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A autobiografia de Alex Ferguson

José Pimentel Teixeira (blog ma-schamba, 22.1.2014).

Chegou-me de Joanesburgo o calhamaço. Pesado, grande, daqueles "capas-duras" que até custam a
transportar. Letra grande também, legível. Refiro isto sobre o objecto, "coisa-como-deve-de-ser"
para os compradores, para ligar com a primeira surpresa: a relativa pobreza iconográfica, o livro é
habitado por algumas fotografias (jogos, jogadores), nada imaginativas ou verdadeiramente
significativas, até pobres. Entenda-se, o primado da palavra, da palavra própria de Ferguson, que o
registo é o de uma longa entrevista. Nele centrada, o que não é defeito, pois, mais que não seja, trata-
se e titula-se de uma autobiografia.

O homem, símbolo do "manager", "mister" em português, fala de bola, de futebol. E fá-lo de um


modo interessante, fala de homens. Não há ali - e até podia haver - grandes elaborações tácticas (os
sistemas, os 4X3X3, 4X4X2, 4X2X2X2, "a pressão alta", as "linhas avançadas" etc e tal, tão queridos
dos comentadores da bola). Fala do jogo através dos jogadores que treinou, que contratou, que
cobiçou, que dispensou. Explicando o que quis deles, o que trouxeram para o jogo, o que
moldavam o jogo, o que não conseguiam. Fala também, como se en passant, como se constrói (ou
reconstrói) uma equipa: com jogadores, os certos segundo uma ideia que tem, mas a qual só se
percebe através deles, jogadores, e não através da lengalenga dos esquemas. Tudo isso deixa

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transparecer uma perspectiva do futebol (e é muito significativo que o livro termine com o extenso
rol de jogadores treinados por Ferguson no Manchester United - ainda que num texto destes fosse
mais bonito que integrasse todos os outros anteriormente treinados em outros clubes). Por isso é um
texto sobre homens, sobre jogadores (e claro que se torna mais interessante para um tipo que se
lembre, por exemplo, de um Viv Anderson do que para quem não tenha esses "cromos" na cabeça).
É certo que assim deixa espaço para leituras mais "distraídas", fulanizadoras, e logo as páginas dos
jornais se encheram das suas afirmações menos elogiosas sobre alguns dos jogadores: Bosnich ou
Keane, por exemplo, ou até mesmo Beckham.

Um ponto delicioso é a dimensão de fruição que Ferguson traz na sua visão do futebol. As cenas de
convívio, o seu culto do vinho, a referência aos outros que têm o culto do whiskie, a importância da
comida partilhada no final do jogo independentemente dos resultados havidos. Algo bem diverso do
silêncio sobre essas dimensões lúdicas, tão presente no discurso puritano sobre o desporto e o
futebol, em particular em Portugal. É tão significativo a sua memória de um incidente num jogo no
campo do Chelsea, em que refere, como cúmulo da agressividade, que no final da partida foram até
ao local comum do repasto sendo aí recebidos friamente, tendo-lhes sido dito "sirvam-se" face a
uma mesa com "os pratos de comida tapados e o vinho por desenrolhar". Ou os elogios à
construção dos novos estádios, exemplificando com o do Arsenal, que construíu uma excelente
mesa para as refeições comuns após os jogos. Claro que passa também por aí uma outra concepção
do jogo (e da sociedade), não como batalha campal ou guerra civil, como em tantos outros locais - e
não precisando de grandes discursos éticos ou moralistas para ser anunciada, apenas desta reflexão
"gastronómica".

Significativo também o facto de ali não discorrer sobre fenómenos cruciais da sua era: a globalização
do futebol, apoiado na onda de (tele)comunicações, que implica que todo o mundo siga o
Manchester United e os grandes clubes. E isso não acontecia na primeira década dele no MU, poder-
se-ia esperar algo dito sobre o processo. Nem mesmo sobre a abertura de fronteiras aos jogadores (a
lei Bosman e suas derivações) e a emergência dos investimentos internacionais, a chegada dos
presidentes "tubarões", magnatas de além-mar. Apenas um, egocentrado, comentário sobre o
aumento salarial que isso permitiu. Tudo bem, outros haverá para falar disso e Ferguson tem um
enorme e glorioso percurso para recordar, algo que todos os outros não têm. Justifica-se então a
opção por um discurso nesta linha de reflexão.

Depois há um outro ponto, digo-o lusocentrado. Para um português é muito interessante ver a
constante presença de referências ao futebol português, muitíssimo mais presente do que outro
qualquer contexto externo ao inglês (o próprio futebol escocês é apenas abordado enquanto
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memória, curta, do seu período de jogador e do início de treinador). Num livro com 25 capítulos
apenas dois são dedicados a outros treinadores: Wenger, seu rival durante quase duas décadas no
Arsenal; e Mourinho, seu rival durante dois anos e meio no Chelsea, muitíssimo elogiado! Apenas
dois locais de treino são indicados: o "Rochedo" (cliff), velho campo de treinos do clube, e Vale de
Lobos, considerado um sítio excepcional. Jorge Mendes surge elogiado como o melhor dos agentes
de futebol. Num livro onde abundam as referências ao vinho apenas um (julgo) é referido, e de que
maneira!, o "Barca Velha" com que Mourinho apareceu numa das (obrigatórias) visitas após o jogo.

Há ainda as referências a Carlos Queirós. E será interessante a recepção deste livro em Portugal,
onde o ex-seleccionador se veio a tornar alguém pouco querido (também um pouco pelas suas
declarações um bocado abrasivas, é certo). Pois Ferguson enche-o de elogios, põe-no nos píncaros -
desde a sua primeira impressão quando se conheceram ("Carlos chegou impecavelmente vestido
etc...") até ao reconhecimento das suas enormes capacidades, considerando-o não só o melhor dos
treinadores que conheceu como o seu natural sucessor no clube. Notório o facto de que Queirós é
não só referido em determinado momento, afirmando a sua excelência, como depois, ao longo do
livro, é presença recorrente. Seria interessante ver como tanta luminária da bola, que abomina
Queirós, mastiga estas afirmações de Ferguson.

Depois há ... Cristiano Ronaldo, a quem dedica um capítulo (e só cinco jogadores o merecem). O
velho "mister" considera-o, pura e simplesmente, o melhor jogador que treinou, ainda para mais
louvando-lhe a capacidade de trabalho, e lembra o encanto havido logo no jogo inaugural do novo
estádio de Alvalade, em que o puto encheu o campo. E há uma passagem fantástica, elucidativa do
trabalho de treinador, do que é o futebol, muito para além das abordagens "estruturalistas" dos ...
comentadores da bola. Ao lê-lo logo me surgiram memórias recentes. Leiam e vejam, não tenho eu
razão na associação, que me foi imediata?:

"I alway say to him: "When you're going through on goal, lenghten your stride." By lenghtening your
stride you slow yourself down and your timing is enhanced. When you're still sprinting, you have less
coordination in your body, but when you slow your mechanics down you give the brain a better
chance. He did that. You watch him." (p. 116)

Veja-se então http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=qOgWCtdc5xM

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