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Francisco Alambert

A reinvenção
dA SemAnA
(1932-1942)
“Se os ângulos de visão variam de uma geração para outra,
os problemas a se resolverem conservam eternamente os mesmos rótulos”
(Sérgio Milliet).

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dossiê Semana de Arte Moderna

RESUMO

A Semana de 22 é o mais importante “fato” da história da cultura moderna


no Brasil. Por isso ela possui uma existência histórica que lhe permite ser
inventada e desinventada, amada e odiada, reconstituída e desconstruída
em todos os momentos em que a história do Brasil moderno é colocada em
questão. A Semana tornou-se efeméride oicial e passou a ser reinventada
conforme os interesses e necessidades de cada época em que o Brasil teve
que repensar sua modernidade. É o que o artigo pretende demonstrar, par-
tindo da análise dos vinte primeiros anos da existência histórica da Semana.

Palavras-chave: modernismo, Mário Pedrosa, Antonio Candido, Paulo


Emílio, história da cultura, arte moderna.

ABSTRACT

The 1922 Modern Art Week is the most important “fact” of the history of modern
culture in Brazil. Because of that it can be invented and de-invented, loved or
hated, reconstructed or deconstructed every time Brazilian modern history
is under scrutiny. The Modern Art Week has become an official major event;
and has been reinvented to suit the interests and needs of each time Brazil has
had to rethink its modernity. That is what this article seeks to demonstrate by
analyzing the irst 20 years following the Modern Art Week.

Keywords: modernism, Mário Pedrosa, Antonio Candido, Paulo Emílio, history


of culture, modern art.
A
p ena s qu a r ent a tocrática de jovens burgueses antiburgueses,
anos antes da cé- dando-se a isso ora sentido positivo, ora ne-
lebre Semana de gativo. Praticamente ninguém, sobretudo os
Arte Moderna de próprios participantes, nega o fato de que a
1922, as questões Semana nasceu para ser mito, para ser criada
centrais do deba- e recriada, para ter caráter marcante e trans-
te brasileiro sobre formador. E que para isso a batalha deveria
cultura e política poderiam ser resumidas a continuar muito depois daqueles dias de fe-
estas: devemos ou não abolir a escravidão?; vereiro de 1922.
como fazer parte do “concerto” das nações” Portanto, não há uma história da Semana
e da lógica do trabalho livre, moderno e in- que não tenha que ser também uma história
dustrial?; a monarquia ou a república são as do século brasileiro da Semana. De como
formas políticas necessárias para um país li- esse século pensou seu ato originário e seu
vre e moderno?; culturalmente éramos meros mito. Não há por que não entender que a
copistas das ideias e das formas estrangeiras, história da Semana de Arte Moderna é uma
como queria Sylvio Romero, ou, ao contrário, guerra de interpretações e airmações que re-
incapazes de copiar, como queria Machado nascia todas as vezes, especialmente em seus
de Assis, e por isso mesmo condenados a in- aniversários decenais, em que ela era admi-
ventar e adaptar formas e ideias? rada e nas vezes em que era (ou é) achin-
A incrível proximidade histórica entre calhada. Se nos dias de fevereiro a resposta
1880 e 1920, que raramente é lembrada, mos- agressiva e barulhenta da plateia era parte da
tra tanto o quanto as coisas no Brasil podem performance tanto quanto o que acontecia
estar atrasadas quanto como elas podem se no palco ou nos salões, sempre que se fa-
acelerar muito rapidamente. Os modernistas, lou da Semana de 22, esse ato se refez. Pelo
todos nascidos entre ins da década de 80 e menos até o momento em que, por volta da
início da década de 90 do século XIX, são década de 1980, a Semana foi desaparecendo
mais “ilhos” desses debates do passado do como símbolo já quase secular para todas as
que apóstolos das novas ondas trazidas pela mudanças, estabilizado-se apenas como um
civilização industrial moderna. Dito de ma- evento histórico (ou como matéria de merca-
neira mais clara, eles forçosamente tinham do acadêmico, ou como desculpa para discur-
que se debater com ambas: com o passado sos bairristas, etc.). Desde então ela passou
recente que não passava e com o novo que a ser cada vez menos efusivamente come-
já tardava. morada, ainda que permanecesse como uma
Essas contradições e permanências são fantasmagoria a assombrar o sono dos vivos.
tanto a base da história da Semana de 22 A Semana é um fato sacralizado como
quanto são a matéria mesma da história do evento-símbolo da mentalidade renovadora e
Brasil. Por isso a Semana é o mais impor- moderna do Brasil. Repetir isso, destacando
tante “fato” histórico do Brasil moderno, do seu aspecto mais ou menos regressivo, como
ângulo da história da cultura. Por ser esse se fez nos anos 80 (e continua se fazendo até
fato, ela ganha uma outra existência, uma hoje), é tão válido e banal quanto repetir a
existência histórica. Ela é assim inventada e imagem de que os dias de fevereiro de 1922
desinventada, amada e odiada, reconstituída foram equivalentes aos dias de outubro de
e desconstruída em todos os momentos em 1917. Mais do que o rol de intrigas, o que
que a história do Brasil moderno, de suas interessa saber é que a história da Semana é a
FRANCISCO
utopias e distopias, precisa ser posta na or- história do nosso século querendo saber quem ALAMBERT
dem do dia ou no silêncio da noite. somos e para onde vamos – com mais ou me- é professor
de História Social
A Semana de Arte Moderna é entendida, nos desatino. O que sabemos, sem dúvida, é da Arte e História
quase consensualmente, como uma perfor- que os participantes começaram a escrever Contemporânea
do Departamento
mance em forma de ato de guerrilha aris- uma história de seu evento fundador elegen- de História da USP.

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do os pontos a se privilegiar que se tornaram parnasianas (ou idealistas, antitecnicistas e


desde então os pontos a serem airmados ou antimodernistas) representavam não apenas
negados. A partir daí, a Semana de Arte Mo- características estéticas ultrapassadas pela
derna tornou-se efeméride oicial e passou modernidade mas também características
a ser recontada e reinventada conforme os sociais recursivas que emperravam a moder-
interesses e necessidades de cada época em nização brasileira. A cidade “tentacular”, a
que o Brasil teve que (re)pensar sua moder- “pauliceia desvairada”, era o espelho da eufo-
nidade. É o que veremos a seguir, através ria e das mudanças aparentemente possíveis.
da análise dos vinte primeiros anos da exis- Por isso a ação performática e programática
tência histórica da Semana, ou de seu mito, da Semana, no ano das comemorações do
de suas comemorações e transformações. centenário da Independência, foi “paulista”, e
apenas por isso (o que não é pouco nem algo
II que possa ser desprezado por qualquer lógica
de “lutas de região”).
Em 1932, nos seus primeiros dez anos de Todos sabemos que o movimento mo-
existência, a Semana ainda reverberava como dernista foi contemporâneo do tenentismo,
fato vivo, que podia continuar para diferen- da fundação do Partido Comunista do Bra-
tes lados. Já então havia claramente, como sil e dos debates que levariam ao projeto da
sintetizou Sérgio Buarque em artigo célebre “Escola Nova”. Nesse momento, as transfor-
de 1926, um lado oposto mas também ou- mações nas artes, na educação, na política
tros lados (Holanda, 1996). Como se tornou e na vida urbana caminhavam próximas e
corriqueiro repetir, a polêmica ainda reinava davam a impressão otimista de um progresso
nos salões (da aristocracia, do Estado ou da contínuo. Se nos anos 20 a literatura (para a
classe média radicalizada). E isso era sinal de maioria) ou as artes plásticas (para alguns)
uma reviravolta brasileira ainda em processo, eram a “vanguarda” desse estado, na pri-
da qual a Semana foi parte e é muito difícil meira década de aniversário da Semana, a
de ser sintetizada. arquitetura passaria a ser a síntese desse sen-
Conforme entramos no século XX, po- timento erigido em pedra e concreto armado.
demos observar uma nova mudança no eixo O período que se estende entre as déca-
da produção intelectual mais adiantada (bem das de 30 e 40 faz surgir como igura cen-
como no domínio político do Estado), cons- tral o arquiteto: “o país foi mesmo por um
tituída nas cidades, se dirigindo em direção instante o paraíso dos arquitetos” (Pedrosa,
a São Paulo. No início do século, não ape- 1995, p. 237)1. Lúcio Costa é aqui a igura
nas o Estado mas principalmente a cidade mais importante, a outra face do modernis-
de São Paulo passavam por um processo de mo paulista de Mário de Andrade, princi-
crescimento econômico de grande escala palmente depois de assumir a direção da
proveniente dos negócios em torno do café. Escola Nacional de Belas Artes e promover,
Ao lado das mais provincianas tradições, a em 1931, o 38o Salão da Escola Nacional de
1 Esse ensaio de Pedrosa cultura mais ou menos europeizada (erudi- Belas Artes, quando pela primeira vez (des-
é um dos mais brilhan-
tes contraexemplos da ta, pedante e conservadora), acumulada em de a Semana de 22) surge para o público
forma de lembrança torno da Faculdade de Direito, e o clima tra- “brasileiro” no Rio de Janeiro a vanguarda
da Semana na época
da ditadura militar.
zido pela modernização técnica e urbana (e modernista e a arte moderna, ou seja, quase
Para uma importan- seus milhares de imigrantes vindos de todas exatamente na primeira década das come-
te reflexão sobre o
as partes do mundo) criaram em seu entre- morações da Semana 2. O caminho do mo-
impacto de 1930 na
cultura, ver Candido, choque uma nova geração de intelectuais e dernismo no Brasil, pelo menos até os anos
(1987a). artistas dispostos a transformar radicalmente 60, é sempre o resultado da tensa negociação
2 Sobre o Salão e seus o panorama cultural da República. Para os e aprendizado entre paulistas e cariocas, ou
desdobramentos para
a cultura, ver Souza
“modernistas”, especialmente os paulistas, seja, entre as novas formas estruturais do
(1980, pp. 249-50). as permanências simbolistas, românticas e capitalismo brasileiro moderno.

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Nessa reorganização (ou “rotinização”) e marxistas falaram, discursaram, expuse-
do modernismo pós-30, o Estado tem papel ram e panletaram. De performance aristo-
central, e disso resultam tanto a primeira crática, em 22, passava-se agora, em 32, a
atualização quanto o precoce envelhecimen- perfomance-comício. O rápido fechamento
to do ato performático da Semana de 22. Pois do CAM tem mais a ver com isso do que
o “ser moderno”, agora, “implicava a vontade com as estripulias morais ou experimentais
consciente de suplantar esse momento inde- que até hoje lhe trazem fama. Na verdade, a
ciso de manifestações vanguardistas avulsas” política como performance era parte decisiva
(Arantes, 1997, p. 119). A partir da capital fe- das estripulias. Para se entender isso seria
deral, e junto ao Estado (mesmo o “Novo”), preciso uma relexão maior sobre os cami-
o Brasil passaria a pensar uma face urbana e nhos da esquerda nos anos 30-40, para além
arquitetônica moderna, como uma identidade do dogmatismo do PCB e do nacionalismo
que lhe distinguisse, pois “sem uma história modernista de Mário de Andrade ou de Lú-
clássica – que fez reviver na Europa um estilo cio Costa, e na qual modernistas tributários
fascista classicizante nostálgico dos grandes de muitas das discussões a partir da Semana
impérios – éramos a própria matéria bruta de 22, como Flávio de Carvalho e Mário Pe-
da modernidade, já bem diagnosticada e tra- drosa, são centrais.
balhada por uma vanguarda local na década Em 1932 a Semana de 22 não podia ser
anterior” (Recamán, 2001, p. 220). Já aqui os literalmente comemorada porque seus fun-
preceitos da Semana morriam para renascer. damentos, sobretudo os mais progressistas,
Por outro lado, ela ainda estava viva o su- pareciam ainda estar em andamento. O
iciente para poder ser reinventada por outros CAM almejou até mesmo repetir a parce-
meios. Sem querer ser efeméride comemora- ria entre paulistas e cariocas, que marcara
tiva, mas também sem poder deixar de ser, o movimento de 1922. Os protagonistas do
em novembro de 1932 o arquiteto e multiar- grupo paulista e da Sociedade Pró-Arte, do
tista (ou seja, a Semana encarnada) Flávio de Rio de Janeiro, fundada em 1931 (sobretudo 3 A “Diretoria” do CAM
Carvalho, junto com alguns “veteranos” da por judeus alemães), tentavam estabelecer contava com, entre
outros, Anita Malfatti,
década anterior e outros mais novos, fundou uma aliança modernista mais ampla. Junto Noêmia Mourão, Tar-
o Clube dos Artistas Modernos (o CAM). com o CAM, a sociedade carioca, então di- sila do Amaral, John
Graz, Yvone Maia, An-
Seu intuito era criar uma “agremiação” de rigida por Guignard, idealizou uma espécie
tônio Gomide, Carlos
arte (e política) moderna que não dependesse de franquia de suas sedes a im de realizar Prado, Flávio de Carva-
da ajuda inanceira nem dos mecenas nem do exposições, tentar criar uma escola de artes lho, Procópio Ferreira,
Paulo Torres, Afonso
Estado3. Em entrevista ao jornal Folha da e ofícios junto a um retiro de artistas no Rio Schimidt, Paulo Prado,
Noite, Jaime Adour da Câmara declarava que de Janeiro e editar em conjunto uma revis- Sérgio Milliet, Caio
Prado Júnior, Yolan-
o CAM deveria, além de congraçar ta. Como primeiro resultado dessa parceria, da Prado do Amaral,
foi enviada a São Paulo, em junho de 1932, Baby C. Prado, Bea-
triz Gomide. Oswald
“[...] todos os artistas modernos, estimular uma mostra de obras da gravadora alemã e
de Andrade contava
reuniões, realizar palestras sobre assuntos de militante socialista Käthe Kollwitz, ante- como “associado”,
arte, procurar por todos os meios estar em riormente exibida na galeria carioca Heu- ao passo que Mário
de Andrade e Mário
perfeita ligação com todos os grandes cen- berger. Foi na versão paulistana da exposi- Pedrosa como “fre-
tros artísticos do mundo. Afora todas essas ção que Mário Pedrosa apresentou aquele quentadores”. Sobre o
CAM, ver: Forte (2008).
particularidades, o clube procurará facilitar que é considerado seu primeiro texto de
4 O título original da
a aquisição de modelos coletivos; em suma, crítica de arte, dando início à mais radical
conferência era “Käthe
tratar da defesa dos interesses da classe” (Câ- experiência crítica do pensamento brasilei- Kollvitz e o Seu Modo
mara, 1932). ro sobre as artes plásticas modernas 4. Em Vermelho de Perceber
a Vida”, mudado de-
sua plateia não havia burgueses ou aristo- pois para o deinitivo
O CAM era a Semana funcionando por cratas cosmopolitas esperando ou se escan- “As Tendências So-
ciais da Arte e Käthe
outros meios, e sobretudo muito mais à es- dalizando com choques e novidades. Mas Kollwitz” (cf. Pedrosa,
querda. No CAM, anarquistas, sindicalistas havia muitos daqueles para os quais a “re- 1995).

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volução” modernista tinha que assumir um vida e da festança em que nos desviriliza-
caráter efetivamente revolucionário, muito mos”, virando as costas à revolta “contra a
além dos salões e dos teatros municipais. vida como está”. Incapazes de ler de fato a
história e a política, deixaram de lutar pelo
III “amilhoramento político-social do homem”
(Andrade, 1974, p. 252).
Entre a primeira década do evento, em Talvez nunca um intelectual brasileiro te-
1932, e a segunda, em 1942, a primeira mu- nha lutado tão violentamente contra si mes-
dança na história da história da Semana de mo. Mas a lamentação era uma autocrítica e
Arte Moderna se processou. Se em 1932 a também uma ação programática. Pois uma
Semana parecia jovem demais para ser cele- “traição”, já cometida antes, era agora sor-
brada, em 1942 ela já parecia pronta para ser rateiramente indicada como uma estratégia
enterrada. As questões fundamentais desse de superação da derrota: “abandonei, traição
momento crítico eram: a) saber quem era o consciente, a icção, em favor de um homem-
defunto; b) saber quem eram seus herdeiros; -de-estudo que fundamentalmente não sou.
c) saber o que fazer com o legado de algo tão Mas é que eu decidira impregnar tudo quanto
novo e já tão envelhecido. Aos 20 anos de fazia de um valor utilitário, um valor prá-
idade, o espólio da Semana estampava uma tico de vida, que fosse alguma coisa mais
crise criativa e muito produtiva, na qual as terrestre que icção, prazer estético, a beleza
iguras dos dois Andrades, Mário e Oswald, divina” (Andrade, 1974, p. 254).
encarnavam duas maneiras de pensar a con- Mas nem tudo estava morto, e os vivos
tinuidade ou não da “revolução”. Se o ímpeto ainda poderiam caminhar adiante. Como
iconoclástico de 22 (ainda vivo em 1932) já se sabe, nesse mesmo depoimento, Mário
havia arrefecido, seus desdobramentos foram de Andrade sintetizou os três princípios vi-
tremendamente criativos. vos saídos da aventura modernista dos anos
Antes disso, porém, esses desdobramen- 1920: a) o direito permanente à pesquisa
tos foram precedidos por um sentimento do- estética; b) a atualização da inteligência ar-
loroso de derrota e crise, em plena ditadura tística brasileira; c) a estabilização de uma
do Estado Novo: “iz muito pouco, porque consciência criadora nacional (Andrade,
todos os meus feitos derivam de uma ilusão 1974, p. 242). Isso foi o resultado positivo de
vasta […] faltou humanidade em mim. Meu um “individualismo que arriscou”, mas cuja
aristocratismo me puniu. Minhas intenções continuidade agora, nas novas condições em
me enganaram”. Ou ainda mais trágico (e que se clama por uma renovada politização
não menos lúcido): “meu passado não é mais da inteligência (“Marchem com as multi-
meu companheiro. Eu desconio do meu pas- dões”), deve ser preferencialmente pensada
sado” (Andrade, 1974, p. 252). Era assim que em sentido “coletivo”. Eis o conselho, verda-
se sentia Mário de Andrade perto do inal de deiro programa para os ventos democráticos
sua vida, em 1942, em meio ao Estado Novo, que talvez viessem: para se manter o “direito
às incertezas da Segunda Guerra Mundial, à pesquisa estética” (aqui entendido como “o
do futuro do nazifascismo e diante da des- direito à cultura moderna”), para se prosse-
confortável posição de “líder” do vitorioso guir a “atualização da inteligência artística”
movimento de modernização cultural e polí- local e para se estabilizar uma “consciência
tica que parecia chafurdar, impotente diante criadora nacional”, era preciso pensar a cul-
desse quadro de regressão. Dedo em riste, tura e a arte para além do ímpeto estético (e
falando de outros tanto quanto de si mesmo, “aristocrático”) do primeiro modernismo. E
Mário de Andrade lamentava que com pou- tudo isso com a política – e com a política
cas exceções (nas quais ele mesmo não se para as “multidões” (mesmo que não haja
enquadrava) ele e os modernistas vitoriosos sinal de que a política seria para a “classe”
tivessem sido “vítimas do nosso prazer da como era para o CAM apenas uma década

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antes). Um peculiar chamado à passagem e de conlitos, não existe traço da crise de
da icção à prática, uma prática que será en- consciência de Mário de Andrade. A Oswald
tendida por alguns como uma nova prática pouco interessa o caráter aristocrático que
intelectual. E o lugar dessa prática não será Mário denunciava em sua conferência. Muito
nem o aristocrático teatro de ópera, nem o menos qualquer crise nacionalista.
salão burguês-proletário: será a universidade. Se a forte relação do modernismo com a
“Classe” era um conceito importante Europa não era motivo de vergonha para os
para o modernista, convertido ao marxismo, Andrades, ao contrário, “importar” o espíri-
Oswald de Andrade. Oswald não comemo- to modernista europeu, como deiniu Mário,
rou a maioridade (ou a morte) da Semana era essencial para “acertar o passo do Bra-
em 1942. Esperou uma oportunidade mais sil com o mundo”, como explicou Oswald,
prática, mas não menos alegórica. Em 1944, as semelhanças entre eles vão parando por
a convite do prefeito de Belo Horizonte Jus- aí. Oswald enumera exemplos do atraso da
celino Kubitschek, proferiu na capital minei- cultura brasileira que teriam sido varridos
ra a sua versão do “Movimento Modernista”, pelo ímpeto modernista, o que teria trazido
ligando “o caminho percorrido de 22 a 44”. o “povo” ao protagonismo da arte produzida
Ali, “na cidade perfeita”5, diante dos novos no Brasil. Ele exulta tanto suas reminiscên- 5 Tão perfeita era a ci-
aliados mineiros (não marxistas, mas fran- cias históricas quanto sua própria genialida- dade juscelinista que,
lá, o maior dos arqui-
camente desenvolvimentistas), ele deu sua de, exemplo para os jovens cuja missão será tetos do paraíso bra-
versão para o cenário de vinte anos antes: “abrir inteiramente a clareira”. Trabalho polí- sileiro da arquitetura
moderna, “o Gênio
tico, resultado de uma nova aliança que subs- arquitetônico de Os-
“É preciso compreender o modernismo com tituiria o velho café com leite da República car Niemeyer, faria a
única catedral capaz
suas causas materiais e fecundantes, hauridas Velha, que fez o modernismo acontecer, para
ainda de converter”.
no parque industrial de São Paulo, com seus a nova forma do Brasil depois do fascismo Nessa cidade sagrada
compromissos de classe no período áureo- e à beira da revolução: “Façamos da irma- do novo modernis-
mo, pregava ainda um
-burguês do primeiro café vaporizado, enim nação entre mineiros e paulistas, um fasto “santo ensinando as
com o seu lancinante divisor das águas que da fraternidade nacional. Façamos crédito à artes da pintura como
nos bons tempos do
foi a Antropofagia nos prenúncios do abalo união que se anuncia! Constatamos hoje que Renascimento”, Guig-
mundial de Wall-Street. O modernismo é um icaram marcados aqui, vinte e dois anos de nard, aquele mesmo
que doze anos antes
diagrama da alta do café, da quebra e da re- luta nesse trajeto. De São Paulo a Belo Hori-
tentou uma frustrada
volução brasileira”. zonte” (Andrade, 1972, p. 101). Para Oswald, aliança com os radicais
os modernistas verde-amarelistas e os libe- do CAM de Flávio de
Carvalho. A conferên-
Tudo isso para explicar que a Semana foi rais seguidores de Mário icaram no passado cia de Oswald é em
mais pré-antropofagia do que propriamente do Estado Novo. O futuro do Brasil seria a grande medida a mis-
sa do pregador bus-
modernista: “a Antropofagia foi na primeira retomada dele e de sua antropofagia, agora cando novos rebanhos
década do modernismo, o ápice ideológico, marxista, com os novos aliados das Minas (Andrade, 1972, p. 102).
O texto de Oswald
o primeiro contato com nossa realidade po- desenvolvimentistas. foi republicado em
lítica porque dividiu e orientou no sentido do No momento em que proferiram suas 1972, na esteira das
futuro” (Andrade, 1972, pp. 95-6). conferências, os Andrades já haviam pas- comemorações patro-
cinadas pela ditadura
E o futuro já havia chegado e estava em sado pela experiência de um engajamento militar, como de res-
Belo Horizonte, na arquitetura da Pampulha, político real. Mário, como um dos articula- to uma grande parte
das obras do primeiro
em Juscelino. Oswald compara a experiên- dores do Partido Democrático e como chefe modernismo e muitos
cia modernista paulista com a Inconidência da Divisão de Expansão Cultural, durante estudos fundamentais
sobre o tema.
Mineira e o movimento árcade, exalta o jo- o governo Vargas. Oswald, o homem sem
vem prefeito modernizador e as revoluções proissão, foi membro do Partido Comunis- 6 “É que a Antropofagia
salvava o sentido do
democráticas burguesas, apontando para a ta, agitou o mundo da província com Pagu, modernismo e pagava
continuidade do modernismo, da antropofa- escreveu radicalmente sobre política. Sem o tributo político de ter
caminhado decidida-
gia sobretudo, para orientar o destino do Bra- cargos e sem o desejo de construir o Esta- mente para o futuro”
sil6. Em sua história, cheia de continuidades do, Oswald permite-se ser otimista, ego- (Andrade, 1972, p. 97).

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cêntrico e utópico7: “É preciso, porém, que modernista Sérgio Milliet como o “homem-
saibamos ocupar nosso lugar na história -ponte” entre a geração de 22 e aquela que
contemporânea. […] O papel do intelectual ele mesmo representava. Mais do que isso,
e do artista é tão importante hoje como o do Milliet seria sua maior afinidade e o pon-
guerreiro da primeira linha”. A lembrança to inicial em que se baseou para deinir seu
de 22 de Oswald é tão autocentrada quanto próprio ideário crítico. Candido salientava as
a de Mário, mas é muito mais complacente qualidades do tipo de ensaísmo que Milliet
e otimista. Ele ainda quer formar exérci- introduzira entre nós: sua capacidade de cir-
tos (e nesse sentido está muito próximo do cundar problemas, evitando dogmatismos,
CAM). Depois de estabelecer o paralelo en- aguçando a relexão, engajando sua perso-
tre a Inconidência e a Semana de 22 como nalidade numa forma crítica que tateia “com
movimentos que queriam “acertar o passo liberdade os fatos e as ideias por meio do
com o mundo”, Oswald entende os desdobra- pensamento ‘que se ensaia’” (Candido, 1987,
mentos políticos posteriores, o tenentismo, a p. 131). Uma atitude que ensaiava ela mesma
Coluna Prestes e a Revolução de 30, como a possibilidade da crítica dialética que os
decorrência direta do caminho aberto pelos anos posteriores viabilizariam. Uma lição a
“semáforos de 22”. E daí faz seu apelo, sua que os participantes da revista Clima, funda-
versão para o “Marchem com as multidões” da em 1941 (pouco antes dos acontecimen-
de Mário: “Tomai lugar em vossos tanques, tos de 1942, portanto), darão continuidades
em vossos aviões, intelectuais de Minas. Tro- e desdobramentos.
cai a serenata pela metralhadora. […] Deini Além de Antonio Candido, Paulo Emí-
vossa posição! (Andrade, 1972, pp. 100-1). lio Salles Gomes foi outro jovem intelec-
Em um e em outro Andrade o apelo aos tual “pós-modernista” que fez história. Na
7 SilvianoSantiago(2006,
p. 116) observou que a jovens, aos seguidores, era um traço comum. verdade, suas ideias foram decisivas na for-
escolha de Oswald em Se a Semana envelhecia, caducava alienada mação intelectual de sua geração. Marxista
fazer a conferência em
1944 e não em 1942 e reacionária, que o futuro viesse. No mes- militante, exilado político, frequentador dos
signiicava uma estra- mo momento em que os Andrades de 22 círculos intelectuais radicais franceses, teó-
tégia para ao mesmo
tempo lembrar a via-
faziam seu jogo e suas apostas para que o rico dialético das vicissitudes da cinema-
gem dos modernistas movimento de superação modernista tomas- tograia nacional e seus impasses, o jovem
em 1924 às cidades se novo fôlego, já se encontrava em evolução redator de Clima tinha tudo para conquistar
históricas de Minas e
o próprio movimento o processo que formaria uma nova geração a atenção dos novos intelectuais, simpáticos
Pau-Brasil, ou seja, de de estudiosos e acadêmicos modernos, em ao ensaísmo de Milliet e aos clamores de
se colocar ele mes-
mo como centro do muito devedores da crise de consciência de Mário e Oswald. Mais do que isso, ele lhes
modernismo. Mas é Mário de Andrade, que o gênio desabusa- deu quase um plano de trabalho, bem como
preciso notar também,
como fez Oswald, que
do de Oswald de Andrade não hesitou em uma orientação política precisa, como se fora
havia outros passados apelidar de “chato boys”. Para o surgimen- ele o responsável por repensar o modernismo
a se relembrar: a tragé- to desse novo momento nos estudos sobre a em nome de sua geração depois da despedida
dia da Revolução de
1924, em São Paulo, e cultura brasileira foi de crucial importância de Mário de Andrade e da proposta de con-
“esse raide de semilou- a fundação da Faculdade de Filosoia da Uni- tinuidade crítica de Oswald.
cos que foi a Coluna”
Prestes. versidade de São Paulo, projeto acalentado Em 1943, já em plena ressaca das come-
8 Esse inquérito era
por modernistas, modernizadores e descen- morações de 1942, o jornalista Mário Neme,
acompanhado por ou- dentes progressistas dos oligarcas de 22. Sua provavelmente inluenciado pela conferência
tro, com os represen- principal consequência foi a formação de um de Mário sobre a crise do modernismo e as
tantes da geração mais
velha (fundamental- certo radicalismo intelectual, ou mais especi- tarefas da nova geração, realizou um inquéri-
mente os modernistas icamente, como disse Antonio Candido, um to publicado nas páginas do jornal O Estado
de diferentes verten-
tes), que foi também “modesto radicalismo que icou sendo uma de S. Paulo, que depois seria reunido em li-
publicado com o título tradição e tem produzido efeitos positivos” vro intitulado Plataforma da Nova Geração
tumular de Testamento
de uma Geração (Cava-
(Candido, 1980, p. 103). (1945)8. Nele, jovens críticos e escritores sur-
lheiro, 1944). Antonio Candido deiniu o poeta e crítico gidos nos anos 1940 eram questionados sobre

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Caixa Modernista, Edusp/Editora UFMG/Imprensa Oicial, São Paulo, 2003

Catálogo da exposição da Semana de 22, com desenho de Di Cavalcanti

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a herança recebida das gerações anteriores e intelectual propriamente liberal, no velho


sobre seus novos valores em estética, ciên- sentido da palavra. Ligados às atividades
cia e ideologia (além das relações disso tudo intelectuais da Fiesp, alguns jovens econo-
com a guerra mundial em pleno andamento). mistas são talvez o núcleo para uma futura
Sinal de tempos de mudança, percebida aliás corrente neoliberalista” (Paulo Emílio apud
por Milliet, o “homem-ponte”, que agora (ele Calil & Machado, 1986, p. 85).
anota em seu Diário Crítico, em 4 de julho Mas o que mais lhe interessa é a crise
de 1943) estaria “às vésperas da eclosão de da esquerda, ou mais precisamente entre
uma nova estética” (e, acrescento, de um novo “jovens intelectuais de classes médias e da
pensamento sobre a estética nas novas con- burguesia, que se exprimem ideologicamente
dições brasileiras). Uma nova geração pron- pela esquerda”. Jovens com “pouco menos
ta para o engajamento e para unir pesquisa ou pouco mais de 30 anos”, que se politiza-
cultural e atuação social: “a geração de 22 ram por volta de 1935 (época da intentona
falou francês e leu os poetas. A de 44 lê in- comunista, e antes do Estado Novo e depois
glês e faz sociologia” (Milliet, 1981, p. 109)9. do CAM), influenciados pelo marxismo,
Dentre os depoimentos da Plataforma pela psicanálise, pelo “pós-modernismo ar-
dos jovens intelectuais, o de Paulo Emílio tístico” no contexto da extensão da “superi-
se destacava pela admirável lucidez e pela cial” revolução de 1930. Para muitos deles, a
capacidade de organizar as questões decisi- “Rússia” se tornara uma “religião”. Isso era
vas do período e do que viria adiante. Desde apenas o resultado do nível teórico “muito
o início, ele deixa claro que fala do ponto baixo” dos comunistas. Apenas “meia dúzia”
de vista de um jovem intelectual paulistano teria um nível teórico avançado, porém al-
de esquerda (especialmente, da “elite inte- guns estavam “afastados”, enquanto os ou-
lectual” da cidade), mas que pertence a uma tros se refugiavam na oposição de esquerda
“nova geração” para a qual “não há unidade (ele talvez pensasse em Caio Prado e Mário
ideológica”. Entretanto, lhe parece certo que Pedrosa). Porém, essa nova esquerda capen-
naquele momento a direita está derrotada e gava em dois aspectos básicos: “ninguém
sobrevivendo em um clima de delírio, refu- nunca leu O Capital. Do Brasil não se sabia
giando-se em elogios tresloucados a “milita- nada”. Stalinistas ou trotskistas, por motivos
res argentinos” e se vendo “nos romances de diversos, “amavam a Rússia”, mas ninguém
Clarice Lispector”. Tudo sinal de um desvio “sabia pensar dialeticamente” (Paulo Emílio
da geração antecedente que, como Mário de apud Calil & Machado, 1986, pp. 85-7).
Andrade disse em sua conferência, e Paulo Esse era o contexto em que a sua geração,
Emílio repete em outros termos, perdeu o a geração de Clima, surgiu e no qual atuaria.
rumo da história: “a estrada do oportunismo Depois da crise do Estado Novo, dos mo-
é uma estrada real, e já foi trilhada por repre- dernistas e dos comunistas, inclusive de sua
sentantes ilustres da facção” (Paulo Emílio “religião”, a nova esquerda poderia surgir,
apud Calil & Machado, 1986, p. 82). gozando “a gratuidade e a disponibilidade”
Paulo Emílio é cauteloso em relação ao que lhe permitia “sua condição de classe”.
futuro. O fascismo poderia retornar por con- Isso tudo propiciou um novo processo de
9 Ou mais adiante: “os
velhos vão pela es-
ta da “confusão” da época, inclusive entre a crescimento e formação: “adquiriram uma
trada larga, os moços esquerda. Ele nota o recrudescimento do rea- seriedade e eicácia de pensamento que os
passam pela ‘porta cionarismo católico ao mesmo tempo em que diferencia logo em relação ao tom boêmio
estreita’” (Milliet, 1981,
p. 119). Sobre o mesmo a desilusão política e atinge desde a direita de Vinte-e-Dois”. Na medida em que viam a
assunto, mas sob outro até os comunistas. O certo é que o liberalis- Rússia dos “processos de Moscou” como um
ponto de vista, ver
Santiago (2006). Sobre mo seria o grande derrotado da época. Sobre pesadelo, tomaram a França como paradig-
as ideias de Milliet no isso, fez um prognóstico surpreendente que ma. A geração se une na ideia de acalentar a
período, ver Campos
(1996) e Gonçalves
os anos recentes realizaram de maneira efe- originalidade e a alternativa do modelo so-
(1992). tiva: “não há na nova geração nenhum setor viético, mas também se interessa pela críti-

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ca desse modelo feita pelo trotskismo (Paulo ternacionalista que permitiu o nascimento
Emílio apud Calil & Machado, 1986, p. 88). do nacionalismo russo. Agora que o nacio-
Nesse processo, o marxismo pode ser re- nalismo existe é que é possível contradizê-lo
visitado e, agora sob um prisma especulativo, e superá-lo pelo internacionalismo” (Paulo
não dogmático (ou seja, sem a “religião” rus- Emílio apud Calil & Machado, 1986, p. 92).
sa), repensado diante de uma nova situação
(o Brasil e sua história). Além de começar a Nesse ponto, ele está pronto para expres-
ler Marx e os marxistas clássicos, a geração sar a ideologia de sua geração: o nacionalis-
se aproxima da reinterpretação do marxismo mo precisa ser construído para ser superado
feita via pensadores (sobretudo sociólogos) não pelo simples internacionalismo, mas por
norte-americanos (por isso, como brincou um “pan-nacionalismo” (Paulo Emílio apud
Milliet, era preciso agora “ler inglês”). Abre- Calil & Machado, 1986, p. 93). Depois de es-
-se uma nova “época de estudos”, para a qual pecular sobre a possibilidade de surgimento
a América (seja a sociedade norte-americana dessa peculiar dialética entre nacionalismo
marcada pelas consequências da Depressão e internacionalismo em vários países, ter-
dos anos 1930, seja a sociedade periférica mina seu depoimento-plataforma pedindo
latino-americana) e seus problemas especí- abertura para esse debate. Clama (dando eco
icos serão o foco central. renovado aos clamores dos Andrades) para
Nesse verdadeiro programa de revisão que os jovens intelectuais deixem a “torre de
do pensamento modernista, e do próprio marim” e assumam as “questões de cultura”
pensamento marxista diante de uma história como sua responsabilidade. Sua tarefa maior
que ele desconheceu (a história dos países de deveria ser “participar do desaparecimento
origem colonial, periféricos e dependentes), de um Brasil formal e do nascimento de uma
o conceito-chave para ser posto sob o crivo nação” (Paulo Emílio apud Calil & Macha-
da dialética seria a velha questão, modernista do, 1986, p. 95).
aliás, do nacionalismo. E para explicar isso, Assim, a jovem geração universitária,
Paulo Emílio saca um exemplo inusitado: o filha do clamor do primeiro desenvolvi-
da “velha” Rússia. Antes da Revolução, ele mentismo da revolução de 1930, resolvia à
diz, a Rússia semifeudal não conhecia o na- sua maneira o chamado às armas de Mário
cionalismo. O internacionalismo era impor- e Oswald. Se não era a revolução das ruas,
tado do Ocidente. Mas no centro da Europa o que fosse a das ideias e das organizações.
clima era de revolução, sobretudo nos países Seria preciso refazer o projeto moderno para
derrotados na Primeira Guerra Mundial. Pa- o Brasil depois que a ditadura e o horror do
radoxalmente, com o fracasso da revolução fascismo se dissipassem. A cultura moder-
na Europa, surge o nacionalismo russo. E nista ganhava novo fôlego, depois de ser en-
aqui ele apresenta sua peculiar dialética da terrada por Mário e devorada por Oswald:
questão nacional: estudo e engajamento, politização e institu-
cionalização. A chave para as futuras come-
“Sem saber nada dos países capitalistas mais morações de 1952 e 1962 estava dada. O mo-
adiantados, o termo de comparação para o dernismo ainda teria uma longa sobrevida,
presente era o passado da própria Rússia. Daí que o golpe militar iria liquidar logo após a
o moral altíssimo que se notava em certos inauguração de Brasília, a mais espetacular
setores russos, sobretudo na mocidade. O criação do nosso penúltimo sonho moderni-
exemplo russo mostra como as ideias sobre zador. De 1972 em diante, as comemorações
nação e nacionalismo não foram abordadas da Semana de Arte Moderna já seriam con-
com inteira correção pelo marxismo. Nação sideravelmente diferentes e ela estaria pronta
e nacionalismo não estão necessariamente para morrer de novo sem garantia nenhuma
ligados à direção burguesa da sociedade. de que o melhor que pudesse oferecer amea-
Foi uma revolução operária de espírito in- çasse continuar renascendo.

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