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Com os meus botões

O Globo/Estado - 14/06/98

Tostão me perguntou meses atrás, aqui mesmo em Paris, se o futebol


do Denilson lembrava o Canhoteiro (ponta-esquerda do São Paulo
que só eu vi jogar, na década de 50). Vinda de quem vinha, aquela
pergunta me paralisou. Fiquei postado na praça, sem raciocínio,
olhando para o Tostão. Se bem que, quando topamos um craque de
bola no meio da rua, vestido à paisana, andando como a gente anda,
falando como a gente fala, nós, amadores, sempre nos atrapalhamos.
Viramos idiotas. Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio
do Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto
esgotado, sem saber por que continuei a encará-lo. O silêncio se prolongava, incômodo,
e ainda encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a
pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco vermelho. Então
me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão.
Formiga tinha sido um dos meus melhores botões, apesar de meio oval, um botão de
galalite, vermelho.

Na minha mesa, Tostão não chegou a ser botão. Eu já era bem crescido quando ele
apareceu, e fica um pouco ridículo fazer botão de um jogador mais novo que você.
Botões, para a garotada daquele tempo, eram venerados como ícones, beijados, polidos
com flanela, concentrados em caixa de charuto e inegociáveis. Pois bem, vi o Tostão
deslizar nos gramados e, sem querer desmerecê-lo, era mesmo um homem com braços e
pernas. Nem por isso há de nascer um centroavante que se lhe compare, como nunca
haverá ponta-esquerda semelhante ao Canhoteiro que só eu vi jogar. Desde já discordo
de quem, concordando comigo, sustenta que o futebol era muito mais bonito no passado.
Ao contrário de nós mortais, que éramos todos mais bonitos no passado, os craques do
passado são ainda melhores hoje. Penduraram as chuteiras, mas na permanente edição
da nossa memória vão produzindo novos lances memoráveis. Posso vê-los sempre de
uniforme, uniformes diferentes uns dos outros, num vestiário com o teto cheio de
chuteiras penduradas. Reúnem-se em torno do técnico, ouvem a preleção em silêncio,
mas não prestam muita atenção. Dispensam alongamentos, entram em campo e já
começam a jogar. Não dão entrevistas. Não fazem cera, não atrasam a bola, não cobram
lateral, não ficam na barreira, faz cada qual o que lhe dá na telha. E no entanto exibem
um belo conjunto, mantendo-se invictos há anos e anos, mesmo porque contra eles não
há quem se atreva a jogar. Me vendo de boca aberta, naquela tarde gelada, o Tostão não
fazia idéia dos gols que continua a marcar dentro da minha cabeça.

"Ele te lembra o Canhoteiro?", perguntava o Tostão, e de cinco em cinco minutos a


pergunta me rebate no ouvido como um gongo, enquanto vejo o Brasil jogar no Stade de
France, sem Denilson. Há o grande Rivaldo, seu estilo de ema, há o nosso Ronaldinho,
de quem tudo o que se diz não basta, e há um oco. Sim, a ausência do Denilson agora
me lembra exatamente o Canhoteiro, cuja camisa Zagallo usurpou na Copa de 58,
privando o planeta de ver o que só eu via. Estamos no segundo tempo, Brasil e Escócia
um a um, e já me pergunto se, barrando o Denilson, Zagallo não pretende barrar o
Canhoteiro de novo, 40 anos depois. Maldade minha, claro, pois eis que o Denilson entra
em campo, recebe a bola rente à lateral esquerda, passa zunindo por dois escoceses e
toca para o meio, de calcanhar. A jogada foi bem em frente à minha cadeira, permitindo-
me ver até o branco dos olhos do Denilson, e não direi o que se passou naquele instante
com a fisionomia dele. Não direi de quem era a figura que vi num relance, vestindo a
camisa 19, porque nem eu próprio acredito nessas coisas. Mas alguma coisa os
escoceses também viram, e ali se assombraram, e se atarantaram, e perderam a pouca
cor que têm, e bateram cabeças entre si e fizeram um gol contra.

É um garoto, o Denilson, e imagino o que será seu futebol daqui a mais ou menos 30
anos, quando estarei abarrotado de memórias. Seu drible na corrida, calculo que possa
chegar a algo como a velocidade do TGV Paris-Nantes, embora jamais à do Canhoteiro.
Babando de antemão, me vejo a lembrar o Denilson adiantando a bola na medida certa,
feito isca, para surrupiá-la do bico do pé do beque. Verei o Denilson em nova arrancada,
como quem corre num parque, e a bola que corre serelepe ao seu lado, quase latindo.
Verei o Denilson desviando a bola sem tocá-la, talvez com um assobio - ele tem boca de
assobiador. Verei o molejo dele, trançando as pernas diante do próximo adversário, e, de
repente hei de ver o drible de corpo. O drible de corpo é quando o corpo tem presença de
espírito.

Se eu fosse menino, faria do Denilson um senhor botão. De tampa de relógio, acho.

Babando de antemão, me vejo a lembrar o Denilson adiantando a bola na medida certa,


feito isca, para surrupiá-la do pé do beque.

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