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A LITERATURA Os estudos literrios falam da literatura das mais diferentes maneiras. Concordam, entretanto, num ponto: diante de todo estudo literario, qualquer que seja seu objetivo, a primeira questao a ser colocada, embora pouco teérica, € a da definicio que ele fornece (ou nao) de seu objeto: o texto literario. O que torna esse estudo literdrio? Ou como ele define as quali- dades literdrias do texto literdrio? Numa palavra, 0 que é para ele, explicita ou implicitamente, a literatura? Certamente, essa primeira questao nao é independente das que se seguirao. Indagaremos sobre seis outros termos ou nogoes, ou, mais exatamente, sobre a relagao do texto literirio com seis outras nogées: a intencAo, a realidade, a recepcdo, a lingua, a historia e 0 valor. Essas seis questoes poderiam, portanto, ser reformuladas, acrescentando-se a cada uma 0 epiteto literdrio, o que, infelizmente, as complica mais do que as simplifica O que é intengao literaria? O que é realidade literaria? O que é recepgao literdria? O que é lingua literaria? O que € hist6ria literaria? O que é valor literdrio? Ora, emprega-se, freqiientemente, o adjetivo /iterdrio, assim como o substantivo /iteratura, como se ele nao levantasse problemas, como se se acreditasse haver um consenso sobre 0 que € literario e 0 que nao o €. Aristételes, entretanto, jA observava, no inicio de sua Poética, a inexisténcia de um termo genérico para designar ao mesmo tempo os didlogos socrdticos, os textos em prosa € o verso: “A arte que usa apenas a linguagem em prosa ou versos [...] ainda nao recebeu um nome até o presente” (1447a28-b9). Ha o nome e a coisa. ‘enigma, como prova a existéncia cle numerosos textos intitulados Quist-ce que !'Art?10 que E Arte2| (Tolstoi, 1898), "Qu'Est-ce que la Poésie?” [0 que E Poesia’) (Jakobson, 1933-1934), Qu’kst-ce que la Littérature? [O que f Literatura?) (Charles Du Bos, 1938; Jean-Paul Sartre, 1947). A tal ponto que Barthes renunciou a uma definigio, contentando-se com esta brinca- deira: “A literatura & aquilo que se ensina, e ponto final.” Mas pode-se dizer outra coisa que nao “Literatura é literatura?”, ou seja, “Literatura € © que se chama aqui e agora de literatura?” O fil6sofo Nelson Goodman (1977) propés substituir a pergunta “O que € arte?” (What is art?) pela pergunta “Quando ¢ arte?" (When is ar?) Nao seria necessirio fazer o mesmo com a literatura? Afinal de contas existem muitas linguas nas quais o termo literatura é inteadu- zivel, ou nao existe uma palavra que Ihe seja equivalente. € esse campo? Essa categoria, esse objeto? Qual € a sua fungao? Qual sua extensdo? Qual é sua compreensio? E necessirio definir literatura para definir o estudo liters mas qualquer definicao de literatura nao se torna 0 enu de uma norma extraliterria? Nas livrarias britanicas encontra-se, de um lado, a estante Literatura e, de outro, a estante Ficeao; de um lado, livros para a escola e, de outro, lazer, como se a Literatura fosse a ficcao entediante, cago comercial e priticat pontos de vista possiveis ¢ igual vista contextual (hist6rico, psicolégico, 0 cional) e ponto de vista textual (lingoistico). © estudo literdrio, esta sempre imprensada entre duas dagens irredutiveis: uma abordagem hist6r amplo (0 texto como documento), € uma bord tica (0 texto como fato da lingua, a literatura co linguagem). Nos anos sessenta, uma nova querela ei € modemnos despertou a velha guerra de trin 30 partidirios de uma definigho externa © partidrion de vin definigho Mmerna de literatura, aceltavels ax das, mas > que deste livro, mas todos os capitulos segui busca de uma definicao satisfatéria de literat A EXTENSAO DA LITERATURA No sentido mais amplo, literatura é tudo 0 qui Cou mesmo manuscrito), 840 todos os livros que contém (incluindo-se af 0 que se chama literatura ora vante consignada). Essa acepgto correspondle & novio cl de “belas-letras” as quais compreendiam tudo 0 que a ret a pottica podiam produzir, nlo somente a ficgo, mas tam! a historia, a filosofia e a ciéncia, e, ainda, toda a eloqié Contudo, assim entendida, como equivalente & cultura sentido que essa palavra adquiriu desde o século XIX, ratura perde sua “especificidade”: sua qualidade propriamente literdria the € negada. Entretanto, a filologia do século XIX ambicionava ser, na realidade, o estudo de toda uma cultura Qual a literatura, na acepeo mais restita, era o testemunho mais acessivel. No conjunto orginico iwido, segundo 4 filologia, pela lingua, pela literatura e pela cultura, uni identificada a uma nagio, ou a uma raga, no sentido filol6g a1 € 0 nao literirio) varia consideravelmente segundo as épocas, © as culturas. Separada ou extraida das bi tura ocidental, na acepcao moderna, aparece no século XIX, com 0 dec perpetuado desde Arist6teles. Para ele, a arte poética — a ssa coisa sem nome, descrita na Poética — compreendia, nd enero menor. A epopéia eo «les géneros da idade clissica, isto &, a narragio € a oes muito em breve n&o se conheceu senao, ionia hist6ria, 0 genero que Arist6teles excluta da poética, ou seja, a poesia lirica a qual, em revanche, tornou-se sindnimo de toda poesia, Descle entio, por literatura compreendeu romance, 0 teatro ¢ a poesia, retomando-se & wiade ps aristotélica dos géneros épico, dramitico € litico, m: vante, 0s dois primeiros seriam identificados com 2 pro: terceiro apenas com o verso, antes que o verso livre € © poem dade histérica e geogrifica do bom gosto, em opo doutrina estético. Restrita 4 prosa romanesca ¢ dramitica, € lirica, a literatura € concebida, além disso, em si com a nagio € com sua hist6ria. A literatura, ou ms iteraturas sao, antes de tudo, nacionais, 32 a do ponto de vista dos escritores (as inicio de literatura do ponto de vista ssores (os homens dignos de admiragio). Alguns nees, dramas ou poemas pertencem 2 literatura porque escritos por grandes escritores, segundo este corolirio ‘0: tudo 0 que foi escrito por grandes escritores pertence ve a cortespondéncia © as anotacées itri- os professores se interessam. Nova tauto- o cinone como patrimdnio de uma nagto. No momento, nos apenas este paradoxo: 0 cinone € composto de um conjunto de obras valorizadas a0 mesmo tempo em razio dla ie da sua forma ¢ da universalidade (pelo menos em grande obra € reputada itaneamente Ginica e universal. O critério (romantico) da relatividade hist6rica € imediatamente contraposto 4 vontade dle unidade nacional. Donde a zombaria ironica de Barthes: ‘A a € aquilo que se €i variagao da falsa eti- mologia consagrada pelo uso: "Os clissicos so aqueles que Jemos em classe.” | Evidentemente, identificar a literatura com o valor literdrio (os grandes escritores) 6, ao mesmo tempo, negar (de fato € de direito) 0 valor do resto dos romances, dramas € poemas, ¢, de modo mais geral, de outros géneros de verso € de prosa, Todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusio. / Dizer que um texto ¢ literirio subentende sempre que um outro nao é © estreitamento institucional da literatura no século XIX ignora que, para aquele que I2, 0 que ele Ié é sempre literatura, seja Proust ou uma foto-novela, e neg! gencia a complexidade dos niveis de literatura (como ha niveis de lingua) numa sociedade. A literatura, no sentido restrito, seria somente a literatura culta, nao a literatura popular (a Fiction das livrarias britinicas).. 33 exemplos de redescobertas qu de literatura. Segundo TS. Eliot, que pensava como um estru- turalista em seu artigo “La Tradition et le Talent Individuel IA Tradigio ¢ 0 Talento Individual] (1919), um novo escritor altera toda a paisagem da literatura, © conjunto do sistema, suas hierarquias e suas filiagdes: "40, entre eles, da nova (da verda- nova) obra de arte. A ordem existente é completa antes da chegada da nova obra; para que a ordem subsists, depois da intervengao da novidade, o conjunto da ordem exis. tente deve ser alterado, ainda que ligeiramente; e assim as relagdes, as proporcoes, 08 valores de todas as obras de arte fem relaglo ao conjunto sio reajustados.* A tradicio literdria € o sistema sinerdnico dos textos liters rios, sistema sempre em movimento, recompondo-se & medida «que surgem novas obras. Cada obra nova provoca um rearranjo da tradigio como totalidade (¢ modifica, 10 mesmo tempo, © sentido e 0 valor de cada obra pertencente & tradicAo), Apés 0 estreitamento que sofreu no século XIX, a literatura reconquistou desse modo, no século XX, uma parte dos terri t6rios perdidos: a0 lado do romance, do drama e da poesi a, © poema em prosa ganhou seu titulo de nobrez: autobiografia e 0 relato de viagem foram reabilitados, e assim por diante. Sob a etiqueta de paraliteratura, os livros para cctiangas, o romance policial, a hist6ria em quadrinhos foram assimilados. As vésperas do século XI, a literatu mente quase to liberal quanto as belas-letras antes, sionalizagao da sociedade. © termo literatura tem, px vasta segundo 0s autore COMPREENSAO DA LITERATURA: A FUNGAO estiiveis, quer essa fungdo seja compreendida idual ou social, privada ou publica, Aristételes katharsis, de purgagio, ou de purificacio de emocdes, razer de aprender na origem da arte poética 8b 13) instrie ou agradar (prodasse aut deectare), ou ainda que também Horicio reconheceri na poesia, qua de dulce et utile (Ars Poetica Arte Poétical, v.333 © 343), provavel ou a déxa, as sentencas € mximas que permitem compreender e regular 0 comportamento humano ¢ a vi social. Segundo a visto romantica, esse conhecimento diz tespeito sobretudo ao que € individual e singular. A cont dade permanece, no entanto, profunda: de Paolo e Francesca — que n'4 Divina Comédia, descobrem estarem apaixonados lendo juntos os romances da Table Ronde — a Dom Quixote — que poe em pritica os romances de cavalaria — e Madame Bovary — intoxicada pelos romances sentimentais que devora Essas obras, claramente parédicas, so prova da funcao de aprendizagem atribuida a literatura. Segundo 0 modelo huma- nista, hé um conhecimento do mundo ¢ dos homens propiciado pela experiéncia literdria (talvez. no apenas por ela, mas princi- palmente por ela), um conhecimento que s6 (ou quase s6) a experiéncia literiria nos proporciona. Seriamos capazes de Paixdo se nunca tivéssemos lido uma histéria de amor, se 35 nos avang mesmo que 0 modelo de individuo, que surgiu no fim Idade Média, fosse o leitor tragando seu caminho no livro, € que 0 desenvolvimento da leitura fosse o meio de aquisicao dla subjetividade moderna? O individuo € um leitor soli um intérprete de signos, um cagador ou um adivinho, pode- famos dizer com Carlo Ginzburg o qual, por dedugio légico- matemiti icou esse outro modelo de conhecimento com a caga (deciframento dos vestigios do passado) € a adivi- nhagao (deciframento dos signos do futuro). “Cada homem traz em sia forma completa da condicao humana", escreve Montaigne no livro Ill dos Essais [Ensaios]. Sua experiéncia, tal como a interpretamos, parece exemplar quanto ao que chamamos de conhecimento literario. Depois , em seguida ter duvi- dado dela a ponto de quase negar a individualidade, ele teria, a0 final do seu percurso dialético, voltado a encontrar em si a totalidade do Homem. A subjetividade moderna desenvolveu- se com a ajuda da experiencia literaria, ¢ 0 leitor € 0 modelo de homem livre, Atravessando 0 outro, ele atinge o universal na experiéneia do leitor, ‘a barreira do eu individual, na qual ele era um homem como os outros, ruiu” (Proust), “eu é um outro” (Rimbaud), ou “sou agora impessoal” (Mallarmé). Evidentemente, essa concepgao humanista de conhecimento teririo foi denunciada, por seu idealismo, como visio de mundo de uma classe particular. Ligada & privatiza comprometida com valores dos quais seria ao mesmo tempo causa © consequéncia, sendo 0 primeiro deles o individuo burgués. Essa , sobretudo, a critica marxista, que vincula literatura e ideologi senso social; ela acompanha, depois substitui a 6pio do povo. Os literatos, principalmente Matthew Arnold, nna Inglaterra vitoriana, por sua obra fundadora, Cult Anarchy (Cultura € Anarqui Bruneti@re e Lanson, na Franca, adotaram esse ponto le vista 6 no final do seeulo XIX, e, 0 ponto fixo do final do século: chega-se assi da perspectiva da fungio, 2 definicao candnica de pode-se, ao contritio, acentuar sua fungio sub- sobretudo depois da metade do século XIX e da voga i ire, wud ou Lautréamont com os cGimplices da orcem estabe- ‘A literatura confirma um consenso, mas produz também, imitagao e inovagio, dos antigos e dos modemnos, 10 voltaremos. A literatura precederia também outros saberes icas: 08 grandes esctitores (os visiondrios) viram, antes 's demais, particularmente antes dos filésofos, para onde minhava © mundo: “O mundo vai acabar” — anunciava Baudelaire em Fusées [Lampejos}, no inicio da idade do pro- gresso — ¢, realmente, o mundo nao cessou de acabar. A imagem do visiondrio foi revalorizada no século XX, num sentido politico, attibuindo-se @ literatura uma perspicécia politica € social que faltaria a todas as outras priticas, Do ponto dle vista da funcio, chega-se também a uma aporia: a literatura pode estar de acordo com a sociedade, mas também ‘em desacordo; pode acompanhar o movimento, mas também. precedé-lo. A pesquisa da literatura por parte da instituigao leva a um relativismo sécio-hist6rico herdeiro do roman- tismo. Prosseguindo na dicotomia, examinando agora o lado da forma, das constantes, dos universais, procurando uma definigao formal, depois de uma definigao funcional de lite- ratura, voltamos aos antigos e classicos, passamos também da teoria da literatura a teoria literdria, segundo a distingao que fiz anteriormente. 37 —" COMPREENSAO DA LITERATURA: A FORMA DO CONTEUDO Da An XVII, @ sei que a suponhamos qu designe 0 objeto da arte poética — foi geralmente definic taco ou representacdo (mimesis) de acdes hum: yguagem. E como tal que € uma fab ist6ria (mutbos). Os dois termos (mimesis © muthos) ecem desde a primeira piigina da Poética de Arist6teles e 0 cle mimasisas vezes ss, “deve ser poeta de hist6rias mais que de metros, em razao da mimesis que ele € poeta, ¢ 0 que ele imita (mimeisthad sto agoes" (1451b 27), través da ficgao, s excluia da poética nao apenas a poesia didatica “a, mas também a poesi que poe em cena o > poeta, € nao preservava senio os géneros épico (narra~ ivo) € tragic (dramitico). Genette fala de uma “poética essencialista’ ou, ainda, constiutivista “na sua versio temitica”. rund essa poética, “a maneira mais segura para a poesi ‘apar do risco de dissolug20, no emprego corrente da guagem, e se fazer obra de arte é a ficcAo narrativa ou ica‘ O qualificativo femdtico parece-me que deve ser lo, pois nio ha temas (contetidos) constitutivamente teririos: © que Arist6teles e Genette visam é ao estatuto onto- logico, ou pragmatic, constitutivo dos conteddos literirios, 6, pois, a ficgao como conceito ou modelo, nao como t como vazio, nao como pleno); e Genette, além disso, chamé-la ficcionatidade. Referind Louis Hjelmslev entre substan forma do contetido (a organizacio dos sigaific: tdncia da expressdo (os sons) e forma da expressao zacao dos significantes), direi que, para a poétic: iteratura € caracterizada pela ficco enquanto form tetido, isto é, enquanto conceito ou modelo. 38 » como conceito suficiente da yadamente no Capitulo HI, mbora, sem divida alguma, seja sempre (0 corrente considera globalmente COMPREENSAO DA LITERATURA: ‘A FORMA DA EXPRESSAO A partir da metade do século XVII, uma outra definigao dle literatura se opés cada vez mais & ficcto, acentuando o concebido doravante — por exemplo, na Critica da ‘aculdade do Jutzo (1790), de Kant, € na tradicao romantica — como tendo um fim em si mesma. A partir de entio, a arte literatura nao remetem sendo a si mesmas. Em oposigo & inguagem cotidiana, que ¢ utiitiria e instrumental, afirma-se que a literatura encontra seu fim em si mesma. Segundo 0 Tesouro da Lingua Francesa, herdeito dessa concepcio, a literatura é simplesmente “o uso estético da linguagem escrita” ‘A vertente romantica dessa idéia foi, durante muito tempo, a mais valotizada, separando a literatura da vida, conside- rando a literatura uma redengio da vida ou, desde o final do século XIX, a tnica experiéncia auténtica do absoluto e do nada, Essa tradi¢ao pés-romantica e essa concepedo de lite- ratura como redengio manifestam-se ainda em Proust, que afirma, em O Tempo Redescoberto, que “a verdadeira vida, a vvida enfim descoberta e esclarecida, logo a Gnica vida plena- mente vivida, € a literatura’,’ ou em Sartre, antes da guerra, no final de La Nausée [A Nauseal, quando uma miisica de jazz salva Roquentin da contingéncia. A forma, a metifora, “os elos necessirios do belo estilo” em Proust,° permite escapar deste mundo, aprender “um pouco do tempo em estado puro”.” Mas tal idéia tem também um lado form: hoje, que separa a linguagem literdria da linguagem c ou singulariza 0 uso literdrio em relagao a linguagem comum, » a, a linguagem literdria é , expressiva, perlocutéria, auto-rel im mais clo que dizem’, observa asp € pragmitico, o uso literirio da lingua é imagindrio e estétic. iteratura explora, sem fim pritico, o material lingUfstico. Assim se enuncia a definiglo forma Do romantismo a Mallarmé, a literatura, como resumia Foucault, “encerra-se numa intransitividade radical”, ela “se toma pura e simples afirmagio de uma linguagem que s6 tem como lei afirmar [..J sua drdua existéncia; nao faz mais que se curvar, num eterno retorno, sobre si mesma, como se seu discurso nao pudesse ter como contetido senao sua propria forma’.* Valéry chegava a essa conclusto no seu “Cours de Poétique’(Curso de Poétical: @ Literatura 6, e nao pode ser outra coisa sendo uma especie de extensdo e de aplicagéo de certas propriedades da Linguagem.’ Fis, portanto, nessa volta 208 antigos contra os modemos, aos clssicos contra os roman- ticos, uma tentativa de definigio universal da literatura, ou da poesia, como arte verbal. Genette falaria de “uma poética essencialista na sua versio formal”, mas eu diria que se trata, dessa vez, da forma da expresséio, porque a definigao de lite- ratura através da ficcdo era também formal, mas recaia sobre a forma do contetido. De Arist6teles a Valéry, passando por Kant Mallarmé, a definigao de literatura através da ficeao cedeu, pois, lugar, pelo menos junto aos especi sua definicao através da poesia (da dicedo, segundo Genette). A menos que as duas definicées nao partilhem o mesmo campo literatio. Os formalistas russos deram a0 uso propriamente literirio da lingua, logo & propriedade distintiva do texto literitio, 0 nome de literariedade. Jakobson escrevia em 1919: “O objeto 40 mico. Os formalistas tentavam, gragas a ele, iteririo autonomo — sobret ¢ 10 psicologismo vulgares apli sentagiio (do real) ou de express ‘os aspectos da obra literiria considerados especi inguagem literdria da li jana. A lnguagem I feririos certos textos? Os formalistas, segundo Viktor chklovski, em “L’Art comme Procédé” [A Arte como Proced mento] (1917), tomavam como crtério de literariedadea desfa- miliarizagdo, ou estranbamento (ostranénie): a literatura, ou a arte em geral, renova a sensibilidade lingbistica dos leitores através de procedimentos que desarranjam as formas habi- wométicas da sua percep¢io. Jakobson explicara, em iarizagao resulta do dominio tomados do tuais ea seguida, que 0 efeito de desta de certos procedimentos (jakobson, 1935) qu conjunto das invatidveis form: terizam a literatura como experiments inguagem”, segundo expressio de Valéry. Mas certos proce- dimentos, ou 0 dominio de procedimentos, tornam-se também eles familiares: 0 formalismo desemboca (ver Capitulo VD numa hist6ria da literariedade como renovagao do estranha- mento por meio da redistribuicao dos procedimentos literarios. A esséncia da literatura estaria, assim, fundamentada em_ invariantes formais pas pela lingilistica € revigorado pelo estrutur estudo literério dos pontos de vista estranhos 4 condicao verbal do texto. Quais sio os invariantes que ele explora? Os a wf figuras. O pressuposto é que uma eiéncia i posig LITERARIEDADE OU PRECONCEITO, Em busca da "boa" definiclo de literatura, procedemos segundo 0 método plat6nico, pela dicotomia, deixando sempre de lado a via da esquerda (a extensio, a fungao, a represen- taco), para seguir a via da direita (a compreensio, a forma, a desfai aco). Tendo chegado a esse ponto, finalmente, alcangamos éxito? Encontramos na literariedade uma condi¢ao necessiiria e suficiente da literatura? Podemos nos deter aqui? Afastemos, antes de tudo, esta primeira objecao: como nao existem elementos lingilisticos exclusivamente literarios, a literariedade nao pode distinguir um uso literitio de um uso nao literirio da linguagem. © mal-entendido vem, em grande parte, do novo nome que Jakobson, bem mais tarde, no seu célebre artigo “Linguistique et Poétique” [Lingitistica e Poética] (41960), dew a literariedade. Ele, entio, denominou “poética” uma das seis funcdes que distinguia no ato de comunicagio Gungées expressiva, poética, conativa, referencial, metalin- Biiistica € fatica), como se a literatura (o texto poético) abo- se as cinco outras funcoes, € deixou fora do jogo os cinco elementos aos quais elas eram geralmente ligadas (0 locutor, © destinatirio, o teferente, 0 cédigo € o contato), para insistir unicamente na mensagem em si mesma. Tal como em seus artigos mais antigos, “La Nouvelle Poésie Russe” [A Nova Poesia Russa] (1919) e “La Dominante” [A Dominantel (1935), Jakobson esclarecia, entretanto, que, se a fungio poética é dominante no texto literirio, as outras fungdes no sto, contudo, iminadas. Mas, desde 1919, Jakobson afirmava ao mesmo tempo que, em poesia, "a funcao comunicativa [..] € reduzida a0 minimo", e que “A poesia é a linguagem na sua funcio estética”, como se as outras funcées pudessem ser esqu A literariedade (a desfamiliarizacio) nao resulta de elementos lingoisticos proprios, mas de uma or diferente (por exemplo, mais densa, mais coerente, mais com- plexa) dos mesmos materiais lingiisticos cotidianos. palavras, no é a metéfora em si que faria a literariedade de um 2 lo): € a dosagem que produz o interesse do leitor. mente, mesmo esse critério flexivel e moderado de le € refutivel. Mostrar contra-exemplos é facil. Por certos textos literdrios no se afastam da linguagem (como a escritura branca, ou beh: ilo que a auséncia de marca é, ela mesm: que 0 cimulo da desfamiliarizacao € a fami 4 (ou 0 cimulo da obscuridade, a insignificancia), mas, definigdo de literariedade no sentido restrito, como tragos especificos ou flexiveis, como organizagao especifica, nao é \enos contradit6ria. Por outro lado, nao somente os tragos considerados mais literarios se encontram também na lingua- (eriria, mas ainda, as vezes, sio nela mais visiveis, riria, como € 0 caso da ‘dade. A publicidade seria entio o maximo da literatura, que nao é, entretanto, satisfat6rio. Seria, pois, toda a lite- tura o que a literariedade dos formalistas caracterizou, ou somente um certo tipo de literatura; a literatura por exceléncia, de seu ponto de vista, isto é, a poesia, e ainda nao toda poesia, mas somente a poesia moderna, de vanguarda, obs- cura, dificil, desfamiliarizante? A literariedade definiu o que se chamava outrora licenca poética, nao a literatura. A menos que Jakobson, quando descreveu a funcao poética como énfase na mensagem, tenha pensado nao somente na forma da mensagem, ‘como de um modo geral compreendemos, mas também no seu. contetido. © texto de Jakobson sobre “A Dominante” deixava bastante claro, entretanto, que a idéia da desfamiliarizagao cera séria, que suas implicagdes eram também éticas e politicas. Sem isso, a literariedade parece gratuita, decorativa, ludica. A literariedade, como toda definicio de literatura, compro- mete-se, na realidade, com uma preferéncia extraliterdria. Uma avaliagao (um valor, uma norma) esti inevitavelmente incluida em toda definicio de literatura e, conseqtientemente, em todo estudo literério. Os formalistas russos preferiam, B evidentemente, os textos aos quits m nogio de estruturalismo em geral inspiraclos no formalismo, deviam valorizar do mesmo modo 0 desvio ¢ a autoconsciéne em oposigao a convengio ¢ ao reali Proposta por Barthes, em $/Z, entre o legivel (re escriptivel (desfamiliarizante), € também abertamente valo- rativa, mas toda teoria repousa num sistema de preferéncias, consciente ou nao. Mesmo Genette devia finalmente reconhecer que a litera- iedade, segundo a acepeio de Jakobson, nio recobria sen’io ‘uma parte da literatura, seu regime constinutivo, nao seu regime condicional, e, além disso, do lado da literatura dita consti- tutiva, somente a dicedo (a poesia), nio a ficedo (narrativ: ou dramética). Dai inferia, renunciando as pretensdes do formalismo e do estruturalismo, que “a literariedade, sendo um fato plural, exige uma teoria pluralista’.! A literatura constitutiva — ela prdpria heterogénea ¢ justaposta 4 poesia (em nome de um critério relativo A forma da expressio), a ficgao (em nome de um critério relativo a forma do conteddo) —, acrescenta-se ainda, desde 0 século XIX, 0 dominio vasto ¢ impreciso da prosa nao ficcional, condicionalmente literiiria Cautobiografia, memérias, ensaios, historia, até 0 Codigo Givil), anexada ou nao a literatura, ao sabor dos gostos indi- viduais e das modas coletivas. “O mais prudente”, concluia Genete, “6, pois, aparente e provisoriamente, atribuir a cada uum sua parte de verdade, isto 6, uma porcao do campo lite- tirio”."* Ora, esse provisério tem tudo para durar, porque nao ha esséncia da literatura, ela € uma realidade complex: heterogénea, mutivel LITERATURA E LITERATURA pertinéncia) nao se E uma sociedade dessa definigio minima é, no entanto, Na verdade, se nos contentarmos com essa caracte- jeratura, o estudo literério ndo poderia ser qualquer discurso sobre esses textos, mas deverd ser aquele cuj de origem nao tem a mesma pertinéncia que para outros, resulta daf que toda andlise que tem por objeto reconstruir S circunstancias originais da composicao de um texto lite- ico hist6rica em que o autor escreveu esse texto © recepeao do primeito piblico pode ser interessante, mas nao pertence ao estudo literario. O contexto de origem restitui o texto A nio-literatura, revertendo 0 proceso que fez dele um texto literirio (relativamente independente de seu contexto de origem). Tudo 0 que se pode dizer de um texto literdrio nao per- tence, pois, a0 estudo literdrio. O contexto pertinente para oestudo literdrio de um texto literdrio nao é o contexto de origem desse texto, mas a sociedade que faz dele um uso iterario, separando-o de seu contexto de origem. Assim, a critica biografica ou sociolégica, ou a que explica a obra pela tradigao literaria (Sainte-Beuve, Taine, Bruneti@re), tod: clas variantes da critica hist6rica, podem ser consideradas exteriores a literatura Mas se a contextualizacio histérica nao € pertinente, 0 estudo lingiistico ou estilistico 0 seria mais? A nogio de estilo pertence A linguagem cotrente e € preciso primeiro refind-ta (ver Capitulo V). Ora, a busca de uma definigao de estilo, tanto quanto de literatura, é inevitavelmente polémica Fla repousa sempre sobre um invariante da oposicao popular 45 entre a norma e 6 desvio, ou da forma e do conteddo, ou seja, ainda dicotomias que visam a destruir (a acreditar, eliminar) mais 0 adversirio do que os conceitos. As variagoe: estilisticas nao sio descritiveis senao como diferengas de significagdo: sua pertinéncia é lingilistica, nado propriamente literdria. Nenhuma diferenga de natureza entre um “slogan” publi- citério ¢ um soneto de Shakespeare, a nao ser a complexidade. Retenhamos disso tudo o seguinte: a literatura é uma inevi- tavel peticao de principio. Literatura ¢ literatura, aquilo que as autoridades (os professores, os editores) incluem na litera- tura. Seus limites, as vezes se alteram, lentamente, modera- damente (ver Capitulo VII sobre 0 valor), mas € impossivel passar de sua extensio A sua compreensio, do canone a esséncia. Nao digamos, entretanto, que nao progredimos, porque o prazer da caga, como lembrava Montaigne, nio é a captura, € 0 modelo de leitor, como vimos, é 0 cagador.

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