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Carlos Nolasco

Universidade de Coimbra (CES-UC), Portugal

cmsnolasco@ces.uc.pt

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9932-9222

Narrativas sobre Eusébio


na hora da sua morte
Narratives about Eusébio at the time of his death
https://doi.org/10.14195/2183-6019_8_5

Resumo de condolências, pronunciadas quando da and discriminating society arrives in Lis-


Eusébio morreu! Nos dias que se segui- morte de Eusébio, as representações que bon and becomes one of the most popular
ram à sua morte os comentários e reações sobre ele foram produzidas, tomando como figures in Portuguese society during the
sucederam-se a um ritmo tão contagiante hipótese que, no momento da sua mor- colonial war period. He was regarded a
como foi o seu futebol. A comunicação te, as mensagens de pesar reproduziram hero until he died. All the messages of
social quase que em exclusivo produziu as narrativas que sobre o jogador foram condolences also praised the player, his
conteúdos sobre o tema. Recuperaram- produzidas ao longo dos anos, como se human and sports qualities, his social
-se imagens do jogador, apresentaram-se tivesse havido uma cristalização da sua standing, his “Portugueseness” and world
testemunhos de diversas figuras públicas, representação simbólica desde os anos 60. dimension. This paper uses these messa-
na maioria ex-colegas, jogadores no ati- ges of condolences sent when Eusébio died
vo, políticos, artistas e muitas pessoas Palavras-chave: Eusébio, herói, narra- to identify the representations made of
anónimas que expressavam a sua emo- tiva, biografia, futebol. the man, assuming that at the time of his
ção. Considerando o excecional desem- death these messages of grief reproduced
penho futebolístico pelo SL Benfica e the narratives made of the player over the
pela Seleção Nacional, que o converteu Abstract years, as if his symbolic representation
num herói desportivo, não é surpresa a Eusébio has died! In the days following his had crystallised since the 1960s.
comoção que a sua morte suscitou. Con- death, the pace of comments and reactions
tudo, este é um herói inusitado: africano was as catching as his football. The media Keywords: Eusébio, hero, narrative, bi-
negro, nascido numa sociedade colonial almost exclusively aired comments about ography, football
e discriminatória, chega a Lisboa e con- it, going back to old pictures of the pla-
verte-se numa das mais populares figuras yer, with public figures coming forward to
da sociedade portuguesa num período de voice their opinion about Eusébio, mostly
guerra colonial. E esta condição de herói former team mates, active players, politi-
mantém uma perenidade que se estende cians, artists, and many nameless people
até à hora da sua morte. As mensagens wanting to voice their emotions. Due to his
de condolências entretanto produzidas exceptional football skills while playing
também fazem a exaltação do jogador, for SL Benfica and the Portuguese football
das suas qualidades humanas e despor- team that made him a sports hero, the
tivas, da sua importância social, da sua shock caused by his death hardly comes
portugalidade e dimensão mundial. Este as a surprise. However, he was an unusual
texto identifica, através dessas mensagens hero: a black African born in a colonial

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Introdução Nesse dia 5, com pesar, as rádios pela concorrência de outros aspirantes a
Eusébio da Silva Ferreira morreu e canais televisivos começaram cedo a heróis. Processo irreversível a partir do
na madrugada de 5 de janeiro de 2014. noticiar a morte de Eusébio. Colocaram momento em que abandonam o futebol.
Tinha 71 anos e o prestígio de ser con- no ar imagens do jogador, apresentaram Ainda que ressuscitem como treinado-
siderado um dos melhores futebolistas testemunhos de diversas figuras públi- res ou comentadores desportivos, a sua
de todos os tempos em Portugal e no cas, na sua grande maioria ex-colegas, áurea heroica desvanecesse irreme-
mundo. O último jogo oficial em que
1
jogadores no ativo, políticos, artistas e diavelmente (Gammon, 2014, p. 249).
participou ocorrera 34 anos antes, na muitas pessoas anónimas que expressa- Com Eusébio esse processo não suce-
longínqua época de 1979/80, ao servi- vam a sua emoção. O tempo de antena deu. Sendo a sua existência transversal
ço dos Buffalo Stallions na liga indoor prolongou-se depois com diretos junto à a diversas gerações, regimes políticos e
do soccer norte-americano. A sua glória estátua de Eusébio no Estádio da Luz. contextos culturais, o jogador manteve
fora gerada anos antes, a partir de de- Assistiu-se à chegada do corpo, ao veló- íntegra a sua condição de herói des-
zembro de 1960, quando, proveniente rio e à fila de pessoas que lhe quiseram portivo desde os anos 60. Também não
do Sporting de Lourenço Marques, in- prestar a última homenagem. No dia se- deixa de ser paradoxal que este herói,
gressou no Sport Lisboa e Benfica e, guinte, transmitiu-se o cortejo fúnebre sendo um africano negro, tenha ganhado
passados alguns meses, se tornou inter- pelo Estádio da Luz e, posteriormente, consistência num país em guerra com as
nacional pela Seleção Portuguesa. Por pelas ruas de Lisboa, e finalmente o en- suas colónias africanas, na vigência de
entre fintas, remates, golos e muitos terro no cemitério do Lumiar. um regime racista e de uma sociedade
títulos, se foi tecendo a vida desportiva Para uma personalidade que em fechada sobre si mesma.
de Eusébio. Depois de deixar de jogar, vida foi das mais mediatizadas do País, Os conteúdos noticiosos do faleci-
permaneceu no clube e na seleção, que nos seus tempos áureos de jogador mento de Eusébio, produzidos nesses
como se de um embaixador do futebol foi uma “pop star”, não se estranha que, dias pelas agências noticiosas e órgãos
português se tratasse. na morte, Eusébio tenha gerado imensa de comunicação social encarregaram-
consternação. O que causa perplexidade -se de recordar essa dimensão heroica
1 Segundo a Federação Internacional de His- é a perenidade de Eusébio na socieda- através da apologia dos seus feitos des-
tória e Estatísticas do Futebol, Eusébio foi o de portuguesa (Santos, 2004, p. 81). Os portivos, recorrendo aos velhos apelidos
nono melhor futebolista do século XX [url:
https://iffhs.de/iffhs-history-te-worlds-best- futebolistas, mesmo quando ascendem de “Rei” e “Pantera Negra” e à sua
-player-of-the-century-1900-2000/, consulta
à categoria de heróis desportivos, têm condição de “Imortal” e “Eterno”. As
6 de dezembro de 2017]. De acordo com o
voto online de adeptos, Eusébio foi o terceiro uma existência efémera, ou seja, sofrem mensagens de pesar entretanto produ-
melhor jogador do século XX [url: https://
um processo de erosão na sua heroicida- zidas também fazem a exaltação do jo-
www.revolvy.com/page/FIFA-Player-of-the-
Century, consulta 18 dezembro de 2017]. de pela contingência dos resultados ou gador, das suas qualidades humanas e
desportivas, da sua importância social, edifica e sustenta como herói; na segun- tência ao herói, isto porque, “sem narra-
da sua portugalidade e dimensão mun- da, mostra-se como, através das mensa- tiva não há heróis” (Reis, 2013, p. 64).
dial. À margem da consternação, qual o gens de condolências proferidas quando A narrativa produzida em torno de
sentido latente dessas mensagens e de da sua morte, há uma reprodução dessa Eusébio é relativamente fácil de ser
que forma contribuem para explicar a narrativa. contada. O jornal Expresso, no fim-de-
consistência heroica de Eusébio e a sua -semana após o falecimento do jogador,
permanência na sociedade portuguesa? sumariava a sua vida de forma simples.
Este texto2 propõe-se percecionar, A narrativa inusitada
através das mensagens de condolências do herói desportivo Era uma vez a história de um miú-
pronunciadas na sequência da morte de Para se ser herói desportivo, herói do pobre e humilde, nascido num
Eusébio, as representações que sobre futebolístico no caso de Eusébio, não bairro também pobre e humilde de
ele foram produzidas. Toma-se como basta correr, fazer fintas, marcar muitos Moçambique, e que aterrou um Lis-
hipótese argumentativa que, no mo- golos e ganhar troféus. Muitos outros o boa numa noite fria de Dezembro de
mento da sua morte, as mensagens de fizeram também e não adquiriram essa 1960 para enriquecer e aquecer um
pesar reproduziram as narrativas que dimensão de heroicidade. A outros, país e um clube.3
sobre ele foram produzidas ao longo dos ainda que sem grande desempenho des-
anos, essencialmente nas décadas de portivo, é-lhes atribuído esse estatuto Como se de ficção se tratasse, a nota
60 e 70, os anos da sua glória, como se (Allen, 2013, p. 585). Esta heterogenei- biografia de Eusébio é reduzida às ori-
tivesse havido uma cristalização da sua dade de desempenhos heroicos resulta gens humildes no bairro de Mafalala,
representação simbólica. E que, nessa do facto de os heróis desportivos não nos subúrbios de Lourenço Marques.
representação, se reflete também a me- subsistirem apenas por si, necessitando Anos depois, a chegada a Lisboa para
mória do seu tempo político e social e do reconhecimento de quem os eleve ingressar no SL Benfica e converter-se
uma ideia fantasiosa do império portu- a esse estatuto. Esse processo sucede no maior jogador da sua história. Meses
guês. O texto está estruturado em duas quando há uma simbiose entre a atuação mais tarde, tornar-se internacional pela
partes: na primeira, reflete-se sobre a individual e a representação coletiva, na Seleção Portuguesa de Futebol, sendo o
narrativa biográfica de Eusébio que o elaboração idealização de um “tempo protagonista mais relevante da primeira
glorioso” acima da mediocridade dos época dourada do futebol nacional (Coe-
dias comuns (Archetti, 2001: 153). Esse lho e Pinheiro, 2002). Essa narrativa,
2 Produzido no âmbito do projeto de pós-dou-
toramento realizado na área das migrações reconhecimento é feito através dos dis- balizada por etapas, materializou-se em
de trabalho desportivo, financiado pela Fun-
cursos mediáticos produtores de uma
dação para a Ciência e a Tecnologia (Ref.
SFRH/BPD/95320/2013). narrativa que confere sentido e consis- E xpresso, 11 de janeiro de 2014.
3 

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1966 com a publicação do livro Meu mesmo relato é feito em 1992 num ál- O consenso em torno desta narrativa
nome é Eusébio. Autobiografia do maior bum de banda desenhada, da autoria é acrítico. Realça o mérito de alguém
futebolista do mundo,4 em que, a partir de Eugénio da Silva, intitulado Eusébio, que, tendo nascido pobre, consegue
de pretensas falas do jogador, num dis- Pantera Negra. Os elementos narrati- tornar-se um futebolista importante,
curso direto, é contada a sua história. vos desta história encantada, ainda que símbolo maior de um país. No entanto,
Como o próprio afirma à revista Flama, com variações, são sempre os mesmos: escamoteia o facto de, tendo nascido po-
o menino pobre do bairro de Mafalala; bre, nasceu também negro, num bairro
no livro revelo tudo […]. Os anos o jovem jogador que chega a Lisboa as- dos subúrbios de uma cidade coloniza-
das dificuldades, quando vivia com sediado por clubes que o disputam; a da, numa sociedade discriminatória, as-
a minha mãe e os meus irmãos em sua opção pelo Benfica como se de uma sente legalmente na diferenciação entre
Lourenço Marques. Os anos da opção moral se tratasse; o jovem afri- “civilizados e “indígenas” (Menezes,
bola de trapos e dos ‘timinhos’ da cano que se revela o maior de todos os 2010, p. 70). Nesse contexto, seria de
escola, finalmente a minha ascen- jogadores; a personalidade simples não supor que a condição de africano ne-
são a profissional e a vinda para a subvertida pela glória; a sua permanên- gro não permitisse a Eusébio qualquer
Metrópole. 5
cia no Benfica; as lágrimas pela seleção; veleidade de emancipação, e por isso
as múltiplas operações ao joelho; a emi- constitui-se como um herói inusitado.
Essa autobiografia vai constituir-se gração para o soccer norte-americano. Como disse Eduardo Galeano (2002,
como modelo para todas as narrativas Repetidos à exaustão, estes episódios, p. 139), Eusébio “nasceu destinado a
biográficas que se lhe sucederam. O fil- “produto de uma memória que se atua- engraxar sapatos, vender amendoins ou
me/documentário Eusébio – A pantera liza para, eventualmente, ganhar nova roubar dos distraídos (…). Chegou aos
negra, realizado pelo espanhol Juan de significação” (Santos, 2004, p. 86), con- gramados das canchas correndo como só
Orduña, em 1973, é disso exemplo, con- tinuam a constituir argumento em obras pode correr alguém que foge da polícia
tando a vida do jogador desde a infância recentes sobre o jogador.7 ou da miséria que morde os calcanha-
em Moçambique até à consagração. O 6
res”. E foi isso que sucedeu: Eusébio
recriações. Tem a particularidade de con- começou a jogar futebol primeiro numa
tar com as participações de Eusébio e da
4 A autoria do livro é assumida por Eusébio, sua mulher, Flora, a protagonizarem a sua equipa informal de Mafalala, “Os Bra-
mas terá sido Fernando F. Garcia que o própria história. sileiros”; passou depois para o Sporting
prefaciou e recolheu a narrativa, quem o
7 O filme de 2016, Eusébio – A História de
escreveu. O livro seria publicado no ano de Lourenço Marques, clube de colonos
Uma Lenda, de Filipe Ascensão é disso
seguinte em língua inglesa e alemã.
exemplo. “Ruth”, de 2018, com argumento
5 F lama, 28 de outubro de 1966. de Leonor Pinhão e realizado por António
6 Filme rodado entre outubro de 1971 e agosto Pinhão Botelho, é ligeiramente diferente, de Eusébio a Portugal retratar a sociedade
de 1972, conjuga imagens de arquivo com procurando através do episódio da chegada portuguesa e o regime político de então.
do centro da cidade; transfere-se para cimento internacional. Ainda que com Lourenço, “o génio está isolado pelo seu
o Sport Lisboa e Benfica, clube da me- intensidades distintas, e a mais radical tempo”,10 sendo produto das circuns-
trópole, e vem depois a representar a foi a sua vinda para Portugal, cada uma tâncias espaciais e temporais em que
seleção portuguesa. Cada uma destas destas transposições significou uma ru- acontece. Três meses depois inicia-se
transferências, mais do que mudanças tura biográfica num destino previamente a guerra colonial. Portugal, entretanto
de equipas de futebol, significaram a determinado. contestado internacionalmente pela ma-
transposição de sucessivas “linhas abis- Antes de Eusébio já outros jogado- nutenção das suas colónias, recorre aos
sais”,8 inicialmente entre “indígena” res haviam experimentado este mesmo argumentos do luso-tropicalismo para
e “assimilado”, 9
depois entre colónia percurso inusitado. Mário Wilson, Ma- justificar a presença em África (Castelo,
e metrópole, e entre a metrópole e a tateu, Vicente, Mário Coluna e Hilário 2015, p. 456). Negando qualquer discri-
universalização resultante do reconhe- fizeram o mesmo caminho das periferias minação ou sentimento de superioridade
coloniais à capital do império, sendo racial, o discurso oficial realça a plasti-
8 Estas linhas abissais são a linha radical sujeitos a um processo de naturalização cidade intrínseca dos portugueses em se
de que fala Boaventura de Sousa Santos.
quando utilizados na seleção portugue- relacionarem com os povos tropicais e,
Linha que divide a realidade em dois uni-
versos distintos: o “lado de cá” e o “lado de sa. Nem tão pouco esta foi uma espe- por isso, se afirmavam os territórios afri-
lá”. “Deste lado” está a ordem, o controle, a
cificidade portuguesa, pois a França já canos como províncias ultramarinas de
estabilidade, a racionalidade, a liberdade e
a democracia; “do outro lado” nada existe, desenvolvia processo idêntico desde os uma nação multirracial e pluricontinen-
há apenas um espaço de abandono, caótico,
anos 20, o mesmo se verificando com a tal. Neste âmbito, Eusébio era um exem-
violento e irracional. “A divisão é tal que
‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto Bélgica por relação à sua colónia con- plo maior desse propalado multirracia-
realidade, torna-se inexistente, e é mesmo
produzido como inexistente. Inexistência
golesa (Lanfranchi e Taylor, 2001, p. lismo. Não estranha, pois, que logo em
significa não existir sob qualquer forma de 48). Contudo, o estatuto alcançado por 1962 Salazar tenha afirmado que Eu-
ser relevante ou compreensível” (Santos,
2007, p. 3-4).
Eusébio é incomparável a qualquer ou- sébio era “património de Estado”,11 ha-
9 D istinção resultante do Estatuto dos In- tro jogador até então proveniente das vendo como que uma apropriação oficial
dígenas, aprovado em 1954, que dividia a colónias. Esse caráter distintivo resulta da imagem do jogador. As imagens icó-
população nativa em duas categorias: “indí-
genas” eram os autóctones das colónias, os de forma imediata do seu desempenho nicas que sobre ele são produzidas, em
quais se encontravam num estado primitivo, com futebolista, e de forma indireta da
carente de uma ação civilizadora; “assimila-
dos” eram todos aqueles que sujeitos a essa narrativa ideológica espaço/temporal em
ação, em teoria, adquiriam competências 10 Texto publicado na revista Visão, em 1991,
que esse desempenho decorre. p. 91.
linguísticas, comportamentais, religiosas,
profissionais, económicas e familiares, em Eusébio chega a Lisboa em dezem- 11 
N ão é certo que tenha sido esta a
conformidade com os padrões europeus, sen- designação elogiosa de Salazar, podendo
bro de 1960. Essa temporalidade não
do-lhes administrativamente reconhecidos também ter sido “património nacional”. A
alguns direitos. é inocente, pois como refere Eduardo este propósito ver Santos, 2004.

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particular as fotografias com a camisola Em permanência, a comunicação sença dos mais altos representados do
da seleção portuguesa no Mundial de social deu conta das homenagens popu- Estado no funeral, bem como o volume
1966, bem como a narração da sua vida lares, das exéquias no Estádio da Luz, de notícias gerado, não restam dúvidas
quotidiana nas páginas da comunicação do cortejo fúnebre pelas ruas de Lisboa da permanência do estatuto de Eusébio
social exprimem o ideal de lealdade e do enterro onde, sob chuva intensa, se na sociedade portuguesa. Contudo, con-
patriótica que Eusébio parece incorpo- cantaram hinos e gritaram palavras de siderando as profundas transições polí-
rar (Carvalheiro, 2011, p. 236). É neste glória a Eusébio. As capas dos jornais, ticas, económicas e sociais pelas quais
contexto que a narrativa da heroicidade no dia a seguir, davam conta da como- a sociedade portuguesa passou, bastante
de Eusébio é elaborada, a de um menino ção generalizada no último adeus. Sob a distintas do contexto em que Eusébio se
pobre que numa noite de dezembro ater- imagem comum do caixão transportado tornou herói nacional, levanta-se a ques-
rou em Lisboa para “aquecer um país”. em ombros pelo relvado do Estádio da tão de identificar em que pressupostos
Luz, A Bola escreveu “E o céu chorou”, se fundamenta a manutenção desse es-
O herói na hora da sua morte o Record dizia “Dia do Rei, Portugal tatuto. Assumindo que as mensagens
Na madrugada do dia 5 de janeiro, despediu-se de Eusébio”, e O Jogo as- fúnebres expressam de forma manifesta
a comunicação social e as redes sociais sinalava “A última vénia”. ou latente um entendimento formal e
online difundiram rapidamente a notícia A morte de Eusébio, nos dois dias emocional de quem foi Eusébio, procu-
da morte de Eusébio. Numa conster- que se lhe sucederam, gerou um volume rou-se, pela análise de conteúdo de 100
nação generalizada, as manifestações de 24.857 conteúdos noticiosos online.12 mensagens de condolências, encontrar
de pesar e saudosismo começaram de Destes, 5.293 foram publicados em Por- resposta para a perenidade de Eusébio
imediato. Todas as pessoas que se pro- tugal e os restantes em outros 116 paí- na sociedade portuguesa.
nunciaram foram unânimes na exaltação ses. Reino Unido com 1990 notícias, Es- Essas 100 mensagens, recolhidas
da grandeza desportiva, na dimensão panha com 1880, Alemanha com 1377, nos dias subsequentes à morte de Eusé-
humana e na importância que Eusébio Itália com 1252, França com 1019 e o bio, tiveram duas origens. Uma primeira
teve para Portugal. Os que com ele con- Brasil com 987, foram os que mais con- foi a comunicação social, nomeadamen-
viveram contaram episódios de quando teúdos geraram. Em Moçambique, país te os jornais Público, Expresso, A Bola, O
jogaram juntos, dos seus encontros, das de nascimento do jogador, foram assina- Jogo e o Record, e websites de canais te-
suas vivências; os que dele estavam ladas 22 notícias. levisivos e radiofónicos,13 os quais, para
afastados relataram as suas lembranças Considerando a expressiva comoção
de jogadas e golos; os que nunca o viram popular pela morte de Eusébio, a pre- 13 Estes websites surgem da sequência da pro-
cura online, no motor de busca Google, de
jogar lamentavam a situação.
informação relativa ao tema do falecimento
12 In Jornal I de 7 de janeiro de 2014. do jogador.
além de publicarem diversas manifesta- de conteúdo, privilegiando os elementos modestas irão constituir-se como base
ções de pesar, reproduziram as declara- discursivos e sentidos subjacentes aos de uma personalidade simples, humilde,
ções de condolências proferidas por inú- mesmos, permitindo a categorização das simpática, solidária, boa, afável, exce-
meras figuras públicas. O outro grupo de mensagens em função do seu conteúdo. cional, grande e talentosa. Estes foram
fontes foram os comunicados oficiais ou Importa salientar o facto de as catego- os adjetivos mais vezes utilizados para
votos de pesar formais proferidos por en- rias terem sido elaboradas em função caraterizar a personalidade de Eusébio,
tidades e personalidades institucionais. das mensagens de pesar, e não conce- repetidos de forma transversal em quase
Assim, as mensagens recolhidas são de tualizadas previamente. Assim, foram todas as manifestações de consternação.
diversos tipos: comunicados oficiais por identificadas cinco categorias: persona- Eusébio da Silva Ferreira ganhou a
parte de órgãos de Estado, organismos lidade; atividade desportiva; símbolo na- eternidade. Deixou-nos a marca de um
públicos, partidos políticos e clubes cional; condição colonial; africanidade. talento sem par, a memória da simplici-
desportivos; outras são pequenos textos Como se subentende pelas designações, dade e da humildade própria dos gran-
de opinião publicados por personali- a primeira categoria remete para os tra- des homens e o estímulo do seu exemplo
dades públicas na comunicação social; ços de personalidade do jogador; a se- (Assembleia da República).14
a maioria são comunicações proferidas gunda para o seu desempenho enquanto
por individualidades diversas quando futebolistas; a terceira para o que isso Homem afável e amável, determina-
solicitadas pela comunicação social; e representou para o País; a quarta para do pela circunstância da sua inteira
ainda, pequenas mensagens, publicadas o contexto social e político em que Eu- e intacta até ontem, simplicidade.
nas redes sociais por atuais e ex-futebo- sébio atuou; e a quinta e última catego- A mesma de quando ele aterrou em
listas, e reproduzidas na comunicação ria remete para as origens africanas do Lisboa, vindo do mais belo lugar do
social. Apesar dessas mensagens serem jogador, sendo que a conjugação destas desaparecido Império e começou a
essencialmente proferidas por entidades mensagens permite uma imagem nítida tocar na bola como nunca víramos.
ou personalidades portuguesas, há ou- do mesmo enquanto herói desportivo. Mas não é senão essa circunstância
tras que são de origem estrangeira. que fez a sua espantosa diferença: o
Importa referir que, dada a impossi- a) Referência à personalidade
bilidade de apresentar todas as mensa- Diz um provérbio português que 14 Voto de pesar da Assembleia da República,
subscrito por todos os partidos com assento
gens na íntegra, apenas se assinalam as “bom serás se morto estás”. Na morte, parlamentar em 6 de janeiro de 2014. [url:
http://app.parlamento.pt/webutils/docs/
consideradas mais significativas, e mes- Eusébio também não fugiu a esse dito
doc.pdf?path=6148523063446f764c32
mo estas são-no de forma parcial. Estas popular. O tema dominante das condo- 52686347786c62693932623352766331
395953556b764d545934583168 4a53
mensagens foram tratadas através de lências foi a referência aos traços posi-
533577 5a47593d&fich=168_XII.pdf&In-
uma metodologia qualitativa de análise tivos da sua personalidade. As origens line=true, consulta 22 de maio de 2015].

73
dono do génio não era contaminável to da idolatria, conservando-se humilde, cas. Num consenso generalizado sobre a
pela poção tóxica da glória mesmo mantendo uma vida familiar comum à humildade e bondade de Eusébio, Mário
que quase só tivesse havido glórias. de outros cidadãos, é interpretado como Soares assinala aspetos menos positivos,
O mito não era corrompível, mesmo uma qualidade que o converte num como seja a sua “pouca cultura” ou o
quando mundialmente mitificado. exemplo. Estas afirmações são em tudo gosto que teria por whisky, o que susci-
E porque era simples, acreditava semelhantes à imagem que, nos anos 60, tou uma indignação popular, em particu-
(Maria João Avilez, escritora e a imprensa, e em particular a revista Fla- lar nas redes sociais, com acusações de
jornalista).15 ma, passaram do Eusébio, nomeadamen- insensibilidade para com a situação, e
te quando da prestação do serviço militar, entre outras, o facto de Mário Soares ter
O grande exemplo de Eusébio é o do casamento, do nascimento das filhas, sido um dos protagonistas do processo
exemplo de simplicidade e simpatia da vida em família. Um homem exem- de descolonização, o que o deslegitima-
de alguém que, tendo granjeado a plar, a servir de modelo a todos os outros. ria para se pronunciar sobre o jogador.
fama que granjeou, nunca perdeu a
capacidade de ser simples e de falar Foi um grande futebolista, uma b) Pseudónimos da atividade
e tratar todos de igual maneira. É pessoa bem formada e fiquei sempre desportiva
um exemplo para todos e para todas com a ideia de que era um homem Ao longo da década de 60, o futebol
as gerações (Luís Marques Guedes, muito modesto e muito simpático português conhece finalmente o êxito
Ministro da Presidência e Assuntos (…). Era um homem bom, um ho- internacional, ao nível de clubes e da
Parlamentares, com a tutelava da mem agradável, com pouca cultura. Seleção Nacional. Primeiro, por inter-
pasta do desporto). 16
Evidentemente, não se estava à espe- médio do SL Benfica que vence a Taça
ra que fosse um pensador, estava-se dos Campeões Europeus em 1961 e
A simplicidade de Eusébio vai de par à espera que fosse um grande homem 1962, participando ainda em mais três
com o facto de ter resistido às tentações do futebol, o que foi (Mário Soares, finais da mesma competição, em 1963,
do mediatismo e da fama. Um indivíduo ex-Presidente da República). 17
1965 e 1966. Em segundo, pela vitória
que nada tinha e que de repente passa a do Sporting CP na Taça das Taças, em
tudo ter, não caindo no deslumbramen- As declarações de Mário Soares so- 1964. E depois, pelo sucesso da Seleção
bre Eusébio viriam a revelar-se polémi- Nacional que se qualificou para a fase
P úblico, 7 de janeiro de 2014
15  final do Campeonato do Mundo de In-
16 Declaração à Rádio Renascença, em 5 de 17 Declarações proferidas à RTP, no dia 5 de glaterra, em 1966, tendo alcançado um
janeiro de 2014 [url http://rr.sapo.pt/bola- janeiro de 2014 [url: https://www.youtube.
inesperado terceiro lugar. O sucesso
branca_detalhe.aspx?fid=42&did=134582, com/watch?v=w0B81MeDC-o, consulta em
consulta 23 de maio de 2015]. 15 de maio de 2015]. deste período deve-se à conjugação de
várias circunstâncias: a profissionaliza- jogador português de todos os
ção do futebol nacional; a construção de Descansa em paz, King” (Nuno tempos. Revela-se interessante
infraestruturas desportivas; contratação Gomes, ex-jogador do SL Benfica). que Cristiano Ronaldo, o joga-
de treinadores estrangeiros; intensifica- dor português com mais títulos
ção no recrutamento de jogadores afri- The King! Grande perda para pessoais a nível internacional, e
canos. Eusébio foi o maior protagonista todos nós! O mais grande! (Luís um dos que a nível mundial foi
desta era dourado do futebol nacional. O Figo, ex-futebolista internacional mais vezes laureado com o título
currículo pessoal e coletivo é ilustrativo português, considerado o melhor de melhor do mundo, não tenha
dessa relevância: onze vezes campeão do mundo em 2001). condescendido nessa entroniza-
nacional, cinco Taças de Portugal, uma ção de Eusébio, atribuindo-lhe
Taça dos Campeões Europeus, um cam- Perdeu-se o melhor jogador que vi, sim a “eternidade”, mas não lhe
peonato americano. Seria numa ocasião de todos os tempos (…). Foi o melhor reconhecendo o estatuto de “rei”
Bola de Ouro (melhor jogador europeu do mundo. (Fernando Chalana, ex- ou de “o melhor”, como se esti-
do ano), e por duas vezes “vice” Bola -jogador do SL Benfica e da seleção vesse a reservar essa dimensão
de Ouro. Ganhou duas Botas de Ouro, nacional). para si próprio.
trofeu atribuído ao melhor marcador de
campeonatos na Europa, e sete Botas Sempre eterno Eusébio, descansa em Também o Sporting CP e o FC
de Prata por ser o melhor marcador do paz (Cristiano Ronaldo, na altura Porto, ancestrais rivais do SL Benfica,
Campeonato Nacional. Foi três vezes o jogador do Real Madrid e seleção onde Eusébio fez quase toda a sua car-
melhor marcador da Taça dos Campeões nacional). reira de futebolista, emitiram lacónicos
Europeus. Foi o melhor marcador do comunicados de pesar, fazendo questão
Campeonato do Mundo de 1966. Por “King”, “Pantera Negra”, “Rei de assinalar que Eusébio não foi o king,
isso, muitas das manifestações de pesar dos Magriços” foram alguns mas “um”, entre outros dos maiores
recordaram essa dimensão gloriosa do dos cognomes atribuídos. To- símbolos do futebol e/ou do desporto
jogador. dos os jogadores que com ele português.
Há muitos príncipes no futebol, mas conviveram, ou que com ele
reis há poucos, Eusébio é rei (Toni, compartilharam o gosto pelo (…) um dos símbolos do desporto na-
ex-jogador do SL Benfica).18 futebol, ao invocarem esses cional” (comunicado do Sporting CP).19
epítetos, estão a atribuir-lhe o
18 Esta citação, juntamente com as duas se- 19 Esta citação, juntamente com a seguinte,
trono do futebol nacional, re-
guintes, é do jornal A Bola, de 6 de janeiro está no jornal A Bola do dia 6 de janeiro
de 2014. conhecendo-o como o melhor de 2014.

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(…) um dos maiores símbolos da (Jerónimo de Sousa, secretário-geral aquele que melhor representava a sele-
modalidade. O maior jogador por- do Partido Comunista Português). ção nacional e o país. Por isso, quando
tuguês da sua geração (comunicado morre, essa dimensão simbólica é uma
do FC Porto). Nestas mensagens está explicito a das características mais invocadas.
consequência do desempenho superlati-
O reconhecimento da dimensão vo do jogador, permitindo que o desporto Eusébio levou a bandeira de Por-
desportiva de Eusébio aconteceu tam- nacional, e em particular o futebol, se tugal e o nosso orgulho aos quatro
bém pelas instâncias desportivas na- emancipassem da sua condição pouco cantos do mundo. (Pedro Passos
cionais, bem como por outras entidades relevante e se transformassem em enti- Coelho, Primeiro Ministro)21
extradesportivas. dades consideradas internacionalmente.
Estas mensagens remetem para o papel Para Portugal e para os Portugue-
O exemplo do Eusébio perdurará relevante que Eusébio teve nesse pro- ses Eusébio é muito mais do que
para sempre. Será o grande obreiro cesso, sendo estes os factos que mais um jogador de futebol. É símbolo
da nossa Seleção e do Benfica, no contribuíram para conferir consistência nacional, é símbolo agregador da
período em que foi jogador. Foi ele heroica ao jogador. nossa memória coletiva. Eusébio
que colocou o futebol português no foi, Eusébio é embaixador de Por-
panorama mundial e felizmente c) Símbolo nacional tugal; um dos grandes da nação:
temos conseguido mantê-lo assim. Ao segundo jogo pela seleção por- irrepetível, marcante, incontornável
O Eusébio marca esta viragem na tuguesa, em Wembley, um jornalista (Assembleia da República).22
visibilidade que Portugal ganhou, britânico alcunhou Eusébio de Pantera
personifica aquilo que somos hoje. Negra. Nesse jogo, dos onze jogadores Pelo reconhecimento internacio-
(Mário Figueiredo, presidente da nacionais, apenas dois tinham nascido nal, pelo estatuo de figura pública,
Liga Portuguesa de Futebol). 20 em Portugal. Havia um jogador brasi-
P úblico, 6 de janeiro de 2014.
21 
Foi um símbolo maior do desporto leiro, e todos os outros eram naturais
22 Voto de pesar pela Assembleia da Re-
nacional, reconhecido em todo o de África. Esta era a imagem ideal para pública Subscrito por todos os partidos
mundo pelo seu percurso no clube sustentar a retórica do Estado Novo: a com assento parlamentar em 6 de ja-
neiro de 2014. Website do Parlamento
que representou – o Sport Lisboa e de um país grande, ultramarino, plural e [url: http://app.parlamento.pt/webutils/
docs/doc.pdf?path=6148523063446f7
Benfica – e na selecção nacional multirracial. Eusébio era, de todos esses
64c3252686347786c62693932623352
jogadores, aquele que pelo desempenho 766331395953556b764d54593458316
20 A Bola, 5 de janeiro de 2014 [url: https:// 84a535335775 a47593d&fich=168_XII.
futebolístico e pela sua vida pessoal, me-
www.abola.pt/nnh/ver.aspx?id=451477, pdf&Inline=true, consulta 22 de maio
consulta em 6 de janeiro de 2014]. lhor encarnava o ideal da assimilação, de 2015].
pelo facto de ter um espaço especial entre os melhores. (Luís Montene- tempo amplo que medeia entre 1961,
nos afetos dos portugueses, invoca-se gro, deputado do PSD). 23
ano em começou a jogar pelo SL Ben-
a capacidade de representar os portu- fica, e 1975, ano em que vai para a
gueses e o país. Não se refere agora As mensagens desta categoria sur- América do Norte. Vindo de Moçam-
a extensão do Portugal ultramarino, gem como consequência das anteriores bique, Eusébio foi produto e conse-
mas sim a larga comunidade portu- mensagens. Na simbiose entre desporto quência de todas as circunstâncias
guesa em diáspora, e a forma como a e nação, os triunfos conseguidos por Eu- políticas, sociais, económicas e cultu-
figura de Eusébio constituiu um elo sébio para o futebol português são tam- rais que determinaram a dinâmica da
de ligação dessas pessoas ao território bém vitórias simbólicas dos portugueses sociedade portuguesa. Apesar da sua
nacional. e de Portugal, permitindo que o país não recusa em se envolver politicamente,
apenas surja internacionalmente, mas Eusébio foi sendo apropriado pelo
Um elemento de ligação grande que o faça de forma honrosa. E por isso Estado e utilizado para veicular uma
entre a comunidade portuguesa, Eusébio é “símbolo” de Portugal e dos imagem unificada do império, e um
entre os 10 milhões de portugueses portugueses. Símbolo cuja imagem foi ideal de integração. Esta dimensão po-
que vivem em Portugal e os cinco apropriada ideologicamente para veicu- lítica, juntamente com a condição de
milhões de portugueses que vivem lar uma ideia de portugalidade. africano assimilado, são mitigadas nas
no estrangeiro. Se há figuras que mensagens de pesar, sendo apenas as-
conseguem ser um elo de ligação d) A referência às sinaladas por políticos que valorizam
entre toda esta comunidade, Eu- circunstâncias políticas o papel do jogador no contexto adverso
sébio é, seguramente, uma delas. O tempo glorioso de Eusébio foi do Estado Novo.
É também por isso um vulto que o tempo da guerra colonial, do colo-
contribui para que mantenhamos nialismo português tardio, do Estado Eusébio, natural de Moçambique,
viva a nossa identidade e a nossa Novo, da Primavera Marcelina, do 25 tornou-se uma referência universal
língua, é uma inspiração para os de Abril de 1974 e da revolução. Um de Portugal e da Lusofonia. Nos
nossos jovens, que veem nele um tempos trágicos da ditadura, que
exemplo a seguir, e é, naturalmen- conduziu uma guerra colonial,
23 Sessão plenária da Assembleia da Repú-
te, uma inspiração para todo o blica, realizada em 10 de janeiro de 2014 racista, Eusébio emergiu como um
[url: http://debates.parlamento.pt/catalogo/
País, para acreditarmos que temos símbolo de identidade popular e na-
r3/dar/01/12/03/ 035/2014-01-10/42?pgs=
capacidade, em qualquer domínio, 38-43&org=PLC&plcdf=true, consulta em cional que se manteve intocável até
6 de junho de 2015]. As citações que se
quando sabemos fazer as coisas aos nossos dias (Alberto Martins,
seguem têm a mesma fonte desta nota de
bem, para estar nos melhores de rodapé. deputado do PS).

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Foi no Mundial de 1966, à medida representou todo o povo português pública. Rapidamente convertido em
que os adversários se rendiam às suas na vontade de “romper o isolamen- património nacional, a sua condição de
fintas e ficavam para trás nas suas to” e de se afirmar no mundo (Pedro moçambicano e africano foi sendo sone-
acelerações, que o mundo também se Passos Coelho, Primeiro Ministro). 24
gada para o apresentar como Português,
rendeu a Eusébio e que ele mostrou ainda que negro. Era essa condição que
como conseguiu fintar um regime que Nestas mensagens que remetem fazia dele um exemplo social e um ar-
lhe deixava um futuro muito mais para o contexto social e político dos tem- gumento político. Por consequência, não
sombrio. E, ao fazê-lo, deu a um povo pos áureos do jogador, ainda que se alu- estranha que, nas mensagens produzi-
mergulhado na ditadura a alegria da aos tempos difíceis do Estado Novo, das quando da sua morte, a africanidade
de que tanto precisava (Pedro Filipe da ditadura, da guerra colonial, do isola- de Eusébio quase não seja considerada.
Soares, Bloco de Esquerda). mento, não se refere o contexto colonial Assinalou-se o facto de ser um homem
que proporciona a apropriação nacional simples e bom, o melhor dos futebolis-
É assinalado, ainda, o papel social e de Eusébio, nem tão pouco se assinala tas, que representou Portugal, mas são
político de Eusébio enquanto futebolis- o processo de patrimonialização pelo escassas as referências ao facto de ter
ta, relevante para dar visibilidade à si- regime quando se afirma que “Eusébio sido o mais importante dos futebolistas
tuação de fascismo vivida em Portugal, é património de Estado”. As mensagens africanos. As poucas referências são fei-
para dar esperança de tempos melhores, colocam Eusébio no “lado certo” da his- tas quase exclusivamente por africanos.
para quebrar o isolamento social. tória, como se o seu desempenho futebo-
lístico tivesse sido uma outra forma de Kanimambo, Eusébio, por seres a
Se nós, portugueses, demos, noutros afrontar o regime, ignorando polémicas minha fonte de inspiração. Deixei a
tempos, mundos ao mundo, Eusébio sobre a neutralidade política do jogador. nossa terra para seguir os teus pas-
ajudou, e muito, a levar Portugal ao sos. Até sempre, pantera moçambi-
mundo, a todo o mundo, a todos os e) Africanidade cana. (Armando Sá, ex-jogador do
mundos, o que ganha ainda maior No Portugal “orgulhosamente só” Benfica)25
relevância se tivermos em conta que dos anos 60, Eusébio foi o primeiro
entre nós reinava, então, o “orgu- negro a adquirir o estatuto de figura O Presidente da República de Mo-
lhosamente sós” (José Luís Ferreira, çambique, Armando Guebuza, ao fazer
deputado do Partido Os Verdes). a exaltação de Eusébio, acentua as suas
24 E xpresso, 5 de janeiro de 2014 [url: http://
expresso.sapo.pt/desporto/um-genio-do- origens e de como daí partiu à conquis-
futebol-e-homem-generoso-destaca-pas
Com o seu talento, com a sua de-
sos-coelho=f848998, consulta em 8 de
dicação, com o seu carisma […] janeiro de 2014]. A Bola, 6 de janeiro de 2014.
25 
ta do mundo. Não deixa de ser notório apropriação da dimensão simbólica Amada. (Afonso Dhlakama, Pre-
que nessa mensagem não é feita alu- do jogador. Mafalala, Moçambique sidente da RENAMO). 27
são a Portugal ou a qualquer entidade e África ocupam o lugar que em
portuguesa. anteriores mensagens foi atribuído É interessante a expressão de pesar
a Portugal. Ou seja, se Eusébio se do Presidente da República de Cabo
Nascido no chão da nossa terra, a constituiu como símbolo de Portugal, Verde, que envia simultaneamente para
25 de Janeiro de 1942, Eusébio da também não deixou de ser símbolo os seus congéneres moçambicano e por-
Silva Ferreira, com os seus pés nus, africano e moçambicano, ainda que tuguês, duas mensagens sensivelmente
construiu, a partir da nacionalista, estas dimensões tenham sido mitiga- com o mesmo conteúdo, mas com li-
desportiva, poética, artística e mul- das ou simplesmente ignoradas nas geiros pormenores diferenciadores. Por
tifacetada Mafalala uma carreira mensagens proferidas pela generali- exemplo, na mensagem dirigida ao Pre-
que viria a torná-lo uma referência dade dos portugueses. sidente Português assinala que:
incontornável na rica geração dos
futebolistas moçambicanos e de ou- Eusébio da Silva Ferreira, futebo- Num mundo caracterizado por exa-
tras partes do globo do seu tempo. lista moçambicano que conheceu cerbadas divisões de toda a ordem,
[…] o Pantera Negra projectou o o auge da sua carreira militando Eusébio conseguiu ser um factor de
nome desta Pátria de Heróis à es- no futebol português. […] Este união de dimensão quase universal,
cala planetária. Ao mesmo tempo, homem, transportando Moçam- relativizando contingências como a
demonstrou que, com auto-estima, bique no coração manifestou o cor da pele ou o local de nascimen-
determinação, criatividade e muito desejo de ver o seu caixão cober- to, transformando-se num grande
trabalho nós, moçambicanos, pode- to de três bandeiras distintas, a símbolo de Portugal e do mundo.
mos realizar os nossos sonhos, trans- moçambicana, portuguesa e do
formando desafios em oportunida- Sport e Benfica. […] O Presiden- Contudo, na mensagem dirigida ao
des. (Armando Guebuza, Presidente te Afonso Dhlakama e o Partido Presidente Moçambicano, em quase
da República de Moçambique). 26
RENAMO apresentam à Família tudo idêntica à do homólogo português,
do futebolista Eusébio da Silva omite o “grande símbolo de Portugal e
Nestas mensagens pode vislum- Ferreira, aos moçambicanos e ao
brar-se uma eventual tentativa de Sport Lisboa e Benfica as mais
27 Mensagem de 6 de janeiro de 2014 [url:
sentidas condolências. Estamos http://doczz.com. br/doc/486043/mensa-
26 In A Bola online [url: http://www.abola. gem-de-condol%C3%AAncias-pela-mor
imensamente gratos pela prestação
pt/nnh/ver.aspx?id=451321, consulta a 7 te-do-eus%C3%A9bio-da, 7 de janeiro
de janeiro de 2014]. deste querido filho da nossa Pátria de 2014].

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do mundo”. Numa das mensagens dá em lágrimas o relvado de Wembley, após herói inusitado, não apenas pelo que fez
os pêsames a todos os moçambicanos, a derrota de Portugal com a Inglaterra. enquanto futebolista, mas também pela
na outra a todos os portugueses. Estes Muitas interpretações se fizeram sobre sua vida de sucessivas ruturas biográfi-
pormenores revelam as suscetibilidades o simbolismo dessas lágrimas, mas, em cas, e pela forma como essa existência
diplomáticas que a imagem de Eusébio primeira instância, esse é o choro de um foi instrumentalizada enquanto argu-
ainda suscita, mesmo depois de falecido. homem simples que sabia jogar à bola. mento político-ideológico.
Quando questionado sobre não ter ga- Na hora da morte de Eusébio falou-
nho o Mundial, Eusébio diz: “Foi por -se do homem e jogador que foi, bem
Conclusão: os futebolistas isso que olhei para cima, que me caíram como da sua importância para o futebol
também morrem as lágrimas”. 28
e para o país. Pouco se falou de outras
Eusébio morreu! Eusébio, o king, o Essa habilidade para jogar à bola circunstâncias relevantes como sejam
jogador que veio de Mafalala para Lis- converteu Eusébio no símbolo maior a sua condição de africano, a sua coe-
boa e se tornou campeão nacional, cam- do “f” de Futebol, um dos “f’s” da tri- xistência num regime fascista, a questão
peão europeu, que conquistou o país e logia alienante do Estado Novo, a par colonial. Estes também foram sempre te-
o mundo, morreu em 1980 quando dei- dos “f’s” de Fátima e Fado. Produto das mas aos quais Eusébio se esquivou. Es-
xou de jogar, e foi a enterrar em 2014. circunstâncias, as lágrimas de Eusébio tiveram latentes ao longo de toda a sua
Os jogadores de futebol morrem quando em Wembley, nessa tarde de 1966, não existência, mas com a discrição das cir-
abandonam os relvados. Poderão depois são simplesmente lágrimas. São tam- cunstâncias, foram sendo escamoteados.
ser qualquer outra coisa, e viverem até bém o sal de uma relação extractivis- Não estranha, pois, que todos aqueles
das memórias dos tempos de futebolis- ta da metrópole para com as colónias. que se pronunciaram nas mensagens de
tas, mas já não existem como tal. Foi o Um africano a chorar por Portugal é o pesar tenham optado pela repetição das
que aconteceu a Pelé e Maradona, que exemplo ideal do luso-tropicalismo, o mesmas narrativas produzidas no seu
acontecerá a Ronaldo e Messi, e Eusé- argumento perfeito para invocar um período de glória. Esta situação não foi
bio não foi exceção. Portugal ultramarino. Como diz Galea- nova, havendo como que uma replicação
Por muito que se queira fazer de Eu- no, “foi um africano de Moçambique do que havia sucedido em 1999, quando
sébio um ser transcendente, será sempre o melhor jogador de toda a história de do falecimento de Amália Rodrigues, o
um homem comum, um moçambicano e Portugal. Eusébio…” (Galeano, 2002, símbolo maior do “f” de Fado. Também
português, como todos os outros. Essa p. 139). Eusébio, um moçambicano por aí a exaltação da cantora aquando da sua
espessura humana está presente numa natureza, português por colonização, um morte foi uma etapa conducente à entro-
das mais simbólicas imagens do futebol nização com a transladação dos seus
português, quando em 1966 abandona 28 E xpresso, 12 de novembro de 2011, p. 46. restos mortais para o Panteão Nacional.
O mesmo sucederia com Eusébio, com Archetti, Eduardo (2001). The Spectacle Lanfranchi, Pierre; Taylor, Matthew (2001).
a transladação dos seus restos mortais of a Heroic Life. The Case of Diego Moving with the ball. The migration of
para o Panteão Nacional em 2015, numa Maradona, in Andrews, D e Jack- professional footballers. Oxford: Berg.
nova fórmula de patrimonialização de son, S. (eds.) Sports Stars. London: Meneses, Maria Paula (2010). O “indígena”
Estado. Routledge. africano e o colono “europeu”: a cons-
Ser celebrado na morte como o foi Carvalheiro, José Ricardo (2011). Desportis- trução da diferença por processos le-
em vida, recorrendo às mesmas adjetiva- ta africano ou símbolo de uma nação gais. E-cadernos CES, 7, 68-93.
ções e metáforas, às mesmas referências europeia? – Media, desporto e guer- Reis, Carlos (2013). The Special One. Feno-
e ausências discursivas, como havia sido ra colonial nos anos 60. In Moisés L. mologia do herói desportivo. Comuni-
feito cinquenta anos atrás, não causa Martins, Rosa Cabecinhas e Lurdes cação & Educação, 18 (2), 63-74.
surpresa. A sua espessura de herói cons- Macedo (eds.), Anuário Internacional Santos, Ana (2004). Eusébio, o processo de
tituiu-se ao longo da sua vida desportiva, de Comunicação Lusófona 2010: Lu- construção de um ícone da nação.
fundamentando-se numa narrativa que sofonia e Sociedade em Rede (pp: 223- Manifesto, nº 6, 80-91.
lhe conferiu sentido e transcendência so- 244). Coimbra: CECS/Grácio Editor. Santos, Boaventura de Sousa (2007). Para
cial. Repetida à exaustão, essa narrativa Castelo, Cláudia (2015). A mensagem luso- além do Pensamento Abissal: das
cristalizou-se, permanecendo inalterada -tropical do colonialismo português linhas globais a uma ecologia dos
desde os anos da glória, não estranhan- tardio: o papel da propaganda e da saberes. Revista Crítica de Ciências
do que seja novamente reproduzida nas censura. In Moisés L. Martins (ed), Sociais, 78, 3-46.
exéquias fúnebres. Contudo, a repetição Lusofonia e interculturalidade: pro-
dessa mesma narrativa pode revelar que messa e travessia (pp: 451-470). V. N.
o País, ao rever-se no que Eusébio re- Famalicão: Edições Húmus.
presentou, ainda que com algumas me- Coelho, João & Pinheiro, Francisco (2002).
tamorfoses, mantém ainda a nostálgica A paixão do povo. História do fu-
fantasia de um tempo que passou. tebol em Portugal. Porto: Edições
Afrontamento.
Galeano, Eduardo (2002). Futebol ao Sol e á
BIBLIOGRAFIA Sombra. Porto Alegre: L&PM.
Gammon, Sean (2014). Heroes as Herita-
Allen, Dean (2013). ‘National Heroes’: Sport ge: the commoditization of sporting
and the Creation of Icons. Sport in achievement. Journal of Heritage
History, 33(4), 584–594. Tourism, 9 (3), 246-256.

81
Olimpismo
Olympism

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