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CONTRADIÇÕES SOB MEDIDA: O MODERNISMO COMO PROJETO DE CLASSE

Ana Luiza Fazolli1

Resumo: Escrita trinta e quatro anos antes da Semana de Arte Moderna, a "Carta a
Eduardo Prado" possui elementos comuns ao Movimento Modernista paulista, Entretanto, a
continuidade entre as discussões realizadas entre a Geração de 70, da qual Eça de Queirós
participava, e os Modernistas paulistas não é óbvia: há um claro distanciamento espacial e
temporal. Tal continuum pode, no entanto, ser explicado através da figura do idealizador da
Semana, Paulo Prado, que na juventude conviveu com os intelectuais brasileiros e
portugueses que compunham a geração de intelectuais anterior a sua. O que aqui se propõe
é que através dos objetos A Cidade e as Serras, Correspondência de Fradique Mendes e
Retrato do Brasil sejam discutidas as polaridades que surgem no mundo pós-1848 e que,
apesar do passar das décadas, continuaram atuais aos anos 20 e 30.
Palavras-chave: Paulo Prado. Eça de Queirós. Semana de Arte Moderna. Geração de 70.

Abstract: Written thirty-four years before the 1922 Modern Art Week, the "Letter to Eduardo
Prado" has common elements to the Modernist Movement of São Paulo, however, the
continuity between the discussions held between the 70's Generation, which Eça de Queiroz
took part, and the modernists isn't obvious: there is a distance and time gap. Nevertheless,
this continuum can be explained by the principal patron of the 1922 Week, Paulo Prado, and
his young self: he lived with Brazilian and Portuguese intellectuals by the end of the 19th
century. The purpose of this article is to discuss the polarities of the post-1848 world and the
continuity of these dilemmas in the first decades of the 20th century. The objects of this study
are The City and The Mountains, The Correspondence of Fradique Mendes and Retrato do
Brasil (Portrait of Brazil).
Keywords: Paulo Prado. Eça de Queirós.1922 Modern Art Week. 70's Generation.

Durante as décadas de 1920 e 1930, São Paulo foi espaço de manifestações


artísticas diversas que, enquadradas sob um mesmo mote, o de romper com o laço
colonial e encontrar o verdadeiro Brasil no campo estético, tornaram-se conhecidas
como Modernismo. O símbolo máximo do movimento, a Semana de Arte Moderna
de 1922, dá pistas que talvez aquilo que majoritariamente chamamos de
Modernismo brasileiro tenha sido menos nacional e mais paulista, menos
cosmopolita e mais provinciano do que uma observação superficial deixa
transparecer.
Idealizador e mecenas da Semana, Paulo Prado foi para o Modernismo mais
que um financiador da empreitada; ele também dialogava com os artistas 2 e seu
trabalho foi decisivo para a realização da Semana imprimindo nela suas marcas e

1
Bacharel em História, faz mestrado em Teoria e História Literária na UNICAMP. Contato:
afazolli@me.com
2
Paulo Prado travou diálogos com Mário de Andrade à época da escrita de Retratos do Brasil (1928)
e Macunaíma (1928), em que provavelmente os dois enviavam rascunhos de seus trabalhos. Prado
também escreveu o prefácio do Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade (1924).
dando um sentido de classe indissociável ao movimento. A família de Paulo Prado
integrava a oligarquia cafeeira que, ao final do Império, enquanto classe dominante e
autônoma economicamente em relação ao Estado, pressionou e alterou a história do
país ao colocar em prática um projeto econômico-cultural que a favorecia. Uma
classe que agia conforme um interesse consciente e enunciado e que procurava
tornar-se hegemônica em todos os aspectos da vida nacional:
Nos anos 20, a burguesia oligárquica de São Paulo era o segmento das
classes dominantes brasileiras mais em condições de construir essa nova
naturalidade da nação, como parte de um projeto hegemônico que, passando
pela arte, literatura, universidade, imprensa e, acima de tudo, pelo parque
industrial, só se completaria com sua ascensão ao poder político central,
setenta anos após, no tropicalista e ambivalente regime do tucanato.
(HARDMAN, 2000, p. 324)
Seu pensamento tonou-se mais claro com a publicação de Retrato do Brasil,
em 1928, na qual Prado utilizava-se de um discurso histórico para explicar a origem
do povo brasileiro e a do povo paulista, a razão da superioridade deste sobre aquele
e o motivo pelo qual eram os descendentes dos cafeicultores paulistas os únicos
capazes de romper com o Romantismo, a mazela da cultura nacional, símbolo
máximo da submissão intelectual na qual jazia o país. Paulo Prado e as elites
paulistas fizeram, através do Modernismo, suas trajetórias e a do país homólogas ao
tornarem um só seus projetos de classe e de nação (BERRIEL, 2013, p.14).
As ideias de Paulo Prado, no entanto, não são em si um elemento de ruptura.
Ao contrário, elas representam uma continuidade de ideias que vinham de uma
geração anterior a sua e com a qual havia travado diálogo em Paris, através de seu
tio Eduardo Prado. O grupo luso-brasileiro era composto por nomes tais como Eça
de Queirós, Oliveira Martins, Olavo Bilac, Capistrano Abreu e Joaquim Nabuco, além
do próprio Eduardo Prado, claro. No que tange aos seus relacionamentos com
intelectuais portugueses, podemos afirmar que os Prados associaram-se
nomeadamente com a Geração de 70 ou, como já haviam se autointitulado no final
do século XIX, os Vencidos da Vida.
Paulo Prado entrou em contato com a Geração de 70 ao final da década de
1880, quando o Brasil acabava de tornar-se República e o liberalismo da revolução
de 1820 já estava institucionalizado e consolidado em Portugal. Formado em fins da
década de 1860, o grupo era compostos por meia dúzia de jovens demônios, nas
palavras de Eça de Queirós (FIALHO, 2012), que reuniam-se, de início em Lisboa e,
ao final do século, em Paris, para tertúlias filosófico-culturais. Juntos discutiam o
futuro de Portugal e buscavam através das letras e da política revolucionar a
mentalidade dos seus compatriotas. O grupo compartilhava da crença nos mesmos
fatores como explicativos das mazelas portuguesas: acreditavam que a decadência
havia se iniciado em 1580, com a queda do país ao domínio espanhol e a ambição
do ouro estimulada pelas colônias, e era nos tempos atuais coroada pela ineficiência
do sistema político nacional, o qual atribuíam aos Liberais do Porto. O Liberal do
Porto ficou marcado pela Geração de 70 como um tipo, um paradigma de
negatividades, incapaz de tratar a realidade de forma prática e racional (BERRIEL,
2013, p. 53). Essas mesmas ideias foram adaptadas à realidade brasileira e aos
interesses classistas de Paulo Prado e transpareceram em sua tese como forma de
explicar a tristeza da raça brasileira, tristeza romântica com raízes no passado
colonial e a ambição desenfreada pelo ouro:
Os homens, a quem a Renascença revelara o prazer de viver, lançavam-se
com a energia da época aos mais arriscados empreendimentos na esperança
de fortuna rápida. A conquista sanguinária da América Espanhola é dominada
por essa paixão frenética. Rio da Prata, Rio do Ouro, Castelo do Ouro, Costa
Rica, Porto Rico, assim se batizavam as terras que os conquistadores
desvendavam ao mundo atônito. "Io no vine aqui para cultivar la tierra como
un labriego, sino para buscar oro", escrevia Cortez. Nas narrativas de Oviedo,
em duas páginas e meia aparecem 45 vezes as palavras oro e dorado, numa
insistência de maníaco. [...] Era a preocupação confessada ou disfarçada, da
auri mortifera fames, de que falava Pedro Martir. Ouro. Ouro. Ouro. (PRADO,
2012, pp. 41 - 42)
O que aqui se propõe é que através dos objetos A Cidade e as Serras,
Correspondência de Fradique Mendes e Retrato do Brasil seja avaliado esse
continuum entre os Vencidos da Vida, através de Eça de Queirós, e uma das
principais mentes por trás do Modernismo, Paulo Prado. Também através desses
textos pretende-se discutir as polaridades que surgem no mundo pós-1848 - tais
como centro x periferia, mito do futuro x mito de origem e de raízes, cosmopolitismo
x nacionalismo - e que, apesar do passar das décadas, continuaram atuais aos anos
20 e 30 e ainda são alguns dos dilemas do mundo contemporâneo.
A partir de 1848, com a vitória seguida pela derrocada das revoluções
nacionais européias, também conhecidas por Primavera dos Povos, observou-se o
avanço em escala mundial da economia do capitalismo industrial. 1848, por sua
curta sobrevida, falhou enquanto revolução e guinada social e representou a vitória
da ordem e tomada de consciência pelas burguesias das suas condições de classe.
O que se seguirá nas próximas décadas do século XIX será a intensificação do
processo de industrialização da economia em junção com o crescimento da
influência da burguesia sobre os padrões culturais, com a prevalência do estilo
burguês sobre o estilo aristocrático (HOBSBAWM, 1996, pp. 346 - 347).
A configuração dessas burguesias industriais está inscrita na afirmação de
uma nova etapa das relações entre o homem e a natureza com a transformação
quantitativa dessas relações através da potenciação energética representada pelo
triunfo dos combustíveis fósseis - vale dizer o carvão e, a partir de 1859, o petróleo -,
e a transformação qualitativa das relações homem e a natureza pela química 3.
O recuo da revolução política e o avanço da revolução industrial corroboraram
para o crescimento de uma ordem social pautada sob a hegemonia burguesa e
legitimada e retificada na crença na razão, na ciência, no progresso e no liberalismo.
Esses valores eram expressos na realidade burguesa através da matéria, da grande
acumulação de objetos no interior das casas. Não havia contradição entre a busca
de sucesso material e mental, pelo contrário, um era a base necessária para o outro
(HOBSBAWM, 1996, pp. 323 - 324).
É sob esse mundo e valores que é concebido Jacinto, protagonista de A
cidade e as serras (1901), de Eça de Queirós. A pujança de sua residência, um
palacete em Paris, nos Campos Elísios nº202, é descrita pelo narrador-personagem
Zé Fernandes:
Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa nave cheia de majestade e
sombra, onde reconheci a Biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa de
livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma coroa de
lumes elétricos, refulgindo entre os lavores do teto, alumiou as estantes
monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta mil volumes,
encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro,
hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num concílio.
(QUEIRÓS, 2013, p. 72)

3
“Em 1860”, escreve Alan J. Rocke (1993), “havia cerca de 3.000 substâncias bem caracterizadas na
literatura química; esse número crescera sem parar durante as décadas precedentes, dobrando a
cada vinte anos aproximadamente. Por volta de 1860, essa tendência acelera-se dramaticamente, de
modo que a duplicação passa a ocorrer a cada nove anos, sendo que essa taxa permanece desde
então. Também relevante é a centralidade da química orgânica nessa revolução – quase todos os
novos compostos aqui mencionados eram orgânicos – e a centralidade da teoria da estrutura dentro
da química orgânica”.
Em uma residência que resumia tudo o que havia de mais confortável e
tecnológico ao fim do século XIX, Jacinto afirmou estar a felicidade na civilização, na
junção da máxima potência à máxima ciência. Jacinto vivia em uma casa que
afirmava toda sua fé no progresso e elemento de decoração, semelhante às
exposições universais em voga na segunda metade do século XIX. 4 No entanto, o
que Zé Fernandes encontra ao rever o amigo de longa data é um homem entediado,
em uma casa luxuosa, porém sombria, e que ainda no início dos seus trinta anos
começava a corcovar-se.
Sedas verdes envolviam as luzes elétricas, dispersas em lâmpadas tão
baixas que lembravam estrelas caídas pôr cima das mesas, acabando de
arrefecer e morrer: só uma rebrilhava, nua e clara, no alto duma estante
quadrada, esguia, solitária como uma torre numa planície, e de que o lume
parecia ser o farol melancólico. Um biombo de laca verde, fresco de verde de
relva, resguardava a chaminé de mármore verde, verde de mar sombrio,
onde esmoreciam as brasas duma lenha aromática. E entre aqueles verdes
reluzia, pôr sobre peanhas e pedestais, toda uma Mecânica suntuosa,
aparelhos, lâminas, rodas, tubos, engrenagens, hastes, friezas, rigidezas de
metais.... (QUEIRÓS, 2013, p. 73)
Negando sua própria equação, Jacinto encontrará a felicidade ao final do
romance ao conectar-se com a natureza e passar viver em sua propriedade rural em
Tormes, Portugal.
Narrada por Zé Fernandes, podemos supor que o personagem possua uma
tese, a qual deseja provar através da história de Jacinto: a superioridade do campo
sobre a cidade. A tese de Zé Fernandes faz pensar sobre as dicotomias do século
XIX que, após um período de ascensão capitalista, encontrava-se diante de uma
grande crise desde a metade da década de 1870 e que se alastraria até o fim do
século. Ao desenhar situações extremas - campo e cidade - e retirar da problemática
a questão financeira, pois fosse em um ou outro, Jacinto era um homem rico, Eça de
Queirós colocava a ver as verdadeiras questões do drama do progresso: a
degradação da qualidade de vida nas grandes metrópoles ocidentais, a abundância
da informação disponível, a universalização da aplicação de tecnologias nas
atividades quotidianas - por exemplo, o elevador no 202. Zé Fernandes, não Eça de

4
A mais importante delas ocorre em 1889, no centenário da Revolução Francesa, em Paris,
contemporânea a história de Jacinto e Zé Fernandes que se desenrola ao longo da década de 1890.
Queirós, sabia e demonstrava sua solução aos excessos da civilização: uma volta às
origens, ao campo.5
Contemporâneo a Zé Fernandes, contudo, opositor de suas ideias, estava
outro personagem de Queirós: Carlos Fradique Mendes. Esses dois personagens
são utilizados no presente texto por serem ambos da última fase do autor, no
entanto, a oposição campo vs. cidade esteve presente em diversas de suas obras e
não era uma questão resolvida. Antonio Candido em "Entre Campo e Cidade" 6
analisa as diversas posições tomadas pelo autor lusitano ao longo de seus
romances. Mas não somente na ficção, na última década do século XIX, Eça de
Queirós colaborou nos periódicos Anátema, assinando com seu nome o texto
"Fraternidade", Revista de Portugal, uma "Nota do Mês" sob o pseudônimo João
Gomes, e Ultimatum com o artigo "Novos factores da política portuguesa", e em
cada um deles uma perspectiva diferente sobre o estado da Nação portuguesa foi
utilizada (FIALHO, 2012). Mais que o acolhimento de determinadas ideias ou não,
pode-se abstrair que pairava entre os romancistas realistas e naturalistas um
sentimento agudo das desarmonias provocadas pela ascensão da burguesia e o
vertiginoso processo de proletarização, ambos intricados ao capitalismo industrial e
o modelo liberal. A Geração de 70, originária do ainda agrário Portugal, sentia na
pele o abismo crescente entre centro e periferia.
Em oposição a Zé Fernandes, Fradique Mendes resume o homem
supercivilizado do século XIX:
Fradique, ultra-burguês oitocentista, acrescenta às suas fôrças, não a dos seis
cavalos de Mefistófeles, mas a do vapor, da máquina, do telégrafo, revestindo-se por
seu intermédio duma mobilidade extrema, podendo palmilhar o mundo e
esquadrinhá-lo, na procura verdadeiramente fáustica do enriquecimento pessoal.
(CANDIDO, 1971, p. 38)
Juntos, Zé Fernandes e Fradique Mendes compõe lados opostos de uma
mesma moeda. O que podemos observar de comum em ambos é o tema da
desnacionalização de um povo como aspecto da incapacidade de uma sociedade
em tratar com a realidade ela mesma: Zé Fernandes apresenta a reintegração de
Jacinto a Portugal como forma dele encontrar sua completude; Fradique Mendes
também expõe a mesma ideia, inclusive na "Carta a Eduardo Prado". Essa é a
5
Apenas como esclarecimento, sabe-se que, ao contrário do conto "Civilização", o Jacinto de A
cidade... não enxerga sua ida a Portugal como um retorno, até porque ele sempre havia vivido na
França. Quem retorna e imprime esse sentido à viagem de Jacinto é Zé Fernandes.
6
crítica particular desenvolvida pela Geração de 70 para as mazelas da história
portuguesa e que oferecerá a Paulo Prado referenciais que servirão para a mesma
função em relação a vida brasileira.
Fradique Mendes em sua carta a Eduardo Prado, datada de 1888, critica o
processo brasileiro de subordinação mental aos referenciais europeus como
empecilho para a emergência do país. Apesar de reconstruir uma vida dissociada
dos eventos contemporâneos, idealizando um Brasil verdadeiro aos moldes dos
Estados Unidos pré-industrialização, pré-capitalismo, não pode perder-se de vista a
quem carta tem como destinatário: Eduardo Prado. Portanto, quando Fradique
Mendes aconselha ao Brasil que busque sua originalidade na terra não faz de forma
ingênua:
Não exijo para o Brasil as virtudes áureas e clássicas da Idade de Saturno.
Só queria que ele vivesse uma vida simples, forte, original, como viveu a
outra metade da América, a América do Norte, antes do Industrialismo, do
Mercantilismo, do Capitalismo, do Dolarismo, e todos esses ismos sociais que
hoje a minam e tornam tão tumultuosa e rude quando os colonos eram
puritanos e graves; quando a charrua enobrecia; quando a instrução e a
educação residiam entre os homens da lavoura; quando poetas e moralistas
habitavam casas de madeira que as suas mãos construíam; quando grandes
médicos percorriam a cavalo as terras, levando familiarmente a farmácia nas
bolsas largas da sela; quando governadores e presidentes da República
saíam de humildes granjas; quando as mulheres teciam os linhos dos seus
bragais e os tapetes das suas vivendas; quando a singeleza das maneiras
vinha da candidez dos corações; quando os lavradores formavam uma classe
que, pela virtude do saber, pela inteligência, podia ocupar nobremente todos
os cargos do Estado; e quando a nova América espantava o Mundo pela sua
originalidade, forte e fecunda. (QUEIRÓS, 2011, p. 99)
Fradique Mendes escreve uma apologia da família patriarcal, rural e virtuosa,
assim como é a família Prado. Não por acaso, apesar de escrita 34 anos antes da
Semana de Arte Moderna, a "Carta a Eduardo Prado" já apresentava noções
centrais para o Modernismo.
Em Retrato do Brasil Paulo Prado traçou uma linha de exposição de forma a
estabelecer diferenças entre o paulista e o brasileiro, e uma superioridade histórica
do primeiro sobre o segundo. Seriam os paulistas, a oligarquia do café, os
destinados a romperem com a tristeza brasileira - o Romantismo - e a guiarem o
projeto de nação devidamente original. Toda a argumentação de Prado para a
degeneração da raça brasileira possui articulação com as ideias que já eram
discutidas entre a Geração de 70, mas para pensarem no caso português: seria da
colonização e do contato com o português decadente, a partir de 1580; da ambição
do ouro; e da miscigenação entre o português, o índio e o negro que nasceria o povo
brasileiro:
Foi o colonizador. Foi o nosso antepassado europeu. Ao primeiro contato com
o ambiente físico e social do seu exílio, novas influências, das mais variadas
espécies, dele se apoderariam e o transformariam num ente novo, nem igual
nem diferente do que partira da mãe-pátria. Dominavam-no dois sentimentos
tirânicos: sensualismo e paixão do ouro. (PRADO, 2012, p. 85)
Diferente, o paulista seria formado pelos portugueses anteriores a 1580 e por terem
se interiorizado, ficando afastados dos primeiros pólos econômicos e culturais do
país, teriam se desenvolvido de forma muito diversa a do brasileiro.
O brasileiro, marcado pelos impulsos criadores de sua tristeza - a cobiça e a
luxúria -, seria passivo da doença do Romantismo que, não muito diferente dos
Liberais do Porto para a Geração de 70, caracterizava-se pelo divórcio entre a
realidade e o artifício. Paulo Prado faz o Romantismo ser triste para identificá-lo com
o brasileiro e realizar mais uma diferenciação em relação ao paulista. O Modernismo
enquanto produto paulista e contrário ao Romantismo - dentro de uma
argumentação que transforma em sinônimos o brasileiro, a tristeza e o Romantismo
- torna-se mais que um movimento cultural de ruptura, mas um rompimento com o
Brasil e a possibilidade de, sob um projeto de nação paulista, o país emancipar-se.
Mais que isso, ao tornar a Semana de 22 e os intelectuais que com ela
conversavam o verdadeiro Modernismo, ou seja, o movimento de ruptura, estava-se
simultaneamente forjando o apagamento de quaisquer outras produções
predecessoras e concomitantes que ocorriam no país. Como exemplo, podemos
pensar em Raul Pompéia que décadas antes dos modernistas paulistas já ousava
em poemas sem métrica. A partir da década de 1890, somam-se às produções
literárias, jornalísticas, sociológicas e filosóficas, que já assinalavam uma mudança
na percepção espaciotemporal, os movimentos operários que são, segundo
Hardman (1995, p. 540), um dos principais responsáveis pela renovação linguística,
estética e temática - e, no entanto, são chamados de pré-modernistas.
Atrasada em meio século se comparada às burguesias tradicionais, a
oligarquia paulista busca por meio do Modernismo tornar-se uma classe para-si,
uma classe que não se subordina a lógicas que não as próprias; busca fazer o salto
da periferia para o centro. No entanto, o cerne do projeto da oligarquia é anacrônico,
pois sua ruptura é apenas no campo cultural enquanto nos campos social e
econômico ela prevê uma manutenção do status quo. O resultado é um movimento
contraditório em que as dicotomias do mundo moderno fazem-se presentes a todo
instante diante de um projeto que busca pela emancipação e modernização do país
em uma economia industrial-capitalista e que coloca à frente uma burguesia agrária.

Referências:
BERRIEL, C. E. O. Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2013.
CANDIDO, A. Entre Campo e Cidade. In:_________. Tese e antítese. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1971.
FIALHO, I. Geração de 70 - República antes da República. Revista Convergência
Lusíada. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, nº 28 - jul/dez de
2012. Disponível em: <http://www.realgabinete.com.br/revistaconvergencia/?
p=1875>. Acesso em: 07/07/2015.
HARDMAN, F. F. Algumas fantasias de Brasil: o modernismo paulista e a nova
naturalidade da nação. In: DECCA, E.; LAMAIRE, R. (Org.) Pelas margens: outros
caminhos da história e da literatura. Campinas, Porto Alegre: Ed. da Unicamp -
UFRGS, 2000.
_____________. Antigos Modernistas. In: 3º CONGRESSO ABRALIC (3.: 1992:
Niterói, RJ). Limites: Anais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo;
Niterói, RJ: ABRALIC, 1995.
HOBSBAWM, E. J. A era do capital, 1848 - 1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996.
PRADO, P. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
QUEIRÓS, E. A cidade e as Serras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008, 2ª
reimpressão, 2013.
___________. Correspondência de Fradique Mendes. São Paulo: L&PM, 2001.
ROCKE, A. J. The Quiet Revolution. Hermann Kolbe and the Science of Organic
Chemistry. Oakland, CA: University of California Press, 1993.

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