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EDIÇÃO 117 | JUNHO DE 2016 _questões ludopédicas


DEPOIS DA QUEDA
A condenação do cai-cai e o falso moralismo do futebol contemporâneo

ALEJANDRO CHACOFF

Aprendíamos cedo a mentir. Se algum jogador puxasse a sua camisa, ou desse um toquinho de leve na canela, ou na
panturrilha, você se jogava. “Porra, falta, caralho!”, é a frase que lembro dizer com mais frequência. Ou então: “Tomá no cu”, o
vai solenemente implícito.

Eu sentia um certo prazer na atuação, e sei que não era o único da rua a sentir isso. Minha mãe acabara de se separar de meu
pai e, após anos vivendo na Filadélfia, nos Estados Unidos, onde fizera seu doutorado, ela, minha irmã e eu voltávamos a viver
em Cuiabá, no Mato Grosso, com meus avós maternos. Da casa de meu avô, lembro de um murinho avermelhado por onde
colônias de pequenas taturanas brancas subiam incessantemente, com muito esforço, e depois caíam no chão, numa adaptação
mato-grossense do mito de Sísifo. Olhava as taturanas assim como olhava a nova cidade: com um fascínio reticente e um pouco
de desprezo.

Logo as coisas melhorariam, ou pelo menos atingiriam um equilíbrio entediante, vagamente prazeroso. Me acostumei a jogar
bola com os meninos da rua. A rua do meu avô era a prova de que pouco se pode saber do talento de um jogador por seu tipo
físico. Gu, um menino magro e ágil, era descoordenado. Bruno, um gordinho que evocava a preguiça macunaímica, era craque.
No meu caso, infelizmente, a simetria funcionava: pálido e lento, eu era bem ruim. Mas sabia simular quedas. Quando caía, já
abraçava a bola no chão, depois a colocava embaixo do braço e me levantava com um sorriso irônico. Talvez fosse uma
tentativa infantil de imitar os meio-campistas mais elegantes daquela Copa do Mundo de 1994 – o búlgaro Hristo Stoichkov, o
romeno Gheorghe Hagi.

Na minha família havia bons jogadores. Meu primo era muito bom. O pai dele falava, com a displicência meio fingida de pai
orgulhoso, sobre talvez enviá-lo para fazer testes em times do Rio e de São Paulo. Meu tio também jogava bem. Pelo que me
lembro, os dois simulavam quedas, se necessário.

Meu avô nunca jogou, mas era o mais fanático de todos nós. No final dos anos 70, ele se tornou presidente do Clube Esportivo
Dom Bosco. Sempre lembrava de quando empataram com o Corinthians fora de casa, um evento que os corintianos já
esqueceram, mas do qual meu avô falou até sua morte. Quando nasci, ele já não era mais presidente do clube. Mas sua casa era
tão repleta de bandeiras, uniformes branco e azul, troféus com o brilho gasto, recortes de jornal e outros itens de memorabilia,
que era difícil imaginá-lo longe do posto.

O item de que eu mais gostava era a estátua de um leão dourado em miniatura. Era uma referência ao nome de guerra do Dom
Bosco: “Leão da Colina.” Gostava do brilho da peça, das inscrições perto das patas do leão. Mas também estranhava um pouco
que ele fosse o símbolo do time. O que tinha um leão a ver com o Dom Bosco? Nas pescarias da família no Pantanal, tínhamos
visto outros animais – jacarés, tuiuiús, ariranhas e, certa vez, duas onças descansando na beira do rio. Nenhum leão.

Era um típico raciocínio de criança, com uma lógica interna própria e sem dúvida questionável. Mas ainda vejo o leão como
uma vaga capitulação, um símbolo não apenas do Dom Bosco, mas da tendência de sempre buscarmos em elementos externos
as referências para um código moral, a chave para decifrar a verdade.
Entre as qualidades mais exaltadas de Lionel Messi está sua honestidade em campo. Se um defensor tenta derrubá-lo ou puxar
sua camisa, ele insiste, esforça-se para se desvencilhar, levanta-se e segue a jogada para fazer o gol ou dar uma assistência. Essa
característica se encaixa perfeitamente na imagem construída por ele mesmo e por seus admiradores ao longo dos anos: Messi,
o grande esportista, o homem bom. O menino frágil que, com dificuldade para desenvolver a força física (teve que tomar
hormônios de crescimento quando ainda era adolescente), aprendeu a se tornar rápido e habilidoso com as pernas; o jovem que
casou com seu amor de adolescência, uma menina do interior da Argentina, assim como ele; e o atleta que, após dar “canetas”
nos adversários e marcar três gols, elogia os zagueiros ociosos do Barcelona na entrevista pós-jogo. A genialidade de Messi e o
cai-cai parecem incompatíveis. Pedir para Messi simular quedas é como pedir para Camões usar gírias.

De fato, parece absurdo que um esportista adulto, de vigor físico e técnica apurada, se espatife ao receber um mero toquinho.
Mas todos os esportes têm performances absurdas e a marcação de uma falta sempre acarretará uma dose de ambiguidade. No
tênis, a marcação às vezes é delegada a uma máquina; no futebol americano, há um exército de juízes atentos. No futebol, o
espaço para ambivalências é infinito. O campo imenso é visto de longe por apenas um juiz e dois bandeirinhas, e o movimento
constante e dinâmico dos jogadores, o entrelaçamento das pernas, as tentativas de linha de impedimento, as ombradas, os
insultos e as intimidações ao adversário – ao longo de 90 minutos –, tudo isso faz com que qualquer ato esteja aberto a
interpretação. A ambiguidade não é apenas um elemento do futebol: é a sua essência (nesse aspecto, como em outros, existe
uma intersecção com a literatura). O escritor e artista plástico Nuno Ramos costuma ressaltar a diferença brutal entre o placar
de um jogo (0 a 0, digamos) e as possibilidades que tal jogo oferece. Dizer que uma partida terminou 1 a 0 ou 0 a 0 não diz
absolutamente nada sobre o que de fato aconteceu. E é nessa lacuna, nesse buraco negro, que está o potencial trágico e cômico
do futebol. Recontar o que aconteceu com precisão é como escrever um livro para reestabelecer as nuances de uma experiência:
uma tarefa impossível, ainda que valha a pena tentar.

Em qualquer jogo, há muitas instâncias em que os envolvidos tentam exercer um controle narrativo sobre o que ocorre. O
defensor levanta os braços, como um mártir piedoso, após chutar a canela do atacante. O técnico resolve, a 1 minuto do final,
fazer duas substituições. O meio-campista joga a bola a alguns metros de onde sofreu a falta. O goleiro dá um passo discreto
para aumentar suas chances de defender um pênalti. É estranho pensar que, para absolutamente todas essas jogadas, damos de
ombro. Mas se há simulação de queda, fazemos um escândalo e apreciamos a punição.

Não lembro quando o cai-cai passou a ser um problema moral. Lembro da Copa de 1994 como um momento de transição e de
algumas mudanças centrais, talvez porque tenha sido a época em que minhas memórias da infância e as memórias do jogo em
si se misturam. Quando Roberto Baggio perdeu o pênalti, minha mãe me segurou pelo braço e disse: “Esse é um momento
histórico! Um momento histórico!” O sentimento era genuíno. Todos comentavam sobre como havíamos demorado para ganhar
aquilo. Eu acabara de voltar ao Brasil, e o futebol me ajudou a encontrar uma identidade antes de reaprender a falar português
sem sotaque. Me aproximei do meu avô.

O afeto e o bem-estar contrastavam com a percepção, naquele momento ainda difusa, de que a Seleção Brasileira de 1994 não
era muito admirada. Meu avô nunca reclamou daquele time: talvez por ser do ramo, soubesse da dor de receber críticas. Mas
bastava ver o gosto com que falava da seleção de 1982 (em casa havia um vhs em que assisti trechos dos jogos, narrados por um
Luciano do Valle jovem) para entender que eu havia perdido algo sublime. Lembro da irritação da minha família com o Carlos
Alberto Parreira durante as eliminatórias (“a defesa é o melhor ataque”), e de achar estranho que, mesmo ao ganhar a Copa, ele
não parecia consagrado. Eu entendia que aquele triunfo não era puro. O Brasil tinha vencido, mas sem jogar bonito. Ou então: o
Brasil tinha vencido, mas não tinha massacrado. Porque, mesmo antes de voltar ao país, quando o futebol brasileiro ainda era
um rumor nos invernos gélidos da Filadélfia, eu já entendia um axioma central: no futebol nós éramos superiores, e nossa
obrigação era massacrar os outros.

Quando se fala daquela seleção de 1994, e das mudanças que vieram depois, fala-se muito do foco na defesa. Mas não sei se o
futebol ficou mais defensivo. As mudanças no esporte desde então parecem ter mais a ver com eficiência. Os jogadores ficaram
mais fortes, mais atléticos. Até os mais lentos se tornaram rápidos a ponto de encolher o campo. Os zagueiros aprenderam a dar
lançamentos (poucas coisas irritavam meu avô mais do que zagueiros que se achavam “talentosos”). Goleiros baixinhos e
heterodoxos, como o mexicano Jorge Campos ou o colombiano René Higuita, desapareceram, substituídos por gigantes
geneticamente criados para preencher o gol. Uma cabeçada como a de Robin van Persie contra a Espanha, em 2014, seria
improvável há três décadas – não pela plasticidade do gol, mas pelo contorcionismo físico e o poder da cabeçada. Da mesma
forma, aqueles pulinhos enérgicos de comemoração do atacante Arjen Robben, já nos acréscimos, após arrancar do meio de
campo para fazer o quinto gol da Holanda na mesma partida, estariam sob suspeita de doping, se tivessem ocorrido há algumas
décadas.

Mesmo o drible, o movimento que talvez melhor ilumine o caráter artístico e ocasionalmente ineficiente do futebol, depende
hoje menos de talento acrobático do que de vigor físico e fôlego. Os dribles de Cristiano Ronaldo são essencialmente frutos de
sua arrancada; os do Messi, da sua rapidez de passinhos curtos. Não vi Cruyff jogar, mas o primeiro de um dos mais eficientes e
poderosos protótipos desse craque que vi foi outro holandês, Dennis Bergkamp (o astro da sua seleção em 1994 e, depois, em
1998). Mesmo nas jogadas mais criativas de Bergkamp, havia sempre um aspecto minimalista, uma precisão que desprezava
excessos ou floreios. Com um calcanhar ele deslocava dois defensores; com dois toques, fazia um gol. Os boatos sobre a possível
síndrome de Asperger de Messi talvez digam menos sobre ele e mais sobre o que esperamos de um gênio contemporâneo do
futebol.

É difícil saber se Parreira, com seu estilo metódico e repetitivo, propunha um novo jeito de atuar ou apenas respondia a um
movimento mais universal. Pois não foi só o Brasil que mudou: em outros países o jogo também ficou mais eficiente. E, se nossa
transição foi mais penosa, talvez isso se deva ao fato de não termos sido os maiores beneficiários dessas mudanças.

É impossível não recorrer a uma metáfora econômica. O clichê “o futebol mudou” não é tão diferente do clichê “a economia
mudou”, empregado no ressurgimento do discurso liberal propagado nos anos 90. E assim como o jargão corporativo (muito
prezado por Parreira) se difundiria na linguagem cotidiana, os comentaristas de futebol também adaptariam suas palavras –
“evolução tática”, “modernização do esquema de jogo”, “capacidade de finalização”. Não consigo imaginar meu avô e seus
amigos usando essas expressões. Um drible deixou de ser bonito, para virar “excepcional”. Um passe não foi apenas belo, mas
sim “desconcertante”. Um meio-campista deixou de ser inteligente, mas passou a ter uma “capacidade de articulação
extraordinária”.

O cai-cai nunca teria espaço nessa nova ordem. A qualidade amadora, desrespeitosa e levemente ornamental do ato –
características que o cai-cai divide com o drible – era antitética à versão sanitizada do futebol. O cai-cai era feio, um lembrete de
quão ambíguo e malicioso um jogador poderia ser, de como uma partida poderia ser tremendamente injusta, e de quanto nós
não temos controle sobre o que acontece. E então nossos comentaristas, quando viam um jogador punido por supostamente
simular uma queda, comemoravam. “Essa é a atitude que tem que mudar no futebol brasileiro”, dizia Galvão Bueno, nosso
narrador mais sentimental e ufanista – ele sim um mestre em manipular narrativas.

Um esporte nacional é uma tela na qual a sociedade projeta suas vaidades e neuroses. Até o 7 a 1 contra a Alemanha em Belo
Horizonte, sentíamos ter uma superioridade inata no quesito futebolístico. Após a derrota, tomamos a posição contrária.
Aquela derrota se transformou num buraco negro em que podíamos lançar simbolismos e dicotomias fáceis. Era a prova de que
não conseguíamos nos adaptar ao futebol “moderno”; a choradeira durante o hino mostrava o triunfo do descontrole emocional
sobre o racionalismo alemão (a “frieza germânica”, no patois de Galvão Bueno); nosso improviso contrastava com o empenho
teutônico em desenhar e levar a cabo grandes projetos coletivos (os comentaristas se esqueciam do principal projeto coletivo
alemão do século XX).

Deixemos de lado por um segundo o autodesprezo colonial nessa narrativa imposta a nós mesmos. A Alemanha foi incrível na
Copa de 2014? Ela batalhou para ganhar da Argélia na prorrogação. Venceu a França por 1 a 0 nas quartas de final, em um jogo
blasé no qual os 22 jogadores pareciam estar sob o efeito de Rivotril. Na final, a Argentina teve um pênalti crucial que não lhe
foi concedido. A Alemanha pode ter sido o melhor time da Copa; se foi a equipe platônica que passou a ser celebrada
efusivamente, não sei. O caráter atípico do placar 7 a 1 parece ter ricocheteado para outras narrativas além daquela semifinal.
Não quero desmerecer o time alemão (bom, talvez um pouco), mas apenas sugerir que a realidade do campo está
constantemente sujeita à manipulação narrativa. Quando Galvão Bueno repete como um mantra, 100 vezes durante uma
partida, que “temos que jogar pela direita”, passamos a acreditar que sim, sem dúvida, temos que jogar pela direita.

Num esporte com tamanho grau de ambiguidade, devemos nos perguntar por que o cai-cai – apenas uma entre as muitas
jogadas passíveis de interpretação, uma entre as muitas tentativas de manipular a realidade – gera tanta histeria. Marcar ou não
uma falta é prerrogativa de quem julga as ações no campo. Mostrar um cartão para punir a suposta “malícia” de um jogador
implica um julgamento moral de outra natureza. A raiva contra o cai-cai é, em sua essência, uma forma de moralismo. Se todos
os atos da partida fossem sujeitos a essa mesma rigidez interpretativa, se todas as potenciais simulações de um jogo fossem
analisadas pelo mesmo crivo, não haveria mais jogo. Como disse Nuno Ramos em entrevista para o programa Roda Viva
(2012), o futebol é “um judiciário que vive dele mesmo”, ambiente de “tráfico de influências”; não é ciência nem lugar para
moralismos.

Essa ambivalência constitucional se evidencia na falta de autoridade atribuída ao juiz de futebol, que não se vê em outros
esportes. Nosso codinome para o juiz é “o homem de preto”, e a expressão me parece aludir menos ao ministro do Supremo
Tribunal Federal em sua toga do que ao carrasco medieval. O juiz de futebol é uma autoridade frágil, ilegítima, constantemente
ameaçada por uma revolução da plebe. Pode marcar uma falta longe do gol, lá no meio do campo, mas os insurgentes ainda
assim se aglomeram a sua volta. Empurram, xingam, desafiam a autoridade do golpista que quer se manter no poder. Os
palavrões mais interessantes que ouvi na infância foram os dirigidos a juízes de futebol. Quando, momentos antes de uma
partida, o sobrenome do juiz aparecia na televisão, meu avô murmurava para mim (ou talvez para ele mesmo): “Esse é nosso
ou é deles?”

Meu avô tinha outras frases. “É mais gostoso ganhar um jogo com um gol impedido no último minuto do que golear por 6 a 0.”
Ele apreciava frases polêmicas, e essa – dita como se fosse uma banalidade, uma platitude – me deixou confuso na primeira vez
que a ouvi, ainda criança. Mas logo entendi o sentido. Ser o presidente de um clube pequeno no interior do Brasil alimentara
algumas neuroses – decisões dúbias de árbitros haviam tirado vitórias ou empates do Dom Bosco. Já das ocasiões em que a
arbitragem o favoreceu, ele falava com orgulho e alegria. A despeito de sugerir uma mentalidade conspiratória, questionar
autoridade não me parece ruim. Pode ser sublime ver seu time ganhar uma partida com um gol impedido, ou com um pênalti
gerado por uma simulação de queda.

O crescente puritanismo moral em campo parece, às vezes, uma forma de desviar a atenção dos malfeitos fora dele. O “tráfico
de influências” e as ambivalências que Ramos sutilmente celebra nada têm a ver com as negociatas a portas fechadas da Fifa. A
corrupção da Fifa está para a simulação de um atleta que se joga assim como a lavagem de dinheiro num banco de investimento
está para um moleque que rouba peixe na feira. Talvez nenhum dos dois sejam admiráveis do ponto de vista moral, mas há
uma diferença brutal entre um e outro. Para o banqueiro, é sem dúvida mais interessante que o foco do público se detenha no
moleque. Em outras palavras, nem todo moralismo deve ser tomado como natural – e a promoção de certos moralismos pode
ser estratégica.

A imagem mais comentada da Copa de 2014, por exemplo, não foi a cabeçada de Van Persie, o voleio de Götze na final, ou a
cena do menininho de óculos chorando enquanto o Brasil era goleado pela Alemanha. Foi a mordida do uruguaio Luis Suárez
na clavícula do italiano Giorgio Chiellini. Como tópico de conversa de bar, a mordida de Suárez era incontornável. Assisti à
Copa no Rio de Janeiro, e bastava andar alguns quarteirões para topar com um telão mostrando a cena da mordida em câmera
lenta. Todos tinham alguma opinião sobre a punição necessária. Cinco jogos, dez jogos, quinze jogos. A Fifa deveria ser dura,
muitos diziam. Que o assunto se resumisse a Suárez, e não aos esquemas de tráfico de ingressos, deve ter sido conveniente para
a entidade.

Da mesma forma, a punição do cai-cai parece ter uma função ritualística. Mais do que um julgamento, é a espetacularização de
um julgamento. Ao longo dos anos, o ritual passou de performance teatral mediana a show de excessos pirotécnicos. Possui
hoje a grandiloquência que o crítico francês Roland Barthes atribuía à luta livre. A cena sempre envolve atuações notoriamente
exageradas: a expressão assustadiça ou mendicante do jogador que cai e logo olha para o juiz; os passos lentos e forçadamente
calmos do árbitro em direção ao faltoso; a forma confusa e meio desengonçada com que o juiz bota a mão no bolso do peito,
talvez para gerar dúvida sobre a cor do cartão. Uma outra analogia possível é limpar as ruas e prender os batedores de carteiras
para gerar a impressão de pureza, como se bater carteira fosse o único crime que se pode cometer, e o mais importante de todos.
A punição do cai-cai é, em sua forma e estética, um espetáculo feito para distrair.

A rapidez com que incorporamos o repúdio raivoso ao cai-cai é um pouco assustadora; e diz algo sobre nossa receptividade a
mudanças culturais impostas (o Leão da Colina ruge no Pantanal mato-grossense). Em inglês, a palavra dive denota o ato de
simular uma queda no campo de futebol. Nós não temos uma palavra equivalente em português, talvez porque até poucas
décadas atrás jogar-se na área era visto em suas devidas proporções – como uma infração menor, das milhares que existem no
futebol. Não que os ingleses se joguem menos que a gente. A simulação parece ser universal: é a hipocrisia da reação que varia.

Há uma aparente simultaneidade entre as mudanças táticas que se intensificaram nos anos 90 e o recrudescimento do discurso
moralista intracampo da Fifa. Na Copa de 1994, outro argentino estampava os jornais. Testes de doping revelavam que cinco
variantes de efedrina haviam sido encontradas na urina de Diego Armando Maradona. Oito anos antes, na Copa de 1986,
Maradona fizera seu célebre gol de mão contra a Inglaterra nas quartas de final. Logo em seguida, em 1988, a Fifa instituiu o
prêmio Fair Play, condecorando o jogador alemão Frank Ordenewitz, que admitiu ao juiz o uso indevido da mão em um gol
feito num jogo da Bundesliga. A expressão fair play se tornou corrente desde então, a ponto de Joseph Blatter, o protótipo da
elite futebolística cínica, usá-la para chamar a atenção do público brasileiro que vaiava Dilma Rousseff na abertura da Copa das
Confederações em 2013. A sanitização do estilo de jogo, o futebol mais eficiente, combinou-se com a adoção de uma sanitização
discursiva e moral no campo.

É interessante comparar a figura de Maradona com a de Messi: o contraste entre os dois gênios diz algo sobre seus respectivos
momentos históricos. Na superfície, o bom mocismo de Messi parece muito mais palatável do que o narcisismo maradoniano.
Maradona cheirava cocaína, foi para Cuba e tirou fotos com Fidel Castro, é peronista assumido, falastrão, e se vangloriava de
ter feito um gol de mão na Copa. Ele é a antítese de Messi. Não surpreende que o bom moço ganhe nas comparações.

Mas há certo conformismo em Messi, assim como há certo conformismo em Neymar, em Iniesta e em muitos outros grandes
jogadores atuais. Eles são anódinos. Optam por posições seguras o tempo todo. Tornam-se patronos da Unicef e concedem
entrevistas previsíveis num linguajar treinado desde cedo para não ofender ninguém – não sabemos se são peronistas, coxinhas,
petralhas ou maoistas. Até os jogadores atuais mais dados a polêmicas, como o português Cristiano Ronaldo ou o sueco Zlatan
Ibrahimović, possuem uma arrogância superficial, pouco combativa, pontuada de frases vazias que não parecem fruto de
ressentimento social (o que seria justificável), mas apenas estratégia de autopromoção mercadológica. Quando surge algum
jogador narcísico com ressentimentos genuínos, como o atacante italiano de origem ganesa Mario Balotelli, ele é ridicularizado.

A Fifa quer que a vejamos como uma associação que defende o fair play e é implacável com mordidas, gols de mão e
simulações; basta, porém, examinar quanto tempo ela demorou para lidar com problemas mais profundos – como racismo e
xenofobia de torcedores e jogadores –, para perceber que a cruzada moral é só de fachada. Goste-se ou não de Maradona e
outros de sua época, o desprezo que eles demonstravam pelos bons costumes em campo podia ser salutar e anti-hipócrita.
Messi e Neymar não pulam o muro da concentração, nunca são impulsivos nos comentários públicos e, fora do campo, adotam
um discurso chapa-branca. Mas estão sendo investigados por evasão fiscal – e nisso, como em várias outras coisas, eles parecem
bem alinhados com os dirigentes da Fifa.

Quando é acusado de ser cai-cai, Neymar não destila sarcasmo, admitindo a tática, como Maradona ou Romário provavelmente
fariam. Ele se irrita e argumenta que não simula, ecoando o senso comum de que simular uma queda constitui o crime mais
grave que um jogador pode cometer.

Sei que posso ser acusado de sentir nostalgia por uma época que não vivi. Aceito a acusação. Assim como quem questiona a
ordem econômica atual sempre será tachado de anacrônico, aquele que questiona a ordem futebolística atual também o será. “A
economia mudou.” “O futebol mudou.” Sim, mudaram. Mas no futebol nós éramos a potência. Talvez não seja necessário e
nem possível reverter a ordem atual, mas questioná-la ajuda a entender onde estamos.

Meu avô perdeu dinheiro com futebol. Ele dizia isso com prazer, e até certo orgulho. Depois de se aposentar, falava em
reerguer o Dom Bosco, que havia enfrentado um declínio rápido nos anos 80 e 90. Falava dessa possibilidade com o ânimo e as
epifanias que dedicamos a assuntos sobre os quais ainda temos dúvidas. No final das contas, ele nunca voltou a dirigir o clube.

Havia um homem – o chamarei de Alberto –, integrante do conselho do clube na época do meu avô, que sempre nos visitava.
Ele e meu avô passavam horas conversando, tomando café e pó de guaraná diluído em água. Falavam sobre o time, os
jogadores novos, os desafetos antigos. Quase sempre, antes de ir embora, Alberto pedia dinheiro. Havia certa obscenidade
nessa cena – o emprego de um discurso para apoiar uma intenção não manifesta. Anos depois, quando já não alimentava pelo
futebol o mesmo fanatismo da infância e adolescência, eu evitava fingir interesse em assistir a todos os jogos, ainda que
soubesse que seria do agrado de meu avô.

Mas houve uma época em que assistíamos a muitos jogos juntos. Todo ano ele pedia aos filhos que comprassem televisões
maiores, aparelhos enormes que pareciam deslocados num quarto repleto de imagens religiosas e santos católicos (São
Benedito, sobretudo). No canto do quarto havia uma caixinha de madeira, com portinhas de vidro que abriam para uma cena
pastoral – essa caixa ficava irritantemente no meu campo de visão enquanto via as partidas. Fora, o calor era intenso, e o ar-
condicionado estava sempre ligado – e isso dava uma sensação prazerosa de isolamento. Se algum atacante segurasse a bola
perto da marca do pênalti, driblando sem propósito, indeciso sobre o passe, meu avô se levantava da rede com algum esforço e
tossia para limpar os pulmões, antes de dizer: “Cai, seu filho da puta! Cai!”
ALEJANDRO CHACOFF
Alejandro Chacoff, jornalista da piauí
piauí, trabalhou como analista político em Londres

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