado. Não existe técnica dissociada de um contexto
específico de jogo. O grande jogador dos anos 1960 era grande relativamente às condições do jogo que
se apresentavam a ele. O grande jogador contemporâneo deve ser grande diante das condições atuais.
Ora, essas mudaram profundamente. É por isso que até mesmo a crise técnica por que passou o futebol
brasileiro foi mal interpretada. Não é exatamente que deixamos de produzir craques como produzíamos
no passado; é que não é mais possível produzir craques nos mesmos termos que o fazíamos no passado.
A posição que mais fez falta ao Brasil nos últimos anos foi a de volante. Enquanto a Europa inventava o
paradigma Xavi (de aguda consciência espacial, aproveitamento quase perfeito dos passes, conciliação
de intensidade na marcação e capacidade de articulação do meio de campo), nós permanecíamos no
antigo paradigma volante “cabeça de bagre” × meia talentoso. Em suma, o próprio sentido da técnica se
transformou. Isso explica o porquê de um jogador como Ganso não dar certo no futebol mundial. Seu
problema é unicamente ter nascido na década errada.
E é por isso tudo que a solução do nó em que se meteu o futebol brasileiro exigiu, sobretudo, um
técnico. Os jogadores são os mesmos. Mas se promoveu finalmente um desrecalque da história e entrou
o aggiornamento da dimensão tática – por meio de um técnico conhecido, Tite, não por sua figura
folclórica, mas por sua linguagem. Foi-se o tempo também da linguagem de Nelson Rodrigues,
linguagem-mor da nossa época de ouro futebolística, linguagem do puro prazer barthesiano, em que se
nos oferece o espelho maravilhoso de nossa autoimagem cultural, ela mesma também passada, como
aquela sociedade meio ociosa, irreverente, cordial, cheia de poesia cotidiana, malícia e improviso.
Pois, se o jogo mudou, mudou também a linguagem que o propõe e descreve. Essa transformação, no
âmbito da linguagem, se deu nos termos da substituição do paradigma Nelson Rodrigues pelo paradigma
Paulo Vinicius Coelho, o PVC, ou, se preferirem, o paradigma Tostão – ambos pioneiros, no Brasil, da
análise tática rigorosa, do conhecimento extenso (e, no caso de PVC, ainda do recurso constante a uma
dimensão estatística que lhe conferia a hybris típica dos precursores, com todo o estigma aí contido).
Tudo somado, eis um raro caso em que o Brasil parece ter conseguido resolver um problema
histórico. A conferir.
coluna

Crítica da razão negra: marcação e contramarcação


MARCIA TIBURI

Crítica da razão negra, de Achille Mbembe, publicado em 2013, dificilmente será superada no século
21, seja por seu conteúdo, seja por seu caráter ético-político. Divisor de águas na história do pensamento,
de agora em diante, toda a reflexão que se leve a sério está colocada em uma posição inconciliável com a
tradição da opressão que se constituiu em nome da lógica da raça por ele analisada. Negar o diálogo com
os argumentos de Mbembe, de agora em diante, implica a manutenção da mistificação branca que
sustentou o poder e o capital no lugar que conhecemos. Crítica da razão negra puxa o fio de linha podre
que sustentava a trama racista na história europeia, da qual nós, brasileiros, bem como todos os
habitantes das Américas, somos herdeiros, ora como algozes, ora como vítimas.
A história do racismo é a história do capitalismo, uma história de submissão dos corpos, de uso e
abuso dos seres nele capturados, por meio de operações eminentemente teóricas e discursivas, com
efeitos perversos na prática.
Ao procedimento de definir alguém como um outro chamamos de marcação. Ao definir esse outro
como um negativo, a marcação é o verdadeiro mal radical enquanto aniquilação da humanidade do outro.
Marcados são os sujeitos da diferença, tratados constantemente como objetos, coisas, mercadorias.
Assim é com aqueles que são marcados como Negros, reféns da lógica perversa da raça, criada para a
manutenção de crenças e preconceitos que serve a uns em detrimento de outros.
O MAL RADICAL É BRANCO
Essa lógica não é apenas racional, ela é também o princípio do mal radical evidente naquilo que
Mbembe chamou o “devir negro do mundo”, efeito de um delírio próprio da modernidade europeia que
sempre abordou a identidade em termos de espelho, como que inventando o “outro” para sustentar o
reconhecimento apenas do “mesmo”. Conseguia-se assim transformar outras pessoas em objetos, coisas
e mercadorias que poderiam ser utilizados como animais, energia física para o trabalho. O delírio se
comprova, na visão de Mbembe, quando ninguém, nem aqueles que inventaram o Negro, nem os que
foram englobados por seu nome, desejaria ser um Negro ou ser tratado como tal.
Hoje, aqueles que se autoafirmam a partir da raça, como Negros, sabem que usam um nome que não
deram a si mesmos. Muitos tentam fazer o melhor uso possível, um uso político de uma identidade, em
princípio, alienada. Ressignificam um nome forjado contra eles, um nome que foi criado com o objetivo
de promover um necessário empobrecimento ontológico para os fins do capitalismo sustentado
justamente na humilhação daqueles que são usados por ele. O sujeito humilhado, reduzido ao “calabouço
da aparência”, sujeitado à “falsificação de si pelo outro” não confronta os donos do poder do capital.
Pessoas e grupos marcados como Negros, assim como mulheres, índios e outras minorias políticas,
atuam hoje por meio de uma “contramarcação” na intenção de confrontar o poder sustentado na lógica
de aviltamento da qual a lógica da raça é um dos elementos mais importantes. Em nome desse
dispositivo capitalista foram perpetrados crimes, catástrofes e carnificinas: a escravatura, a colonização e
o apartheid são suas provas históricas.
A construção pragmática do Negro dependeu de uma armadilha ontológica que apaga aqueles que a
ela se submetem como sujeito de direitos, como cidadãos iguais a todos os demais e os localiza como um
não ser ao qual, quando muito, é permitido viver sob o paradigma da bondade e da condescendência que
serviu historicamente para reafirmar o delírio útil que deu ao mundo branco, preguiçoso e perverso, a
acumulação do capital.
Hoje, no fundo do poço social que é o efeito objetivo do neoliberalismo para todos, é preciso
confrontar essas construções sem mais mascaramentos brancos, para além da hostilidade racial que serve
aos donos do poder.
coluna

O último capítulo
VLADIMIR SAFATLE

Para muitos, o Brasil parece ter se transformado em uma incógnita Um país que, depois de elevado pela
imprensa mundial à condição de potência emergente, virtual quinta economia do mundo, vê-se agora
como um território em desagregação acelerada. Um país completamente à deriva. Para outros, ele
simplesmente expressa atualmente, de forma mais brutal, os impasses de um processo que deve ser
compreendido em sua dinâmica global. Reconstruir o sentido desta dinâmica global é condição
necessária para entendermos como um país pode chegar a impasses tão espetaculares em um prazo tão
curto de tempo. Pois a história brasileira é, na verdade, o último capítulo de outra história. Ela é o setor
mais influente da história latino-americana e esta, por sua vez, está vinculada nessas últimas décadas à
ascensão da esquerda ao poder.
De fato, a experiência da esquerda latino-americana no governo nestes primeiros anos do século 21
foi o último capítulo da história da esquerda mundial no século 20. O que podemos chamar de
“experiência latino-americana de governo de esquerda” presente nos últimos vinte anos em países como
Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua, Peru, El Salvador,
Haiti e Honduras foi o término de uma longa história mundial marcada pela tentativa de consolidar
políticas redistributivas, regulação dos agentes econômicos e fortalecimento de poder popular. Que esta
história tenha encontrado na América Latina um de seus terrenos fundamentais, eis algo a ser creditado a
uma conjunção de dois fatores.
Primeiro, a América Latina teve um déficit contínuo de integração popular aos processos de decisão
política até a década de 1990. Pois esta integração se deu normalmente de forma frágil, pelas vias do
populismo, e de forma intermitente, sendo rompida várias vezes pela ascensão de ditaduras militares, em
especial no período de meados dos anos 1960 até o final dos anos 1980. A América Latina foi capaz de
preservar uma concentração de poder no interior de grupos de elites cujas raízes, muitas vezes, são
encontradas ainda nos períodos coloniais. Tais grupos souberam se associar localmente a “formadores de
opinião” (como artistas e intelectuais), construir articulações cerradas entre estado-empresariado-
imprensa, garantindo assim sua perenidade.
Segundo, enquanto a luta pela integração popular aos processos de decisão política em continentes
com a Ásia e a África foi feita no interior de lutas coloniais, a América Latina tinha passado pela
descolonização já no século 19. Isto permitiu às lutas populares não serem imediatamente inscritas como
lutas eminentemente nacionais ganhando assim, de forma mais clara, a configuração de lutas sociais nas
quais questões transnacionais de classe e desigualdade podiam aparecer na linha de frente.
Lembremos então como a experiência latino-americana conheceu, nestas últimas décadas, dois eixos
principais. No primeiro, encontramos um modelo de polarização social normalmente marcado por
reformas estruturais nas instituições do poder e por processos de incorporação popular populista.
Encontramos aqui países como Venezuela, Equador, Bolívia e Nicarágua. Este modelo, autodenominado
“bolivariano”, vendeu-se como “o socialismo do século 21”, mas foi em larga medida dependente de
dinâmicas de constituição de corpos políticos que remetem ao populismo do século 20, com o
consequente investimento libidinal massivo em figuras personalizadas do poder, como no caso da
Venezuela. Essas dinâmicas identificatórias foram sua força momentânea e sua fraqueza final, pois os
processos de identificação personalizada se esgotam no tempo, não podem ser transferidos a outros
ocupantes do poder, fazendo da política a gestão contínua do vazio. O caso mais complexo deste grupo,
por ser o mais bem-sucedido, é a Bolívia, com sua organização institucional inovadora, seu crescimento
econômico ininterrupto e seu conceito de “estado plurinacional”.
No segundo eixo, encontramos um modelo de gestão social marcado, ao contrário, pela conservação
de estruturas institucionais próprias à democracia liberal e por processos de incorporação popular
também caracterizado como populista. Este é modelo próprio, principalmente, ao Brasil e à Argentina,
mas em menor grau ao Uruguai, Chile, Peru, El Salvador e, por algum tempo, ao Paraguai. Tal modelo
representou uma experiência retardatária que procurou realizar políticas locais de redistribuição
respeitando o espaço político próprio à democracia liberal, acreditando que poderia, de certa forma,
repetir determinadas estratégias de gestão da social-democracia europeia do pós-guerra. À exceção do
Uruguai, que soube mobilizar pautas de reconhecimento e liberalização de costumes para consolidar
adesão popular, e do Paraguai, que sofreu um golpe de Estado parlamentar já em 2012, este modelo
entrou em colapso mais ou menos ao mesmo tempo em todos os países. Resultado de políticas pós-
ditadura, ele foi uma paradoxal e única articulação entre horizonte de social-democracia e populismo. O
que não deveria impressionar ninguém, pois pensar a América Latina exige saber operar com paradoxos,
com contradições sem superações.
Seria bom começar nossa análise assim. O Brasil tem uma tendência particular a se ver como a maior
ilha do mundo, procurando desenvolver análises de seus processos político-sociais como se sua estrutura
causal fosse completamente endógena. No entanto, melhor seria se procurássemos perceber como se dá
nosso modo de integração a movimentos globais, não apenas para denunciar como em certos momentos
acabamos por mimetizar processos em atraso, mas principalmente por expor as dinâmicas de
esgotamento do que outros apenas começam a sentir. Nesse sentido, o fracasso da experiência latino-
americana, em especial em seu setor mais avançado, a saber, este capitaneado pelo Brasil, não é apenas
algo que diga respeito a uma região periférica do capitalismo mundial. Ele foi a realização paulatina de
que o tempo da democracia liberal e de seus acordos já não existia mais. Nós havíamos chegado tarde
demais. Por isso, a experiência latino-americana expôs, de forma mais explícita, o que o resto do mundo
começará a descobrir de forma dramática.
NÃO HÁ LÁGRIMAS PELO FIM DA DEMOCRACIA LIBERAL
Neste contexto, lembremos como a democracia liberal, tal qual a conhecemos, é uma invenção recente
que se consolidou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a um sistema de acordos e
equilíbrios entre setores sociais antagônicos vitoriosos ao final da guerra. Sua base de sobrevivência foi a
capacidade de orientar a política em direção a uma espécie de “luta pela conquista do centro”. Assim,
por exemplo, os partidos de esquerda paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional
para acabar por serem gestores do dito Estado de Bem-estar Social. Mesmo os partidos comunistas
europeus, fortes até o final dos anos 1970, com votações que podiam chegar a 30% (como no caso do
Partido Comunista Italiano), operaram no interior dessa lógica de respeito ao horizonte institucional
liberal, retirando de circulação toda luta por mutações institucionais profundas, operando no esquadro de
uma “coexistência pacífica”, isto até o momento em que perderam de vez sua força e relevância. Da
mesma forma, os partidos de direita foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo
social a ser respeitado, mesmo agindo com vista à liberalização da economia e a desregulamentação
gradativa das defesas trabalhistas contra a espoliação. Há de se lembrar que a constituição do Estado do
Bem-estar Social foi, de certa forma, uma criação conjunta entre esquerda e direita. Não é possível
contar a história da formação do Estado-providência alemão, por exemplo, sem passar pelas políticas
implantadas pelos democratas-cristãos, nem contar a história do seu símile francês sem passar pelo
gaullismo.
Exatamente por ser uma formação de compromisso, a democracia liberal e seus gestores do Estado
do Bem-estar Social estava fadada a durar pouco. Não porque ela produziria letargia econômica e baixa
competividade, mas porque o patronato, intocado em suas posses, utilizaria a primeira oportunidade para
aumentar rendimentos reduzindo os elementos do custo salarial e criando condições para uma verdadeira
reedição dos processos de acumulação primitiva. Ela veio em meados dos anos 1970 através de uma
conjunção improvável entre crise econômica e crítica cultural. Uma crise provocada não pelo custo da
previdência social, mas pelo conflito Israel-mundo árabe, ou seja, pelas consequências das ambivalências
das políticas coloniais no Oriente Médio. A crise do petróleo de 1973, que representará a primeira crise
global do pós-guerra, quebrou o ciclo mais constante de crescimento no século 20, produzindo uma
insegurança econômica profunda a ser aproveitada por novos discursos de reforma social.
Por sua vez, alguns podem achar estranho o papel da crítica cultural neste processo de esgotamento
da democracia liberal, mas ele é real. Para tanto, foi necessário uma inversão peculiar, destas que o
capitalismo mostrou-se hábil em operar. Maio de 68 produziu no Ocidente a ascensão da crítica à
estrutura disciplinar do Estado e das instituições, a recusa da rigidez da sociedade do trabalho e a
consciência do caráter extensivo do controle social próprio às figuras do Estado-providência. Ele
esperava com isso permitir a emergência de um sujeito político com força de transformação global em
direção a modelos capazes de recusar tanto o sistema burocrático soviético como a democracia liberal.
Esses sujeitos emergiram, mas com menos força do que imaginavam. Junto a eles emergiram também
tanto sujeitos claramente reativos, dispostos a lutar pela preservação da ordem e de suas tradições,
quanto simulacros de revolta. Este é o ponto mais importante: analisar tais simulacros de revolta que,
mesmo sem expor isto de forma clara, usavam a potência da sedição para empurrar o mundo para fora da
democracia liberal. No entanto, não para além dela, mas para aquém.
Nesse sentido, lembremos como o primeiro tremor no pacto que sustentou a democracia liberal se
deu com a leva neoliberal de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, ao final dos anos 1970. Nos EUA, o
pacto criado pelo New Deal, de Franklin Roosevelt, e em larga medida conservado por décadas foi
desmontado por uma política de retração do Estado, de desregulação progressiva da economia e redução
de impostos para os mais ricos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante
contra os sindicatos e as categorias profissionais. Há de se lembrar como, cinco anos depois de assumir o
governo do Reino Unido, Thatcher produzira simplesmente o declínio da produção industrial, o fim de
fato do salário mínimo, dois anos de recessão e o pior índice de desemprego da história britânica desde o
fim da Segunda Guerra (11,9% em abril de 1984).
Os arautos do modelo econômico atual gostam de se ver como vencedores de um embate no qual
teriam demonstrado ao mundo que o capitalismo neoliberal era a melhor forma, mesmo a única, de
produzir riqueza, inovação e bem-estar. As experiências de esquerda teriam falhado por criarem apenas
uma sociedade letárgica, presa na sustentação de um Estado ineficiente e pesado. Ou seja, tais
experiências teriam sido ultrapassadas pela lei inexorável da eficiência econômica, lei que desconhece
ideologias, que conheceria apenas “resultados”.
No entanto, os “resultados” mostram outra coisa. Eles mostram, por exemplo, como o nível de
pobreza nos EUA cai progressivamente até meados da década de 1970, voltando a subir exatamente com
a ascensão das políticas neoliberais, nunca tendo então caído de forma sustentada. Em 2015, ele atingia
13,5% da população (dados do US Census Bureau, Current Population Survey), mais do que em 2007.
Os índices de desigualdade aumentaram exponencialmente nos últimos trinta anos.
Mas o fato fundamental só agora fica visível: a ascensão do neoliberalismo como política de Estado
representou a destruição contínua da democracia liberal e seus pactos. Restringindo paulatinamente o
horizonte de políticas públicas, impondo a versão de que, no que diz respeito à economia, “não há
escolha” mesmo diante do caráter suicida do sistema financeiro internacional, explícito desde a crise dos
subprimes, o neoliberalismo conseguiu esvaziar a política e suas instituições. Seu mundo é a reedição de
um mundo pré-político, no qual as relações sociais se resumem à gestão da segurança e às garantias da
perpetuação dos modos atuais de circulação de riqueza. Aos poucos, ficou evidente como a política
mundial, depois de esvaziada da possibilidade de decidir modificações efetivas na esfera da economia,
tornara-se uma mera pantomima, composta de personagens exímios em demonstrar sua impotência.
É neste horizonte de capitulação que a experiência brasileira se insere. Isto ficou evidente com a crise
de 2008 e com a ausência de alternativas a um modelo econômico falimentar. O Brasil podia vender ter
ultrapassado o primeiro impacto da crise operando políticas proto-keynesianas e de consolidação de
capitalismo de Estado. Mas o caminho posterior será outro. Paulatinamente, seu destino foi o mesmo de
todos os atores políticos mundiais forçados a aplicar a mesma política de “austeridade”, com suas
contenções de investimentos públicos, seu desmonte de mecanismos de distribuição de renda e elevação
dos interesses do sistema financeiro mundial a dogma inquestionável. Este processo que agora mostra
sua face mais completa começa de maneira evidente no último governo Dilma.
entrevista Sueli Carneiro
Sobrevivente, testemunha, porta-voz
BIANCA SANTANA

“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser
carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém
jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram
melhor lugar algum! E não sou uma mulher?”

Este é um excerto do famoso discurso Ain’t I a woman?, proferido em 1851 por Sojourner Truth,
mulher negra norte-americana que nasceu sob o jugo da escravidão e se dedicou, depois de conquistar a
liberdade, à luta abolicionista e pelos direitos das mulheres. “Sojourner Truth traduz com seu discurso as
contradições e especificidades que marcam a experiência histórica de opressão e discriminação das
mulheres negras no contexto das relações de gênero. Gostaria que você ilustrasse com aquele discurso a
minha fala”, pediu Sueli Carneiro durante a entrevista concedida em uma das salas do Geledés Instituto
da Mulher Negra, organização fundada por ela em 1988.
Doutora em Educação pela Univer-sidade de São Paulo, Sueli estudou filosofia na graduação na
mesma universidade. Impossível falar de militância feminista e antirracista no Brasil sem fazer
referência, e prestar reverência, a Sueli. Quando procurada pela Revista CULT ela gentilmente
agradeceu o convite, mas disse que preferia não dar entrevistas. “Tudo o que formulei já está escrito.
Não sei se minha geração tem muito a contribuir ainda neste momento. Tenho me perguntado: o que não
vimos? O que deixamos de fazer para que a situação chegasse a esse ponto?” A aceitação do convite
veio depois do apelo para a importância simbólica de ter uma pensadora negra brasileira na capa de uma
revista de circulação nacional. “Diria que ocuparmos esses espaços é revolucionário. Poderia ser
qualquer uma de nós. O faço, então, pelas mulheres negras.”
O que está acontecendo no Brasil?
A bem da verdade, é um filme de terror. Por mais que a gente saiba e tenha lido em várias pensadoras e
pensadores que a liberdade exige uma vigilância persistente, que a conquista de direitos é uma luta
permanente, que retrocessos são possíveis, não estava no horizonte utópico de ninguém, a não ser como
pesadelo, a possibilidade de conquistas estarem em risco e algumas já perdidas efetivamente em um
espaço tão curto de tempo. Embora tudo isso, digamos, estivesse intelectualmente assentado em nós,
depois de tanta luta, depois de vencer uma ditadura militar, de conquistar uma perspectiva de esquerda
em termos de proposta de governo, sustentada por um conjunto de compromissos que eram expressão de
uma luta emancipatória de uma população historicamente silenciada ou oprimida, marginalizada
socialmente; quando pela primeira vez na história desse país a gente pode perceber que haveria a
possibilidade de estabelecer uma agenda inclusiva, emancipatória, reparatória na nossa construção
violenta, com a escravização de povos africanos, de extermínio de populações indígenas, tudo entra em
colapso em breve espaço de tempo.
Mesmo neste cenário, há pautas que eram tratadas exclusivamente pelo movimento negro e que
ganharam espaço. Não sei se é uma percepção muito otimista, mas a violência do Estado, o
genocídio da população negra são questões mais presentes nos movimentos sociais em geral e na
esquerda brasileira?
Em princípio preciso registrar que essa tem sido, na maior parte do tempo, uma luta solitária dos
movimentos negros, dos movimentos de mulheres negras. Também é verdade que nos últimos anos nós
temos conseguido (sobretudo, graças à internet) que uma multiplicidade de vozes passem a se expressar,
alcancem alguma ressonância e visibilidade na esfera pública. Isso impacta inclusive formadores de
opinião hegemônicos, sejam à esquerda ou à direita. Eu entendo que os obriga a dar algum tipo de
resposta a essa demanda, tendo em vista também que ninguém vai voltar para dentro do armário. O
pessoal da orientação sexual não vai retroceder em suas lutas, as mulheres não vão recuar nas suas
agendas; nós não vamos voltar para a senzala. E isso está colocado. Vai ter luta! Eu compreendo que
mesmo no campo da esquerda esteja havendo uma apropriação maior das agendas históricas dos
movimentos negros.
Não foi sempre assim...
Veja, é também necessário dizer que a contradição racial esteve aí o tempo todo, desde sempre, e ela não
foi vista. Essa é uma reflexão que se exige também. Há uma dívida também teórica, conceitual, que a
esquerda tem conosco. Hoje está sendo possível confundir completamente o que seja a luta de classes,
com todo um espectro social interessado em nublá-la completamente, inclusive com substituições de
conceitos, negando a contradição patrão-empregado, a contradição clássica do capitalismo. Mas o
conflito racial não dá para nublar. Ele permanece aqui hoje, estruturando a sociedade brasileira,
organizando a própria estrutura de classes sociais. Porque no topo da pirâmide temos uma hegemonia
absolutamente branca e nas bases uma maioria absolutamente negra. Então, raça estrutura classe no
Brasil. Este problema está aí desde a abolição. Há um déficit de percepção das contradições da sociedade
brasileira desde sempre. Porque foi possível construir o pensamento social brasileiro, seja à direita, com
o mito da democracia racial, seja à esquerda, via luta de classes, que em comum obscureceu o valor da
raça na estruturação das mazelas sociais, das desigualdades, das contradições desse país. A polifonia que
o movimento social negro construiu no entorno desse tema impactou. Começa a ecoar para o conjunto da
sociedade. A ponto de a gente perceber uma proliferação do debate racial pelos veículos hegemônicos e
pelos alternativos a eles. E todos ainda sem muita clareza, sobretudo no nosso campo, de como lidar com
a preeminência que a racialidade tem na constituição dos problemas de toda natureza, sobretudo nas
violações de direitos humanos. É impossível, por exemplo, pensar o padrão de violação de direitos
humanos no Brasil, com a crueldade e o descaso com que se realiza, sem compreender qual a população
exposta a isso. Porque seria impossível ter esse mesmo comportamento com uma população branca.
Isso se manifesta, de alguma maneira, em como o Fernando Holiday tem sido tratado?
Acho que devemos evitar entrar no jogo que o racismo nos propõe ao se utilizar de alguns de nós
segundo os seus interesses e fins. Dos racistas só podemos esperar isso. Eu me preocupo mais com os
erros que nós cometemos no nosso campo de aliança. Porque eu espero tudo de pior do racista. Esse
campo se instituiu de uma forma fascista, em algumas de suas manifestações, e sempre deixou muito
claro qual o nosso destino social: extinção ou subalternidade. E cada um de nós seria utilizado contra o
outro. Isso sempre foi feito. Se a mobilidade social individual de um negro não pode ser evitada, ela é
utilizada para questionar a competência dos demais. A abolição foi isso. Vocês estão livres para
apodrecer e morrer nas sarjetas desse país. Os que heroicamente superam ou escapam das barreiras
interpostas pelo racismo sempre podem ser usados para atestar a incompetência dos demais: está vendo
como a maioria não serve? Agora, o que nós temos que questionar: como podemos construir, no nosso
campo, que consideramos libertário, progressista, uma estratégia política em que caibamos, de fato,
todos, com respeito, reconhecimento e solidariedade?
Você vê lideranças hoje no movimento negro que levem essa construção adiante, a partir do legado
que você e sua geração construíram desde os anos 1970/80?
Estamos entrando em uma fase que ainda não conhecemos. Há uma nova etapa dessa sociedade. Eu
tenho a impressão de que o processo a que a gente está assistindo está apenas no seu início. Ele não
alcançou o seu limite. Nós temos um cenário político assustador, em que todo tipo de conservadorismo,
reacionarismo, um conjunto de ideologias discricionárias, violentas prosperam impunemente na
sociedade. Então é um cenário novo, de absoluta radicalização. O que eu quero dizer com isso? Vou
fazer um hiato mesmo. A minha geração passou umas quatro décadas lutando para desmistificar a
democracia racial. O cenário hoje é completamente diferente. As ações realizadas pelos movimentos
negros nessas últimas quatro décadas tanto buscaram desmistificar a decantada democracia racial
brasileira como também formular propostas de correção das desigualdades promovidas pelo racismo,
pela discriminação de base racial, como as políticas de ação afirmativa. Essas propostas também
organizaram a hegemonia branca. Ela teve que assumir seu racismo, sair em defesa de seus privilégios.
A luta pelas cotas, o debate pelas cotas é um paradigma. As políticas de cotas raciais para negros na
universidade tiraram os brancos da zona de conforto, e o racismo se manifestou com toda a sua
virulência. O poder da branquitude se revelou quando ameaçado de perder os seus 100% de direito, que
eles mesmos se outorgaram de cotas nas universidades. Saíram a campo em uma articulação inusitada,
nunca vista, de diferentes forças políticas, que nos expuseram a um verdadeiro pelourinho eletrônico
contra as cotas. Essa é uma luta que permanece. O risco ronda as políticas de cotas, o risco de retrocesso
está evidente e isso vai exigir muita luta e organização política.
E o que você diz a essas jovens lideranças?
O que eu tenho dito aos jovens ativistas que estão chegando, e felizmente são muitos, é que talvez eles
tenham que enfrentar a dimensão mais cruel dessa luta. Porque as relações raciais já não estão mais
protegidas pela etiqueta que as governou sob o paradigma do mito da democracia racial. O agravamento
desse cenário na direção de um racismo cada dia mais explícito e violento, que está aí se anunciando no
horizonte das novas gerações, vai exigir novas propostas de organizações políticas para o seu
enfrentamento, em um cenário adverso de perda de credibilidade das formas mais tradicionais de
organização política. É um cenário extremamente preocupante, e o emblema maior desse acirramento
são os índices de assassinato de jovens negros no Brasil. A boa notícia é que nenhum movimento social
se renova tanto quanto o movimento negro. E a segunda boa notícia: nunca tivemos um ativismo tão
vibrante e tão capaz de vocalização como neste momento, sobretudo das mulheres negras. Esse conjunto
diverso de gente negra em movimento é algo novo que me faz ter esperança na resistência. Essa
multiplicidade de agentes, vozes e iniciativas vai ser capaz de engendrar um campo organizado de ação
política e resistência que haverá de conter essa ação genocida do Estado, em cumplicidade com grande
parte da sociedade brasileira, contra nós.
Quem são essas jovens negras? Pode nomear algumas?
São muitas! Outro dia eu estava fazendo um exercício, porque estou tão animada, tão feliz com essa
multiplicidade de vozes, de pessoas, é uma coisa tão preciosa para nós. Porque até há uma década, nós as
velhas feministas, nos reuníamos e falávamos: gente, mas cadê as jovens? Onde elas estão? Eu até
escrevi um texto em que ofereço o nosso bastão e naquele momento não sabia para quem. Olhava pra
trás e via a mesma velha companheira. Hoje as jovens pegaram o bastão e estão aí, no mundo. É uma
coisa muito emocionante. Estou muito grata às deusas e aos deuses por poder estar assistindo a esse
florescimento. Sobretudo da presença das mulheres negras na sociedade brasileira. Quem são essas
meninas? Você, por exemplo, na CULT. A Djamila Ribeiro, Stephanie Ribeiro, Joice Berth, Ana Paula
Lisboa, Luana Tolentino, Natália Neris, Monique Evelle, Taís Araújo, Diane Lima, Maju Coutinho, Sil
Bahia. Vai vendo… Luz Ribeiro, Preta Rara, Karol Conka. É uma festa! Viviane Ferreira, cineasta do
Dia de Jerusa, Renata Martins, Tia Má. É um festival! Natália Sena, do nosso Portal, Larissa Santiago e
as Blogueiras Negras, Erika Malunguinho do Aparelha Luzia. Estou pegando as meninas. Jarid Arraes,
quero saber onde está Jarid, amo de paixão. Yasmin Thayná, as meninas da mídia, Adriana Couto. Eu
vou esquecer muitas! É um luxo! É uma festa! É lindo! A cena ficou muito bonita, colorida. E a
contribuição que a nossa experiência de opressão e também de resistência aporta, a contribuição que
temos para dar e enriquecer essa sociedade é extraordinária.
Você pode falar mais sobre essa contribuição?
Nós somos sobreviventes e somos testemunhas, porta-vozes dos que foram mortos e silenciados. Nós
estamos aqui. A elite intelectual deste país, no começo do século 20, só tinha uma preocupação: quanto
tempo levaria para esta mancha negra ser extinta. Uns diziam que até 2015 essa mancha negra estaria
extirpada. Nós somos sobreviventes. Vivemos e viveremos. Nós não só sobrevivemos como agora
estamos em ação. Nós, mulheres negras, somos a vanguarda do movimento feminista nesse país; nós,
povo negro, somos a vanguarda das lutas sociais deste país porque somos os que sempre ficaram para
trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real e efetivo de integração social.
Doravante, nada mais será possível sem nós. Eu acho que é isso que essas meninas negras estão
expressando com muita força.
Você se define como feminista negra. Há quem se considere feminista interseccional, outras
preferem o termo mulherismo. Esse debate faz sentido para você?
Eu recebo isso tudo como a polifonia maravilhosa que está aí. Eu sou uma feminista negra porque sou
antiga, tenho quase 70 anos. Quando as meninas me chamam para falar sobre feminismo interseccional,
eu respondo: chamem a Djamila Ribeiro porque ela que é feminista interseccional. Eu nunca usei esse
conceito porque eu sou muito anterior à emergência dele, embora os sentidos que ele carrega estejam
presentes nos meus textos e de outras mulheres negras da minha geração. Quando a Crenshaw chegou
com esse debate da interseccionalidade, eu já estava com essa concepção consolidada de feminismo
negro. Mas essa nova geração está agregando novos conceitos. Eu sou filhote da Lélia Gonzalez. Eu sou
uma feminista negra antirracista que em determinado momento, na estruturação do instrumento político
de luta que eu, com outras mulheres negras, concebi, o Geledés, pensava o que era ser mulher negra no
contexto do feminismo branco hegemônico da época. E naquele momento eu entendia que nós tínhamos
que construir uma concepção de feminismo extraída da nossa própria experiência, das nossas próprias
tradições. O nome Geledés, por exemplo, vem dessa necessidade de demarcar a identidade de um
feminismo de mulheres negras, que se sustenta na sua experiência histórica e nas suas tradições. Geledés
foi escolhido exatamente porque são organizações de mulheres negras de cunho religioso das sociedades
tradicionais iorubá, hoje considerados patrimônio da humanidade. É uma forma de culto ao poder
feminino. E eu sempre disse que, inspirada nas nossas matrizes religiosas, nós somos filhas de deusas
que permanecem vivas no imaginário popular.
Essa é uma matriz, além de religiosa, de pensamento e ação no mundo...
Eu escrevi um artigo, “O poder feminino no culto aos orixás”, em que eu digo que não somos costela de
ninguém, nós temos domínio, poder, e é com essa noção que a gente pensa Geledés. A gente chega ao
feminismo buscando dar essa cara, ao reler todo o ideário feminista à luz da contradição de ser mulher
negra. Por isso também escrevi um texto chamado “Enegrecer o feminismo”, em que a ideia é trazer para
o feminismo todas as contradições que a racialidade coloca dentro do feminismo branco da época. Em
qualquer dimensão da luta das mulheres, ser mulher negra coloca outras contradições, outras
necessidades e outras demandas que o feminismo teria que incorporar se quisesse representar as
necessidades e os interesses do conjunto das mulheres brasileiras. E tendo em vista que as mulheres
negras são maioria entre as mulheres brasileiras, então um feminismo nativo, um feminismo brasileiro,
tem que ter, necessariamente, por perspectiva, a agenda das mulheres negras. Por isso, hoje eu entendo
que enegrecer o feminismo foi uma tarefa realizada, pois a ação política feminista hoje está
profundamente marcada pelas demandas colocadas pelas mulheres negras. Penso que o desafio das
mulheres negras agora é, enquanto vanguarda e liderança desse movimento, explicitar e propor o projeto
político emancipatório que podemos oferecer para todas as mulheres do Brasil. Creio que esse projeto
deve se sustentar na proposição de um novo pacto racial e de um novo contrato sexual, que desaloje as
hierarquias de gênero e raça instituídas, em prol da realização da equidade e igualdade de homens e
mulheres e negros e brancos.
Muitas pessoas apontam que uma vida mais comunitária se coloca como alternativa importante ao
capitalismo. Pelo que li no livro da Rosane Borges sobre você, sua infância foi bastante
comunitária. Além de diversos irmãos, seus pais sempre acolhiam familiares que vinham de Minas
a São Paulo, por exemplo. Para as mulheres negras, o compartilhamento e as redes solidárias
sempre foram uma realidade. Não só somos sobreviventes, como conhecemos a vida em
comunidade, que pode ser um caminho de futuro.
Não é à toa que o lema da Marcha das Mulheres Negras era o Bem Viver. Foi pautado pela Nilma
Bentes, uma companheira negra de Belém do Pará muito criativa e ousada politicamente. Ela trouxe essa
noção do Bem Viver para a Marcha, uma construção de povos indígenas da América Latina que vem
sendo apropriado e recriado por diferentes segmentos sociais de nossa região. A nossa experiência
comunitária é produto tanto de valores culturais como da indigência social a que fomos lançados. Tem
um livro poderoso, lindíssimo, da antropóloga Ruth Landes, do começo do século 20, chamado A cidade
das mulheres, um clássico esquecido, em que ela trabalha com a experiência das mães e das mulheres de
santo de Salvador. Ela coloca que as mulheres negras eram um fator de modernização da sociedade
soteropolitana da época, na medida em que estavam nas ruas lutando pela sobrevivência. Em um
momento em que as mulheres brancas estavam confinadas no espaço doméstico.
As mulheres negras sempre estiveram no espaço público...
Nós, por contingências muito objetivas da nossa condição de escravizadas ou ex-escravizadas,
estávamos nas ruas. Mas as ruas, ou melhor, os mercados sempre foram espaços tradicionais das
mulheres nas sociedades africanas, então é possível supor que reminiscências dessa tradição estiveram
presentes nas estratégias de resistência e sobrevivência desenvolvidas pelas mulheres negras aqui.
Agora, sem dúvida, isso configurou um matriarcado da miséria. Mulheres, geralmente sozinhas,
segurando famílias extensas com recursos parcos. Uma realidade que ainda está aí, exigindo a
constituição de redes de solidariedade para a sobrevivência, muitas vezes inspiradas nas tradições
culturais que pudemos manter, recriar ou constituir aqui, em terras outras. Mas isso tudo perpetua um
imaginário que faz com que as mulheres negras sejam muito penalizadas por essa coisa de mulheres
fortes, que tudo aguentam, que tudo suportam. Acho que a expressão disso é o discurso da Sojourner “E
eu não sou uma mulher?”. Aquele discurso revela também o lado perverso disso. Somos mulheres que
lutam, mulheres guerreiras, mulheres que nos trouxeram até aqui, mas a um custo incomensurável. Há
tanto a coragem e força com que fomos revestidas, mas também a opressão que existe nisso. Eu costumo
falar para as jovens negras, quando tenho a oportunidade: nós temos que lutar pelo direito à fragilidade.
Está na hora de as mulheres negras reivindicarem isso. Eu falo para a minha filha: esse negócio de
mulher negra pronta para a guerra, que aguenta tudo, acaba aqui (gesticula, batendo no peito). Aqui.
Chega. Estamos trabalhando para que vocês reivindiquem outro tipo de coisa, de terem inclusive o
direito à fragilidade e ao cuidado.
Sua filha Luanda, vive na Noruega. Ao ler sobre ela no livro da Rosane Borges, pensei muito na
filha de Alice Walker, Rebecca Walker, que tem um livro chamado Black, White and Jewish.
Idem (risos). O pai da Luanda é branco e judeu. Temos muitas boas histórias. Uma delas sempre uso
para contar como se produz o branco aqui, a guerra que você precisa travar para assegurar a negritude da
sua criança. Eu até já escrevi sobre isso em um artigo chamado “Negros de pele clara”. O biotipo dele é
ariano, um judeu egípcio, apátrida. Luanda nasce e ele vai registrar com a minha irmã, Solimar, como
testemunha. O pai foi conferir a certidão porque já esperava, no campo da cor do registro, que estaria
escrito branca. Ele mostrou para o escrivão que respondeu: “tudo bem, né?” Ele respondeu: “Não. A mãe
da minha filha é negra, como a irmã dela que está aqui como testemunha”. O cara refez o registro: parda.
Aí o pai: “minha filha não é branca e muito menos parda, porque parda eu nem sei o que é”. O escrivão
pergunta: “mas o que o senhor quer que coloque?” Quando ele responde “a minha filha é negra!”, o cara
solta a pérola: “mas ela não puxou nem um pouquinho o senhor?” Ou seja: se tivesse “puxado” um
pouquinho ela já teria virado branca (risos).
Esse seu texto é importantíssimo para pessoas negras de pele clara (risos). Agradeço muito por tê-
lo escrito.
Foi em homenagem a tantos ativistas negros de pele clara; em especial, a um casal que eu amo muito,
que é o Edson Cardoso e a Regina Adami. Eles têm assim a sua cor, são tinta fraca (risos). E são dos
ativistas mais comprometidos que eu conheço pela questão racial, gente que dedicou a vida a essa luta. É
muito desrespeitoso questionar a negritude dessas pessoas. É muito desrespeitoso querer desqualificar a
identidade dessas pessoas. E é também pela minha filha, em sua legítima defesa (risos).
dossiê Variações sobre a luta de classes
Apresentação
JOÃO ALEXANDRE PESCHANSKI

No fim dos anos 1970, circulou pela América do Norte e Europa um cartaz em que se lia, em tradução
livre do inglês: “A consciência de classe é saber de que lado da barreira você está (veja página ao lado).
A análise de classe é descobrir quem está lá com você”. A ilustração nesse material, produzido pelo
coletivo feminista anticapitalista Press Gang, era a de uma mulher negra, cotovelo apoiado sobre uma
barreira de madeira rústica, no centro da cena, mão na boca, pensativa. De certo modo, a mensagem
desse cartaz ressoava a clássica máxima da interdependência entre teoria e prática revolucionária. Ressoa
também no Brasil de hoje urgentemente a tarefa intelectual do cartaz; a ofensiva conservadora que se
abateu sobre as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros nos encontra com uma análise de classe
desorganizada.
Os processos de desorganização da análise de classe são variados, da desmobilização de instrumentos
partidários socialistas e comunistas a uma crescente marginalização e até perseguição à tradição marxista
na universidade. Dois discursos são especialmente marcantes nesse contexto, o de que as classes sociais
são uma abstração irrelevante e o de que em detrimento de uma teoria marcada pelo antagonismo entre
interesses materiais deve-se priorizar uma de concertação.
Afirmar que classes sociais são uma abstração irrelevante ou, em outros termos, um mero construto
acadêmico é sugerir que a partir delas não se identificam mecanismos reais que afetam a vida das
pessoas. A tradição marxista considera que as relações sociais em um sistema produtivo definem
mecanismos que têm impacto real na vida dos indivíduos, especialmente a exploração e a dominação.
Dominação diz respeito à capacidade de controlar as atividades de outras pessoas; exploração remete a
uma relação econômica, em que, entre outros elementos, o bem-estar material de um grupo depende da
privação material de outro grupo e, no contexto da exclusão dos recursos necessários à sobrevivência, o
grupo em situação de privação material “oferece” sua força de trabalho para os detentores dos meios
socialmente necessários para a produção econômica. Afirmar que as classes sociais não são reais é,
portanto, o mesmo que dizer que mecanismos como a exploração e a dominação, que as definem pelo
menos na tradição marxista, são abstrações irrelevantes; isso é no mínimo ingênuo.
As classes sociais têm impacto tanto em condições macrossociais quanto microssociais. O nível mais
geral é o que, na tradição marxista, se chama estrutura de classe, a localização de agentes sociais em
relação aos meios de produção de um sistema econômico. Nesse nível, o que se busca entender é como
se dá a distribuição dos recursos produtivos em uma sociedade e como a estrutura econômica influencia
o comportamento de instituições e grupos sociais. Nas microfundações da análise, busca-se entender a
influência das classes sociais nas ações de indivíduos: a associação entre os interesses individuais e os
esperados a partir das condições materiais nas relações de produção; a compreensão subjetiva dos
interesses de classe; a formação de organizações para manifestar a solidariedade dos interesses de classe;
e as práticas políticas para realizar os interesses de classe, em especial as estratégias a adotar em
situações de conflito de interesses. Estrutura, consciência, formação, solidariedade e luta de classe são
objetos da análise de classe.
O principal desafio da análise de classe não é justificar a relevância real de seus objetos de estudo,
mas desenvolver uma formulação suficientemente geral para dar conta de manifestações complexas de
relações de classe e estratégias de ação coletiva baseadas em interesses materiais. Esse desafio está
associado a um processo de abandono da tese da primazia explicativa das classes sociais: por mais que
exploração e dominação sejam mecanismos relevantes, não são os únicos mecanismos relevantes e
possivelmente não são os mais importantes para entender a vida social. O abandono da tese da primazia
das classes vai na contramão da tradição marxista clássica, para a qual a tendência histórica dos
fenômenos sociais é no abstrato explicada pela trajetória das lutas de classes.
Correntes da esquerda abdicaram muitas vezes, incluindo na experiência brasileira recente, de
elaborar uma formulação realista da economia política e da análise de classes, para apaziguar e equilibrar
circunstancialmente os antagonismos inerentes às relações de produção. Essa estratégia de concertação,
mantida a partir de uma “hegemonia precária”– na consagrada expressão do sociólogo Ruy Braga –, em
que todos os interesses são de alguma maneira contemplados, tem vida curta e, principalmente, não
deixa legado teórico para a elaboração das dinâmicas sociais brasileiras. O desafio intelectual de elaborar
e articular a análise de classes no Brasil está colocado e, no contexto de um Estado tomado por agentes
da austeridade fiscal e do arrocho, assume urgência.
Este dossiê, intitulado “Variações sobre a luta de classes”, pretende justamente contribuir com
elementos para a formulação da análise de classes premente no Brasil. Assim, investigam-se
desenvolvimentos sobre as relações sociais no modo de produção capitalista brasileiro a partir de quatro
fenômenos sociais concretos: aborto, cidade, processo de trabalho e justiça.
As modalidades de reprodução da força de trabalho implicam necessariamente uma discussão sobre
os direitos reprodutivos e mais fundamentalmente sobre as relações entre classes sociais e gênero. A
cientista política Flávia Biroli, da Universidade de Brasília, identifica na violência contra as mulheres,
em especial na forma política das limitações ao direito ao aborto, a interação da dominação masculina e
capitalista.
A formação das classes deve levar em conta os espaços dessa formação. Isso aparece no próprio
Marx, para quem a concentração dos trabalhadores em fábricas cada vez maiores viria a ser o estopim
para a consciência das condições materiais comuns dos trabalhadores – o que, como se sabe, não se
concretizou. As políticas urbanas atuam fundamentalmente na produção formativa das classes hoje e,
sobre isso, escreve no dossiê o urbanista João Sette Whitaker Ferreira, da Universidade de São Paulo.
Ele busca entender a produção do urbano a partir da exploração e da dominação de classes em sistemas
capitalistas periféricos, como o brasileiro.
O processo de trabalho, em especial as tecnologias sociais para a disciplinarização e intensificação do
labor, é o tema do ensaio da socióloga Silvia Viana, da Fundação Getúlio Vargas. Uma questão-chave da
sociologia do trabalho é descrever o conjunto de técnicas, ou o regime de produção, que é usado para
que os trabalhadores atuem com intensidade produtiva máxima. Com o advento das mídias sociais, é
possível que se generalize uma modalidade “colaborativa”de dominação do trabalho: talvez não sejam
mais necessárias práticas despóticas ou estratégias para que o trabalhador consinta a produzir com
intensidade, pois quem gerencia o trabalhador é o aplicativo manuseado pelo consumidor. Viana avalia a
modalidade de controle e intensificação do trabalho associada à uberização da produção, em que os
explorados, agora sob a forma de autoempreendedores precários, se midiatizam e espetacularizam em
busca de recompensas.
O cientista político Frederico de Almeida, da Universidade Estadual de Campinas, investiga o papel
do Judiciário na condução política da classe dominante. Diagnostica tanto a constituição desse
instrumento de dominação quanto a agenda conservadora que promove. De certo modo, a judicialização
da ação classista dominante é um elemento central para a economia política da Operação Lava Jato e do
desigual acesso à justiça.
O conjunto de textos deste dossiê propõe-se a romper com a expectativa de uma análise de classe sob
a égide da dicotomia entre burgueses e proletários. Aliás, isso vai na linha corrente de teóricos
anticapitalistas em todo o mundo, que se afastaram da metanarrativa do materialismo histórico clássico.
Um esforço primeiro da análise de classes contemporânea, em consonância com a tradição marxista, é
possivelmente articular a partir de um compromisso igualitário radical as várias explicações para as
manifestações de desigualdade e injustiça econômica, buscando de maneira geral identificar as múltiplas
contradições do sistema capitalista.
Assim, este dossiê apresenta variações sobre uma mesma temática: os conflitos a partir de interesses
materiais em diferentes tipos de relações e situações sociais. Os interesses materiais, nesses recortes do
real, coexistem e interagem de maneiras diversas com outras formas de opressão, como gênero, raça e
vulnerabilidade social. A crítica ao capitalismo, propõe-se, está na formulação e articulação dessas
variações sobre as classes sociais e, especificamente, nas lutas de classes.
A urgência do esforço intelectual aqui proposto é que se coloca igualmente à intelectualidade radical
o desafio de formular alternativas programáticas à realidade social. A análise de classe serve tanto para
identificar os constrangimentos e obstáculos a uma vida social melhor quanto para diferenciar interesses
materiais aliados e adversários, para “saber de que lado da barreira você está” e “quem está lá com
você”. Diagnosticada a realidade social, com seus déficits de democracia e justiça, torna-se possível
formular uma alternativa profundamente democrática e justa e, na análise dos interesses materiais e suas
manifestações políticas, entender o que ainda nos impede de estar lá.
Direito ao aborto e maternidade: gênero, classe e raça na vida das
mulheres
FLÁVIA BIROLI

As lutas feministas têm colocado em pauta a regulação dos corpos das mulheres segundo lógicas que se
definem em condições de privilégio masculino. O controle por parte do Estado, em sociedades nas quais
a política institucional tem sido historicamente reduto dos homens, é apenas uma de suas formas. No
cotidiano, os valores que justificam e naturalizam esses controles podem ser ativados pelas religiões
organizadas, pelos meios de comunicação, pela escola, por pais ou companheiros, por outras mulheres.
Ao mesmo tempo, a violência contra as mulheres que não respondem a esse controle se dá no âmbito
institucional e no das relações interpessoais. Mas a regulação não se dá apenas pela recusa de certos
comportamentos e identidades ou pela punição dos “desvios”. Ela também ocorre pela incitação de
formas de vida “aceitáveis”, pelo estímulo a certos modos de construção das identidades individuais e
coletivas – o elogio à beleza, ao recato e à domesticidade é uma de suas formas. E desigualdades
estruturais, como as desigualdades de classe, constituem violações e restrições de modo que não é
possível tomar as desvantagens de gênero como algo que se define independentemente da dominação de
classe.
O feminismo tem colocado em xeque o entendimento de que as regras universais e abstratas do
Estado de Direito tiveram e têm como referência todas as pessoas. Mesmo nas correntes liberais, em que
o alcance da crítica pode ser restrito, tem sido exposto o fato de que instituições e normas modernas, no
Ocidente, implicaram a recusa de direitos às mulheres enquanto utilizavam a linguagem da
universalidade e da neutralidade. Liberalismo e patriarcado não são termos antagônicos, como não são
liberdade individual e dominação masculina. Premissas e referências normativas importantes, como a
divisão entre o público e o privado e a liberdade de escolha, tiveram, e têm ainda, sentidos muito
distintos para mulheres e homens.
O quadro se complica quando compreendemos que as formas de seletividade e regulação, que não
são neutras numa perspectiva de sexo ou gênero, não o são também em termos de classe, raça, etnia,
região do mundo em que se nasce, sexualidade. Isso significa que as mulheres não compõem um grupo
homogêneo diante desses mecanismos. Pelo contrário, eles incidem diferentemente sobre mulheres em
posições sociais específicas e desiguais. Os corpos são regulados em sociedades nas quais outras formas
de opressão e identificação constituem as posições em conjunto com o gênero. Assim, se as relações de
gênero não expressam uma natureza diferenciada dos corpos no que diz respeito ao sexo biológico, elas
também não se definem ao largo, antes ou depois das determinações de classe e de raça, entre outros
eixos significativos das opressões e disputas. Tem sido mais frequente considerar as convergências de
gênero e classe nas relações de trabalho. Mas as injustiças reprodutivas estão, sem dúvida, organizadas
em uma escala na qual as violações pelo Estado se encontram com a precariedade material, tornando
mais agudas as desvantagens das mulheres trabalhadoras, isto é, em uma escala de classe e não apenas de
gênero.
É tendo em mente esse modo complexo de regulação dos corpos e de produção do gênero que trato
aqui de uma das lutas feministas fundamentais, a luta pelo direito ao aborto. Além de sua importância
para a vida e para a cidadania das mulheres, ela dá acesso a conexões que considero importantes entre a
crítica feminista mais próxima do espectro liberal, em que o direito ao aborto é situado nas lutas pelo
direito de escolha das mulheres, e as críticas e lutas que nos têm sido legadas pelo feminismo socialista e
pelo feminismo negro. Nestas, fica evidente que o exercício da escolha e, de modo mais amplo, a
autonomia das mulheres têm componentes de classe e de raça que são incontornáveis. O direito a
controlar a capacidade reprodutiva foi negado a muitas mulheres negras, indígenas, trabalhadoras e
pobres na forma da recusa do direito ao aborto, assim como na forma da recusa do direito à maternidade.
A linguagem da escolha individual, que organizou largamente o campo da defesa do direito ao aborto
pelas mulheres no hemisfério norte a partir de meados do século 20, ressalta o direito a escolher como
um contraponto à maternidade compulsória. A importância dessa ênfase na escolha das mulheres e não
em um papel social que já pressuporia escolhas é inegável, mas há limitações nessa abordagem uma vez
que as condições de escolha podem ser restritas e desfavoráveis, sobretudo para as mais desprivilegiadas
entre elas. A assimetria de recursos materiais e simbólicos é um elemento fundamental para compreender
as condições em que as escolhas são feitas e, claro, as próprias escolhas.
O direito ao aborto é um eixo central da autonomia das mulheres, e creio que essa afirmação possa
ser generalizada. A fusão entre o feminino e o maternal tem sido um dispositivo importante de controle
sobre as mulheres e a denúncia da maternidade compulsória esteve relacionada desde o início às lutas
pela igualdade de gênero. Sem o direito a controlar sua capacidade reprodutiva, a autonomia na definição
de suas trajetórias de vida é fundamentalmente comprometida. A participação feminina em outros
âmbitos da vida depende se sua capacidade de definir se e quando serão mães. Sendo mães, essa
participação é sensível ao modo como o trabalho é dividido na esfera privada e, sobretudo, às normas e
políticas públicas para o cuidado com as crianças e para a proteção no mundo do trabalho das mulheres
gestantes e mães.
A recusa ao direito ao aborto mantém na legislação concepções diferenciadas do indivíduo e do
direito que têm de definir o que se passa no e com seu corpo, do direito à integridade física e psíquica e à
dignidade. O acesso a esses direitos, quando o aborto é criminalizado, é distinto na letra da lei segundo o
sexo dos indivíduos. É o que ocorre no caso brasileiro, em que o direito ao aborto é criminalizado com
três exceções, que são risco de morte da mulher, gestação resultante de estupro e anencefalia fetal. No
Congresso, tramitam vários projetos que pretendem criminalizar inclusive esses casos, entre os quais
destaco o chamado Estatuto do Nascituro. Mas tem havido passos em defesa desse direito, como Normas
Técnicas editadas no início dos anos 2000 pelo Ministério da Saúde para garantir o acesso ao aborto
legal e, mais recentemente, uma decisão do Supremo Tribunal Federal que firma o entendimento de que
a penalização é inconstitucional. Nos dois casos, reconhece-se que o problema ultrapassa a restrição à
cidadania das mulheres como grupo.
No Brasil, como em outras partes do mundo, as mulheres realizam abortos a despeito da legislação. A
criminalização do aborto, no entanto, compromete de maneira aguda a integridade física e psíquica das
mulheres negras e pobres. Para elas, a clandestinidade implica precariedade no atendimento, ampliando
os riscos que correm. As complicações devido ao aborto inseguro persistem em um contexto de melhoria
no acesso das mulheres a direitos e serviços de saúde nos países latino-americanos. Enquadradas como
questão de saúde pública no registro internacional predominante, ganham contornos singulares em um
continente no qual o aborto é amplamente criminalizado.
As lutas feministas têm sido pelo direito das mulheres a decidir se e quando serão mães. Mas a
história dos movimentos em defesa do controle da natalidade se misturou, ao longo do século 20, a
políticas racistas de controle populacional. Estima-se que 65 mil pessoas foram esterilizadas por
programas para o controle populacional em 33 estados estadunidenses entre os anos 1920 e 1970. Mais
recentemente, decisões nos estados de Virgínia e Carolina do Norte determinaram o pagamento de
indenizações às vítimas.
Na América Latina, mescladas a estratégias estadunidenses para o controle do crescimento
populacional no chamado terceiro mundo, houve políticas de controle que promoveram a esterilização de
mulheres negras, indígenas e pobres, com recursos da US Agency for International Development
(USAID) e do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). No Peru, as esterilizações forçadas,
estimadas em mais de 400 mil, foram condenadas pela Corte Internacional de Direitos Humanos e
reconhecidas formalmente pelo governo peruano em 2003 – embora as denúncias contra Alberto
Fujimori tenham sido arquivadas naquele país mais de uma vez nos anos recentes, sob o argumento de
que as esterilizações massivas não teriam sido definidas por seu Programa Nacional de Salud
Reproductiva y Planificación Familiar, mas por falhas no seu desenho e implementação. O caso peruano
gerou registros e depoimentos que detalham a violência de esterilizações cirúrgicas realizadas por meio
de chantagens, mentiras, coerção e mesmo aprisionamento das mulheres. A pobreza, as características
das políticas de controle reprodutivo e controle populacional e a insegurança na maternagem compõem o
ambiente em que a esterilização se fez uma opção para muitas mulheres em países como Porto Rico e
Índia, entre os anos 1930 e 1950.
No Brasil, ao menos desde os anos 1980, acumulam-se denúncias de esterilização em massa de
mulheres das regiões mais pobres do país, levando inclusive à abertura de uma Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional, em 1992. Em 1965, já sob a ditadura instaurada com
o golpe de 1964, a International Planned Parenthood Federation passou a atuar no país. Assim surgiu no
Brasil a Sociedade de Bem-Estar Familiar, a BEMFAM, que se disseminou principalmente nas regiões
Nordeste e Centro-Oeste do país. A partir de então, clínicas privadas levaram a esterilização às mulheres
brasileiras, no vácuo de políticas públicas alternativas e com a conivência, e em alguns casos a visão
racista e eugênica expressa, de governantes nos níveis nacional e estadual. Foi apenas com a articulação
de grupos feministas em defesa dos direitos das mulheres no período de abertura política que a
abordagem da saúde reprodutiva se modificou, com destaque para o Programa de Assistência Integral à
Saúde da Mulher (PAISM), criado em 1983.
Eugenia, racismo e controle social da pobreza fundamentaram, assim, políticas que fizeram dos
corpos das mulheres objetos de intervenções sancionadas. Foi diante desses processos que emergiu a
noção de “justiça reprodutiva”. Reconhecendo que o controle reprodutivo é fundamental para o exercício
da autonomia e que esta, por sua vez, é uma dimensão da cidadania, feministas negras, de origem latina e
asiática, têm assumido uma perspectiva interseccional na definição dos direitos reprodutivos e na agenda
de suas lutas. Essa perspectiva busca reconhecer a opressão e a violência no âmbito da reprodução. As
histórias de opressão expõem, na vida de mulheres concretas, os efeitos das convergências entre gênero,
raça, etnia, classe, sexualidade e origem no globo. O exercício da autonomia, por sua vez, não é
matizado pelo gênero isoladamente. A posição de classe produz as alternativas para as mulheres, ainda
que o patriarcado – ou a dominação masculina – não possibilite equalizar as condições de homens e
mulheres de diferentes classes sociais de controlar, entre outras coisas, o acesso a seus corpos.
A violência está presente na recusa do direito ao aborto, pela criminalização da decisão das mulheres
de interromper uma gravidez, tanto quanto nas esterilizações forçadas ou induzidas, que retiram das
mulheres o direito de serem mães. Em todos esses casos, a cidadania é comprometida em seus
fundamentos. Mas a omissão do Estado também tem consequências perversas. Sem educação sexual nas
escolas, a insegurança e a imprevisibilidade no exercício da sexualidade se ampliam. Quem bloqueia o
acesso a essa educação engrossa o caldo da violência, das doenças sexualmente transmissíveis, da
gravidez na adolescência, da evasão escolar das meninas. As desigualdades estruturais e a ausência de
políticas públicas para compensá-las ou superá-las impedem o exercício seguro da maternagem. Este
depende do acesso a trabalho e renda pelas mulheres e do respeito à vida de suas filhas e filhos. No
controle de recursos políticos e econômicos estão muitos dos que têm trabalhado pela desregulamentação
dos direitos sociais e pela larga prevalência da lógica do lucro e da exploração. São, em muitos casos, os
mesmos que têm mobilizado uma suposta defesa da maternidade e da família em sua atuação política
reacionária. Tratam sistematicamente de uma fantasia, enquanto atentam contra mulheres e famílias
reais.
O urbano no contexto do subdesenvolvimento
JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA

O “espaço urbano” é uma base estrutural e sistêmica de infraestruturas, sobre a qual se assentam as
edificações. São redes viárias, de transporte, de informação, de serviços, de água, saneamento, luz,
sistemas de coleta de lixo, equipamentos, que permitem a vida na cidade. Tal base não pode ser
produzida individualmente. É fruto do trabalho social, pela mão do Estado ou com sua intermediação.
Ela permite que se produzam localizações – o “lugar” de cada edifício na cidade – cuja qualidade
depende da sua situação na rede, da sua inter-relação com seu entorno. Como as infraestruturas não são
homogêneas, as localizações são diferenciadas e disputadas pelo mercado. Seu preço, como todo produto
do capitalismo, varia em função de seu valor de uso (dado pela qualidade da infraestrutura e sua situação
na rede), da demanda por esse bem e das intervenções regulatórias do Estado.
As localizações são, portanto, objeto de disputas, as melhores sendo apropriadas por quem pode
pagar por elas, as piores restando para os mais pobres. Além disso, as localizações são produtos que têm
valor de troca e que geram, assim, possibilidades de lucros com sua produção e comercialização. Daí três
dos conflitos mais recorrentes nas cidades capitalistas: entre os moradores, que disputam entre si as
melhores localizações, entre os que fazem uso da cidade como moradia e os que desenvolvem outros
tipos de uso (comercial, industrial, etc.) e, por fim, entre os que usam a cidade para viver e os que a
veem apenas pelo seu valor de troca.
Assim, qualquer cidade no capitalismo tem bairros mais caros, em localizações mais bem servidas
por infraestrutura, com melhor acessibilidade, melhores condições paisagísticas, e ocupados pela
burguesia, assim como localizações mais afastadas e menos acessíveis, menos servidas por infraestrutura
e equipamentos, mais baratas e ocupadas pelas classes populares. Além desse típico conflito de classes,
há a permanente tensão imposta pelos setores do mercado imobiliário e da construção civil, atuando para
obter lucros com a produção e a venda dessas localizações e especulando sobre seu preço.
Nos países centrais do capitalismo, onde o modelo keynesiano do Estado de Bem-estar Social
promoveu forte regulação pública, esses conflitos foram e ainda são mediados pelo Estado para, em
alguma medida, amenizar as distorções. No esforço de construção de sociedades de consumo de massa
para superar a crise estrutural (e urbana) dos anos 1930, a garantia de moradia era uma condição
essencial, e foi atendida por políticas públicas de produção e acesso à habitação e um sistema urbano
funcional e razoavelmente democrático. O pensamento urbanístico da época defendia o conceito da
cidade densamente ocupada em suas áreas centrais, mais bem-dotadas de infraestrutura, como forma de
racionalizar e democratizar o seu uso. A casa monofamiliar em grandes lotes, tipicamente burguesa, seria
relegada aos subúrbios periféricos. O Estado procurava homogeneizar a oferta de infraestrutura e
implantava os chamados instrumentos urbanísticos para regular a produção do espaço urbano. Com
tributações diferenciadas, pagamento pelo direito de construir e outros mecanismos do tipo, cobravam-se
dos mais ricos taxas para “compensar” o privilégio de usufruir de boas localizações produzidas graças à
infraestrutura pública.
É bem verdade que tal modelo não reverteu as desigualdades da cidade capitalista, mas com certeza
as amenizou. Cinturões operários e subúrbios intermediários de menor qualidade urbanística se
contrapunham a bairros de alto padrão, altamente valorizados. Mais adiante, esse sistema não conseguiu
deter a onda neoliberal da era Thatcher/Reagan, sucumbindo ao avanço inexorável e predatório do
capital financeirizado sobre o urbano. Competição entre cidades, revitalizações gentrificadoras e grandes
projetos urbanos tornaram-se o cardápio dominante. Hoje, embora ainda mantenham parte da sua
racionalidade democrática, as grandes cidades do mundo desenvolvido vão tornando-se bolhas
imobiliárias de alta valorização, inacessíveis à grande maioria dos cidadãos, e cada vez mais
confrontadas à pobreza urbana.
Fica clara a importância do Estado nesses processos. Porém, no Brasil, este é idealizado segundo o
modelo de bem-estar social, das políticas públicas que se sobrepõem aos interesses privados, embora
isso nunca tenha ocorrido por aqui. Nosso Estado tem uma natureza bastante diferente e peculiar; muito
longe de promover a construção de uma nação autônoma e socialmente justa, ele foi instrumentalizado
pelas classes dominantes, de perfil liberal, para servir aos seus interesses. O “Estado patrimonialista”
caracteriza-se, para resumir, pela imiscuição sistemática entre o interesse privado e o público, em
detrimento do segundo.
Seria, portanto, um equívoco acreditar que a extrema desigualdade na oferta de infraestruturas, que
caracteriza nossas cidades, é consequência “natural” de um “crescimento populacional acelerado” ou
demonstração de alguma “incapacidade” do Estado em enfrentar a questão da desigualdade urbana. Não,
a maneira como conduzir a produção do espaço urbano é uma questão de política pública, e reflete as
lógicas perversas do patrimonialismo, em que o que interessa é tão somente a estruturação dos bairros
ricos, sintomaticamente chamados de “nobres”, deixando-se de fora a população pobre. Há infraestrutura
onde se quis que houvesse, não há onde se deixou de fazer, e tais diferenças não são resultado da “falta
de planejamento”, como se quer fazer pensar, mas de um planejamento às avessas – se considerado o
interesse público – bastante eficaz nos seus objetivos de produzir a segregação.
Impactos ambientais crescentes, sistemas de transporte cada vez mais extensos, gestão de serviços
urbanos complexos são desafios enormes mesmo nas grandes cidades do mundo desenvolvido. Nos
países em desenvolvimento, tornam-se quase intransponíveis, em razão da desigualdade social, que joga
– não por casualidade – milhões de pessoas de menor renda em uma condição de vida de extrema
precariedade. O patrimonialismo, expresso no que Florestan Fernandes chamou de um “Estado
sincrético”, gera outros problemas: clientelismos, corrupção endêmica, inversão das prioridades de
investimentos, arrocho financeiro.
As marcas dessa lógica bastante perversa de urbanização são muitas, e desde o início do século
passado os investimentos públicos nas nossas maiores cidades concentravam-se nos bairros nobres no
centro, objetos de vistosos planos urbanísticos importados da Europa. Nas periferias, amontoava-se a
população mais pobre, necessária ao funcionamento da cidade, em cortiços ou nas primeiras favelas,
sendo expulsas para mais longe à medida que avançava o mercado imobiliário. Com o advento da
“industrialização com baixos salários”, em meados do século, a demanda por mão de obra barata para
nossa inserção competitiva na economia internacional transformou essas periferias em abrigo para um
imenso exército industrial de reserva. Sem investimentos públicos, as periferias autoconstruídas, como já
mostrou Francisco de Oliveira, representaram o expediente mais eficaz para manter o baixo custo de
reprodução da força de trabalho.
No Brasil, a concentração indecente da riqueza se reproduz na injusta divisão espacial urbana. Os
investimentos, de maneira ostensiva, se deram exclusivamente nos quadrantes mais ricos das cidades.
Como já demonstrou Flávio Villaça, as elites conduziram seu crescimento em simbiose com o mercado
imobiliário. Porém, nem mesmo nesses bairros privilegiados criou-se uma urbanidade virtuosa: a opção
pelo automóvel em detrimento do transporte público de massa e a absoluta liberalidade para com o
mercado imobiliário geraram problemas como o tamponamento dos rios, a impermeabilização
desenfreada, a densificação construtiva sem regras e sem limites, a falta de reserva de terras para a
produção de moradias para os mais pobres. Ao contrário do modelo urbano do bem-estar social, aqui, as
regiões com melhor infraestrutura foram acaparadas pelas elites, que construíram para si, na cidade
“nobre” bem infraestruturada, seus bairros-jardins que deveriam estar nos subúrbios. Uma pendularidade
disfuncional decorre dessa concentração do capital nos bairros ricos, fazendo milhões de pessoas
deslocarem-se diariamente da periferia distante para o seu trabalho, em sistemas de transporte obsoletos
e subdimensionados. Enquanto isso, a cidade rica se fortifica, se isola, renega a necessidade do espaço
público e da rua. Nela, não há pobres a morar, tampouco negros. Produzimos cidades dignas do
apartheid.
Para manter tal onipotência espacial, as classes dominantes se fazem valer – graças também ao seu
controle sobre o judiciário – de outras marcas do patrimonialismo: a predominância absoluta do direito à
propriedade sobre qualquer outro, inclusive o de moradia, e o limite muito tênue e relativo entre
legalidade e ilegalidade. Afinal, o que é ilegal? Movimentos de moradia ocupando prédios vazios
irregulares das áreas centrais são ilegais, mas não o são resorts, estádios, shopping centers ou grandes
condomínios que ocupam sem constrangimento as orlas marítimas ou outras terras públicas nas cidades.
Ocupações informais sobre áreas de proteção ambiental são proibidas, mas mansões nas encostas da
mata atlântica litorânea ou “rodoanéis” rasgando mananciais não o são. Nas aprovações de plantas das
residências de luxo, são admitidos como legais minúsculos quartos de empregada sem iluminação,
aprovados cinicamente como se fossem “depósitos”, numa atualização da nossa herança escravocrata. A
lógica dos dois pesos e duas medidas tornou-se a regra que conduz a ocupação do espaço urbano, com
claro privilégio para as classes dominantes.
Importante observar que a atuação perversa do Estado é fruto da ação dos governantes eleitos, e
reflete uma lógica que se transpõe para o conjunto da sociedade, nas relações sociais e nas posturas de
cada um. Podemos falar de um Estado patrimonialista, mas mais correto seria nos referirmos a uma
sociedade patrimonialista. Seu caráter, inicialmente restrito a um estamento dominante, generaliza-se,
como se, ao ascender na pirâmide social, cada cidadão passasse a reproduzir, na sua esfera de poder e no
seu círculo social, a mesma lógica de dominação. No decorrer da história, aos donos de terra, que
afirmam seu poder desde o sistema de capitanias e o reforçam com a transição para o urbano, somaram-
se a elite comercial imigrante, a burguesia industrial nascente e uma sociedade de consumo
minimamente necessária; com isso, foi-se constituindo uma classe dominante de fato, mais ampla e mais
complexa. A onipotência das elites, para além da instrumentalização do Estado, se alastra para as formas
de domínio sobre a terra, para as dinâmicas de controle da força de trabalho, de imposição da cultura
branca europeia sobre outras manifestações culturais populares, o racismo, a segregação. Não à toa as
“classes médias” se referem aos segregados da cidade como vagabundos, imundos ou bandidos. É o
reflexo de uma cultura de intolerância à pobreza.
Muito se estudou sobre os traços da nossa formação nacional, desde os efeitos da condição
subalterna, associada no capitalismo mundial, até aspectos endógenos como a miscigenação, o favor, o
coronelismo etc. O que menos se analisou foram as consequências desse modelo sobre a formação do
urbano, em que o poder dominante não planeja a superação do atraso, mas confunde; não organiza, mas
desestrutura; não facilita, mas embaralha os procedimentos burocráticos e administrativos; não é ético,
mas tolera o favor, o clientelismo, a corrupção, não por incompetência, mas por ser extremamente eficaz
no objetivo de emperrar a democratização do urbano. É a manutenção do arcaico que garante uma
modernidade restrita a poucos, são as periferias pobres que, literalmente, constroem a moderna cidade
rica.
Se assim o quisessem, os que conduzem o Estado teriam muito poder de transformação. Mas como o
tempo de implantação das políticas urbanas é muito superior ao ciclo eleitoral de quatro anos, raros
governantes aceitam fazê-lo. E, quando mostram ser possível, como com a aprovação de um Plano
Diretor verdadeiramente inovador e democratizante em São Paulo em 2014 (premiado, inclusive, pela
ONU), a falta de estruturas institucionais que garantam a sua continuidade leva a que sejam
sistematicamente desfeitos a cada novo ciclo eleitoral. Porém, o tensionamento a níveis insuportáveis
desses antagonismos urbanos acaba levando a mudanças, ao rompimento da conciliação, à
conscientização da importância do resgate do público. É sintomático que as manifestações ocorridas em
junho de 2013 tenham girado em torno de reivindicações de caráter eminentemente urbano.
Chão de estrelas
SILVIA VIANA

I
“Desconfie de todos” era o slogan da propaganda, veiculada em 2010, que não divulgava uma campanha
relacionada à segurança pública, tampouco vendia câmeras de segurança, mas tinha por objeto um
chocolate – e sequer meio amargo. O olhar desconfiado do personagem que tem seu doce roubado no
metrô é refletido pelo dos demais ocupantes do vagão, todos comprovadamente suspeitos, pois lhes
faltava, a todos, em um dos pés, o mesmo modelo de sapato que substituíra o chocolate retirado da mão
do incauto. Não fosse a completa ausência de estranhamento ante este imperativo, poder-se-ia afirmar
que seria uma antecipação premonitória das surras que se seguiriam aos levantes de 2013, não praticadas
contra pessoas a quem faltam sapatos, e sim voltadas àquelas que se vestem de vermelho. O sufocante ar
da paranoia já estava, três anos antes, mais que posto, solidificado. Tanto os punhos prontos para o
ataque quanto, do outro lado, as teorias conspiratórias a seu respeito – “coisa da CIA” – são fruto
putrefeito naquele ar.
II
“Vou dividir com vocês a minha experiência como motorista da Uber e falar um pouquinho sobre a
avaliação que o passageiro, assim como eu já fui muitas vezes, dá ao motorista, aquelas estrelinhas, e
que eu achei que era uma simples avaliação no início, quando eu comecei a usar o produto, como
passageiro. Depois comecei a descobrir, depois que comecei a dirigir, que ela é quase uma arma”. O
“motorista 5 estrelas” que é, ao mesmo tempo, o produtor e aquele que fala em vídeo postado no
Youtube, atesta uma nova modalidade de avaliação do trabalho no capitalismo flexível. Como nota
Ludmila Abílio, em “Uberização do trabalho: subsunção real da viração”, a aferição da dupla tarefa de
dirigir e proporcionar uma experiência Uber de mobilidade urbana é pulverizada e anônima. Pulverizada,
já que não é executada pela própria empresa, mas, nos termos de Abílio, pela multidão de consumidores,
mediante o toque na tela de seus celulares; anônima, pois os motoristas não têm acesso ao número de
estrelas que cada passageiro lhes concede ao fim da corrida. Não que a empresa em questão tenha
inventado a roda: a avaliação é o cordão de náilon que move o trabalho segundo o tempo e a forma
necessários ao etéreo capital ultracentralizado. Daí sua proliferação maníaca: em escritórios ou
repartições, avaliações de desempenho formais ou informais desdobram-se em formatos, no tempo e no
espaço, podendo atacar de qualquer direção, como na assim chamada avaliação 360 graus, que fecha o
círculo inescapável da mensuração onipresente: de cima abaixo e no sentido inverso, por todos os lados e
mais alguns que se invente. Nesta, como não poderia deixar de ser, dado seu caráter total, a avaliação por
parte do consumidor também está presente, e não apenas aí. Gratuitamente, realizamos a tarefa de
controle do trabalho quando topamos teclar o número correspondente à nossa satisfação após o
atendimento do teleoperador; do mesmo modo, quando nos identificamos com o rostinho verde
sorridente ou, pelo contrário, com o vermelho, irritadíssimo, no pequeno monitor disposto diante do
caixa, na farmácia, no supermercado, no hospital etc.; ou ainda quando preenchemos os formulários de
avaliação distribuídos em sala de aula, capazes de identificar e definir o prestador de serviço nota 1,
tenebroso, ou o 5, espetacular. Quando, de outro modo, mas ainda de graça, trabalhamos como
produtores/consumidores de conteúdo nas plataformas digitais tais como o Facebook, passamos de júri a
réus, e de volta: o sinal de joinha, tão estúpido e pueril, pode ser considerado o símbolo de uma era,
ainda que não seja o único: estrelas, “yeyés”, emoticons, letras, números, letras seguidas de números,
barras coloridas, corações, mãozinhas das mais diversas cores em variados gestos – todos eles, valor de
troca. Não é fácil, contudo, definir o que se abstrai mediante esses dinheiros, certamente é muito mais
que o tempo de trabalho necessário para a produção de um post ou uma aula. Nessa, é necessário que se
meça “respeito”, na farmácia, “iniciativa”, em facebook, “graça”, no Uber, “simpatia”, e para todos eles
valem todas elas: em suma, a alma. O que está em jogo nessa compulsão avaliativa é a subjetividade da
mercadoria-trabalho, esse ativo valiosíssimo para o capitalismo e que, não obstante ter sido sempre
fundamental para a acumulação – tal como coloca João Bernardo em Democracia totalitária: teoria e
prática da empresa soberana – passou batido às modalidades de exploração e controle fordistas. Não que
a empresa neoliberal tenha descoberto a fórmula mágica de contabilizar o que é, por princípio,
intangível. A questão é que o conteúdo da avaliação é apenas em aparência, ou por ausência de tino, sua
real preocupação. Para a mobilização da força de trabalho não é necessário que sejam estabelecidos os
critérios de uma alma comprável, pelo contrário, é a própria inexistência do conteúdo que a mantém em
funcionamento pleno. Não é por outro motivo que entre os vídeo-depoimentos, postados por motoristas
da Uber, grande parte seja voltada para o mistério das estrelas: o carro limpo e a vestimenta apropriada
parecem ser ponto pacífico, ainda que limpeza e apropriação sejam qualidades relativas; quando tocam,
contudo, no quesito segurança, o critério começa a ficar mais opaco, já que alguns passageiros têm
pressa; ao falarem a respeito da experiência proporcionada por seu trabalho, fica claro que a nebulosa é o
parâmetro. Talvez por isso todos eles deem tamanha importância à balinha a ser ofertada aos
consumidores, é provável que, como objetivação da simpatia, esta tenha mais serventia como alívio
psíquico para o objeto de avaliação que como deleite para o sujeito avaliador. Pelo mesmo motivo, o
depoimento do “motorista 5 estrelas”, diversamente de outros, cujo ser-empreendedor se traduz em
discursos gerenciais auto ou heteromotivacionais, assume a forma de um apelo ao consumidor
espectador: “Se você não foi bem atendido, dê o feedback para o motorista (...). Você não tem que dar
cinco estrelas para a pessoa pelo fato de ela ter te surpreendido. Não! Se ela te surpreendeu, se foi além
das suas expectativas, então você deve fazer um comentário: ‘nossa! Excelente motorista’ ou ‘nossa!
tinha wifi, tinha suco’. (...) As cinco estrelinhas não são pela surpresa, mas pelo serviço básico (...)
III
(...) o serviço em si é transporte e não surpresa. Que tal a gente transformar essa avaliação não numa
punição, mas num processo de conscientização.” A última frase é ambígua, não fica claro a quem se
voltaria tal conscientização, pois o sentido da fala é mostrar ao consumidor o peso da avaliação. Em
outras palavras, e talvez à revelia do autor, tratar-se-ia de um desvelar do dedo no gatilho por trás do
gesto, quase desdenhoso, de passar o dedo de viés por uma tela de celular. Não é demasia retórica: a
avaliação estrelada estabelece, para Abílio, “os elementos para o ranqueamento dos trabalhadores. Este
opera como um critério na determinação de quais trabalhadores terão mais acesso a quais corridas”. Mais
que isso: segundo o depoimento em vídeo de outro motorista, caso o serviço seja mensurado abaixo de
uma nota de corte, diferente para cada cidade (no caso de São Paulo, por exemplo, 4.6 é o número
mágico), a punição – na acepção mais precisa da palavra – é o desligamento, temporário ou permanente,
do aplicativo, melhor dizendo, do trabalhador, que já não poderá contar com a mediação da empresa para
oferecer seus serviços. É apenas da perspectiva do descarte que se pode entender a racionalidade
avaliativa: ela se confirma a partir do pressuposto segundo o qual o mundo-mercado não é para todos.
De fato, a assim chamada revolução microeletrônica dispensa trabalho vivo, de modo que a “sociedade
tecnológica” de H. Marcuse, no que tange à virtualidade de existências livres, parece, hoje, brincadeira
de criança. Entretanto, o capital permanece posto, e de suor e sangue ainda não dispensa uma gota, seja
para sua valorização, seja para a manutenção de sua sobrevida em estado de avançada putrefação. Ainda
que o trabalho se multiplique e intensifique, heterônomo, redundante, exaustivo, sua escassez é atuada
pelo gargalo do emprego formal. Isso até anteontem: pois a nova lei de terceirização encerrou, de súbito,
o buraco de uma agulha. A partir de agora, a chantagem para a labuta infernal não comporta sequer a
miragem da mediação pública, convertendo-se naquilo que já era para a maior parte da humanidade:
ameaça pura. Em outros termos, trata-se da generalização do inferno Uber que, como forma vazia, nada
mais que mediação para a execução do trabalho e para a avaliação que o empurra, repassa ao trabalhador
o investimento necessário em carros e balas, bem como os riscos dele decorrentes – claro, não sem antes
se certificar de que, pelo acesso ao chão de estrelas, serão espoliados de 20% a 25% dos ganhos dos
motoristas que aí pisam. Tudo o que ocorre sobre a plataforma deixa de ser problema da empresa ou,
como afirmou o CEO da Uber, Travis Kalanick, em briga com um de seus “parceiros” (caso as aspas
exijam explicação, trata-se de uma das inúmeras maneiras carinhosas das empresas chamarem aqueles de
quem arrancam a talha), quando questionado a respeito da supracitada espoliação: “Algumas pessoas não
gostam de assumir responsabilidade pelas próprias merdas”. Afinal, são, como afirma o site da empresa,
“seus próprios chefes”. Mas já o éramos, todos. Forjados no fogo do mercado como capital humano,
acostumamo-nos a arcar com toda a merda gerada pelo capital, e da qual se desresponsabiliza, incluso aí,
o trabalho sujo de nos eliminarmos uns aos outros para, segundo a fantasmagoria da escassez,
simplesmente sobrevivermos.
IV
“A Uber costuma bloquear motoristas que têm nota muito baixa ou até, infelizmente, desativar
motoristas que têm essa nota baixa (...). Tudo isso é automático no sistema, ou seja, não é nenhuma
pessoa que olha lá no sistema que vê que sua nota tá baixa e aí decide: ‘ah! Eu vou excluir essa pessoa,
eu vou bloquear essa pessoa por 48 horas...”, afirma outro motorista videomaker. O capital finalmente
encontrou a encarnação de sua metáfora dileta, mas essa mão invisível é um Deus que se suicidou,
legando a nós a obrigatoriedade do sacrifício, o esquecimento do dogma e a impossibilidade de expiação.
Ao automatizar o continuum da seleção – negativa, diga-se de passagem, pois, em primeiro lugar,
determina a eliminação necessária, não o mérito e, em segundo, não estabelece seus próprios parâmetros
–, a Uber faz desaparecer o cordão de náilon do controle do trabalho, contando com a guerra intestina
entre seus ranqueados, e a guerra sobreviventista entre todos; esta, já há muito, plenamente
automatizada. O que se chama eufemisticamente de concorrência o é apenas na medida em que
chamamos a barbárie organizada de mercado. Pois os encarregados de conferir estrelas tanto quanto
aqueles que são por elas classificados e que, por isso mesmo, jamais estão ao lado, mas acima ou abaixo
uns dos outros, tornam-se objetivamente inimigos, não necessariamente jurados. Não é de se estranhar
que, nesse campo minado, de onde se colhem as migalhas, o maior risco seja não ter acesso a elas, daí a
primeira batalha aberta ter se dado entre os taxistas, motoristas profissionais e, mais uma vez a definição
é de Abílio, os amadores – que, como tais, já nascem disponíveis. Contudo, mais que o espaço entre
paredes que se fecham, está em disputa o objeto de mensuração: o autoempreendimento implica o
investimento integral do eu, bem como de todas as relações que estabelece no mundo; é tal integralidade,
portanto, o que se arrisca. O malogro da empreitada, a própria regra do jogo, resultaria sempre em
estilhaçamento não fosse o enrijecimento do espírito a primeira consequência da vida atirada à roleta –
também ele, entretanto, um estilhaço. Entre a percepção do outro como aquele que, mediante o
dispositivo, pode prejudicar, e a certeza da implacável perseguição que resulta na destruição de tudo o
que se tem e o que se é, está posto o sujeito cuja constituição implica a defesa permanente de si na
relação com o mundo. A espiral paranoide se sustenta pelo espelhamento de sujeitos empobrecidos,
independentemente dos eventuais ganhos com investimentos variados. Ao cabo da jornada 24/7 a banca
sempre ganha: muito mais que os 25%, brutos, conquista a instauração da guerra interclasse, da qual se
isenta, da qual recolhe os despojos.
Da “justiça dos pobres” ao golpe de toga
FREDERICO DE ALMEIDA

Conforme o Brasil iniciava sua trajetória de redemocratização, passou-se a falar também em


democratização da justiça. Em oposição ao hermetismo social e institucional, ao entulho legal autoritário
da ditadura e à negação de direitos, apostava-se em diversos movimentos de democratização do direito e
das instituições judiciais. Esses movimentos incluíram processos de conversão de juristas a perspectivas
teóricas e práticas críticas e de pretensão emancipatória, por meio da refundação da teoria jurídica e do
uso estratégico da lei e das instituições judiciais em favor das classes populares. Em grande medida
apoiados em pressupostos sociológicos marxistas e do pluralismo jurídico, os movimentos da “crítica ao
direito”, do “direito alternativo” e do “direito achado na rua”, entre outros, inspiraram o
desenvolvimento tanto de um campo de produção intelectual e de reforma curricular no âmbito das
faculdades de direito, como de práticas profissionais contra-hegemônicas de mobilização do aparato
judicial e de organização associativa dos juristas.
Outro sentido que a democratização das instituições de justiça assumiu foi o das mudanças em sua
composição social, por meio dos concursos públicos e da expansão do ensino superior que permitiriam
uma maior diversificação social dos juristas, em contraposição ao perfil elitista historicamente a eles
atribuído. De fato, a instituição dos concursos públicos ainda nos anos 1930, somada à expansão do
ensino jurídico a partir dos anos 1960 e ao fortalecimento institucional do sistema de justiça a partir de
1988, produziu padrões de recrutamento menos elitistas das corporações jurídicas, alimentados por filhos
das classes trabalhadoras e médias expandidas no regime militar, não raro os primeiros da família com
nível superior, muitas vezes formados em cursos jurídicos privados e noturnos. Essa mudança também
representou um perfil etário mais jovem e maior participação feminina nas carreiras jurídicas, levando
alguns analistas a associarem essa diversificação social à mudança cultural nas instituições judiciais.
Do ponto de vista da justiça estatal, porém, o sentido predominante da democratização da justiça foi
o das reformas legislativas e burocráticas que garantissem a independência do Judiciário em relação aos
poderes políticos e econômicos, simplificassem procedimentos, ampliassem o acesso e permitissem que
a lógica individualista e privatista do direito liberal fosse superada pela possibilidade de satisfação
jurídica de demandas coletivas. Esse sentido da democratização da justiça – o da reforma judicial –
encontrou maior espaço dentro das instituições judiciais e políticas, pela mão de grupos profissionais e
intelectuais reformistas moderados, como certas associações e lideranças corporativas, e especialistas em
direito processual.
A autonomia administrativa e financeira e as prerrogativas funcionais do Judiciário e do Ministério
Público (MP) na Constituição de 1988 foram importantes vitórias desse movimento. A agenda da
democracia interna foi também mobilizada por grupos profissionais das bases corporativas e encontrou
respaldo na primeira proposta de reforma constitucional do Judiciário apresentada pelo então deputado
federal Hélio Bicudo (PT-SP) em 1992. A experiência dos juizados de “pequenas causas”, iniciada de
maneira experimental por juízes gaúchos, foi alavancada pelo Ministério da Desburocratização do
governo Sarney – que então a propagandeava como a “justiça dos pobres” – e transformada em política
nacional, mais adiante institucionalizada por meio da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais de
1995. Tal lei representou uma ampliação significativa do acesso à justiça no Brasil, e foi obra de grupos
profissionais e acadêmicos que também seriam responsáveis por outras inovações procedimentais com
impacto positivo na oferta de justiça, como a Lei da Ação Civil Pública, que permite ações judiciais em
defesa de interesses difusos e coletivos; o Código de Defesa do Consumidor, tido por especialistas como
um dos mais bem-sucedidos casos de inovação legislativa, dada sua relativamente forte incidência no
âmbito das relações que pretendia regular; e as diversas reformas processuais pontuais que buscaram
introduzir os chamados meios alternativos de solução de conflitos – mediação, conciliação e arbitragem
– no sistema judicial.
Analisando esse quadro em retrospecto, não surpreende que esses diferentes vetores de
democratização da justiça tenham gerado grandes expectativas de transformação na relação entre o
direito e a sociedade: a diversidade da composição social das carreiras jurídicas permitira maior
diversidade de visões de mundo que, alimentadas por mudanças no ensino jurídico, nas ideologias
profissionais e nos procedimentos de resolução de conflitos, permitiriam a reforma interna instituições
judiciais, no sentido de uma maior aproximação com as demandas sociais, levando à efetivação da
generosa carta de direitos promulgada em 1988.
O que aconteceu, porém, foi que muitas das reformas de ampliação do acesso à justiça iniciadas na
redemocratização brasileira encontraram seus limites no caráter excludente e desigual do capitalismo
brasileiro, na reprodução de desigualdades sociais e na lógica burocrática do Estado e de seu sistema
judicial. Juristas críticos foram confinados a espaços acadêmicos ou ao associativismo contra-
hegemônico. Embora tenham representado aumento quantitativo do acesso à justiça, iniciativas como os
juizados especiais e os meios alternativos de solução de conflitos tiveram suas práticas capturadas pelo
formalismo e pelas hierarquias da justiça estatal, e por interesses corporativos e econômicos. Tais
experiências passaram a expressar o risco de precarização da oferta de justiça a quem não pode arcar
com os custos da litigância convencional, embalada pelo discurso de produção de consenso e pacificação
que ignora os determinantes sociais dos conflitos, embora útil para a redução de demanda e agilização de
fluxos de um Judiciário sobrecarregado, moroso e sujeito a lógicas de produtividade.
A sobrecarga dos juizados especiais com demandas relativas ao sistema financeiro, a serviços
públicos privatizados nos anos 1990 e a relações de consumo em geral demonstra que a “justiça dos
pobres” foi apropriada por setores do capital fragilmente regulados pelo aparato administrativo do
Estado, e que se valem de seu aparato judicial como extensão de serviços de atendimento ao consumidor
para a gestão massificada, no tempo e no espaço, de conflitos de base estrutural, mas atomizados em
demandas individuais.
O fortalecimento das instituições de justiça, baseado em autonomia administrativa e financeira,
amplo leque de prerrogativas e atribuições, e recrutamento por concursos públicos gerou instituições não
muito menos elitizadas do que antes, politicamente poderosas e com déficits de transparência e controle
social. Os concursos de ingresso cada vez mais disputados e seletivos, aliados a uma remuneração
generosa e cheia de benefícios extrassalariais – incluindo o prestígio social –, formaram novas levas de
juristas tecnicistas, defensores da ideologia meritocrática e reprodutores do habitus aristocrático. A
capacidade de socialização e reprodução ideológica das instituições judiciais e a hierarquização social
dos diplomas de acordo com a posição de classe de seus titulares fizeram com que a expansão do ensino
jurídico privado, acelerada nos anos 1990, frustrasse as expectativas de que a maior diversificação social
representasse mudanças políticas e culturais do sistema de justiça. Além disso, a diversificação das bases
das carreiras jurídicas não alcançou suas posições de cúpulas, dada a prevalência de mecanismos
políticos de ascensão e a ausência de reformas mais drásticas nas estruturas de poder internas.
A face mais evidente do associativismo das carreiras jurídicas, hoje, é a do poderoso lobby em defesa
de seus ganhos econômicos e contrários à redução de seus poderes, possível graças justamente ao poder
que o MP e o Judiciário conquistaram junto à sociedade e ao sistema político, dadas sua legitimidade na
canalização de demandas sociais e sua capacidade de influir na política – revendo decisões legislativas,
obrigando o Executivo a realizar políticas públicas ou depurando a democracia representativa por meio
do controle das leis eleitorais e do combate à corrupção, em nome do interesse público e dos direitos
coletivos e difusos.
A reforma do Judiciário de 2004 centralizou poder nas cúpulas judiciais e limitou o potencial
democratizante do acesso e das relações internas que havia na proposta de 1992, graças à influência que
as agendas neoliberais de reforma do Estado, segurança jurídica para os negócios e limitação de entraves
jurídicos ao capital adquiriram nos anos 1990. Se por um lado houve avanços em termos de
democratização interna e do acesso à justiça, por outro lado, os tribunais de cúpula tiveram seus poderes
na cadeia jurisprudencial aumentados, por instrumentos de restrição decisória das instâncias inferiores,
em nome da segurança jurídica. Os órgãos de controle “externo” do Judiciário e do MP são compostos
majoritariamente de membros das próprias instituições controladas, têm como seus presidentes os chefes
daquelas instituições e foram sendo gradualmente capturados por interesses corporativos, reduzindo suas
atribuições a uma disciplina administrativa geral do sistema judicial, com padronização de
procedimentos, imposição de metas de produtividade e controle eventual de infrações de agentes
judiciais.
Nesse cenário, é notável a resistência da justiça trabalhista, atacada nas propostas de reforma do
Judiciário de FHC e por empresários que, apesar das críticas, a instrumentalizam para a gestão de
passivos trabalhistas. Sua sobrevivência aconteceu graças à articulação política de magistrados e
procuradores do trabalho, em aliança com sindicatos de trabalhadores. A recente ofensiva contra os
direitos trabalhistas no governo Temer, contudo, mostra que a estratégia pode ter mudado: em vez de
desmantelar a justiça do trabalho, esvazia-se a regulação jurídica dos conflitos que ela pretende arbitrar.
Por fim, é necessário apontar os problemas de justiça criminal que, denunciados desde os anos 1970,
persistem e se agravaram. Os esforços de democratização da justiça civil não foram acompanhados na
mesma medida por mudanças institucionais e legislativas na esfera criminal, e as eventuais comoções
públicas com a violência policial e os massacres em presídios muitas vezes se esquecem do papel
desempenhado pelas instituições judiciais na conivência com o arbítrio estatal e na produção do
encarceramento em massa. Nesse ponto, à desigualdade de classe se sobrepõe a desigualdade racial: o
rápido aumento do encarceramento nas últimas décadas esteve baseado especialmente em crimes contra
a propriedade e de pequeno tráfico de drogas, e afetou principalmente homens jovens, negros, de baixas
renda e escolaridade – os mesmos que são vítimas preferenciais da violência policial.
O protagonismo judicial atual é fruto de um processo de desenvolvimento institucional em cujas
raízes estão movimentos de democratização da justiça fortemente alinhados ao projeto de cidadania da
Constituição de 1988, quando não a perspectivas ainda mais radicais de emancipação social por meio do
direito. O fato de que a cruzada judicial contra a corrupção seja um dos elementos centrais do golpe que
permitiu a ascensão de um projeto regressivo e repressivo pode parecer paradoxal – mas não é.
O combate judicial à corrupção conta com apoio popular, da mesma forma como partidos e
movimentos sociais agora afetados pelo golpe outrora se alinharam às instituições judiciais na defesa de
direitos, no combate a elites políticas e econômicas e na canalização de lutas sociais bloqueadas no
Legislativo e no Executivo. A democratização da justiça como ampliação do acesso e fortalecimento
institucional se deu sem que se concretizassem os demais sentidos da democratização vislumbrados nos
anos 1980: democracia interna, transparência e controle social; oferta igualitária de justiça civil e
criminal; diversificação da composição social e das visões de mundo das carreiras jurídicas. Além disso,
o alinhamento acrítico de ativistas e intelectuais de esquerda àquelas instituições, somado à timidez na
reforma e na política judicial dos governos federais do PT, também contribuiu para o quadro atual. Não é
por acaso que o ímpeto reformista da justiça dos anos 1980 e 1990 tenha se esgotado justamente durante
o governo de conciliação de classes do PT. Essa conciliação aconteceu também no âmbito da política
judicial – seja nos limites impostos ao acesso à justiça, seja na intocabilidade das estruturas de poder e
dos privilégios das carreiras jurídicas, seja nas concessões aos apelos por segurança jurídica para o
capital.
Também não é por acaso que o protagonismo judicial tenha se potencializado após junho de 2013,
quando a onda de protestos revelou, ao mesmo tempo, a insatisfação geral com o sistema político e a sua
capacidade de blindagem. Entre as bandeiras levantadas em 2013 após a questão das tarifas do transporte
público estavam o combate à corrupção e a defesa do poder de investigação do MP. A partir de 2015, o
desdobramento dos protestos em movimentos “à direita” (pelo impeachment de Dilma, contra a
corrupção etc.) e “à esquerda” (contra o impeachment, o golpe ou o governo Temer) fez com que os
membros da Operação Lava Jato fossem aclamados como heróis nos primeiros, enquanto nos segundos a
esquerda se divide entre denunciar o golpismo e o caráter de classe das instituições judiciais, de um lado,
e aplaudir acriticamente aqueles juristas como moralizadores da política e precursores de uma crise com
potencial revolucionário, de outro.
A dinâmica relativamente autônoma do campo jurídico faz com que a luta de classes encontre
projeções refratadas e, portanto, distorcidas em seu interior. O Brasil pós-golpe necessita de um projeto
popular não só para a política e a economia, mas também para a justiça. Resgatar as diversas agendas
democratizantes do direito e das instituições judiciais, perdidas nas últimas décadas, é condição essencial
para a crítica e a transformação dessa dimensão do Estado brasileiro tão ou mais blindada quanto o
sistema político, apesar de sua aparentemente maior legitimidade social.
reportagem

Laboratório social
AMANDA MASSUELA

Andrea*, 24, vive na zona leste de São Paulo e se sustenta com uma bolsa de pesquisa que recebe da
universidade onde faz o curso de Letras. O dinheiro é suficiente para seus gastos com livros, alimentação
e transporte, mas não cobre o tratamento que, desde que passou a sofrer com crises constantes de
ansiedade, mostrou-se tão necessário quão pouco acessível. Na manhã do dia 8 de abril, um sábado, a
estudante se distraía com a tela do celular enquanto esperava que seu nome, escrito à mão em uma lista
de espera cor-de-rosa, fosse chamado por um dos psicanalistas de plantão.
Ela está na Casa do Povo, associação cultural sexagenária do bairro do Bom Retiro que desde o
último dia 1º de abril hospeda, além de outros projetos, a Clínica Aberta de Psicanálise. “Aberta” porque
não exige dos interessados hora marcada com antecedência ou pagamento na saída. Trata-se de um
coletivo de psicanalistas que utiliza aquele espaço para realizar atendimentos semanais gratuitos –
sempre aos sábados –, com duração de uma hora, em quatro horários diferentes.
Quem explica o conceito por trás da iniciativa é Tales Ab’Saber, psicanalista, doutor em Psicologia
Clínica/Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da USP e membro do Departamento de Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae: “Uma questão que nos interessa é não apenas a socialização da experiência da
psicanálise, mas a necessidade contemporânea de se criar espaços em que se produza subjetividade,
trabalho e vida fora da lógica do mercado”, afirma. “Isso é um problema político contemporâneo de
todos nós. O horizonte é pós-capitalista.”
Ab’Saber compara o funcionamento da clínica aos bólides de Hélio Oiticica, estruturas manuseáveis
adicionadas às obras do artista entre 1963 e 1967. “Aquelas formas rompiam com a história da arte
moderna, mas a continham. De repente, todos os elementos de cor, forma e estrutura que a arte moderna
explorou estavam funcionando em outro lugar, muito mais próximo do mundo e das coisas.” De maneira
semelhante, é de interesse do grupo romper com o lugar econômico-social da psicanálise, retirando-a
unicamente dos consultórios privados, da lógica do dinheiro, e fazendo-a operar de maneira ampla na
vida da cidade e das pessoas.
O desejo não é novidade entre a comunidade psicanalítica brasileira. Já em 1973, Anna Katrin
Kemper e Hélio Pellegrino fundavam a Clínica Social de Psicanálise do Rio de Janeiro, cobrando valores
irrisórios pelos atendimentos. “Para o pobre mesmo, para o operário, a ideia de fazer terapia é tão remota
como a de comprar um Mercedes-Benz”, dizia Pellegrino, escritor, psicanalista e militante de esquerda.
Hoje, universidades, institutos de formação e outros grupos autônomos de psicanalistas também
oferecem esse tipo de serviço – além dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), dos CERSAMs
(Centros de Referência em Saúde Mental) e dos NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial), que integram
a rede do Sistema Único de Saúde (SUS). O que a Clínica Aberta postula como novidade é a estrutura de
trabalho colocada em prática, baseada num revezamento de analistas que, segundo Ab’Saber, torna o
projeto “sustentável”.
“Há todo um redesenho do setting. Enten-demos que quem está atendendo a essas pessoas não é o
indivíduo analista, mas o grupo. Essa ideia nunca foi pensada antes, e tem a ver com o desenvolvimento
do entendimento da psicanálise”, afirma. O método, no entanto, está longe de ser unanimidade entre os
profissionais da área, que questionam a eficácia de um tratamento oferecido dessa maneira, sem a
construção de um vínculo entre analista e paciente.
TRAMA POLÍTICO-SOCIAL
Apesar disso, a procura tem sido alta. Em três fins de semana, 96 pessoas foram atendidas, muitas delas
depois de ficar sabendo do projeto pela internet. Foi o caso da assistente social Marcia, 56, que esperava
a sua vez para o seu primeiro atendimento na Casa do Povo.
“A gente vive um momento político muito complexo e doloroso, carregado de muitas perdas para
quem ao longo da vida lutou para construir direitos”, afirma à reportagem, antes de ser chamada. “A
clínica tem uma radicalidade que não é só de discurso. Ela abre a possibilidade de quem vive essa dor – e
não tem como pagar por um serviço para lidar com ela – saber transformá-la em algo produtivo. Foi o
que me trouxe até aqui.”
Bruno, massagista de 25 anos, compartilha de um sentimento semelhante. “Tenho escolhido me
isolar, falta coragem de me colocar no mundo. Acho que está tudo muito violento, mesmo que
veladamente. Me sinto muito fechado, não tenho saído de casa.”
Seja no âmbito privado ou coletivo, a política invade os consultórios, “mesmo quando os pacientes
evitam olhar para isso”, diz um dos psicanalistas do grupo, Aldo Zaiden. Isso porque “ninguém sofre no
vazio”, como afirma Ab’Saber, mas envoltos por um contexto, uma trama que é política e social: “A
clínica também é um lugar de recuperação do sujeito político, que pode ser alienado e violentado a ponto
de ser alcançado em suas raízes inconscientes”, diz o psicanalista.
Segundo ele, no caso de uma clínica aberta a qualquer um que se interesse, é possível identificar mais
claramente a dimensão de “laboratório social” da psicanálise, ou seja, enxergar a sociedade por meio da
singularidade do indivíduo. “Sob a forma de um, é o mundo que está ali”, afirma. “As pessoas estão
sofrendo numa marca individual e num sistema de mundo. E existem certos padrões: imensos circuitos
de violências privadas, relações degradadas. Muitas pessoas nos procuram para se perguntar por que são
tratadas como lixo em suas casas. Isso é um sofrimento, uma dor pessoal, mas também um sistema geral
de linguagem de relação de poder”.
Zaiden questiona por que, então, apenas pessoas com dinheiro podem cuidar de si por meio da
psicanálise e se abrir à vida inconsciente? Um acompanhamento psicológico particular pode chegar a R$
346 a sessão, de acordo com o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Item de luxo em um país
no qual trabalhadores recebem um salário mínimo de R$ 937.
“O SUS está abarrotado, não consegue dar esse suporte pra gente, e as clínicas particulares são muito
caras”, reclama Andrea, apoiada por Marcia. “Uma boa psicanálise custa um valor que uma pessoa de
classe média não dá conta de pagar. É muito elitista. Fica claro que não é para qualquer um”.
Para Zaiden, a elitização da prática vem de uma opção liberal do campo psicanalítico, que faz o
desejo de clínica ser controlado por uma estrutura privada que não faz parte da “ordem natural das
coisas”. “No mundo do dinheiro, é claro que os analistas precisam ofertar esse serviço por um preço”,
diz Ab’Saber. “Mas existem potências extramercado. A psicanálise pode existir no mundo por outro
circuito.”
O grupo agora trabalha para que a iniciativa se espalhe para outros pontos da cidade, a começar pela
praça Roosevelt. Analistas de outros estados, como Minas Gerais e Paraná, estão interessados em
organizar grupos semelhantes nas capitais. Mas, em tempos de desmonte do aparato público, é uma
preocupação de profissionais da área que o Estado assuma sua parcela de responsabilidade no cuidado da
saúde mental da população, promovendo melhorias nos serviços oferecidos e trabalhando na criação de
políticas públicas.
livros
Vozes subterrâneas
PAULO HENRIQUE POMPERMAIER

No devaneio de matéria líquida, cintilante e oscilante, carne em frenesi de vida, a carioca Stela do
Patrocínio fez-se poeta. Ecoou o obscuro através de uma boca que falava coisas. Na crueldade e na
bênção da ignorância, falou como quem tece vislumbres de uma vida profunda. Desmembrou as
palavras, desenraizou-as do ensimesmado cartesiano no fluxo de desrazão da mente delirante. Na
tentativa de dar forma a si e ao mundo com sua voz, Stela produziu um discurso lúcido, consciente de
sua condição subjetiva, da vida no hospício e dos abismos humanos.
Filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier do Patrocínio, nasceu a 9 de janeiro de 1941. Gostava
de leite condensado, Coca-Cola e salgado, biscoito de chocolate, cigarros, caixa de fósforos, óculos de
sol, blusas azuis. Tinha instrução secundária e trabalhava de empregada doméstica na Urca, na mesma
casa em que sua mãe enlouqueceu. Foi admitida aos 21 anos no Centro Psiquiátrico Pedro II após
registro na quarta Delegacia de Polícia.
Rápidas e esparsas são as imagens do passado de Stela do Patrocínio. Um andar sem registro a que
foi submetida por sua condição de mulher, negra, pobre e esquizofrênica no Rio de Janeiro da década de
1960. Diagnosticada com “personalidade psicótica mais esquizofrenia hebfrênica evoluindo sob reações
psicóticas”, foi internada em 1962 no Centro Pedro II. Quatro anos depois foi transferida para a Colônia
Juliano Moreira, onde viveu até sua morte em 1992. Dos trinta anos em que passou em hospitais
psiquiátricos, o único registro de suas falas, transformado em poesia, está no livro Reino dos bichos e
dos animais é o meu nome (Azougue, 2001).
GÊNESE DE UMA POETA
Em 1986 a artista plástica e professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage Nelly Gutmacher foi
convidada pela psicóloga Denise Correia a montar um ateliê na Colônia Juliano Moreira, instituição
psiquiátrica fundada em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, na primeira metade do século 20. Gutmacher e
sua estagiária, a também artista plástica Carla Guagliardi, atuaram na Colônia entre 1986 e 1988, na ala
feminina do Núcleo Teixeira Brandão, onde usaram a arte como forma de desenvolver a capacidade de
expressão das pacientes.
Foi nas reuniões semanais do ateliê que as artistas entraram em contato com Stela do Patrocínio, lá
internada desde 3 de março de 1966. Negra, alta, sem nenhum dente na boca, de “postura muito soberba,
muito segura, e de uma inteligência abissal”, como relembra Guagliardi, Stela desde o início começou a
frequentar as reuniões.
Diferente das outras pacientes, ela não gostava de desenhar. Rabiscava alguns traços e queria,
sempre, ficar conversando e exteriorizando suas ideias. “Às vezes ela nem entrava, ficava do lado de
fora, falando sozinha, e a gente que ia lá conversar com ela”, na memória de Nelly Gutmacher. De sua
família nada se sabia, apenas que sua mãe também tinha ficado internada na Colônia e saíra antes da
entrada da filha. Em suas palavras, era “sem família/ minha família é dos cientistas agora”.
Gradualmente, as artistas plásticas do ateliê perceberam que a fala de Stela diferia-se naquele
ambiente. Consciente de suas palavras, ela produzia um falatório marcado por reflexões existenciais.
Com o tecido cotidiano, sua condição de mulher, negra, pobre e internada em um manicômio, Stela
compunha um obscuro ser humano. Vislumbres do que foi, na expressão de Gutmacher, um
“aprendizado humano, sobre a coisa do ser, o que é o ser”.
Espantada diante de sua sofisticação linguística, Guagliardi começou a gravar as falas de Stela.
Fazendo perguntas sobre sua vida e sua condição, registrou sua voz, no formato de entrevista, durante os
dois anos e meio que existiu o ateliê. A experiência artística no manicômio culminou, em 1988, na
exposição “Ares subterrâneos” no Paço Imperial, que reunia a produção artística de pacientes. Como
forma de representar Stela, Guagliardi datilografou algumas de suas frases, que foram expostas na
mostra.
Diabética, Stela foi internada em 1992 no Hospital Cardoso Fontes, com um quadro de hiperglicemia
grave que levou à amputação de sua perna. De volta à unidade hospitalar da Colônia, entrou em
depressão, parou de se alimentar e conversar. Morreu pouco tempo depois, nesse mesmo ano, de
infecção generalizada devido à cirurgia.
Suas falas, com a exposição no Paço Imperial, chegaram à filósofa e psicóloga Viviane Mosé, que
percebeu ali certa densidade e decidiu, com as gravações, editar um livro de poesia. Sem precisar corrigir
erros linguísticos, e tentando colocar na forma escrita do poema todos os desdobramentos e nuances da
oralidade, Mosé organizou o livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, publicado em 2001
pela Azougue Editorial em parceria com o Museu Bispo do Rosário.
Finalista do Prêmio Jabuti, o livro foi reeditado em 2009 e atualmente está esgotado, mas com
planejamento para futura reedição no segundo semestre deste ano. O discurso de Stela, recluso por trinta
anos em instituições psiquiátricas, ultrapassou os limites do livro. Foi para o teatro em 2003 com o
espetáculo musical Entrevista com Stela do Patrocínio, de Lincoln Antonio e Ney Mesquita. E para o
cinema em 2008 com o filme Stela do Patrocínio: a mulher que falava coisas, de Márcio de Andrade.
NEGA, PRETA, CRIOULA E BEM PATROCINADA
Diferente dos outros pacientes da Colônia, aos quais Stela se referia como “não tem nenhum que pense”,
sua fala estava marcada de uma consciência da condição hospitalar e de certa percepção de sua
subjetividade. “Eu sou Stela do Patrocínio/ Bem patrocinada/ Estou sentada numa cadeira/ Pegada numa
mesa nega preta e crioula/ Eu sou uma nega preta e crioula”, como declara em um de seus poemas.
Criada no século passado, a Colônia Juliano Moreira, onde também esteve internado o artista plástico
Arthur Bispo do Rosário, era o típico modelo de instituição disciplinar, regida pelo ideal de controle e
domesticação do corpo e subjetividade. Chegando a ter 7.700 pacientes encerrados entre suas três
unidades, o manicômio aparece nas falas de Stela através de um crivo crítico, como lugar de maus-tratos
e doença. Ao relembrar sua trajetória, a poeta afirma, por exemplo, “Eu vim do Pronto Socorro do Rio
de Janeiro/ Onde a alimentação era eletrochoque, injeção e remédio/ E era um banho de chuveiro, uma
bandeja de alimentação”.
A prisão também aparece como uma temática importante para Stela, que se sente “cumprindo a
prisão perpétua, correndo um processo, sendo processada”. Inclusive, durante a experiência do ateliê, um
dos passeios promovidos pelas artistas foi ir desenhar um muro em apoio ao Dia Nacional da Luta
Antimanicomial, iniciado em 18 de maio de 1987. Guagliardi, que tinha mais intimidade com Stela,
relembra sua manifestação: fez um grande risco no muro e ficou parada, olhando os outros desenharem.
Na recordação da artista, esse porte da poeta a distinguia. “Ela não era uma pessoa sorridente, que
achava graça nas coisas. Ela tinha uma gravidade muito intensa, e isso era como entrar em contato ao
vivo com Nietzsche, com Artaud”, afirma.
Apesar do transbordamento, em suas falas, da sua condição hospitalar precária e repressora, Stela
tinha consciência que seu gosto pelo falatório não mudaria aquela situação, que ela continuaria “botando
o mundo inteiro pra gozar e sem gozo nenhum”. Com olhar arguto, percebia que o discurso obscuro do
louco não teria chance no império da razão, “Porque quem vence o belo é o belo/ Quem vence a saúde é
outra saúde/ Quem vence o normal é outro normal/ Quem vence um cientista é outro cientista”, como diz
em um dos poemas.
ÁRIDA EXISTÊNCIA
Paralela à construção de sua condição manicomial, Stela tangeu, com sua fala, o fluxo constante da vida
que não consegue ser apreendido pela razão. As mutações e deformações de uma matéria que apenas
vive, e, assim, aproxima-se de um domínio não humano. Em sua inconstância de formas, falando para
tentar se formar, Stela ocupa uma existência incerta: “Antes era um macaco, à vontade,/ Depois passei a
ser um cavalo/ Depois passei a ser um cachorro/ Depois passei a ser uma serpente/ Depois passei a ser
um jacaré”.
Corpo em crise, de existência incerta, sua poesia reflete tais cisões, que não se comportam mais na
ordem normal do tempo e do espaço. Assim como vai ao reino dos bichos e dos animais para se
encontrar, ela se projeta em um novo tempo, de dimensões pré-históricas, no qual percebe a agrura de
um corpo já velho, embebido e extenuado pela existência. “Comecei a existir com quinhentos milhões e
quinhentos mil anos. Logo de uma vez, já velha”, diz a poeta.
Quando toca a realidade, aparenta o esforço inútil de segurar alguma coisa ainda viva. Cria uma fala
infecciosa, que contamina a linguagem e a leva aos seus extremos de sentido. Limites nos quais a
comunicação aparece como ato irrisório e incapaz de atingir algo que pulse vivo e orgânico. O visceral,
na fala de Stela, é remexer a carne pegajosa do mundo e seus excrementos, nos quais nenhuma vida
pensante é mais possível:
“Eu sou mundial pobre/ Tudo pra mim é merda durinha à vontade/ Até ser contaminada e
contaminada até ser merda pura/ E é fezes excremento bosta cocô/ Bicha lombriga verme pus ferida
vômito escarro porra/ Diarreia disenteria água de bosta e caganeira”.
Seu contato com a matéria disforme do mundo a leva, como em gesto hierático, a beber o vermelho
líquido que pinga do que está no escuro da ignorância. Ela sente que não gostaria de tomar forma, é
obrigada a nascer pelos médicos, mas queria apenas ser parte integrante do nada, o não viver. “Eu não
queria me formar/ Não queria nascer/ Não queria forma humana/ Carne humana e matéria humana/ Não
queria saber de viver”, reflete.
Mulher, negra, pobre e louca. Por uma casualidade, teve sua fala preservada na história, a despeito do
preconceito retilíneo e iluminado da razão endossado por uma sociedade machista e racista. Tangendo o
obscuro, sua fala aparenta claro enigma que, em meio à barbárie da razão, propõe uma nova
possibilidade discursiva e subjetiva. Como reflete Guagliardi, “ela viveu uma vida anônima dentro da
instituição. Foi por um acaso que tivemos essa oportunidade de conhecê-la um pouco mais e produzir
esse único registro”.

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo


Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente
Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro

É dito: pelo chão você não pode ficar


Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
livros

Entre governados e ingovernáveis


SILVIO ROSA FILHO

Porque se trata de um breve ensaio de intervenção, originalmente publicado na revista Lignes (Violence
mais pourquoi faire?, maio de 2009); porque mais tarde foi ele inserido em livro, também traduzido
entre nós (Crédito à morte – a decomposição do capitalismo e suas críticas, Hedra, 2013); porque mais
tarde ainda o caso policial e jurídico que lhe servira de ponto de partida acaba de ser encerrado por falta
de “provas materiais” (janeiro de 2017) – importa ao menos prevenir o leitor para a ampla gama de
combinações que se realiza nesse “pas de trois”, para ir de saída sugerindo: o foco de minhas
observações se concentra principalmente no “pas de deux” que executam o mencionado ensaio sobre o
tema da violência na política e aquilo que foi apontado como Caso Tarnac.
Muitos se lembram de que, em novembro de 2008, nove jovens foram presos sob a suspeita de
sabotar três linhas de trem de alta velocidade e, na cidade de Tarnac, logo acusados de ação associada ao
terrorismo. Aos poucos as incoerências de investigação foram saltando à vista até se reduzirem todas a
uma alegação tão frágil quanto mais alardeada por muita cumplicidade midiática: a de que os presumidos
culpados eram membros de “comitê invisível”, responsável pela redação e divulgação do panfleto “A
insurreição que se aproxima”. Drama vivido por cinco mulheres e quatro homens, novelão policial à
francesa ou temporada de desventuras jurídicas em série que se arrastou ao longo de quase nove anos, o
Affaire Tarnac oferece elementos para formular o problema de saber o que têm a temer afinal
governantes, operadores do direito e agentes públicos ou privados de segurança. Pois que de resto, na
coreografia de oferta governamental e demanda privada por “segurança”, insurreições podem ser mais
ou menos bem-vindas.
No calor da hora, o ensaio de Jappe trata de elaborar um conciso preâmbulo à degradação das formas
políticas de oposição – violência política inclusa. Começa constatando a presença cada vez mais
ostensiva, arrogante e brutal do policiamento em aeroportos e estações de trens franceses, a ponto de
suscitar imediatamente questões tão elementares quanto estas: para que tanta violência? Haveria um
golpe de Estado em marcha? Estariam os franceses em tempos de guerra e sob ocupação inimiga? Ou
ainda, às voltas com procedimentos policiais situados “acima da lei”, o simples fato de imaginar-lhes
uma objeção, mínima que seja, basta para produzir o pressentimento de estar prestes a ser levado para a
prisão, tomar golpes de cassetete, ser acusado de “resistência à força pública”. Mais graves e quase
imponderáveis desdobramentos haveria, como se sabe, se a mínima objeção fora esboçada por “alguém
de pele mais escura” (p. 9). Malgrado indignações adstritas à esquerda e inquietudes limitadas à direita,
assiste-se a uma tendência universal que procede ao apagamento das linhas que haveriam de separar, de
um lado, “terrorismo”, de outro, ilegalidades corriqueiras, delitos de opinião, ocupações, sequestros de
chefes de empresa, violência coletiva, sabotagem. Vale registrar a exceção, aliás notável: os “delitos
financeiros” que, em meio a delitos comuns de crime civil, não correriam o risco de ser postos na conta
de terrorismo capitalista.
No jogo de ofertas governamentais e demandas privadas por “proteção”, decerto prevalece, desde
Thomas Hobbes até Milton Friedman, passando por Carl Schmitt, o interesse em perpetuar a
insegurança: “a possibilidade de administrar a morte permanece o pivô de toda a construção estatal” (p.
20). Se todavia o Estado “mínimo” fosse devolvido à sua gênese essencial de gente armada e
suspostamente capacitada para administrar a morte, se a monopolização estatal de todas as formas de
conflito se alastrasse até a vida cotidiana mais chã, como parece ser o caso nos últimos decênios, então,
“pela primeira vez na história, os governos poderiam reinar sem partilha, apagando toda e qualquer
possibilidade de um desenvolvimento futuro diferente do que preveem seus dirigentes” (p. 24). Tem
cabimento, pois, a pergunta: e se tais dirigentes não forem tão previdentes assim?
O problema do exercício da justiça passa a residir no fato de que o Estado “democrático” está muito
mais equipado do que os Estados totalitários (fascistas, nazistas, stalinistas e assim por diante) para
práticas totalitárias, ou seja, “perseguir de perto e eliminar tudo o que possa lhe fazer frente” (p. 23).
Visto que não se trata, é claro, de propagar ilusões legalistas nem de pedir ao Estado que respeite a sua
própria retórica, como se fosse deixar alguma chance a seus adversários, é de se esperar que ele,
seguindo à risca sua lógica mais funda, tudo faça para que a única “alternativa” a seu reino se configure
como “barbárie aberta” (p. 27).
O cenário do “quanto-pior-melhor” é, em suma, o terreno predileto para “as forças da ordem”; em
outros termos, a legenda contínua para toda videologia estatal se condensa na declaração segundo a qual
“nenhuma mudança efetiva é mais possível”. Logo, assim como diminuem as margens de manobra,
também aumentam as zonas de ilegalidade e a mise-en-scène do controle em que o Estado, cada vez
mais militarizado, emerge como o único senhor.
Tendo chegado a esse passo do raciocínio, só aparentemente é que o Estado teria sido malsucedido
no Affaire Tarnac. Por certo, o drama vivido pelos nove jovens é “terem encontrado policiais e juízes
bastante cínicos a ponto de entender à risca os fantasmas de violência que expressavam, a ponto de fingir
considerá-los tão perigosos quanto sonhavam ser e puni-los pelo que desejariam ter feito” (p. 34). Por
isso mesmo, Jappe podia prever, em 2009, o que se confirmou em 2017: “tudo indica que os acusados se
livrarão de qualquer suspeita” (p. 36). Entretanto, sob as aparências de derrota do ministério público
perante os procedimentos judiciários, “o golpe estatal foi exitoso, se a intenção era abafar ainda no
embrião toda e qualquer tentação de recorrer em massa à sabotagem e anunciar a grandes toques de
trombeta a ‘tolerância zero’ para as formas de resistência – os atos de guerra de baixa intensidade – que
poderiam nascer dos movimentos sociais em formação” (p. 36-37). E tem mais: “se a humilhação sofrida
e a raiva empurrarem novamente alguém para a luta armada, o Estado se regozijará por se encontrar
diante de inimigo pelo qual nutre a maior afeição” (p. 37).
Em poucas palavras, o erro da insurreição algo imaginária consiste em querer “jogar lenha na
fogueira da barbárie”. Ora, esta como que revelação nos impede de resistir à tentação de tomar distância
em relação ao decisionismo (neo-hedeggeriano, neo-schmittiano) dos absolvidos, e repensar, ainda que
brevemente, o significado da ideia de que é possível tornar a barbarização crescente uma forma de
emancipação. Não, evidentemente, o significado “simplório”, que para tanto estamos apercebidos pelas
críticas de Jappe nos parágrafos finais de seu ensaio: nada a esperar, portanto, da barbarização que aliás
não terminou de crescer desde 2008.
Tudo o que podemos fazer seria convidar o leitor a abrir as páginas de Crédit à mort, quando seu
autor visa ao capitalismo em estado de decomposição tal que, graças a uma espécie de discurso indireto
livre, proclama-se que doravante “é a própria humanidade que se torna supérflua para a reprodução do
capital-fetiche” (ed. fr., p. 17). Nessas ressonâncias de textos vários, como os de Günter Anders, Lewis
Mumford, Jaime Semprun, com os quais o nosso autor anda bem acompanhado, a releitura isolada do
ensaio, porém, pode decepcionar. Sobretudo àqueles que torcem o nariz para a persistência algo
escatológica do capitalismo que visivelmente se torna aquilo que essencialmente ele tem sido desde o
início: “animal que se autodevora, máquina que se autodestrói, uma sociedade na qual ninguém poderia
viver” (id., p. 45). Por sua vez, os talentos do polemista, aliados ao alcance das análises críticas da
autovalorização do valor e da dimensão abstrata de todo trabalho, não se limitam à esfera econômica,
mas mostram como esse “valor”, compreendido enquanto forma social de vida e de socialização, se
impõe como “fato social total”, de Marcel Mauss a Moishe Postone.
Pensando nessas articulações, lembramo-nos de que o critério para todo movimento de emancipação
haveria de ser duplamente negativo: não poderia se situar nem no trabalho como forma capitalista do
metabolismo com a natureza, nem tampouco no trabalho como mediação social entre os homens.
Inventar então novas formas de mediação social? O ensaio, por sobre ser um primeiro espelho de
aumento das insuficiências teóricas dos jovens sabotadores, apareceria como uma pequena iniciação ao
pensamento que se volta para o mundo contemporâneo sem renunciar ao propósito de transformá-lo. À
espera do próximo round. E deixando lugar para obras de arte: aqui, um halo de mistério advindo das
estátuas grotescas embora não caricaturais de Sabhan Adam; ali o longo e silencioso desfile de florestas
em marcha, as que aparecem nas obras de Jephan De Villiers; acolá os embolamentos em que Jean-Luc
Parant se propõe a ingressar nas próprias mãos para ir até onde os seus olhos não vão – pars ludens, bem
ao gosto de Jappe.
Ao leitor, enfim, a impressão de negativas justapostas. Nem insurreições, nem ódio desencarnado,
nem ressentimento, nem manifestações de final de semana, nem agendas eleitorais, nem “cidadanismo”,
nem “decisões de consumidor”, nem, tampouco, discursos bem-intencionados sobre “o dom, a
autogestão ou a economia alternativa”.
A lista dos substitutos à crítica do funcionamento do capital poderia se estender ao infinito; ela nem
sempre coincide com as formas de contestação criminalizada. Parece, com efeito, que a sequência
presunção de culpa-aprisionamento-acusação-condenação, ao corresponder a sentimentos de humilhação
administrada, ainda não esgotou a indignação que deles poderia brotar. Nessa coletânea de negativas,
talvez devêssemos então considerar de mais perto os vínculos inusitados entre Cultura e Política. Por
exemplo: as mais recentes transformações da precariedade em força produtiva no cinema de Adirley
Queirós (Branco sai, preto fica) e a miríade dos ingovernáveis em seus movimentos sem chefe (aqueles
que Jappe reconhece como irredutíveis a todo enquadramento).
livros

Rousseau a passeio
SILVIO ROSA FILHO

Espécie de paradoxo, o vigésimo e último volume das Obras completas de Rousseau é o primeiro a ser
publicado em Paris, na coleção Biblioteca do Século 18.
O volume resulta do trabalho editorial de dois especialistas: Alain Grosrichard, autor da quase
totalidade das notas explicativas e de uma saborosa introdução, em forma de diálogo; François Jacob,
responsável pelo prólogo, estabelecimento dos textos, glossário, índices, assim como pela introdução às
“cartas de jogo”.
Ao percorrer as páginas do livro, o leitor será levado a refazer os dez passeios que Rousseau
transcreveu pouco antes de sua morte, entre setembro de 1776 e abril de 1778. Do primeiro texto, no
qual ele descreve a condição do solitário e alude a algumas intenções de escrita, até o último, dedicado à
sua amiga Madame de Warens, vê-se Rousseau designar, no interior da obra, o seu próprio exterior:
entre o silêncio da origem, aparentado às imagens oníricas e aos signos memorativos que se manifestam
no universo do sonho acordado, de um lado, e, de outro, o silêncio da escravidão, em que a fala se cala
sob a prevalência e os desdobramentos da escrita, uma camada sedimentar do texto dá testemunho do
bom encontro entre o sentimento de si do indivíduo solitário, a formação do cidadão no estado social e a
figura de um leitor futuro – este último, incompatível com os leitores que povoavam o pesadelo acordado
e coletivo de um regime, já antigo e com as horas contadas.
Nas Rêveries Rousseau evoca, narra, ensaia, medita. Divaga à vontade. E o que há de comum a esses
momentos entrecruzados de fatura literária e elaboração filosófica é a invenção de uma nova forma de
prosa crítica, que, tendo tomado a Rousseau ao menos dez anos de aprimoramento, poderia ser resumida,
talvez, em duas palavras: forma devaneio.
Vale aqui destacar as 28 cartas que, hoje conservadas pela Biblioteca Pública e Universitária de
Neuchâtel, eram utilizadas pelo pensador a passeio para a tomada de notas esparsas, na face em branco;
retomadas, em seguida, como esboço para jogos de composição e escrita. Com elas, o leitor interessado
pode fazer o cotejo entre o germe de uma ideia, o surgimento de uma imagem, o primeiro
desenvolvimento de um conceito, sua floração em livro. Assim, a ideia de felicidade que aparece na carta
número 3 não deixa de evocar as passagens do Quinto Passeio (sobretudo, §§ 12 e 13), em que Rousseau
nos apresenta os momentos mais felizes de sua vida, temporada na Ilha de Saint-Pierre. A carta 12
esboça relatos do Primeiro e do Nono Passeios, quando se lê, por exemplo: “ah, não seria obrigado a
buscar aos animais o olhar da benevolência que doravante os homens me recusam”. Para mencionar
apenas mais uma remissão, a carta 23, por exemplo, é consistente com o Primeiro Passeio, no qual
Rousseau avisa que trata de “conversar com a sua alma”, usufruir das desambientações do solitário,
aprofundar-se, não tanto em monólogos ou solilóquios, mas no limo de um “diálogo interior”, a
concordarmos com Alain Grosrichard.
Se preferir, o leitor também poderá acompanhar esses andamentos de sonho acordado, na edição
crítica de Frédéric Eigeldinger, oferecida em formato de bolso. Em sebos, com sorte, talvez encontre Os
devaneios do caminhante solitário (tradução de Fúlvia Moretto, datada, 1995), enquanto não formos
brindados com nova tradução dessa obra-prima, que, segundo estudo clássico de Suzanne Bernard,
apresenta mais um interesse – o de se achar na origem de textos outros que, cultivados por Baudelaire e
consumados por Rimbaud, ficariam mais conhecidos sob o nome de poemas em prosa.
CARTA 3
A felicidade é um estado por demais constante e o homem um ser por demais mutável para que um
convenha ao outro. Sólon mencionava a Creso o exemplo de três homens felizes, menos por causa da
felicidade de sua vida, mais pela doçura de sua morte, e não lhe concedia dizer que um homem fosse
feliz enquanto ainda estivesse em vida. A experiência provou que ele tinha razão [...].
CARTA 4
É verdade que não faço nada sobre a terra; porém, quando eu não tiver mais um corpo, também não farei
mais nada, e não obstante serei mais excelente, mais repleto de sentimento e vida que o mais ativo dos
mortais.
CARTA 11
Imagino o espanto desta geração tão soberba, tão orgulhosa, tão afiançada em seu pretenso saber, e que
com tão cruel suficiência conta com a infalibilidade de suas luzes a meu respeito.
CARTA 12
Não existe mais afinidade nem fraternidade entre mim e eles: eles me renegaram como seu irmão e eu
me glorifico por tomá-los ao pé da letra. Não obstante, se ainda pudesse cumprir algum dever de
humanidade para com eles, sem dúvida eu o faria, não como fosse com meus semelhantes, mas para com
seres sofredores e sensíveis que carecem de alívio. Aliviaria igualmente, e de coração, um cão em
sofrimento. Pois, não sendo traidor nem trapaceiro, jamais acariciando um cão por falsidade, mais
próximo a mim está um cão do que um homem desta geração.
CARTA 17
devaneio
donde concluo que esse estado me era agradável, mais como uma suspensão das dores da vida do que
como um gozo positivo [...]
CARTA 23
A vergonha acompanha a inocência, o crime não a conhece.
Digo ingenuamente meus sentimentos, minhas opiniões, por mais bizarras, por mais paradoxais que
possam ser; não argumento nem forneço provas, porque não busco persuadir a ninguém e só escrevo
para mim.
Tradução de Silvio Rosa Filho
colaboraram nesta edição

Bianca Santana é jornalista, autora de Quando me descobri negra (SESI-SP)

Flávia Biroli é doutora em História pela Unicamp e vice-diretora do Instituto de Ciência Política da
Universidade de Brasília (UnB)

Frederico de Almeida é doutor em Ciência Política pela USP e professor do Departamento de Ciência
Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp

João Alexandre Peschanski é doutorando em Sociologia pela University of Wisconsin-Madison, nos


Estados Unidos, e professor de Ciência Política na Faculdade Cásper Líbero

João Sette Whitaker Ferreira é doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP e professor da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da USP e do Mackenzie

Silvia Viana é doutora em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Silvio Rosa Filho é professor do departamento de Filosofia da Unifesp

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