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A reinvenção
dA SemAnA
(1932-1942)
“Se os ângulos de visão variam de uma geração para outra,
os problemas a se resolverem conservam eternamente os mesmos rótulos”
(Sérgio Milliet).
RESUMO
ABSTRACT
The 1922 Modern Art Week is the most important “fact” of the history of modern
culture in Brazil. Because of that it can be invented and de-invented, loved or
hated, reconstructed or deconstructed every time Brazilian modern history
is under scrutiny. The Modern Art Week has become an official major event;
and has been reinvented to suit the interests and needs of each time Brazil has
had to rethink its modernity. That is what this article seeks to demonstrate by
analyzing the irst 20 years following the Modern Art Week.
volução” modernista tinha que assumir um vida e da festança em que nos desviriliza-
caráter efetivamente revolucionário, muito mos”, virando as costas à revolta “contra a
além dos salões e dos teatros municipais. vida como está”. Incapazes de ler de fato a
história e a política, deixaram de lutar pelo
III “amilhoramento político-social do homem”
(Andrade, 1974, p. 252).
Entre a primeira década do evento, em Talvez nunca um intelectual brasileiro te-
1932, e a segunda, em 1942, a primeira mu- nha lutado tão violentamente contra si mes-
dança na história da história da Semana de mo. Mas a lamentação era uma autocrítica e
Arte Moderna se processou. Se em 1932 a também uma ação programática. Pois uma
Semana parecia jovem demais para ser cele- “traição”, já cometida antes, era agora sor-
brada, em 1942 ela já parecia pronta para ser rateiramente indicada como uma estratégia
enterrada. As questões fundamentais desse de superação da derrota: “abandonei, traição
momento crítico eram: a) saber quem era o consciente, a icção, em favor de um homem-
defunto; b) saber quem eram seus herdeiros; -de-estudo que fundamentalmente não sou.
c) saber o que fazer com o legado de algo tão Mas é que eu decidira impregnar tudo quanto
novo e já tão envelhecido. Aos 20 anos de fazia de um valor utilitário, um valor prá-
idade, o espólio da Semana estampava uma tico de vida, que fosse alguma coisa mais
crise criativa e muito produtiva, na qual as terrestre que icção, prazer estético, a beleza
iguras dos dois Andrades, Mário e Oswald, divina” (Andrade, 1974, p. 254).
encarnavam duas maneiras de pensar a con- Mas nem tudo estava morto, e os vivos
tinuidade ou não da “revolução”. Se o ímpeto ainda poderiam caminhar adiante. Como
iconoclástico de 22 (ainda vivo em 1932) já se sabe, nesse mesmo depoimento, Mário
havia arrefecido, seus desdobramentos foram de Andrade sintetizou os três princípios vi-
tremendamente criativos. vos saídos da aventura modernista dos anos
Antes disso, porém, esses desdobramen- 1920: a) o direito permanente à pesquisa
tos foram precedidos por um sentimento do- estética; b) a atualização da inteligência ar-
loroso de derrota e crise, em plena ditadura tística brasileira; c) a estabilização de uma
do Estado Novo: “iz muito pouco, porque consciência criadora nacional (Andrade,
todos os meus feitos derivam de uma ilusão 1974, p. 242). Isso foi o resultado positivo de
vasta […] faltou humanidade em mim. Meu um “individualismo que arriscou”, mas cuja
aristocratismo me puniu. Minhas intenções continuidade agora, nas novas condições em
me enganaram”. Ou ainda mais trágico (e que se clama por uma renovada politização
não menos lúcido): “meu passado não é mais da inteligência (“Marchem com as multi-
meu companheiro. Eu desconio do meu pas- dões”), deve ser preferencialmente pensada
sado” (Andrade, 1974, p. 252). Era assim que em sentido “coletivo”. Eis o conselho, verda-
se sentia Mário de Andrade perto do inal de deiro programa para os ventos democráticos
sua vida, em 1942, em meio ao Estado Novo, que talvez viessem: para se manter o “direito
às incertezas da Segunda Guerra Mundial, à pesquisa estética” (aqui entendido como “o
do futuro do nazifascismo e diante da des- direito à cultura moderna”), para se prosse-
confortável posição de “líder” do vitorioso guir a “atualização da inteligência artística”
movimento de modernização cultural e polí- local e para se estabilizar uma “consciência
tica que parecia chafurdar, impotente diante criadora nacional”, era preciso pensar a cul-
desse quadro de regressão. Dedo em riste, tura e a arte para além do ímpeto estético (e
falando de outros tanto quanto de si mesmo, “aristocrático”) do primeiro modernismo. E
Mário de Andrade lamentava que com pou- tudo isso com a política – e com a política
cas exceções (nas quais ele mesmo não se para as “multidões” (mesmo que não haja
enquadrava) ele e os modernistas vitoriosos sinal de que a política seria para a “classe”
tivessem sido “vítimas do nosso prazer da como era para o CAM apenas uma década
cêntrico e utópico7: “É preciso, porém, que modernista Sérgio Milliet como o “homem-
saibamos ocupar nosso lugar na história -ponte” entre a geração de 22 e aquela que
contemporânea. […] O papel do intelectual ele mesmo representava. Mais do que isso,
e do artista é tão importante hoje como o do Milliet seria sua maior afinidade e o pon-
guerreiro da primeira linha”. A lembrança to inicial em que se baseou para deinir seu
de 22 de Oswald é tão autocentrada quanto próprio ideário crítico. Candido salientava as
a de Mário, mas é muito mais complacente qualidades do tipo de ensaísmo que Milliet
e otimista. Ele ainda quer formar exérci- introduzira entre nós: sua capacidade de cir-
tos (e nesse sentido está muito próximo do cundar problemas, evitando dogmatismos,
CAM). Depois de estabelecer o paralelo en- aguçando a relexão, engajando sua perso-
tre a Inconidência e a Semana de 22 como nalidade numa forma crítica que tateia “com
movimentos que queriam “acertar o passo liberdade os fatos e as ideias por meio do
com o mundo”, Oswald entende os desdobra- pensamento ‘que se ensaia’” (Candido, 1987,
mentos políticos posteriores, o tenentismo, a p. 131). Uma atitude que ensaiava ela mesma
Coluna Prestes e a Revolução de 30, como a possibilidade da crítica dialética que os
decorrência direta do caminho aberto pelos anos posteriores viabilizariam. Uma lição a
“semáforos de 22”. E daí faz seu apelo, sua que os participantes da revista Clima, funda-
versão para o “Marchem com as multidões” da em 1941 (pouco antes dos acontecimen-
de Mário: “Tomai lugar em vossos tanques, tos de 1942, portanto), darão continuidades
em vossos aviões, intelectuais de Minas. Tro- e desdobramentos.
cai a serenata pela metralhadora. […] Deini Além de Antonio Candido, Paulo Emí-
vossa posição! (Andrade, 1972, pp. 100-1). lio Salles Gomes foi outro jovem intelec-
Em um e em outro Andrade o apelo aos tual “pós-modernista” que fez história. Na
7 SilvianoSantiago(2006,
p. 116) observou que a jovens, aos seguidores, era um traço comum. verdade, suas ideias foram decisivas na for-
escolha de Oswald em Se a Semana envelhecia, caducava alienada mação intelectual de sua geração. Marxista
fazer a conferência em
1944 e não em 1942 e reacionária, que o futuro viesse. No mes- militante, exilado político, frequentador dos
signiicava uma estra- mo momento em que os Andrades de 22 círculos intelectuais radicais franceses, teó-
tégia para ao mesmo
tempo lembrar a via-
faziam seu jogo e suas apostas para que o rico dialético das vicissitudes da cinema-
gem dos modernistas movimento de superação modernista tomas- tograia nacional e seus impasses, o jovem
em 1924 às cidades se novo fôlego, já se encontrava em evolução redator de Clima tinha tudo para conquistar
históricas de Minas e
o próprio movimento o processo que formaria uma nova geração a atenção dos novos intelectuais, simpáticos
Pau-Brasil, ou seja, de de estudiosos e acadêmicos modernos, em ao ensaísmo de Milliet e aos clamores de
se colocar ele mes-
mo como centro do muito devedores da crise de consciência de Mário e Oswald. Mais do que isso, ele lhes
modernismo. Mas é Mário de Andrade, que o gênio desabusa- deu quase um plano de trabalho, bem como
preciso notar também,
como fez Oswald, que
do de Oswald de Andrade não hesitou em uma orientação política precisa, como se fora
havia outros passados apelidar de “chato boys”. Para o surgimen- ele o responsável por repensar o modernismo
a se relembrar: a tragé- to desse novo momento nos estudos sobre a em nome de sua geração depois da despedida
dia da Revolução de
1924, em São Paulo, e cultura brasileira foi de crucial importância de Mário de Andrade e da proposta de con-
“esse raide de semilou- a fundação da Faculdade de Filosoia da Uni- tinuidade crítica de Oswald.
cos que foi a Coluna”
Prestes. versidade de São Paulo, projeto acalentado Em 1943, já em plena ressaca das come-
8 Esse inquérito era
por modernistas, modernizadores e descen- morações de 1942, o jornalista Mário Neme,
acompanhado por ou- dentes progressistas dos oligarcas de 22. Sua provavelmente inluenciado pela conferência
tro, com os represen- principal consequência foi a formação de um de Mário sobre a crise do modernismo e as
tantes da geração mais
velha (fundamental- certo radicalismo intelectual, ou mais especi- tarefas da nova geração, realizou um inquéri-
mente os modernistas icamente, como disse Antonio Candido, um to publicado nas páginas do jornal O Estado
de diferentes verten-
tes), que foi também “modesto radicalismo que icou sendo uma de S. Paulo, que depois seria reunido em li-
publicado com o título tradição e tem produzido efeitos positivos” vro intitulado Plataforma da Nova Geração
tumular de Testamento
de uma Geração (Cava-
(Candido, 1980, p. 103). (1945)8. Nele, jovens críticos e escritores sur-
lheiro, 1944). Antonio Candido deiniu o poeta e crítico gidos nos anos 1940 eram questionados sobre
B I B LI O G R AFIA