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O caminho do inseto

David Gaitán

Personagens:
+
-
DEFEN
SOR
TORCE
DOR
História para duas vozes.

+ Este é um prólogo. Itália. 1990. Turim. O estádio da


Vec- chia Signora de Calcio, Juventus. A Copa do
Mundo, oitavas de final, uma das partidas mais
aguardadas, digna de ser a melhor final da história:
Argentina contra o Brasil. Se você é torcedor de futebol,
provavelmente já sabe que anedota tenho na cabeça, mas
é uma história tão boa, tão incrível, tão digna de ser
contada... A Argentina venceu aquela partida fazendo uma
cilada; e nem tem a ver com o árbitro, com marcar um gol
com a mão.

- Não que tenha sido complicado para eles.

+ Não, é algo muito mais complicado, mais astuto,


mais truqueiro, muito mais divertido. Sua estratégia era
envenenar o adversário; não é uma metáfora. Eles
envenenaram seus oponentes. As bebidas refrescantes
que os argentinos gentilmente ofereceram aos exaustos
Brasileiros inexplicavelmente exerceram uma anestesia sutil
sobre seus oponentes. Anestesia que causou, por exemplo,
a incapacidade de calcular a velocidade a que a bola se
aproximava e...
– "Todas as doses estavam lá, o Branco tomou, o Valdo
foi tomar...

+ Branco e Valdo foram jogadores do Brasil.

– "Todas as doses estavam lá, ele tomou Branco, ele


veio para tomar Bal- do....

+ Quem conta isso é Diego Armando Maradona.

– "Todas as doses estavam lá, Branco tomou, Valdo veio para


tomar...
Todos os bons, você vê! E eu estava na maca depois da
bicuda que me tinham dado, e dizia: "beba, beba, beba.".

+ Maradona fez esta afirmação mais de dez anos depois


em um talk-show argentino; com uma barriga do
tamanho de sua glória e em meio a risadas grotescas
dos apresentadores o camisa 10 reveleu a história com as
buchechas e com um carisma maior que o Maracanã, sua
incrível estratégia contra os amantes do samba; ele dizia
com tanto descaramento, que se poderia pensar que não
estava ciente do escândalo que estava detonando... embora
com um cara como Maradona, seja difícil acreditar que ele
não o tivesse calculado.

– "Na verdade Branco tomou tudo, pía pros chutes livres e:


Pif! Lembro-me bem de um ricochete, Branco foi pará-lo
assim, e fez: Pif! E depois estávamos nos dois ônibus,
havia dois ônibus, Branco senta na frente e do ônibus na
frente ele me fez... ".

+ Quando Branco foi entrevistado sobre o assunto,


sua declaração mais memorável foi:

– "Depois de ter bebido, comecei a ficar tonto”.


+ Três jogos depois, na final da Copa do Mundo, a
Argentina perdeu por 1x0 para a Alemanha com um gol
de pênalti.
- Pênalti marcado por Edgardo Codesal, o árbitro
uruguaio, naturalizado mexicano.

+ Penalti que, até hoje, os argentinos reclamam.

– Esse pênalti foi roubado!

+ Dizem eles.

– "Eu falava pro Valdo... Aqui, toma Valdo, toma, que


está fazendo um calor desgraçado... E então, no intervalo,
Vasco chegou, pegou a água batizada e eu disse: "Ei,
Vasco, não, essa água não!

+ No final daquele ano, Menem - o presidente


argentino no cargo - aumentou o número de membros da
Suprema Corte de quatro para nove, garantindo assim
uma maioria automática para apoiar todas as decisões
executivas; os procedimentos utilizados para efetuar esta
mudança têm sido descritos até agora como arbitrários,
como uma cilada. Este é o fim do prólogo.

– Eu sou goleiro. Goleiro profissional. Futebol. Tenho as


habilidades normais e esperadas de qualquer pessoa que
dedique vinte e quatro horas por dia, por mais de dez anos, a
impedir que um círculo entre num retângulo. O que me fez o
goleiro da seleção nacional do meu país - México - é uma
habilidade especial para salvar cobranças de pênaltis. Eu sou
o melhor defensor de pênaltis da história. Em minha vida,
como goleiro profissional, estive quarenta vezes na frente
de um cara que tem a chance de marcar um gol, com a
bola parada, sem ninguém – além de mim - que
atrapalhei seu seu caminho. Desses quarenta, fizeram
sete em mim. Sete acidentes, eles não fizeram o que
queriam fazer. Dos trinta e três que não foram gols, seis
deles foram chutes desviados e houve um sétimo que o
atacante decidiu jogar de lado, numa espécie de
reconhecimento da minha habilidade. Um evento
histórico, estava em todos os lugares. A cobrança foi boa,
mas se você me pedir pra ser honesto, eu diria que ele foi um
covarde. Todos os atacantes são, por definição, covardes.
Defendi 26 penalidades. Vinte e seis em trinta e três.
Minhas estatísticas são 78,78% eficazes; quando me
perguntam como faço isso, qual é a minha técnica... Eu
minto. Sem entender por que, agora, momentos antes
de tentar salvar o pênalti mais importante da minha vida, o
mais importante da história do meu país; em pé na linha de
gol, esperando que o cobrador de pênaltis decida
cobrar-los, eu falo pra vocês: Para que um cobrador de
pênaltis tenha mais chances de marcar do que eu tenho
de salvar o pênalti, ele tem que ser cego ou ser o Marlon
Brando... mas esse já está morto, então é impossível,
porque os jogadores de futebol, como regra, não podem
ser cegos; e eles são tão maus atores que não têm nenhuma
chance de me enganar. Eu também não sou um bom ator,
mas sou um bom observador, um bom juiz de atores.
Suponho que eu poderia dirigir um filme e ele até seri a
bom. Para parar um chute de pênalti, tudo o que tenho que
fazer é olhar nos olhos do cobrador de pênaltis. Isto não
é novidade. A diferença é que eu também avalio a
intensidade de seu olhar. Falei demais para esperar que
uma penalidade fosse aplicada. Quando você treina
para ser goleiro, há um momento em que a frustração diz: se
a bola viaja naquela velocidade, vai naquela direção e eu
estou a esta distância... não há como pará-la. Até esse ponto,
a técnica que prevaleceu foi:

+ Ele sempre vê a bola.

– Quando o treinador julga que a frustração está no seu


ponto máximo, ele revela um dos grandes segredos do ser
goleiro

+ Pare de olhar para a bola e olhe para os olhos.

– Assim, aprende-se que os grevistas - a raça mais inferior no


esporte - têm uma compulsão narcisista de sempre olhar
para o local onde pensam que vão colocar a bola. Eu tô com a
boca seca. Há muitos anos, um atacante esqueceu suass
caneleiras em campo após o treino; quando o idiota voltou
para buscá-los, ocorreu um erro cósmico: um jogador
de fora de campo testemunhou o momento em que o
grande segredo foi revelado a um jovem goleiro.

+ Pare de olhar para a bola e olhe para os olhos. Os


atacantes são idiotas narcisistas compulsivos que
precisam afirmar sua masculinidade o tempo todo, por
isso procuram colocar a bola bem onde seus olhos
estão.

– O atacante ficou atônito; ofendido, mas acima de tudo


muito surpreso. Ele sabia que tinha acabado de
testemunhar algo muito grande. Ele não dormiu
naquela noite. No dia seguinte, foi anunciado que -
devido ao seu incrível desempenho durante o treino - o
idiota que havia esquecido suas caneleiras na véspera,
seria um titular. Os goleiros não entenderam nada. O cara
ficou famoso. Ele planejava levar o segredo para o túmulo
para estender sua lenda... o problema era seu filho. Um
jovem acima do peso com dois pés esquerdos que estava
determinado a seguir os passos de glória da família, um
dia seu pai, em um ato irresponsável, revelou-lhe o
segredo que anos antes, escondido nas sombras como um
covarde, ele havia ouvido por acaso.

+ Para fazer um gol, olhe para um lado do gol, mas


chute para o outro.
– Por que ele não chuta? E por que o estádio é
silencioso? Não ouço a pressão dos mais de cem mil
compatriotas que transpiraram e sangraram para chegar à
final da Copa do Mundo. Por que este silêncio sinistro?
Esta pausa não é normal. Que matem ele!

+ Para fazer um gol, olhe para um lado do gol, mas


chute para o outro.
- Meses depois, em uma tentativa desesperada de seduzir
o atacante da equipe adversária, o filho obeso com dois
pés esquerdos... compartilhou o segredo. O rival não só
não retribuiu seu amor, como também espalhou a informação
entre a sua própria espécie. Tantas gerações se
passaram que se espera que os atacantes já tenham
percebido que nós, goleiros, sabemos o que sabemos. Mas
eles são primitivos. Os Neandertais ainda acreditam que
todos nós, goleiros, vamos nos atirar, sem hesitar, para o
lado que eles estão observando descaradamente. A
palavra-chave em minha última idéia é flagrante. Porque é
aqui que entra em jogo o outro fator que me deu este
recorde histórico: a limitada capacidade histriônica dos
futebolistas. Todos eles são maus atores. Antes de um
pênalti ser cobrado, sua aparência é limitada a três
possibilidades. Três: sutil, flagrante e no chão. Se eles
forem sutis, olharão para longe do lado que olharam,
pensam que nós goleiros vamos nos render, como
prostitutas, a sua piscadinha de olhos mal feita; pensam
que somos animais que irão atrás do biscoito cru que eles
jogam com seu olhar. Se eles se voltarem
desavergonhadamente para um ponto -e quando digo
descaradamente é sem a menor sensação de elegância - se
o fizerem, puxarão para o mesmo lado; aqueles que optam
por esta opção se sentem um pouco mais avançados;
"eu já sei que eles sabem que nós sabemos", eles
pensam. Se eles olharem para o chão, atirarão por cima
da moldura. Se uma equipe organizasse aulas de atuação para
seus jogadores e os ensinasse a procurar mais de três maneiras,
eles teriam uma chance. Eu não entendo porque este cara
não se aproveitou, mas ainda bem, porque eu
simplesmente fiquei cego.

+ Na quinta-feira, 19 de setembro de 1985, a Cidade


do México foi abalada por um terremoto que até mesmo
os menores de 27 anos se lembram; desde então, tem sido
dito que talvez a única coisa boa da experiência tenha
sido a ligação entre estranhos que o fenômeno provocou.
Os sobreviventes moveram literalmente montanhas com
seus braços

- Três dias depois, a notícia se espalhou que, em menos


de um ano...

+ E devido ao estado de violência na Colômbia....

– O México voltaria a sediar a Copa do Mundo. Com a força


do coletivo dominado por um número crescente de
entusiastas, nós mexicanos inventamos...

+ Também usando os braços...

– A “hoooolaaaa”

+ Em 21 de junho de 1986, no Estádio Universitário de


Monterrey, diante de 41.700 torcedores, o México
jogou nas quartas-de-final contra a Alemanha. Nunca
tínhamos chegado à quinta partida de uma Copa do
Mundo antes.

– Após 120 minutos sem um gol, a Alemanha venceu


nos pênaltis.

+ O atacante mexicano do momento foi Hugo Sánchez.


No quinto minuto do jogo, ele foi advertido por
reclamar de uma jogada em que o árbitro estava
claramente certo.

– Aos 40 minutos, ele perdeu um gol de um contra um


com o goleiro alemão.

+ Aos 53, ele fez um cruzamento que o tinha deixado cna


cara do gol.

– No minuto 58, ele decidiu tentar um chute de


bicicleta em uma bola que estava claramente apontada
para sua frente, ele nem mesmo acertou a bola.

+ Aos 65 minutos, após uma série de ressaltos, "El


Abuelo" Cruz, que havia acabado de entrar na partida,
encontrou a bola na grande área e chutou com pouca
técnica …

- Mas muita garra...

+ Em direção às cobiçadas redes.

– O gol foi anulado porque Hugo Sánchez atacou


inexplicavelmente um zagueiro alemão que estava a cinco
metros da jogada.

+ No tempo extra, Hugo Sanchez passou dez minutos


fora do campo, procurando atendimento médico porque
estava ferido.

– Isto significava deixar a equipe com nove homens


em campo.

+ Na cobrança de pênaltis, Hugo foi listado para ser o quinto


cobrador de pênaltis; o México perdeu antes de
começar as cobranças.

– Se o México tivesse terminado entre os quatro primeiros,


o efeito de coesão social e força que ocorreu após o terremoto
de 1985 teria se repetido, desta vez exponencialmente.

+ Dois anos mais tarde, durante as eleições presidenciais,


o sistema sofreu uma queda repentina no meio da
contagem; quando conseguiu se recuperar, Carlos Salinas
de Gortari estava surpreendentemente liderando as
pesquisas.

– A sociedade estava indignada, mas faltava-lhe força.

+ De 1985 a 1989, Hugo Sánchez jogou pelo Real Madrid.

– Lá, ele foi quatro vezes o nunéro 1 em gols.

+ Cinco vezes campeão do campeonato.

– Ele ganhou três Super Copas da Espanha.

+ Uma Copa do Rei

- E uma Copa Uefa.

+ Em 1988, dois anos após essa partida em Monterrey.

– ...e dias após o triunfo de Salinas ter sido oficializado...

+ ...também foi reconhecido com a Bola de Ouro.

-É possível ser tão azarado a ponto de ficar cego pouco


antes de tentar salvar o pênalti mais importante da história de
seu país?

+ Estou no estádio. Sou uma testemunha direta do que


está acontecendo.

– Preciso ver os olhos deles. As gargantas de 200 milhões


de torcedores dependem dessa sutileza.
+ Somos 120.000 aqui, mas 80% do planeta está assistindo.

– Acalme-se. Apenas tenha calma.

+ É o estado de pânico mais respeitoso jamais


contemplado. Ninguém suspira por medo de afetar a
concentração da pessoa errada.

– Eu não vejo preto e branco. Isto é algo mais.

+ Todos se levantam.

– Esta cegueira é peculiar.

+ Os jogadores olham para o chão, ou para o céu.

- O que eu vejo é um inseto. Um inseto está me olhando nos


olhos.
Um animal sinistro decidiu suspender seu vôo bem na minha frente.
Eu não sou cego, estou vendo os olhos deste animal.

+ 120.000 gargantas completamente atadas prendendo a


respiração em silêncio histórico.

– Eu preciso ver os olhos do atacante.

+ Quase 60 anos depois, o Estádio Azteca recebe outra


final e o México pode vencer. Que perigo!

– Não sou cego, tenho um animal na minha frente. O


que ele me pede para fazer?

+ Estou de olho no zagueiro central da seleção mexicana.

– Tenho que acabar com esta penalidade.


+ O defensor que, nos últimos minutos do segundo
tempo extra, cometeu a falta que levou à penalidade.

– Tenho que ver seus olhos.

+ O defensor que é atualmente o destinatário do ódio


de milhões; quão perigoso.

– O atacante deve estar por trás deste animal. Acalme-se,


fique calmo. Por que minha boca está seca?

+ Meus olhos no defensor.

– Será que todo o estádio o vê?

+ Aguardando o sinal.

– É por isso que ele não cobra?

+ Aguardando o seu sinal.

– Não chuta, não chuta até que este inseto tenha desaparecido.

+ Meu polegar está a dois milímetros da tela do meu


telefone celular.

– Isto não é normal.

+ Aguardando o seu sinal.

– Isto não pode ser realidade.

+ Meu polegar está a dois milímetros da tela do meu


telefone celular.

– Este inseto tem a expressão mais desoladora que eu já


encontrei.

+ As mãos do médico sobre o corpo do goleiro.

– Na penalidade mais importante da minha vida, um


inseto negro decidiu suspender seu vôo, pousar na minha
frente e me olhar nos olhos. Eu não consigo ver o
cobrador.

+ O técnico não quer que a ambulância entre no campo de


jogo.

– Se há uma expressão no mundo que reúne tristeza,


nostalgia, decepção e raiva, é este inseto na minha frente.

+ Meus olhos no defensor central. Meu dedo a dois


milímetros do meu celular.

– Não me importa o penalti, não me importa meu país, eu só quero ele


fora daqui.
+ O estádio está atordoado.

– Isto não pode ser realidade.

+ O país ficou paralisado.

– Deixe o tiro entrar, deixe-nos perder a Copa do


Mundo, mas tire este inseto da minha vista.

+ Um mês antes das eleições, um herói está morrendo.

– Que seja um objetivo.

+ O defensor central volta-se para onde ele sabe que eu estou.

– Fugir. Deixe a bola entrar.


+ Sinal. Confirmar. Sinal.

– Que entre a bola, mas que ele saia daqui.

+ O defensor puxa suas meias para baixo e solta suas


caneleiras; meu polegar faz contato com a tela do meu
celular; a confirmação vai até um satélite e aterrissa em
centésimos de segundo; um celular vibra. Está feito.

– Um inseto está me olhando nos olhos.

+ Digito outra mensagem com rapidez: É para o bem de


todos. A ditadura tem que acabar.

– Isto não pode ser realidade.

+ Eu amo o futebol. Mas é um esporte injusto. E


eu acredito nisso; eu acredito no futebol injusto. Não
consigo imaginar um lugar onde o resultado está tão
distante do mérito quanto no campo de jogo. Campo de
futebol: um lugar onde a memória e a lealdade são
perdidas em uma peça de teatro. Ninguém é mais violento
do que um torcedor insatisfeito. Do aplauso ao
desprendimento, em um segundo; e tudo bem. Falhar é
imperdoável, não importa se é a primeira vez, a única vez,
não importa se eu vi mal... Não vou esquecer. O direito de
ser odiado eu ganhei quando rendi todos os meus
sonhos ao futebol. O pacto é simplesmente mortal, você
joga a bola perfeitamente ou eu sangro até a morte nas
arquibancadas. Sente-se e sofra. É o pacto mais tolo. Minhas
habilidades como torcedor são inúteis, mas eu tenho a
convicção de que minha presença, meu apoio, meu
treinamento semanal, muda tudo. O futebol não pode ser
visto sem uma fé absoluta e sem um choro desenfreado.
Todo erro é doloroso. Você corre, eu ranjo meus dentes.
Não cometa um erro, porque minha raiva pode matá-lo.
Mas se você acertar, se você acertar, se a bola entrar,
minhas orações são suas. Se você acertar, rezarei por sua
família, por sua paz de espírito, rezarei para que seus
amigos não o traiam, para que sua parceira te ame;
torturarei aqueles que duvidam de você; arrancarei minha
garganta gritando suas glórias. Minha vida será sua. O goleiro
no campo de jogo é dono da vida de milhões de pessoas. Logo
ele morrerá. O grito de um país sobre meus ombros; o peso
terá desaparecido quando amanhã a notícia relevante for a
morte do herói. Somente deste herói. Somente deste herói.

– Agora estou no mar.

+ Com a morte deste jogador de futebol, estou


evitando um assassino nascido naturalmente.

– Estou exausto.

+ Um assassinato mais importante.

– Mas eu não sinto nenhum alívio.

+ Estamos impedindo a morte daquele que pode nos libertar da


ditadura.

– As ondas estão caindo muito perto e o inseto ainda está aqui.

+ É a primeira vez em 44 anos que há uma chance real.

– Ouço uma mistura de água, pedras, agitação, chocalhos


e zumbidos.

+ E querem acabar com essa possibilidade matando-o.


Matando-o. Eles pensam... eles estavam planejando fazer
isso amanhã.

– Eu ainda não consigo ver nada e sinto que vou me afogar.

+ O goleiro tinha que morrer.


– Não pode ser que este inseto ainda esteja aqui. O que é esta
perseguição? O mar deve ser um lugar tranqüilo.

+ O goleiro tinha que morrer.

– Eu vou correr. Em qualquer direção. Eu não me


importo se eu cair, se eu me afogar, eu tenho que fugir;
eu me recuso a olhar nos olhos deste animal.

+ Nenhuma sociedade pode suportar a morte de dois


heróis em dois dias. Eles sabem disso, é por isso que vão
cancelar amanhã. Eles têm que fazê-lo. Dois heróis em dois
dias seriam suicídio: a sociedade precisaria de um meio de
fuga, e não poderia ser esporte, o esporte é um espaço
sagrado e, portanto, coisas extraordinárias acontecem;
como a morte repentina de um jogador de futebol na
final da Copa do Mundo... o melodrama inesquecível,
aquele que teria sido Deus se ele tivesse sobrevivido. Isso
é bom para um jogador de futebol, não para alguém que é
a esperança política de um país. Deixe-os dar o nome de
"El Azteca", deixe-os fazer o que quiserem, mas deixe este
governo mudar. Quarenta e dois anos de ditadura. Se o
matam, a sociedade os mata; matam com a camisa da
seleção nacional; empunham os facões com as luvas do
goleiro. Mas eles os empunhariam. E eles sabem disso.
Eles têm que cancelar amanhã.

– Agora estou no deserto. Mais de quarenta graus, um


uniforme de goleiro e o inseto ainda está aqui, a centímetros
do meu rosto. Eu sinto as coisas mais terríveis: um
desconforto inefável, um vôo desigual, seus olhos de
terror, sua cor escura, seu som psiquiátrico, sua
expressão angustiada, minha boca é um cacto, minhas
mãos não existem, meus pulmões são fumaça, meus
ideais são água; o inseto é um monstro, roubou minhas
idéias, apagou minhas batalhas, é surdo, é escuro, voa,
voa, voa, não voa, as torturas sonoras, me persegue, me
observa, me persegue, ri de minhas pegadas, me humilha,
não me perdoa, zomba de mim, sua frieza paralisa. Ele me
contempla. Está olhando nos meus olhos e ainda resisto a
descansar ali minhas pupilas, não quero contemplar sua
escuridão. É um precipício. Isto não pode ser real.

+ também tenho o sonho de ser campeão mundial; e


compartilho a tragédia nacional. Participar deste
assassinato não me liberta da dor; pelo contrário, sei que sou
um traidor e isso é pior.
Quantas mortes são válidas para derrubar uma ditadura?
Uma? Sim. Dois? Sem dúvida. Uma centena? Eu sei
que é fácil dizer, mas juro que se você me disser que meu
sangue nos libertará, eu respondo, onde o derramarei?

– Acho que estou começando a entender. Eu estou morrendo.

+ Matar o candidato no dia seguinte ao México ganhar


a Copa do Mundo. Você tem que admitir que a idéia é
brilhante, mas o que poderia ser mais alto que a celebração?
Que avenida seria livre para demonstrar? A ditadura é um
inseto que veio com este século e já existe há 42 anos. Uma
terceira Copa do Mundo no ano das eleições mais
complicadas; que melhor presente? Uma terceira Copa do
Mundo no México; que melhor chantagem, que melhor
máscara? O goleiro tinha que morrer. Eles vão cancelar o
golpe de amanhã, o bicho vai cair.

– Este inseto chegou para me dizer que eu vou


morrer. Agora eu entendo.

+ O goleiro é carregado na ambulância. O estádio canta


seu nome. O som reverbera em toda a Cidade do
México. Fãs de todo o mundo se juntam ao canto. É
simplesmente espetacular. O choro transformou-se em
fúria; a fúria transformou-se em canto.
– Todo o medo da morte de todas as pessoas do mundo
é justificado. Isto é horrível.

+ O defensor central repete o sinal compulsivamente, de


forma pouco espectacular. O goleiro substituto faz
movimentos de aquecimento incômodos. São os últimos
minutos da segunda hora extra. Se a penalidade entrar, ela
termina. O estádio bate todos os recordes de decibéis. A
equipe adversária se reúne, eles também sentem que o herói
da outra equipe está morto. Do que eles estão falando, o que
eles estão planejando? Eles não pensam em desistir deste
jogo, não pensam em desperdiçar o pênalti e depois fazer
o mesmo com a série; seu maior tributo é impactar a
bola como de costume. Seu povo não é culpado por
esta ditadura, eles merecem a taça tanto quanto qualquer um,
Em que ato de desportivismo antiquado eles estão
pensando? O goleiro substituto entra em campo, o som
local anuncia seu nome e o grito de goleiro, goleiro,
goleiro, goleiro irrompe. Na tela grande você vê os
jogadores chorando, eles são descobertos na caixa e
eles não se importam. O coletor pega a bola. Ele caminha
lentamente para a grande área, beija a bola e a coloca no
lugar; ele dá três passos para trás. Se o penalti entrar, a
ditadura termina. Se ele entrar, estamos livres. Não nos
entregue, não jogue essa chance fora; honre o esporte,
honre o goleiro; chute forte, levante a taça. Não dê nem
um grama de alegria a essas pessoas. Não nos dê nada. O
árbitro apita. O atacante toma impulso, seus olhos nos
olhos do substituto; o goleiro aponta para todos os
cantos do gol, provocando, distraindo; desesperado, ele
pula na linha de gol, grita como um comerciante, arranca a
língua, mostra os dentes; o atacante dá dois passos à frente,
coloca a perna esquerda ao lado da bola, ataca suavemente
com a perna direita embaixo do meio da bola. O goleiro
mostra força, elasticidade e força ao mergulhar para o
lado direito do gol; a bola, em agonia, entra lentamente
no centro do gol. O país acaba de ser humilhado no
último minuto da final da Copa do Mundo.
– Todos os medos de derrota, humilhação, ódio... são carícias
em comparação com a experiência de morrer.

+ Um momento após a bola entrar, o estádio fica mudo.


Completamente. Por um segundo, os sons do mar e do
deserto podem ser ouvidos. O árbitro, surpreso, assobia o
gol e o fim da partida, o fim da esperança esportiva, o fim da
ditadura. Os jogadores da equipe adversária começam,
como uma coreografia, um trote ágil em direção aos
camarins. Um torcedor grita sua dor no topo de seus
pulmões e em segundos o estádio é um manicômio. As
cercas não seguram, a polícia foge, as metas são
arrancadas, a grama é puxada para cima, as bandeiras se
tornam lanças. Digito outra mensagem com rapidez: Tudo
está em ordem.

– Muitas vezes pensei na morte; pensei que fazendo bem


as coisas, dedicando-me ao que faço, especializando-me,
eu receberia o fim com prazer; com satisfação; com calma.
Não é bem assim. Não há palavras para descrever a
aridez da mesma. Este inseto escuro nunca vai
desaparecer, sei disso agora; fixarei meu olhar em seus
olhos e sofrerei. Não tenho dúvidas, pior ainda, não tenho
escolha. No final, não há um traço de paz. Todas as nossas
expectativas são falsas. Todos os nossos medos,
ingênuos.

+ Em 1994, o país passou mais uma vez por um processo


eleitoral.

– 1994 foi também um ano de futebol; desta vez, a Copa


do Mundo foi nos Estados Unidos. Após oito anos de uma
seca futebolística, o México se qualificou novamente.

+ Jorge Campos no gol, Claudio Suárez como chefe de


defesa, Alberto García Aspe, Nacho Ambriz e Ramón
Ramírez no meio- campo, Zague, Luis García e até mesmo
Hugo Sánchez no ataque, constituíram o que na época era
considerado o melhor time nacional que já tivemos.

– O treinador era Miguel Mejía Barón.

+ No dia 23 de março daquele ano, três meses antes da


Copa do Mundo, Luis Donaldo Colosio, candidato
presidencial, foi assassinado.

– Em 5 de julho, o México enfrentou a Bulgária nas


oitavas de final. Após 120 minutos de impasse, a
partida seria decidida sobre as penalidades. Nunca
tínhamos ido tão longe em uma Copa do Mundo longe de
casa; as esperanças eram altíssimas.

+ A paisagem nacional estava coberta de fantasmas do


passado. A da disputa de pênaltis contra a Alemanha, oito
anos atrás em Monterey, e a das eleições de Salinas, seis
anos atrás.

– Diante dos olhos de todo o país, García Aspe, Marcelino


Bernal e Jorge Rodríguez falharam grosseiramente os três
primeiros tiros. Campos salvou um de forma espetacular, mas
não foi capaz de lidar com o resto.

+ Esta derrota, uma dolorosa derrota, fez com que o interesse do


país no futuro da Copa do Mundo diminuísse.

- Durante aquela partida, pouco antes da cobrança de


pênaltis, com os jogadores meio desidratados e o goleiro
búlgaro concentrado sob uma toalha, Mejía Barón
concentrou os jogadores. A expressão nos rostos daqueles
que em poucos minutos se tornariam os vilões nacionais
era de descontentamento e surpresa, mas acima de tudo de
submissão. A expressão nos rostos daqueles que em
poucos minutos se tornariam os vilões nacionais era de
descontentamento e descrença, mas acima de tudo de
submissão.

+ Hugo Sánchez não entrou no jogo. Na verdade, apesar


de jogar 30 minutos a mais do que o normal e em calor
escaldante, Mejía Barón não fez uma única mudança.

– Com esta derrota, o evento nacional passou de ser a


Copa do Mundo para as eleições.

+ Na conferência de imprensa realizada após a partida,


depois de explicar de forma desajeitada suas decisões,
Mejía Barón terminou seu discurso dizendo: "É uma
pena, sem dúvida. Não resta nada além de se recuperar
e passar para o próximo; neste momento, eleições
importantes nos esperam".

– Em 7 de julho, dois dias após a derrota búlgara, Carlos


Salinas de Gortari fez uma declaração reveladora: as eleições
serão justas.

+ a morte de Colosio, meses antes, causou a sensação


de que se ele tivesse sido morto, era porque ele
certamente iria fazer as coisas direito. Bastava que
Ernesto Zedillo, o candidato substituto, clamasse em
nome do homem caído pelas melhores intenções de Mejía
Barón de não conseguir remover o PRI da ditadura
partidária que prevalecia desde a Revolução.

– Para acrescentar ao pântano político de 1994, em 1º


de janeiro um grupo armado chamado Exército Zapatista
de Libertação Nacional havia declarado guerra ao
governo.

+ Em 1º de dezembro, Ernesto Zedillo assumiu a presidência da


república, mais uma vez representando o PRI. Um dia depois, o peso ,
moeda mexicana, foi historicamente desvalorizado, causando, entre
outras coisas, o desaparecimento da classe média nacional.
– Seis anos depois, apenas alguns meses antes do novo
milênio, o PRI perderia as eleições pela primeira vez,
dando lugar ao PAN, que tem sido o portador padrão do
nosso governo por quase doze anos.

O DEFENSOR central aguarda. Como muitos, ele está


vestindo a camisa do goleiro que horas antes morreu em
campo. Chega o TORCEDOR . Eles têm uma garrafa de
água como sinal para seu encontro.

TORCEDOR : Você sabe como pode saber quem sou eu?


DEFENSOR: Desculpe-me?
TORCEDOR : Porque eu não gritei que o jogador que
cometeu a falta que causou a...
DEFENSOR: Como está minha
família?
TORCEDOR : Quieto.
DEFENSOR: Eles estão bem,
não estão?
TORCEDOR : Você disse
alguma coisa a eles?
DEFENSOR: Não.
TORCEDOR : Portanto, eles devem
estar bem.
DEFENSOR: Como assim, devem estar?
TORCEDOR : Se você não lhes disse nada, não se
preocupe.
DEFENSOR: Eu não disse nada; não falei com
ninguém por várias horas. Depois do jogo, eles devem
ter medo que eu tenha sido... linchado.
TORCEDOR : As pessoas não estão pensando na falta que
você cometeu, elas estão pensando no goleiro.
DEFENSOR: As pessoas querem vingança, se me reconhecem,
sou uma opção muito boa.
TORCEDOR: Sua família
está bem.
DEFENSOR: Obrigado.
TORCEDOR : Você acha
que eles apresentaram uma
reclamação?
DEFENSOR: Não.
TORCEDOR : Por que tanta certeza?
DEFENSOR: Porque eles sabem que não devem fazer
isso. Sabemos que se alguém não aparecer, você tem que dar
a ele alguns dias antes de reportar; eles provavelmente
estão fazendo isso.
TORCEDOR :
Alguma coisa?
DEFENSOR: Para você.
TORCEDOR : Eles provavelmente estão trabalhando
temporariamente para o governo. Para nós.
DEFENSOR: Sim.
TORCEDOR : E o que você acha
disso?
DEFENSOR: Nada.
TORCEDOR : Você não tem uma
opinião?
DEFENSOR: Tudo bem.
TORCEDOR : É isso que
você diz?
DEFENSOR: Sim.
TORCEDOR : É correto pedir-lhe que faça algo ilegal
sob ameaça de ferir sua família? É correto? É
correto o governo fazer isso?
DEFENSOR: Ouça, foram algumas horas muito difíceis,
sinto muito se disse algo errado, não quero incomodar
ninguém; só quero saber se posso ir agora para minha
família.
TORCEDOR : E sua família também concorda com
isso?
DEFENSOR: Não é que estejamos de acordo.
Ninguém quer estar nesta situação, mas sabemos que
se recebermos a ligação... Há amigos que recusaram ou
que denunciaram... Preferimos fazer o que eles nos pedem
e seguir em frente.
TORCEDOR : Que covarde!
DEFENSOR: Eu acabei de matar um amigo porque
você me pediu; e eu fiz isso enquanto milhões de
pessoas observavam... Eu não sou... qualquer coisa.
TORCEDOR : Tudo bem.
DEFENSOR: E agora estou usando sua camiseta para
me camuflar no meio da multidão.
TORCEDOR: Eu sei que você fez isso para defender sua
família. Você também ajudou para algo muito maior.
DEFENSOR: Sim, eu sei.
TORCEDOR : O que você sabe?
DEFENSOR: Não, nada... Só sei que sim, é sempre para
algo maior. Desculpe.
TORCEDOR : "Desculpe". Esse é o problema.
DEFENSOR: Eu não entendo. Olhe, eu só quero que
você saiba que se as investigações me encontrarem, o
que é provável porque quando alguém famoso morre eles
sempre investigam muito, se isso acontecer, eu não vou te
entregar, eu prometo a você. E estou confiante de que isso
protegerá minha família, eles ficarão bem.
TORCEDOR : Se você for pego, você deve nos denunciar,
deve dizer que o governo o obrigou a fazer tudo isso. Você
deveria dizer como nós facilitamos para você matar o goleiro,
você deveria dizer...
DEFENSOR: Bem... eu não vou fazer isso; não se
preocupe. Eu posso ir? Estamos bem?
TORCEDOR : Não. Preciso lhe perguntar alguma
coisas.
DEFENSOR: Que coisas?
TORCEDOR : Preciso que você me diga como tudo
aconteceu em campo, quem o viu, o que eles lhe disseram,
me diga como foi.
DEFENSOR: Tudo aconteceu normalmente, ninguém notou.
Por favor.
TORCEDOR : Dê-me isso.
DEFENSOR: Eu cometi a
falta.
TORCEDOR : Foi uma falta
grosseira.
DEFENSOR: Como?
TORCEDOR : A falta foi grosseira, suspeitosa.
DEFENSOR: Como eles queriam que fosse? Eles
pedem uma falta no último minuto e querem que seja
sutil.
TORCEDOR : Sim.
DEFENSOR : Desculpe. Tive medo de que o tempo
estivesse se esgotando e tive que me certificar de que
os médicos entrassem.
TORCEDOR: Então?
DEFENSOR: Eu reclamei, o árbitro me advertiu...
TORCEDOR : Isso foi arriscado.
DEFENSOR: O quê?
TORCEDOR : Reivindicação. Se tivesse sido expulso,
como você me teria dado o sinal?
DEFENSOR: Teria sido mais suspeito não reclamar.
TORCEDOR : Como foi a manobra de levar a garrafa de
água?
DEFENSOR: Não houve nenhuma manobra, quando a ajuda
chegou eu fui lá e a peguei.
TORCEDOR : Os médicos da outra equipe notaram algo
incomum?
DEFENSOR: Não, eles ficaram felizes porque tiveram uma
penalidade no último minuto.
TORCEDOR : O resto de seus colegas?
DEFENSOR: Ninguém falou comigo, todos estavam
com Guillermo, torcendo para que ele fosse
penalizado.
TORCEDOR : O que você disse a ele para
beber água?
DEFENSOR: Acabei de vir para cá.
TORCEDOR : Enquanto você estava se aproximando, você
bebeu da água?
DEFENSOR: Sim.
TORCEDOR : Sim?
DEFENSOR: Sim, isso foi o que Guillermo viu.
TORCEDOR : Como assim, o que você viu? Você bebeu
água ou não?
DEFENSOR: Na verdade não, eu só fingi beber.
TORCEDOR: Eu lhe disse para beber, eles podem pegar
isso na transmissão, você sabe quantas vezes eles vão
assistir a esses vídeos?
DEFESA: Aquela garrafa de água matou Guillermo, eu
não queria beber dela.
TORCEDOR : Só teria um efeito sobre ele por causa de
outra substância que já estava em seu corpo, eu lhe disse;
caso contrário, toda a equipe adversária estaria morta. Você
só lhe deu água, você não é culpado de nada; mas se o vídeo
mostra que pouco antes de ele morrer você fingiu beber
de uma garrafa que depois lhe ofereceu... Foda-se!
DEFENSOR: Desculpe. Mas são vocês que estão
fazendo a investigação de qualquer forma, não são?
TORCEDOR : O que você quer
dizer conosco? DEFENSOR: Sim,
o governo.
TORCEDOR : Você não tem idéia. Como ele bebeu a
água? O que você disse a ele? Alguém o ouviu?
DEFENSOR: Não.
TORCEDOR: O que você disse a ele?
DEFENSOR: Sim, eu fui, os outros se afastaram, e foi ele quem me
disse: "não se preocupe, eu vou levantar agora".
TORCEDOR : E a água?
DEFENSOR: Sim, e tudo o que eu lhe dizia era: "Desculpe,
desculpe". E ele dizia: "Você parece um atacante, filho da
puta". E ele riu.
TORCEDOR : E a água?
DEFENSOR: E eu só disse: "Desculpe, desculpe".
TORCEDOR : Como ele bebeu a água?
DEFENSOR: E enquanto eu lhe dizia isso, ele
simplesmente tirou a garrafa de minhas mãos e a
terminou em um só gole.
TORCEDOR : Então depois?
DEFENSOR: Então nada. Ele andou até a linha, o
árbitro armou a bola, parecia bem, e quando ele estava
prestes a atirar, parecia que ele ficou tonto e caiu. Então o
médico chegou e começou a examiná-lo e abrir sua
boca com as mãos, eu o ouvi dizer: "ele se foi, ele se foi".
Foi quando eu dei o sinal. Aconteceu muito
rapidamente. Então eles marcaram o gol e todos os
jogadores saíram pelos túneis abaixo, quase sem mudar,
porque sabíamos o que estava acontecendo lá em cima.
Consegui agarrar esta camisa do Guillermo.
TORCEDOR : Se você não tivesse fingido beber da
garrafa, ela teria sido perfeita. Um erro do caralho. Um
erro que poderia afundar-nos.
DEFENSOR: Desculpe.
TORCEDOR: Não. Você se saiu muito bem. Como você
diz, você estava sendo observado por milhões e... você o
fez.
DEFENSOR: Eu não me sinto bem.
TORCEDOR : Eu não duvido. Mas é importante, eu juro.
DEFENSOR: Importante.
TORCEDOR : Sim, só para impedir que tudo isso aconteça.
DEFENSOR: O que é isso?
TORCEDOR : Isto. Este medo. Isto. Se o erro da água não
for fatal, em menos de um ano você entenderá do que
estou falando.
DEFENSOR: "O bicho d'água". Bem... ignore-o. Por favor, por
favor, por favor. Ajude-me. Vocês é que estão fazendo a
investigação, não sejam hipócritas e, por favor, não me
denunciem. Invente algo, por favor.
TORCEDOR: Não podemos fazer isso.
DEFENSOR: É claro que este lado não é "importante".
TORCEDOR: Você não acredita que o que você fez é
importante.
DEFENSOR: Sim, eu acredito em você, mas tenho certeza de
que o que quer que vá mudar ou melhorar, de acordo com
você, não tem nada a ver comigo. Não é que eu não acredite
em você, simplesmente não me toca.
TORCEDOR : Você vai
conseguir isto.
DEFENSOR: Tanto faz.
TORCEDOR : Se eu lhe disse... Escute, escute-me, escute-
me. Se eu lhe dissesse que o que você acabou de fazer
vai lhe beneficiar diretamente, sua família, se eu lhe
dissesse que isso vai nos dar paz de espírito, você
acreditaria que isso é importante?
DEFENSOR: Por que você se importa se eu acredito em
você? Já fiz, já fiz.
TORCEDOR : Se eu lhe dissesse que graças a você ninguém
mais teria que passar por esta situação, você acreditaria
que valeu a pena?
DEFENSOR: Matar Guillermo vai fazer
desaparecer as "operações"?
TORCEDOR : Sim.
DEFENSOR: Você espera que eu
acredite nisso?
TORCEDOR: Sim.
DEFENSOR: Não faz sentido.
TORCEDOR :Você não vê, mas vê.
DEFENSOR: Não. Matar uma pessoa não pode
implicar liberdade para todos.
TORCEDOR : Sim, pode.
DEFENSOR: Mate então seu chefe! Mate o presidente!
Guillermo o quê? Minha família o quê? E mesmo que
você tivesse uma teoria absurda e complicada de que a
morte de Guillermo vai ser... ainda assim seria uma
besteira. Não se pode libertar alguém através da morte de
outro.
TORCEDOR : Não é para alguém, é para todos.
DEFENSOR: Você pegou a pessoa errada! Dê suas
garrafas mágicas para... Por que tantas perguntas?
TORCEDOR : Não sei.
DEFENSOR: Você é do governo, certo? Certo?
TORCEDOR : Isso lhe daria alívio?
DEFENSOR: Não, mas se você não é do governo, eu o mato
agora mesmo. Guillermo era um amigo. Você é do governo? Por
que vou me lembrar de seu rosto, posso ir?
TORCEDOR : Sim.
DEFENSOR: Minha família e eu estamos bem, estamos
seguros?
TORCEDOR Fique aí e faça uma volta completa.
Devagar. Finja que você está procurando alguém ou o que
quer que seja, é para que eles saibam que você vai embora.
DEFENSOR: Minha família e eu...
TORCEDOR : Sim.

O DEFENSOR faz o que lhe é instruído. Enquanto ele está


de costas, o TORCEDOR pega as duas garrafas de água.

DEFENSOR: Já?
TORCEDOR : Certo. Após três passos, você toma um gole de
sua água.
DEFENSOR: Desculpe-me?
TORCEDOR : Você caminha, depois de três passos, você
bebe.
DEFENSOR: Por quê?
TORCEDOR : Então eles sabem que você não está
fugindo e não vão atirar em você.
DEFENSOR: Se eu não beber, eles vão me matar?
TORCEDOR : Também se você finge beber (o defensor
escolhe uma garrafa e faz o que lhe é instruído).

+ Trinta metros depois, o defensor viu um inseto escuro


que o paralisou de terror enquanto pairava à sua frente.
Seu olhar, sua agitação e sua expressão se tornaram a
experiência mais angustiada e solitária que ele jamais teria
tido. Olhar nos olhos do inseto estaria além dos limites do
medo; seria pior do que o pior. Antes de morrer, ele tinha
a sensação de que sua vida não tinha tido nem a metade do
sentido. Ao ver aquele inseto, ele sabia que seu
caminho não tinha sido da menor relevância.

-Este é um epílogo. Noruega, 1994. O orador abaixo


é Leymah Gahr, uma cidadã comum da cidade de Oslo.

+ "As memórias que tenho não correspondem à realidade,


mas acho que com uma experiência como essa, esperar
que o que se experimenta seja o mesmo que a realidade
é... um pouco ingênuo.

– Isto faz parte de uma entrevista feita por sua família


dias depois de ter tido um ataque cardíaco maciço.

+ "Eu estava em uma sala branca... Eu sei que na realidade eu


estava amarrado a uma maca recebendo choques elétricos, mas
na minha realidade naquele momento eu estava em uma
sala branca... Eu não estava em pé ou sentado... Eu estava
lá, no espaço... E dentro desta sala havia um pássaro. Um
pássaro estava voando lá dentro".

– Leymah esteve clinicamente morta por quase três minutos.

+ "Chamo-lhe um pássaro porque penso que ao chamá-


lo assim, pássaro, faço um pouco de honra à sua
beleza... Suponho que se estivesse dentro de uma sala o
que estava voando comigo era um inseto; mas se assim
fosse, era o inseto mais belo do mundo".

– A equipe de futebol norueguesa só se classificou para


a Copa do Mundo três vezes e venceu duas partidas.

+ "Era a paz. Total. Como eu nunca senti em minha vida.

– Uma dessas vitórias veio em 1994, dias antes do


ataque cardíaco de Leymah, contra o México.
+ Eu não estava consciente da dor que meu corpo estava
tendo, ou melhor, meu corpo não estava com dor alguma.
O que estava acontecendo aqui: os choques, as vozes, a
angústia do meu corpo, a dor do meu corpo. Havia este
inseto e eu, e me lembro que eu podia entender que este
inseto queria ficar em frente ao meu rosto e me olhar nos
olhos. Não sei como eu sabia, eu o entendi. E percebi
que não estava conseguindo, para chegar à minha
frente. Lá, eu queria, eu sabia que se ele pudesse fazer
isso, se ele pudesse me olhar nos olhos, eu teria a
experiência mais... pura e celestial da minha vida. Agora
eu entendo, bem, não que eu entenda, mas acho que se
aquele bicho tivesse ficado na minha frente, eu poderia
não ter voltado".

– Desde os anos 90, a Noruega está entre os três países


com melhor qualidade de vida, de acordo com o Índice de
Desenvolvimento Humano, uma pesquisa anual realizada
pela ONU.

+ Estou feliz por estar aqui, é claro. Mas eu estou ainda


mais feliz porque sei que quando chegar a hora de olhar
nos olhos do inseto, vou me sentir muito bem".

– As eleições em nosso país estão ao virar da esquina.

+ Se você tem a oportunidade de levar uma vida plena, de


exercer sua liberdade, você pode ter a paz de espírito que no
final o sentimento vai ser... satisfatório. E isso é muito
bom. Isso faz com que tudo isso valha a pena.
Acreditamos que é assim que as coisas são.

– Aqui termina o epílogo. E aqui termina o trabalho.

Los Angeles, Califórnia, março de 2012 - Cidade do


México, junho de 2012

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