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O poder oculto sob a montanha    

 Neeser  fevereiro 20, 2021

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Considerações sobre o conto que se segue:

Esse conto se passa dois


anos depois dos acontecimentos de “O Povo
do Círculo Negro”, sendo Conan
ainda o chefe afghuli que era no respectivo conto em questão, quando os
montanheses, ao final da trama,
perceberam que o cimério não era o traidor que
achavam que ele seria em razão da morte dos sete líderes na
prisão de Peshkhauri.

Não utilizei no conto,


pelo menos diretamente, qualquer personagem criado por Howard, além de Conan.
A
devi Yasmina eu apenas cito, visto que a representei como uma amante ocasional
do cimério. Isso porque, ao
final do conto howardiano, fica subentendido que
eles poderiam se encontrar, ainda que as falas finais sejam em
um tom de
ironia; ela à frente de seu exército, e ele junto de seus afghulis.
Isso significa que eu
utilizei apenas referências do conto de Howard, como se as ações de Conan no
enfrentamento aos mestres de Yimsha ocasionassem consequências que muito
marcaram a região médio-oriental
do continente (uso esse termo de forma arbitrária,
para tratar dos locais mais próximos ao Mar de Vilayet).

Aqui entra o teor


lovecraftiano do conto. Como Howard utilizava tais horrores sutilmente, em seus
variados contos e como ele possui uma carta de 1930 para Lovecraft, perguntando
sobre os antigos anciões, eu
decidi utilizar uma dessas poderosas entidades
cósmicas como antagonista, até como forma de pegar a hype
lovecraftiana atual.

Inicialmente pensei em Hastur, o Rei Amarelo, mas logo decidi


pelo meu deus exterior lovecraftiano
favorito, o flautista cósmico de nome Nyarlatotep. Claro que criei elementos a
partir do cânone de Lovecraft,
ainda que tentando manter certa fidelidade ao
mesmo. Se não consegui, só posso pedir desculpas a todos.

 O leitor poderá notar também que Conan demora a


aparecer na trama, pois segui certo viés howardiano de
colocar o personagem em
meio à narrativa, não seguindo necessariamente a estrutura a partir do ponto de
vista do
cimério. O conto The Black Stranger
talvez seja, dentro dos Ciclos de Conan, o que segue esse padrão mais à
risca.
Como gosto muito de sua estrutura, segui esse modelo no conto que se segue.
Alguns nomes de locais eu
tirei do conto howardiano supramencionado, outros termos eu tirei de nomes
indianos em pesquisas da internet. O reino tributário de Vendhya que inventei se
chama Khymsha, e o coloquei na
parte nordeste de Vendhya, no sopé das Montanhas
Himelianas.

Howard menciona a
presença de vultosas minas de ouro e prata na região, e decidi então que o pequeno
reino da princesa Varínia (minha Yasmina do conto, colocada de forma
proposital) seria tributário, extraindo os
metais para pagar impostos ao centro
hegemônico, de modo a ganhar proteção. Esse padrão foi muito comum nos
Impérios
de nossa Idade Moderna e decidi seguir por esse caminho.

Como sempre digo, meu


objetivo é muito simples. Tentar ser fiel ao tom howardiano, como uma
homenagem
ao grande escritor texano. Tento não distorcer o legado que ele deixou, e
normalmente tenho a ajuda
mais do que especial do amigo, tradutor e estudioso,
Fernando Neeser de Aragão. Seja para corrigir possíveis
erros de minha parte na
descrição de lugares, nomes, raças, povos, culturas e etnias, seja para dizer
se o tom da
narrativa está a contento de um assíduo leitor de Howard.

O que importa, claro, é


finalizar um conto gratificante à leitura, mas também quero que seja um ciclo
dos
mais fiéis à obra original. Caso eu não tenha conseguido tal intento, deixo
claro que pelo menos eu tentei com
todo o afinco, apesar de minhas limitações.

Marco Antonio Correa Collares

UM CONTO DO CIMÉRIO CONAN

O PODER OCULTO SOB A MONTANHA

_____________________________________________________________________

Ó Entronado distante

Demônio da Noite Antiga

Grandioso ciclope da desavença

Majestoso artificie de imponente presença

Tu que singrastes o firmamento 

Envolto em magnitude de magia e mistério, 

Causando em nós tamanha comoção


Fazendo-nos lhe seguir em verdadeira profusão 

Ó ser errante majestoso

Agracie-nos com sua paternal aceitação

Crie-nos como filhos e filhas prediletos

Unindo-se a nós em perfeita comunhão

Ó senhor das trevas cavernoso

Mesmo que sejamos tomados por confusão

Cantamos melodias em sua homenagem

Canções angustiantes de dor e profanação

Por que, eu te pergunto, magnânimo senhor das


perfídias?

Por que, em nenhum momento diante de vós?

Estando nós aqui prostrados como crianças famintas

Tu nos agracias com palavras indistintas?

Canção dos Esquecidos e Condenados de Zanzimar

DESESPERO E INSANIDADE

Eu sinto e temo. Sei bem o que vislumbro e minha


pele se arrepia diante de tamanho lamentar de dor e
loucura. Estou isolada em
meus devaneios, próxima ao ocaso da vida, perdida num pranto silencioso de
dissabor e
desespero. Um destino cruel me aguarda e a predestinação das coisas mundanas
é o imperativo inconteste
concedido aos miseráveis. As esperanças se desvanecem
diante do meu sacrifício, com a percepção de que todos
os atos foram em vão.

No mais distante planalto montanhoso do


centro-leste continental, próximo ao majestoso Vale das Brumas,
em meio a profundos
desfiladeiros arenosos ao norte de Vendhya encontra-se a grandiosa Zanzimar,
parte do
amplo complexo de montanhas congeladas conhecidas como Himelianas. Em
meus pensamentos mais prementes,
sei que o nome se deve a dois fatores
interligados: sua altura titânica e as densas nuvens que constantemente
cercam
seu cume, envolto em mistérios e, para alguns, em completa sordidez natural e
sobrenatural.
Isso porque seu interior se tornou intenso nos
últimos anos, com a presença de cultistas de todas as partes,
ocorrendo ali as
maiores perfídias e violências possíveis que as mentes humanas poderiam conceber,
incluindo a
minha. Todas as brutalidades contra a vida expressam resquícios de eras
ancestrais, insistindo em se reproduzirem
no tempo presente.  Ali, no interior
do pico propriamente dito, em meio a seus arenosos platôs e elevações, um
clamor de sofrimento é constantemente ouvido e propagado em meio aos ganidos
fantasmagóricos de ventos
cortantes que preenchem seus salões monolíticos.
Gritos insanos que me destroçam como garras afiadas.

Pois dentro da rocha bruta, na mais profunda


caverna magmática da montanha, encontra-se o monólito
daquele a quem todos
chamam de “O Entronado”. Um colosso
de pedra ostentoso e grandioso como somente o
altar de um Demônio da Noite
Antiga poderia ser. Em frente a tal escultura de pedra negra, toda incrustada
de
caracteres indecifráveis, uma turba se ajoelha perante o majestoso ser
sobrenatural em aparente descanso, jurando
fidelidades com ares de fanatismo,
frenesi e desespero, cometendo diversos atos contínuos de canibalismos que
apenas os condenados poderiam exercer. Atitudes inumanas, que eu não mais
consigo vivenciar.

Mãos para cima crispadas, gritos em uníssono,


chacras e feridas abertas pelos corpos dos presentes
marcam apenas uma parte da
cena horripilante que presencio noite após noite desde minha captura. Pois os
corpos
mutilados em volta dos vivos, muitos dos quais mastigados pelos
presentes, são contornados por outros tantos
seres em sofrimento. Homens empalados
em vigas colossais dispostas em forma geométrica, preenchendo na cena
tétrica
os filamentos de dor e agonia que algum ser vivente possa um dia vislumbrar. Algo
que destroça o que
sobrou de meu espírito.

            O ser antropomórfico ali presente


não se move jamais, parecendo um golem
de carne negra mumificada,
com a altura de três homens titânicos. Sentado no
trono como um rei estígio ou como se estivesse na mais
profunda hibernação. A
cabeça pende levemente para o lado, apoiada no próprio punho fechado, com o
cotovelo
igualmente postado na extremidade esquerda do trono. A criatura parece
estar em alguma espécie de torpor
catatônico, quase que a representação de um
deus onipresente frente a uma situação completamente insossa e
enfadonha.

            Mesmo sem demonstrar qualquer expressão


ou movimentos, os mortais em volta encontram-se na mais
completa imersão em
seus rituais macabros de carnificina e canibalismo, exortando sua divindade
inumana com
cânticos indecifráveis e orações profanas. Esperando, talvez, que a
criatura saia de sua condição inexpressiva,
para que lhes acaricie por alguns
instantes quaisquer, senão mentalmente, pelo menos fisicamente, com seus
tentáculos viscosos de carne mortificada.

            O ritual prossegue dia após dia e a


morte espreita os ainda vivos e semimortos na caverna de horrores
sobrenaturais,
dilacerando mais uma vez o que sobrou de minha sanidade. Então, uma espécie de
cultista líder,
vestindo peles de camelo, encimado pela cabeça de uma estranha
criatura canina, adentra a antecâmara comigo a
seus pés, vestindo uma túnica
leve de seda e em profundo esgar convulsivo. Ele me arrasta pelos cabelos sem
piedade, fazendo-me cair próxima à criatura profana, ajoelhando-me brutalmente
em venerável adoração.

            Para o cultista-líder, eu não passo de


uma mulher mortal de pele alva e cabelos negros volumosos. Uma
princesa de
homens com curvas sinuosas e deveras atraentes para a lascívia masculina. Sei
bem o quanto minhas
formas lembram as mais belas mulheres hiperbóreas do distante
reino gélido do misterioso ocidente, de uma raça
hiboriana presente sutilmente em
meu sangue.

O cultista que me arrasta, por sua vez, assemelha-se


a um homem do centro continental, com olhos
negros penetrantes e uma barba
quase azulada de tão escura, possuindo a tonalidade da pele tipicamente
zamoriana,
com aquele olhar colérico semelhante ao dos seguidores dos deuses-aranhas
daquela terra
amaldiçoada.
            Em sua mão direita, ele segura uma
adaga curva, quase em forma de meia lua, com o fio entrecortado por
fissuras na
lâmina enegrecida, como se fosse um objeto de tempos antigos, usados em rituais
oníricos de
sacrifício, talvez antes mesmo da ascensão da humanidade. Uma época
quase esquecida por nós, quando raças
cósmicas perambulavam pelos ermos e
dominavam as terras que hoje representam a maior parte das regiões
ocupadas
pelas raças humanas.

                      Eu finalmente grito insanamente e os


fiéis ali se insuflam com ares de vilania ante meu crescente
desespero. Até que
por fim, quando toda a esperança se desvanece de meu âmago, um vulto se adianta
e empurra
com força colossal o cultista líder, jogando-o a alguns metros de
distância. O caos reina e o sacerdote levanta-se
com sua adaga em mãos,
vislumbrando temeroso o homem musculoso que o empurrou. 

Trata-se de alguém que conheço. Um tipo alto e


poderoso, com pele escura e olhos azuis celestes, cabelos
negros como a noite
rubra e um torso titânico que não perderia em nada para uma divindade
antropomórfica da
guerra. O medo impera no subconsciente do cultista, quase que
de forma sobrenatural diante da figura imponente
que lhe faz frente. A morte se
aproxima de tal forma que minha visão fica turva e nublada. Tudo se torna um
esgar
espasmódico, congelando-se no espaço-tempo. Finalmente, depois de tantos
dias de medo, pavor e loucura; eu
desfaleço.

II

TEMORES NOTURNOS

            Varínia acendeu o pequeno incenso localizado


em cima da cômoda e decidiu ler alguns pergaminhos
aparentemente envelhecidos sob
a fraca luz das velas de seu quarto ostentoso, consultando também algumas atas
sobre as últimas decisões de seus principais conselheiros mais sábios e experientes.
A princesa do pequeno reino
tributário de Khymsha tinha receio de que os sábios
da capital, Azhy-Mar estivessem um tanto perdidos diante
das crescentes
incursões dos afghulis e dos
cultistas de Zanzimar dos últimos meses.

                      No primeiro caso, tratava-se de


ataques cada vez mais constantes dos selvagens montanheses do
Afghulistão, ao
pequeno país dependente da grandiosa Vendhya,
sendo a princesa e seu conselho de anciões, os
governantes locais que deveriam
zelar pelos súditos. Liderados por um bárbaro vindo do ocidente distante, os
selvagens decidiram acirrar suas pilhagens às cidades, vilas e caravanas
comerciais do pequeno reino localizado
ao sopé nordeste das Himelianas, levando
os magistrados dessas respectivas localidades a pedirem auxílio ao
governo
central.

            No segundo caso, tratava-se de um


expediente ainda mais perigoso e misterioso. Poderosos cultistas de
diferentes
regiões e reinos do entorno do Vilayet tinham vindo ao centro-oriente para
adorar um antigo poder que,
por muitas eras, se ocultou sob a Montanha Zanzimar,
um poder agora fortalecido pelo ocaso dos mestres
feiticeiros de Yimsha. Eles,
que foram atacados em seu refúgio pelos aliados da devi Yasmina, atual
governante
de Vendhya, um fato ocorrido há mais ou menos dois invernos atrás.

A Divina, atual monarca dos kshatriyas, tinha com tal ataque vingado a morte de seu irmão, o
rei Bhunda
Chand, ocasionada a pedidos do monarca Yezdigerd, de Turan, o que
fora efetivado pela necromancia dos temidos
profetas negros da montanha. Yasmina
aliara-se na empreitada ao famoso bárbaro do ocidente, o chefe afghuli de
nome Conan, natural de um
país distante e mítico conhecido como Ciméria.

Varínia enviou diversas cartas suplicando pela


vinda das tropas kshatriyas da
capital Ayhodhya, visto que
os antigos acordos de tributação serviam como formas
de auxílio ao seu protetorado. A princesa falou dos
sequestros perpetrados
pelos cultistas sob a montanha, recebendo em troca apenas negativas secas e
indiferentes,
um tanto suspeitas, ousava dizer, como se o poder oculto sob a
montanha fosse útil ao governo de Vendhya.

Mais de uma vez, aliás, a jovem governante evocou


não apenas os acordos firmados em tempos remotos,
como também enviou listas com
números e nomes de súditos sequestrados e desaparecidos entre as vilas mais
próximas das Himelianas, reafirmando que as ações da capital e de sua
governante contra os Profetas Negros e
seus acólitos haviam ocasionado uma mudança
de poder e equilíbrio local. “Como se os
feiticeiros de Yimsha
fossem um mal necessário que mantinha o poder oculto sob
a montanha inerte ou adormecido” argumentou a
jovem na última
correspondência enviada.

Novas negativas irritaram Varínia em demasia. Isso,


a tal ponto, que ela decidiu conclamar seu conselho
superior, para uma
parlamentação imediata e extraordinária. Algo que aconteceria no dia seguinte,
deixando-a
ansiosa durante a madrugada. Lá fora, o vento frio norte trazia um
leve lamento irritadiço, como de vozes
distantes e dissonantes em sofrimento
eterno. Todas elas contornadas por uma melodia sinistra, exercida por um
flautista invisível.

Varínia olhou ao redor do amplo quarto coberto de


tapeçarias orientais oriundas de Khitai e deitou-se no
imenso divã de veludo
que lhe servia de descanso, tapando-se com seda e peles de modo a não apenas se
abrigar
do frio, como também para impedi-la de escutar os lamentos e a música trazidos
pela ventania. Era alta
madrugada e a escuridão só lhe conferia mais temores
insondáveis, enfraquecendo seu espírito, apesar dela ser
uma jovem monarca forte
e temerária.

Em frente ao quarto da princesa, seu mais fel


segurança aguardava, prestativo e com os sentidos despertos,
colocando-se de pé
ante a porta principal dos aposentos reais do Palácio de Jade. Seu nome era
Fazil e ele temia
pela saúde e sanidade de Varínia, a mortal que ele tinha por
dever sagrado proteger com a própria vida. Sua
família, apesar da origem
turaniana, servia aos monarcas de Khymsha desde muito tempo, pelo menos há seis
gerações e ele tinha uma difícil tarefa pela frente, visto que o poder oculto sob
a montanha evocava algo muito
além das questões geopolíticas médio-orientais.

Os relatos sobre o assunto, pensava Fazil, eram deveras


insidiosos e temíveis, com narrativas macabras de
um deus ancestral, talvez há
pouco desperto na maior antecâmara de Zanzimar, um ser antropomórfico a quem
todos chamavam de “O Entronado”. Havia
também antigas canções hirkanianas que tratavam igualmente de um
Demônio da
Noite Antiga sob as montanhas geladas orientais, parecendo tratar-se da mesma
entidade. Diziam os
sábios, no entanto, que o poder necromântico e oculto dos Profetas
Negros de Yimsha conseguira manter tal
senhor demoníaco em seu descanso profano,
sem que ele se envolvesse com questões mundanas.

Fazil, assim como a linda jovem de cabelos negros


que ele deveria proteger, pensava que a deus oculto sob
a montanha tinha
despertado no exato momento em que os mestres de Yimsha foram eliminados,
incluindo seus
acólitos, súditos, aliados e lacaios, ocasionando a ascensão de
um antigo caos rastejante no subsolo de Zanzimar.
Um ser que retornava agora
aos eventos da superfície, depois de milênios de entorpecimento, levando ao
conclame de cultistas das mais diferentes divindades de todas as partes do
continente.

O jovem protetor ouvira falar, inclusive, de poderosos


sacerdotes do deus-aranha Yezud, da cidade
homônima de Zamora – homens
misteriosos que chegaram à Montanha Enevoada no inverno passado, o mesmo
valendo para representantes diabólicos dos sacerdotes-feiticeiros estígios do
círculo Negro de Khemi. Como se
suas divindades fossem um tanto distantes do
ser presente em Zanzimar, prontas para serem sumariamente
substituídas por um
deus mais antigo e palpável, um poder manifesto e vislumbrado pelos sentidos
mortais.

Logo, os sequestros começaram no pequeno reino, ininterruptos.


Passaram a ocorrer então
desaparecimentos de homens, mulheres e, principalmente
crianças em vilas e cidades de Khymsha. Enquanto isso,
Vendhya, a metrópole do reino, se mantinha aparentemente
indiferente aos lamentos e perdas de seu pequeno
conclave tributário. Juntando-se
a isso, havia também as incursões dos malditos afghullis, liderados há dois ciclos
por um bárbaro demoníaco do
ocidente, o mesmo homem que tinha ajudado a monarca de Vendhya a derrubar os
profetas de Yimsha, “a aparente proteção contra o antigo poder oculto
sob a montanha”.

O jovem segurança sabia que sua espada em estilo koftgari não seria suficiente para
proteger Varínia
quando a jovem princesa, por fim, tentasse o plano traçado em sua
mente, um ardil planejado por ela e por seu
principal conselheiro e general, Yang
Shan. Tratava-se de um estratagema que deveria ser posto em prática a
partir do
dia seguinte, quando os anciões do conselho governante se reuniriam para
finalmente traçarem planos de
ação que pudessem deter o poder oculto sob a
montanha, ao mesmo tempo em que reorientaria as relações do
pequeno reino com os
selvagens nômades liderados por Conan.

O dia seguinte seria imprescindível para os meses


vindouros de Khymsha. Fazil temia, mesmo que por
breves instantes sob a
escuridão da noite sem lua, pela vida de sua protegida. Do lado de fora do
palácio, o vento
norte continuava uivando, arredio e melancólico, cada vez mais
alto, como o ressoar dos lamentos dos mortos, dos
desaparecidos e dos desesperados.

III

ESPERANÇAS RENOVADAS NO CONSELHO DOS SÁBIOS

- Eis que esta é minha proposta e considero o


melhor caminho a ser trilhado frente a esses fatos tão
tenebrosos – argumentou
Varínia diante dos anciões, de modo imponente e sem rodeios, mesmo sabendo que
suas
palavras, um tanto idealistas, poderiam ser facilmente contrapostas por
alguns daqueles homens eminentes,
versados em retórica e com oratória refinada.
Os sábios, ali reunidos em semicírculo, mantiveram-se serenos.
Alguns deles,
sem demonstrar quaisquer expressões frente à parlamentação da princesa.
Um dos mais experientes deles, Jharin tinha uma
longa barba grisalha trançada, usando um arnês
tradicional sobre a cabeça e uma
túnica oriental de seda com cores espalhafatosas. Ele parecia o sujeito mais
calmo e ponderado da existência e costumava falar pausadamente, mantendo a
mesma tonalidade serena na voz,
conseguindo com isso a atenção total das
plateias.

Os mais sábios e eminentes esperavam costumeiramente


por suas argutas palavras bem encadeadas na
gramática e na validação retórica,
enquanto ele alisava a longa barba com a mão direita curtida ao sol. Ao fim de
uma longa pausa estratégica, ele por fim respondeu:

- Minha senhora... Posso dizer... Bem, em verdade, ouso


dizer até... Que sua ideia é deveras temerária, não
tendo necessariamente o
resultado esperado... Levar um plano de ação a Conan, um bárbaro tribal
selvagem do
oeste, na esperança de que ele... Bem, de que ele leve um pedido de
ajuda a Devi de Vendhya... Isso seria como
colocar o futuro de nosso reino nas
mãos de algo inconstante e... Como direi... Destituído de qualquer
possiblidade
concreta de êxito, fora com muito auxílio da fortuna.

- Não se trata disso, meu velho amigo – interrompeu


Varínia, de forma súbita, contrastando com a calma
do seu interlocutor – Mas
sim de ter algumas vias ação. Iremos até Ghor, terra dos afghulis, requisitar a seu líder,
um conhecido aliado da Devi, para
que ele implore pelo nosso reino, para que possa requisitar ajuda dos
kshatriyas. Desta forma, ganhamos tempo
para nosso estratagema contra os cultistas! De atacarmos a entrada da
montanha
e de usarmos o expediente que trouxemos de Khitai.

“Com isso”, continuou a princesa, “impedimos novos


saques dos montanheses, enquanto tentamos agir
contra o poder oculto sob a
montanha, usando nossos adversários usuais contra o mais temível dos inimigos. Se
tivermos ouro e prata excedentes de nossas abundantes minas do sopé oriental das
Himelianas, e se temos ainda
mais recursos dos tributos que deixamos de pagar a
Vendhya, por seu não-cumprimento dos antigos acordos, bem,
então temos dois motivos
para as tropas de Yasmina virem em nosso auxílio. Em primeiro lugar, o pedido
do
bárbaro Conan, em segundo, a falta dos pagamentos usuais de nosso reino à
capital”, terminou Varínia, com certa
segurança e altivez na voz.

- Sim, sim. Não nego que uma ação... Uma ação mesmo
que duvidosa, possa ser mais profícua, no
presente caso, do que nenhuma ação.
Porém, querida princesa... Receio que temos algo para além de mero
desinteresse
de Vendhya no caso em questão... Além do que, jovem menina... Devo lembrá-la
que o bárbaro pode
simplesmente pegar nosso ouro e nem sequer cumprir com
qualquer acordo, além de lhe sequestrar para pedir
algum resgate. Ele pode ainda
continuar seus saques e pilhagens contra nossas vilas, cidades e caravanas
comerciais...
Nada pode depor contra essa afirmativa lógica que lhe faço aqui.

O murmúrio foi geral no salão do conselho.


Tratava-se de uma câmara ornamentada com esculturas de
deidades muito antigas, uma
sala ovalada no interior de uma grande abóbada elevada. Construção essa que
tinha,
por sua vez, quatro torres arredondadas em volta, além de um enorme
vitral suspenso no teto do centro da cúpula,
sendo tal estrutura ornamentada
com merlões orientais.

O vitral, multicolorido era responsável por deixar


a luz do sol entrar no amplo salão, deixando o ambiente
quase divino e ao mesmo
tempo com uma aparência de positividade e calmaria, como se o próprio deus Asura,
a
mais cultuada divindade de Vendhya, estivesse presente nas reuniões do
conselho.

Os anciões acenaram positivamente frente às sábias


palavras de Jharin, deixando Varínia com pouca
capacidade de convencimento, o
que seria uma obrigação dela em tais ocasiões. Isso porque, segundo as leis
locais do reino, o monarca precisava ter a concordância de dois terços dos
conselheiros para uma decisão que
exigisse o uso de tropas militares ou mesmo
de recursos extraídos dos impostos. Mesmo em dúvidas quanto ao
êxito de suas
colocações, e mesmo sob olhares firmes de Fazil e de Yang Shan, Varínia
prosseguiu, intencionando
uma contra resposta efetiva.

- Senhores conselheiros. Nada garante o sucesso da


empreitada e, realmente, um bárbaro, que lidera outros
selvagens, pode não
cumprir com qualquer negociação de nossa parte. Meu conselheiro e general de
confiança
conhece o homem Conan, por conta de outras tratativas fracassadas com
ele no passado recente, e sabe bem do
que tal homem é capaz, assim como tem
consciência que o sujeito costuma cumprir com aquilo que promete –
iniciou
Varínia, olhando fixamente a todos os presentes no salão, com confiança
retomada.

“Acredito ser propositiva uma tentativa desse


tipo”, continuou, “mesmo com os riscos mencionados pelo
altivo conselheiro
Jharin. Pois o sucesso em nosso pedido seria muito melhor do que continuarmos
na presente
situação, essa da qual meus súditos são seqüestrados e suas
famílias separadas em meio aos ataques dos afghulis.
Se Vendhya não nos ouve do modo convencional, iremos tentar uma ação inesperada.
Todos sabemos que a Devi
Yasmina possui algum tipo de dívida pessoal junto ao
bárbaro, em razão de seu auxílio no caso dos Profetas
Negros de Yimsha”,
continuou Varínia, mantendo seu olhar em Fazil.

 “Caso Conan
não aceite um acordo”, ela continuou, “eu mesma irei até a Devi para me
prostrar e implorar
por ajuda das tropas kshatriya.
Enquanto isso, nossas forças se dirigirão até a entrada da montanha, sendo
lideradas por Yang Shan, um homem que apesar de ter origem estrangeira, de Khitai,
já provou mais de uma vez
elevadas aptidões estratégicas de combate. O pó
mágico que compramos de Khitai será utilizado no local, que
sabemos ser um
grande terraço próximo ao cume de Zanzimar. Nossos recursos foram empregados
para sua
aquisição e os sábios do oriente distante afirmam categoricamente que
a névoa ficará na entrada da caverna por
duas luas, envenenando mortalmente a
todos que tiverem contato com ela.

“A partir disso”, prosseguiu a princesa, “colocaremos


arqueiros constantemente situados nas montanhas e
desfiladeiros em frente à
entrada de Zanzimar, com ordens para atacar à distância qualquer um que tente
sair ou
adentrar em suas câmaras amaldiçoadas. Mas, para isso, senhores, precisamos
de nossas tropas mobilizadas e
seria imprescindível ganharmos tempo nos ataques
e pilhagens dos afghulis de Conan.

“Então, caros e eminentes conselheiros! Cabe agora


uma decisão urgente, ou então uma outra ideia melhor
do que essa que trago a
vocês nessa altiva assembleia. O que me dizem?”, terminou Varínia, sabendo que não
tinha mais argumentos para convencer os homens ali reunidos.
O silêncio foi geral e outro membro do conselho, um
nobre um tanto mais jovem que os demais, de sangue
real e primo da princesa, bastante
ganancioso e que costumeiramente apoiava as ideias da família de Varínia,
muito
por más intenções do que por altruísmo ou lealdade inconteste, decidiu jogar
suas próprias cartas.

Seu nome era Punjar e ele começou seu discurso de


forma lenta e humilde, tornando-se mais veemente
com o desenrolar da oratória, usando
de todos os expedientes verbais e entonações de voz que conhecia para
tentar
convencer os conselheiros quanto à melhor ação a ser tomada. Ele assim parlamentou:

- Meus amigos e colegas conselheiros. Todos sabem o


quanto costumo falar pouco e ir direto ao assunto,
quando discurso entre vós. Nossa
situação é insustentável, como bem nos lembra nossa sábia princesa, minha
prima.
Frente aos fatos e ideias expostas, digo-lhes que temos que tentar esse plano
urdido por nossa magnânima
governante.

“Sim, a névoa envenenada de Khitai provavelmente fracassará


frente a cultistas que usam de expedientes
mágicos e poderá matar, inclusive,
mais pessoas inocentes do que nossos inimigos! Sim, Conan pode
simplesmente
sequestrar nossa querida princesa, ou aceitar nosso ouro e prata, e
simplesmente continuar com suas
pilhagens e ataques! Sim, podemos ser
pessimamente sucedidos em tudo isso que intencionamos, mas creio que
as tropas
de Ayodhya, sabendo de todos esses fatos que mencionei, serão obrigadas a
agirem contra o poder oculto
sob a montanha, de um jeito ou de outro.

“Digo-lhes senhores, apesar de não ansiar por isso,


que até mesmo se todo o estratagema fracassar,
teremos finalmente a atenção de
Vendhya, sendo esse o objetivo traçado em caso de sucesso, mas que pode
redundar positivo também em caso de fracasso. Digo-lhes, portanto, que apoiem
esse plano de ação de nossa
querida princesa e de seu principal conselheiro. Em
caso de sucesso nas negociações da jovem Varínia, junto ao
bárbaro do ocidente,
teremos garantido nosso pedido a capital, além de tempo para agir.

“Em caso de fracasso”, finalizou, “eu mesmo irei à


metrópole e implorarei pessoalmente à Devi Yasmina
que nos ajude no presente
caso. E, claro, para que liberte nossa querida princesa das garras imundas do
bárbaro,
no caso do tão propalado sequestro que ele pode perpetrar. Isso no
caso de Conan enveredar por esse caminho”.

Dessa vez se ouviu um murmúrio coletivo, e muitos


chegaram a dizer baixinho entre si quais eram as reais
intenções de Punjar.
Lembraram os sábios ali reunidos que o jovem conselheiro tinha sangue
nobiliário e que sua
família seria a mais próxima na linha de sucessão da coroa
do pequeno reino. Isso caso Varínia fosse sequestrada
e morresse na ocasião.

Afinal, falava-se entre o populacho, a jovem princesa


não tinha herdeiros e nem parecia propensa a se
casar tão cedo, seguindo o
mesmo caminho trilhado pela Devi de Vendhya. Mesmo assim, os argumentos de
Punjar foram precisos e bem articulados, convencendo os conselheiros ainda
indecisos. Afinal, na ausência de
outro plano de ação mais condizente, a
maioria se viu obrigada a acenar positivamente com a cabeça, gesto que
marcava
a aprovação tradicional daquele parlamento.

Varínia olhou nos olhos de seu querido e fiel segurança


pessoal, Fazil e o sorriso de ambos um para o outro
pareceu significar uma
vitória final, quando, na verdade, apenas representava que eles estariam
arriscando suas
próprias vidas para colocar em prática o plano aprovado naquele
grande salão abobadado. Yang Shan igualmente
acenou para a princesa com um leve
sorriso e lhe disse no ouvido quais eram as reais intenções de seu primo,
Punjar, o que já era sabido pela moça, afinada que era nas questões políticas
de seu pequeno reino.

Mesmo assim, uma comitiva partiria no dia seguinte


de Azhy-Mar, dirigindo-se ao oeste,
passando pelo
estreito de Udaipur dos wazulis,
depois pelo monte Yimsha mais adiante, de modo a chegar às montanhas do
Afghulistão.
Lá, eles procurariam a vila de Ghor, onde se escondiam os selvagens montanheses
liderados pelo
imponente bárbaro do oeste continental.

Naquela mesma noite, um sujeito misterioso vestindo


um turbante negro que lhe tapava o rosto escreveu
um bilhete profano, enviando-o
momentos após o término do conselho. De imediato, ele usou um pombo-correio
que
chegaria rapidamente a Zanzimar, de modo a avisar os líderes cultistas sob a
montanha.

O recado era direto e sem rodeios: uma princesa


virginal estaria em uma comitiva pouco segura, saindo do
reino de Khymsha na
manhã seguinte, escondida em vestes comuns de modo a chegar ao Afghulistão. As
peças
do tabuleiro haviam sido lançadas e o perigo chegaria a seu ápice nos
dias vindouros.

IV

A COMITIVA DOS DESESPERADOS

A comitiva se arrastou por muitos dias e noites até


o desfiladeiro de Udaipur, terra próxima ao território
wazuli, os montanheses que viviam na parte mais ao noroeste de
Vendhya. Varínia usava uma túnica escura,
encimada por um manto negro aveludado,
tendo seu rosto escondido por um turbante acinzentado, tal e qual
vários de
seus soldados. As mesmas vestes cobriam duas outras mulheres que lhe serviam
desde criança, tratando-
se de suas mais fiéis servidoras no Palácio de Jade: Irinya
e Valoya, ambas possuindo o mesmo peso e altura da
princesa.
Fazil e Yang Shan estavam presentes e eram ladeados
por trinta soldados de elite de Azhy-mar, a metade
deles composta por arqueiros
e a outra pelos melhores lanceiros de Khymsha. A projeção dos chefes era de que
todos iriam juntos até a encosta Karnal, caracterizada por uma bifurcação que levaria
a dois pontos distintos das
Himelianas.

De um lado, o desfiladeiro subia a encosta Una e a partir dali seguia rumo ao


nordeste, até a montanha
profana do poder oculto. Do outro lado, a trilha
rumava para o noroeste, subindo a encosta wazuli
por vales
arenosos escarpados, terminando por fim na fronteira com o
Afghulistão, o destino da princesa.

Esses dois caminhos dividiriam as forças da


comitiva. Shan se dirigiria ao primeiro ponto junto ao grosso
das tropas, para
que seus soldados se encontrassem com outros integrantes da cavalaria de Khymsha,
além dos
melhores arqueiros de elite do reino. Soldados esses direcionados para
junto da montanha profana, alguns dias
antes das decisões do conselho dos
sábios. Enquanto isso, Varínia seguiria junto de Fazil pelo outro caminho,
estando
ladeada por uma de suas fiéis seguidoras, ficando a outra com a comitiva maior
de soldados, de modo a
despistar quaisquer possíveis perseguidores.

Pois todos sabiam que era comum na cultura


vendhyana, desde tempos remotos de formação do imponente
reino médio-oriental,
as práticas da espionagem e subterfúgios diversos entre nobres e governantes.
Não se podia
esquecer jamais que os súditos de Varínia, tanto racialmente
quanto culturalmente eram vendhyanos em suas
origens. Por tais motivos que o
esperado se tornou um fato consumado, com os membros da comitiva
vislumbrando
cavaleiros distantes em pontos mais elevados do desfiladeiro em frente ao que estavam.

Com o início da perseguição, os protetores da Varínia


tiveram que apressar o galope dos cavalos, e isso
apenas após dois dias de
viagem nas fronteiras wazuli. Fazil
reconheceu os homens distantes com seus mantos
esvoaçantes e capuzes negros,
muitos dos quais montados em alazões leves, com cimitarras brilhosas ou tulwar
imponentes nas cinturas, além de
bolsas de couro cru contendo misteriosos expedientes arcanos. Ele sugeriu
tratarem-se dos cultistas do poder oculto sob a montanha, o que foi confirmado
ao longo dos dias seguintes.

- Maldito traidor. Provavelmente alguém que estava


no conselho e que entregou nossos planos de pedir
auxílio à Devi de Vendhya,
sabendo que a princesa estaria na comitiva – falou Fazil, dirigindo-se a
Varínia e ao
general Shan. Esse último respondeu de pronto, com a voz grossa embargada.

- Provavelmente aquele cão traiçoeiro do Punjar.


Ele não apoiou nossa causa pelo interesse do povo ou do
reino, mas pela
ganância de usurpar a coroa com a morte de nossa soberana, sua prima. Maldito
porco esnobe.
Prefere fazer acordos espúrios com os lacaios do demônio do que
com sua própria família ou raça!

Diante dessas palavras fortes, a comitiva apressou


os cavalos e se viu mais de uma vez cercada pelos
perseguidores, tendo que
abrir caminho a ferros e usando a habilidade dos arqueiros na dispendiosa empreitada.
No decorrer da perseguição que se seguiu, uma das mulheres foi separada da
comitiva por um caminho
secundário, levando alguns cavaleiros cultistas a perseguirem-na,
estando ela com apenas dois esparsos soldados
cansados. Pareceu a todos mais um
sacrífico do que qualquer outro plano de ação articulada.

Outra das mulheres ficou junto da comitiva de Shan,


quando a tropa separou suas forças, seguindo o plano
traçado. Esse grupo
adentrou de forma rápida pelos caminhos pedregosos até Zanzimar, apressando os
cavalos de
modo a encontrar o grosso das forças à espera. De certa forma, pretendia-se
uma vitória sumária quando os
soldados de Shan encontrassem os demais cavaleiros
do reino, colocando os perseguidores na defensiva, usando
de flechas certeiras
para chacinar os cultistas restantes. “Quem sabe”, pensou Shan, “Nós possamos
socorrer a
princesa após acabarmos com esses miseráveis”.

Varínia seguiu pelo outro caminho, junto a Fazil,


ladeada por apenas oito soldados e arqueiros, tendo seu
segurança pessoal e
amigo de longa data como o responsável por levá-la até as montanhas do noroeste.
Eles
passariam pelas terras wazulis e
usariam caminhos antigos sob as colinas Nalbari, de modo a chegar ao
Afghulistão
por baixo dos imensos paredões de rocha e gelo, despistando com isso seus incansáveis
perseguidores. Pelo menos era a intenção do jovem segurança.

A insistência dos atacantes denotava um objetivo


traçado e muito nítido: o de sequestrar a soberana de
Khymsha, de modo a
levá-la ao sacrifício. Como costumava sugerir Rashiman, sumo-sacerdote de Asura
em
Azhi-mar: “Princesas virginais são a preferência dos seguidores dos deuses
antigos, pois os seres ancestrais se
lambuzam com a essência vital da inocência
delas, enquanto seus seguidores saboreiam a volúpia da carne
macia dessas
beldades desejadas”.

Após dois dias e duas noites de perseguição quase


ininterrupta, uma emboscada foi realizada contra a
comitiva de Varínia, logo
após o grupo passar por baixo da Nalbari, um pouco antes de adentrarem no desfiladeiro
wazuli. As flechas vararam os acompanhantes
da princesa, culminando em uma chacina sanguinária e deveras
eficiente. Fazil,
ao lado de três soldados sobreviventes, seguiu desfiladeiro acima, sendo todos perseguidos
vorazmente por cavaleiros sem rosto, com suas máscaras profanas e olhos insidiosos.

Não se saberia afirmar que tipo de força mística o


jovem segurança tirou de seu espírito, ou mesmo de
seus valentes e
convalescidos soldados sobreviventes. Magicamente ou não, ele cumpriu muito bem
com seu
objetivo em um primeiro momento, ceifando cultistas com sua espada
curva, cortando ventres e decepando
cabeças como um louco ensandecido.

Em meio ao embate selvagem que se seguiu, uma rocha


foi estilhaçada mediante algum tipo de pó mágico
jogado por um dos atacantes. O
restolho de pedras derrubou dois dos defensores, empinando cavalos e levando os
alazões de Varínia e Fazil a galoparem desfiladeiro acima, quase caindo na
imensidão vazia.

A moça só conseguiu conter o cavalo arredio


mediante o auxílio de Fazil, mas ambos não tiveram sequer
tempo de comemorar
suas sobrevidas. Quatro cultistas vieram no encalço deles, levando Fazil a
retomar a fuga
desesperada. Percebendo a falta de êxito na nova empreitada, até
pelo cansaço dos cavalos e da própria princesa, o
segurança decidiu pelo
sacrifício pessoal, parte de sua obrigação familiar. Ele apontou para a frente,
de modo que
Varínia continuasse adiante e logo se virou para enfrentar os cavaleiros
diabólicos.
- Vá, princesa! – gritou. – Encontre Conan e seus
montanheses. Peça ajuda! Sua mochila está carregada de
ouro. Vá agora!!

Mesmo reticente diante daquelas palavras, a moça


obedeceu, galopando desfiladeiro acima, enquanto Fazil
se interpunha entre ela
e seus vorazes algozes. Ele usou da estreiteza do trecho em uma curva fechada para
enfrentar os atacantes um a um, impedindo, pelo menos num primeiro momento,
qualquer cerco ou manobra de
flanquear.

O jovem tinha uma agilidade sobrenatural no manejo


da espada e as tulwar dos atacantes
foram
bloqueadas uma após a outra por sua espada, enquanto a princesa se afastava
do embate, sem deixar de verter
lágrimas pela provável morte de seu grande amigo
de longa data.

Mais acima no desfiladeiro, a jovem ouviu um grito quase


inumano. Por um breve instante, ela conseguiu
vislumbrar Fazil tendo o torso
trespassado por duas lâminas frias, quando dois dos atacantes sobreviventes
conseguiram brechas para atacar pelos flancos, atirando o corpo moribundo do
rapaz desfiladeiro abaixo. Varínia
tinha ganhado pouco tempo e sabia que os
atacantes eram apenas dois agora, sendo imprescindível da parte dela
não
esmorecer diante dos fatos. O sacrifício de Fazil merecia que ela fosse forte e
continuasse com a missão.

O galope no desfiladeiro era deveras perigoso, mas


a jovem princesa, em total desespero, prosseguiu
adiante. Ela era seguida de
perto por dois cavaleiros de mantos negros. O vento cortante do cume das Himelianas
não dava trégua, e a jovem sentia cada vez mais pesado o ato de respirar, em
meio ao ardor da fuga e ao resfolegar
sob o vento gelado. Seus pulmões doíam como
nunca e os cultistas ganhavam terreno a cada curva na montanha
escarpada,
enquanto a moça quase parava sua montaria para não cair no imenso precipício.

Um dos cultistas atirou aquele estranho filamento


em pó da bolsa de couro cru e um novo estilhaçar na
pedra quase desequilibrou a
princesa da montaria. Varínia sobrevivera a mais uma daquelas magias profanas,
ainda que o esforço tenha minado todas as suas esparsas energias. Seu alazão
arfava tanto quanto ela e a
desesperança era desoladora em seu espírito. Malditos traidores, cultistas e demônios
antigos, pensou em
desespero. Que
sejam proscritos da existência pelas bênçãos de Asura.

O tempo quase parou, mas a jovem prosseguiu,


vendo-se sozinha na montanha. Quando por fim parou seu
cavalo exausto, olhando
para trás, ela não vislumbrou mais seus dois perseguidores. Eles haviam sumido
misteriosamente. O vento uivava e uma neblina gélida solitária percorria o
vazio, vinda de todos os lados. A moça
tinha seus pés e mãos congelados,
sentindo uma tontura inebriante que advinha das dificuldades crescentes de
respirar o ar carregado.

A última coisa que Varínia sentiu antes de


desfalecer e quase cair de sua montaria foi a presença de um
homem a lhe
amparar. Ele a carregou no colo até algum cavalo próximo. O destino decidiria,
por fim, a sorte da
jovem princesa, a soberana de um reino oriental diminuto e
quase esquecido daquela era inimaginável pelos
deuses.

HOSPITALIDADE BÁRBARA

            Estou viva? Como?

Pensou a princesa, deitada em uma cama de palha sob


peles de camelo e tecidos rústicos. O ambiente
caracterizava-se por um espaço
simples de madeira com teto baixio, sustentado em toras grossas, aparentemente
revestido
de barro e cerâmica. A moça sentiu odores distintos, de leite de cabra, oriundo
de uma vasilha acima de
uma mesa redonda ao lado da cama, mesclado aos
excrementos dos animais pelo chão, como se a peça fosse uma
coisa só; parte de
uma moradia para humanos junto a um estábulo.

            Em frente à cama da jovem, sentado


em uma cadeira amadeirada e com os dois pés sob uma outra mesa
simples
retangular, ela vislumbrou um homem muito alto e forte, com cabelos negros arredios
e vulcânicos olhos
azuis.

O homem tinha a pele bronzeada, semelhante à de


alguém curtido ao sol, e vestia uma capa de pele de
animal por cima de uma camisa
branca de tecido grosso, com quatro grandes botões prateados na gola, tendo
também
um grosso cinturão bakhariot de couro
cru com fivela de prata, além de uma bainha pesada para sua
tulwar. Ele vestia também uma calça
negra de tecido grosso, além de botas de camurça pesada até as canelas
grossas.

Seus movimentos tinham um toque de altivez incomum,


indicando uma agilidade quase felina, como se
sua figura expressasse uma
criatura para além do homem mundano, alguém que apenas existia nas fábulas mais
antigas do mundo oriental, quando os anciões contavam relatos sobre os
poderosos senhores do oeste distante.

                      Varínia ruborizou ante o olhar


penetrante do homem, tendo ele na face um leve sorriso selvagem e
pretensioso. Ela
possuía a mais pura certeza de que estava diante do homem que viera pedir
auxílio: o bárbaro
Conan, do povo cimério. Se o destino gostava de brincar com
os mortais, pensou a jovem soberana, aquela era
uma pilhéria divina das mais
misteriosas. De qualquer forma, com o destino ou não por trás de toda a epopeia
pela
que passara nos últimos dias, Varínia tentaria ser racional e prática,
usando a situação pelo bem de si própria e de
seus respectivos súditos.

            - Olá, Conan. Eu vim aqui requerer


sua ajuda. Eu trouxe uma mochila cheia de ouro de Khymsha e...

                      - Seu ouro eu já tenho, garota. Se


pensares, bem, não existe nada que possas barganhar comigo –
interrompeu Conan,
apoiando a cabeça na mão esquerda fechada, igualmente apoiada sobre o recosto da
cadeira,
em descanso.

            - Sim, claro. Eu entendo. Mas quero


dizer que fui atacada pelos cultistas de Zanzimar. Eu estava junto de
meus
soldados e eles sacrificaram suas vidas pela minha segurança até aqui. Tal fato
deveria ser considerado em
alguma possível tratativa nossa – ela interpelou,
sentando na cama com movimentos rápidos, tentando mostrar
certa imponência
diante da atitude um tanto indiferente do bárbaro.

            - Sei bem pelo que passou. Aqueles


lobos estavam em seu encalço quando eu e meus batedores varamos
seus corpos com
flechas. Não é todo dia que vejo esses malditos cães tão longe de sua montanha
profana. E,
muito menos, a soberana de um reino oriental fugindo da morte nos
desfiladeiros das Himelianas – respondeu
Conan, deixando de sorrir, mas ainda
mantendo seu corpo em aparente descanso.

            - Se sabes quem eu sou, então


entendes que posso conseguir mais daquelas bolsas abarrotadas de minérios
preciosos. Khymsha possui minas vultosas ao norte e precisamos de seus
serviços.

            Conan não respondeu de pronto.


Apenas se levantou rapidamente. Ele pegou uma garrafa alocada em cima
da mesa e
serviu uma taça disposta ao lado. O cimério bebeu um pouco do líquido incolor,
limpou a boca com as
costas da mão direita e se virou para Varínia. Não havia
mais o sorriso de outrora, apenas a expressão de uma
sabedoria bárbara primal,
seus olhos parecendo dissecar o espírito da moça, desnudando-a por completo.

Podia se dizer que aquele bárbaro causava sentimentos


dos mais estranhos em Varínia, algo que ela
nunca sentira até então por
qualquer outro homem, mesmo Fazil ou algum outro serviçal de seu imponente
palácio.

                      - Sei um pouco dos seus problemas e de


suas vantagens, garota. Pilhamos suas vilas e cidades e
observamos os vermes da
montanha atacarem suas fronteiras. É o modo afghuli
de ser. De aproveitar-se de
situações vantajosas e de não se envolver com os problemas
alheios – falou Conan, de forma direta e lacônica.

            - Que seja o jeito de ser desses


montanheses. Mas pelo que sei, você não é um deles, Conan. E seus
seguidores teriam
muito a ganhar de Khymsha em uma aliança provisória. E você também poderia se
beneficiar
ainda mais, caso intercedesse pelo meu reino junto à Devi de
Vendhya.

“Pelo que me consta, ela é sua amiga e aliada. Segundo


alguns, ela é também sua amante”, terminou
Varínia, ainda mais ruborizada com
suas últimas palavras. Conan sorriu e respondeu prontamente, com seu teor
selvagem e honesto, sem quaisquer tabus dos homens e mulheres civilizados.

            - Minhas visitas a Yasmina realmente


não tratam de questões geopolíticas ou do interesse afghuli, e posso
dizer que não me arrependo em nada. Muito pelo
contrário. Mas o ponto aqui é que me ofereces ouro que posso
tomar de seu reino
sem precisar me aliar a você. Pedes também que eu deixe meu comando entre os afghulis aqui
em Ghor e que eu me dirija
até Vendhya, e peça ajuda à líder dos kshatriyas,
de modo a que sua rainha ordene um
ataque aos cultistas da montanha. Algo que, talvez,
Yasmina tenha pouca capacidade de manobra.

“Posso dizer”, continuou Conan, “que a influência


desses chacais sacerdotes alcança reinos distantes e,
pelo que eu depreendo das
ações da rainha de Vendhya, ela
parece estar com as mãos atadas por conta de alguns
nobres pomposos de sua
corte, homens deveras fiéis a esses lobos demoníacos, provavelmente muito bem
pagos
pelos membros dessa seita maldita que lhe perseguiu até aqui”.

Enquanto Conan, explicava as questões de Estado da


região, Varínia se impressionou ainda mais com sua
imponência e altivez, muito
em razão de um bárbaro tão rude, de uma cultura tão distante das partes
ocidentais,
entender como poucos das complexas questões das cortes locais de
forma tão acurada.

O cimério mais lhe parecia um rei sábio, ou mesmo


um conselheiro real do que o rústico selvagem que
muitos civilizados das
nobrezas locais diziam que ele era. A princesa não apenas se interessara pelo imponente
porte físico do cimério, ou mesmo por seu olhar penetrante, como também por sua
desenvoltura ao ponderar sobre
aquelas questões complexas. Fazia todo o sentido
agora o fato de Yasmina aceitar o cimério em sua cama. Conan,
sem perceber o
olhar de aprovação da jovem princesa, continuou:

            - Mas o ponto aqui é outro e posso te


explicar. Os afghulis não se meteriam
com os cultistas, e não apenas
por conta de suas crendices e tabus tradicionais,
mas porque tal ação não lhes traria quaisquer vantagens no curto
prazo. Eles
preferem pilhar seu ouro, princesa, do que se aliar com seu reino ou mesmo com qualquer
outro da
região.

“Nem eu, em minha função de liderança” continuou


Conan, “me atreveria a ir contra as tradições desses
cães, a menos, claro que
não mais me importasse com minha posição de liderança, algo que pode acontecer
a
qualquer momento. Esses chacais da montanha ainda me seguem porque consigo boas
pilhagens para eles, e
também pelo fato de livrar o couro da maioria quando atacamos
reinos e caravanas.

“Então”, terminou o cimério, “eu só posso lhe prometer


uma certa segurança aqui, em nome da
hospitalidade. Enquanto estiveres em Ghor.
Claro que isso pelo ouro de sua bolsa, que já está em minha posse. De
resto, eu
te aconselho a voltar a Khymsha e tentar conviver com esses malditos fanáticos
e seus rituais diabólicos
a deuses profanos. Quem sabe, o tal deus antigo deles
volte a hibernar sob a montanha e, quem sabe, seus cultistas
decidam retornar
aos esgotos de Zamora, de modo a retomar suas crenças junto aos deuses-aranhas
de lá”.

            - Se fosse tão simples assim,


cimério... – respondeu a princesa de pronto, com certa reverência incomum. –
Mas
não há essa possibilidade agora. Meus súditos são sequestrados pelos cultistas,
as crianças de meu reino
desaparecem de seus lares nas noites rubras de suas
cidades silenciosas e o medo impera em diversas regiões
próximas às Himelianas.
Lembra-te que esses cultistas atacaram minha comitiva, e isso deixa claro que
eles
anseiam por algum sacrifício real para sua divindade. O meu sacrifício!

“Se não podes ou não queres me auxiliar”, continuou


Varínia, “pois bem, eu entendo. Pelo menos, que
me deixes seguir meu caminho em
segurança até Ayodhya. Estando lá, eu mesma implorarei a Yasmina. Talvez
ela
desamarre seus nós políticos em sua corte e decida agir contra esses fanáticos,
antes que o poder sob a
montanha amplie ainda mais seus tentáculos em Vendhya”.

            A moça ficou orgulhosa de suas últimas


palavras e de toda a racionalidade inserida nas mesmas, ainda que
ela tenha
perdido muito de suas esperanças diante dos argumentos de Conan. As palavras do
bárbaro desvelaram
que Yasmina talvez não tivesse como ajudar, por alguma
influência nefasta entre os nobres de sua corte.

Talvez o traidor da sua própria corte, Punjar,


contasse com aliados em Ayodhya, significando que os
cultistas alcançavam
diferentes palácios e reinos, como bem sugerira o bárbaro na conversa.

Conan também não parecia propenso a deixar os afghulis sem a sua presença na vila. Provavelmente
por
estar com sua liderança em disputa, ou quem sabe, por não ter o apoio de
todos os montanheses do bando. Ela não
sabia dizer ao certo, mas lideranças
questionadas em bandos nômades, por melhor que elas fossem, não era algo
incomum
entre grupos de companheiros livres de forma geral.

A princesa, no final das contas, havia conseguido


apenas a promessa do bárbaro de mantê-la em
segurança na vila afghuli. O que sobrara para ela, então,
era garantir uma escolta para que pudesse se dirigir à
metrópole, de modo a
barganhar pessoalmente por ajuda. Era um pensamento positivo diante do aparente
fracasso
da empreitada.

            O cimério tomou mais um gole do


líquido da taça e se retirou de imediato, sem dizer mais nenhuma
palavra, fazendo
apenas uma leve mesura sem jeito, de modo a manter a cortesia. Varínia não
deixava de se
impressionar com a ausência de malícia nos olhos do bárbaro
durante a conversa.

Ela sempre pensara que os homens selvagens fossem


ainda piores dos que os civilizados em seus desejos
instintivos masculinos, mas
parecia que Conan tinha um pragmatismo e um respeito a ela que faltava aos
civilizados, incluindo os nobres de seu palácio. Se ele a desejava, não
transparecia como um tolo obtuso sem
critério, mantendo sua compostura, ao
mesmo tempo em que todo o vigor de sua masculinidade.

De qualquer forma, a jovem princesa estava se vendo


como uma provável enamorada de Conan no
futuro, e tais pensamentos a deixavam
totalmente desguarnecida e envergonhada. Como
pode isso Varínia?,
pensou ela. “Como
podes estar a pensar nessas coisas, num momento como esse, e logo com um bárbaro
brutal
do porte de Conan”?

            A noite chegou ao acampamento afghuli e Conan decidiu parlamentar com


Agmar, seu velho aliado de
confiança dentro do bando. Ambos tratavam dos problemas
da princesa e o cimério enfatizava a promessa de
segurança feita a ela,
seguindo as normas da hospitalidade. O afghuli
argumentava que os montanheses não se
importavam com tais formalidades e nem
com palavras ao vento, mas sim com as vantagens que a presença da
soberana de Khymsha
poderia trazer ao bando.

Um pedido de resgate ao pequeno reino seria,


provavelmente, a opinião da maioria dos integrantes do
grupo, caso Conan
decidisse colocar essa questão em alguma assembleia de guerreiros. O bárbaro nortenho
não
era muito propenso a esse expediente tradicional, mas ele sabia que as
normas usuais não podiam ser totalmente
descartadas, sendo imperativo seguir
algumas delas para assegurar a manutenção de sua liderança.

                      A questão foi imediatamente suspensa


quando um grito desesperado de alarme foi proferido,
aparentemente por uma das
sentinelas responsáveis pela segurança da vila. Entre avisos e gritos, o homem
bradou
que Ghor estava sob ataque. Conan não esperou muito para sacar seu tulwar e se dirigir ao local. Quando
saiu às
ruas, o bárbaro vislumbrou um cerco, com a vila tomada por homens de
mantos negros, a maioria nas selas de
seus respectivos cavalos. Os cultistas de
Zanzimar não tinham desistido de levar
sua presa para seu deus profano,
e Conan não podia quebrar sua promessa de proteger
a soberana de Khymsha.

            O cimério correu em direção aos


cavaleiros que adentravam na vila, e logo varou corpos com sua espada
larga,
derrubando vários sacerdotes de seus alazões leves. Os montanheses igualmente saíam
de suas moradias
com arcos ou com suas tulwar
desembainhadas em mãos, defendendo suas casas com a fúria comum dos
desesperados.

Em meio ao caos do ataque e da turba de defensores,


o guerreiro cimério vislumbrou, parado em um
local mais distante, um imponente cavaleiro.
Ele estava à beira de uma encosta elevada no desfiladeiro em frente à
vila. Tratava-se
de um homem alto e com um pesado capuz negro sobre a face, apontando para a
casa de madeira
aonde se encontrava Varínia. Provavelmente, pensou Conan,
tratava-se do líder do ataque, usando expedientes
mágicos para se comunicar mentalmente
com seus seguidores.

                      Não havia tempo a perder. O cimério precisava


chegar até a princesa rapidamente. Ele trespassou
membros e músculos de cada
cultista próximo à casa. Quando percebeu, Conan estava com sua espada
ensanguentada e com uma tocha na outra mão, usando ambas em seus ataques bestiais.
Flechas varavam os céus
da madrugada fria e cabanas de madeira eram
estilhaçadas com mágicas profanas, pegando fogo sem qualquer
origem aparente.
Os gritos eram proferidos por mulheres e crianças, e os homens afghulis lutavam como bestas
inumanas a
defender suas crias e famílias.

            Conan decepou a cabeça de um


cultista e, logo após, abriu o ventre de outro próximo, antes de chegar à
cabana onde deveria encontrar a princesa. Tarde demais. Alguns encapuzados
levavam Varínia de seu aposento,
desmaiada. Eles montaram rapidamente em seus
cavalos bravios e ganharam a inclinação que levava à saída da
vila.
O cimério tentou em vão atacar dois cavaleiros
postados a sua frente, em uma alameda inclinada, mas os
homens estavam
dispostos ali para impedir o resgate da princesa, em posições elevadas e um
tanto seguras. Logo
após derrubar o primeiro com um poderoso golpe de espada,
Conan sentiu uma pressão do chão a seus pés, uma
aparente erupção e uma
explosão a seguir. O piso onde o bárbaro se encontrava foi estilhaçado, jogando
seu corpo
titânico para o lado, a uma distância incomum.

            Os gritos de desespero continuaram


por algum tempo, e Conan se viu quase inconsciente, após bater a
cabeça em uma
viga de madeira, tendo um forte zumbido nos ouvidos, sendo igualmente acometido
pela tontura
do choque. Levantando-se com extrema dificuldade, como se
estivesse embriagado após uma noite de orgias, o
bárbaro apenas conseguiu
vislumbrar o bando atacante escapando pelo desfiladeiro de entrada e saída da
vila,
enquanto os afghulis atiravam
flechas para o alto, atingindo alguns cultistas da retaguarda.

A jovem princesa de Khymsha, que viera até Conan


pedir auxílio em seu desespero, tinha finalmente
caído nas garras daqueles
fanáticos diabólicos. O cimério estava indignado e pensou que precisava fazer
valer sua
palavra, nem que tivesse que descer aos infernos para resgatar a
moça. Quando Conan montou em um alazão
qualquer para começar a perseguição aos
cultistas sequestradores, ele foi interpelado por Agmar. O afghuli
colocou a mão no antebraço esquerdo do cimério, olhando firmemente
em seus olhos azuis. De modo firme e
veemente, ele falou ao nortenho:

            - Sabes bem que se fores no encalço


desses malditos chacais, nada garantirá tua liderança entre os homens
daqui.
Muitos perderam familiares nesse ataque, e provavelmente lhe responsabilizam
por trazer o alvo dos
cultistas até a vila.

            - Sem dúvida. Mas preciso fazer


cumprir o que prometi. A princesa estava sob minha proteção e falhei
com ela,
assim como cometi um enorme erro em considerar que esses cães não iriam tão
longe para capturar seu
valioso sacrifício – respondeu Conan, sem deixar de
subir no cavalo e de acenar com a cabeça.

            - E mesmo assim, pretendes ir


sozinho até Zanzimar? Enfrentar toda
uma seita de fanáticos arcanos e mais
um deus antigo? – perguntou Agmar, já
sabendo a resposta.

            - Não sei responder de imediato – respondeu


Conan, com seus olhos em brasa e um leve sorriso nos lábios.
– Vou ver o que
consigo com uma espada e astúcia. Posso rastrear o grupo e tentar algum empreendimento,
antes
que cheguem ao destino, ou posso simplesmente entrar na caverna e varar
as cabeças dos malditos líderes
cultistas. Se puderes, envie alguém até os kshatriyas. Peça para que eles reportem à sua
senhora o que aconteceu
aqui. Khymsha é tributário de Vendhya e eles devem
proteção ao pequeno reino. Uma princesa sequestrada e
sacrificada por
sacerdotes não seria de bom tom numa corte de nobres civilizados, com suas
panças exageradas e
fala mansa.

            - Posso tentar isso, sem dúvida. Muito


mais pelo que lhe devo pessoalmente, do que por qualquer outra
coisa além
disso. Mas minha questão é outra. Vais te atrever mesmo a enfrentar um Demônio
da Noite Antiga,
algo não natural e que segundo dizem vive sob aquela montanha?
– perguntou mais uma vez Agmar, não
escondendo o tom de desdém e até de descrédito
diante da intenção do cimério.

            - Ora. Não sei quase nada sobre


deuses ou demônios antigos. O que posso dizer é que se algum sangue
corre nas
veias desse tal ser, minha espada não irá deixar de cortar sua carne e nem
lamentará por fazer o trabalho
para o qual foi feita. Não será a primeira vez
que entro em situações como essa e como podes ver, ainda estou
entre os vivos
para contar o velho jargão do noroeste continental: de que tudo o que sangra pode ser morto.
Então, homem, espero
descobrir sobre isso ou morrer tentando! – finalizou Conan, sem antes deixar de
pegar um
grosso casaco de peles oferecido por Agmar, junto de uma mochila com
provisões para a viagem que ele teria pela
frente.

O cimério saiu a galope pelo desfiladeiro escuro.


Ele sabia que a princesa de Khymsha tinha
se dirigido
às pressas até ali, para pedir por auxílio contra os cultistas do terrível
poder sob a montanha. Ao ser tomada por
aqueles lobos, Varínia acabou conseguindo
que um dos homens mais perigosos do continente intercedesse por ela,
mesmo que
esse homem não tivesse qualquer intenção inicial de realizar tal empreitada.

A seita de fanáticos da montanha iria lidar então


com a espada selvagem do bárbaro cimério. Muito
provável que um deus poderia
não ser suficiente para impedir a ação daquele homem oriundo do oeste distante.
O
destino havia terminado de jogar suas últimas peças. O homem Conan faria
cumprir sua palavra de proteger a
princesa, ou morreria tentando. Nenhum deus,
sacerdote, cultista ou demônio poderia impedi-lo de vergar sua
pesada espada e de
extrair algumas tripas entre aqueles que se interpusessem em seu caminho.

VI

NO ENCALÇO DOS CULTISTAS

            Uma vaga lembrança vigorava na mente


de Conan, ainda que arredia e incompleta. Seu corpo inerte num
elevado terraço
da montanha, quase que recoberto de gelo detonava uma imensa queda, certamente
que fatal, não
fosse a sorte do cimério ao deparar-se com aquela saliência
recoberta com neve, o que ajudou a amortecer seu
corpo.
Após o ataque dos cultistas e o sequestro da
governante de Khymsha, Varínia, o cimério tinha rastreado o
grupo, tão logo
eles deixaram o desfiladeiro da vila afghuli,
entrando em outra trilha que os levaria até a
montanha profana. Conan ficara no
encalço dos sequestradores da princesa por dois dias ininterruptos, ao longo
da
Passagem Gurashah e havia chegado a trespassar dois cavaleiros da retaguarda do
bando em uma das elevações
gélidas das Himelianas, uma curva íngreme fechada
caracterizada pela presença de picos escarpados na rocha
sólida.

            Logo, o cimério se vira encurralado


diante de dois outros cavaleiros a fechar a passagem estreita, com
mais outro daqueles
fanáticos surgindo de súbito por trás dele, provavelmente escondidos em uma pequena
caverna na parede monolítica da elevação. Tal fato levara o bárbaro a se
engalfinhar em mais uma contenda de
espadas de cima de seu garanhão cansado, e
isso contra dois inimigos igualmente montados. Não havia demorado
muito para
Conan verter sangue de um dos homens, ainda que o ferimento não tenha sido mortal.

A surpresa viera na forma de uma nova explosão, tal


e qual havia ocorrido na vila de Ghor, fato que mais
uma vez arremetera Conan
com força, desta vez sob os pés de sua montaria. O animal havia empinado
bruscamente, derrubando o cimério precipício abaixo, fazendo cair no vazio
também os dois cultistas adversários.
Havia sido o fanático vindo da caverna escura
que jogara o pó explosivo em direção aos três combatentes
montados,
sacrificando até mesmo seus companheiros em nome de livrar seus irmãos do
implacável perseguidor.

            Conan não sabia dizer por quando


tempo ficou desacordado após a longa queda, mas a julgar pela nevasca
severa
das Himelianas a nublar sua visão, mais o vento cortante que sequer existia
quando enfrentou seus
inimigos, ele considerou ter ficado quase meio dia sem seus
sentidos. Qualquer homem civilizado teria certamente
perecido na queda,
sofrendo ainda mais com os rigores do clima. O cimério, porém, fazia parte de
uma raça de
bárbaros resistentes e brutais, possuindo um vigor e uma força
incomum para quaisquer padrões conhecidos dos
civilizados.

            Quando recuperou suas forças e


reestabeleceu seus respectivos sentidos de ave de rapina, Conan decidiu
então
escalar a montanha íngreme parcialmente gelada, de modo a retornar ao ponto de onde
se encontrava antes
da queda. Seriam vários metros com as mãos nuas no paredão
rochoso da montanha gelada, ela que continha
filamentos de gelo que derrubariam
o melhor dos alpinistas hiborianos.

O sangue da raça ciméria lhe dava segurança na


empreitada, visto ser Conan membro de um grupo de
homens brutais que vivia nos
ermos de vastidões sombrias e melancólicas de seu país, uma raça que tinha como
uma das suas principais características culturais e biológicas, a capacidade de
escalar montanhas íngremes e
indiferentes.

            Enquanto subia a rocha escarpada sob


a nevasca incessante, enfrentando de peito aberto o vento cortante,
o bárbaro
se lembrou dos tempos de sua juventude, antes de Venarium, quando ele e outros integrantes
de seu clã
escalavam as elevadas montanhas da ciméria por pura diversão,
incluindo as que separavam seu país da terra dos
povos nordheimers, dos altivos
aesires e dos brutais vanires.

Não fosse pelas dores viscerais nos poderosos


músculos de ferro, mais as dificuldades daquela escalada
frente aos rigores do
clima gélido, o cimério estaria até mesmo se divertindo na empreitada. De certo
que a
preocupação com o destino da princesa sequestrada não ajudava em seu
humor, absorto em constantes doses de
melancolia, mas igualmente condicionando
seu espírito em frente.

            Depois de algum tempo na difícil escalada,


Conan retornou ao ponto inicial onde encontrara os cultistas.
Por mais um acaso
da fortuna, seu alazão continuava ali, parado, arfando sobre o vento inóspito
do elevado
desfiladeiro. O cimério não se demorou e, de pronto, montou no
animal alquebrado, seguindo adiante em meio à
neve que se tornava cada vez mais
forte.

Ele sabia que o clima severo junto da queda e do


tempo que estivera inconsciente havia lhe atrasado um
dia inteiro, em
comparação aos cultistas sequestradores. Isso significava que Conan só
conseguiria chegar aos
canalhas quando eles já estivessem na segurança de sua
montanha profana.

            A decisão inicial do bárbaro não


tinha se alterado. Como ele afirmara para Agmar na vila afghuli, ele
desceria até o inferno para cumprir sua palavra dada perante
a jovem monarca, antes dela ser levada à força de
Ghor. O cimério não deixava
de amaldiçoar sua honra pessoal bárbara, e mesmo à sua indiferente deidade
principal de nome Crom, ao mesmo tempo em que o desafio da empreitada
estimulava seus poderosos membros a
seguir adiante.

Não era de todo ruim livrar o mundo de uma seita de


fanáticos canibais e corruptos, liderados por
poderes mágicos necromânticos e
gemas explosivas. Muito menos seria problema para ele ceifar algum monstro
antigo
cultuado como uma divindade demoníaca. Muitos nômades beduínos e hirkanianos
das estepes chamavam
a criatura da montanha de “Rastejante Negro” e Conan não
conseguia deixar de sorrir diante da ideia de cortar um
ser rastejante em dois ou
três com sua espada indiferente.

            O tempo passou e o cimério venceu a


tempestade de neve que se seguiu, tendo que se abrigar a noite
seguinte em uma
pequena caverna no desfiladeiro mais próximo da Zanzimar, conhecido como Estreito
de Amir
Jehun, que iniciava a passagem em direção ao Afghulistão.

Ao longe dali, ele podia vislumbrar a montanha


próxima a Yimsha, onde ele enfrentara, junto de Kerim
Shah, os acólitos e o perigoso
mestre dos Profetas do Círculo Negro, mais ou menos há dois invernos atrás. Isso
para resgatar uma outra monarca na ocasião, algo que se tornara um padrão em
sua vida errante.

Não cabia a Conan julgar o destino, e nem se


preocupar com as intempéries da vida ocasionada pelas
vontades dos deuses ou
demônios. Para o cimério, bastava saber que o sangue fluía quente em suas veias
e que
sua vontade pessoal era soberana frente aos problemas maiores da
existência, até que a morte ceifasse sua última
respiração.

            No dia seguinte, com o clima aberto


e o frio um tanto mais ameno, Conan seguiu seu rumo, adentrando, ao
final da
tarde, o desfiladeiro final que o levaria à entrada da caverna do poder oculto
sob a montanha. Um pouco
antes do cair da noite, ele vislumbrou uma cena
tétrica, e até sádica.

Milhares de soldados do pequeno reino de Khymsha


empalados na borda da trilha que subia a montanha
profana, alguns deles ainda
se retorcendo em sofrimento dilacerante ante a viga que lhes perfurava o corpo
até a
boca. O cimério não tinha dúvidas que eram os soldados da princesa.
Homens fiéis, que haviam tentado alguma
ação contra os cultistas de Zanzimar,
sendo sumariamente chacinados na batalha que se seguiu ali, talvez ainda
ontem,
enquanto o bárbaro estava apagado na elevação de gelo da impiedosa montanha.

            Subindo lentamente o aclive, Conan


foi observando os mortos e semimortos e chegou a reconhecer o
provável líder.
Um homem chamado Yang Shan, um general que ele já havia encontrado há tempos
atrás, quando
os súditos de Varínia vieram até Ghor para tentar algum tipo de
acordo, de modo a acabar com os ataques
afhgulis.
O homem estava morto, igualmente trespassado pela viga. Sobre sua armadura despedaçada,
os dizeres
na língua vendhyana: fiquem
longe do poder oculto sob a montanha.

            Por alguns instantes, o cimério


pensou estar sendo observado, apesar de não saber com precisão de onde
vinha o
perigo. Ele parou seu cavalo exausto, perscrutando o ambiente e olhando para
todos os lados. Seus
sentidos estavam em alerta e sua respiração lenta para
tentar solucionar o mistério. Conan chegou a ouvir um
zumbido fraco trazido
pelo vento, tentando discernir melhor ao tentar ampliar instintivamente seus sentidos,
principalmente o da audição.

O vento trazia uma música leve e ignominiosa, algo


profano que parecia expressar um cântico em versos
hexâmetros, uma oração, talvez,
com vozes humanas roucas e em uníssono. Provavelmente, pensou Conan, eram
os
fanáticos sob a montanha, cantando versos inomináveis em adoração ao seu diabólico
deus ancestral.

                      Por algum momento, o tempo parou. Em


um dos lados, Conan vislumbrou, ainda que por um breve
instante, a silhueta de
uma pequena criatura. Ele notou que o ser diminuto se escondeu rapidamente em
alguma
saliência de pedra, atrás de alguma rocha. Por tais motivos, o bárbaro
não conseguiu sequer dirimir o que
realmente seria tal ser. Mesmo vislumbrando
de forma rápida, parecia a Conan um pequeno homem em miniatura,
escondido em alguma
elevação na parede rochosa. Uma espécie de homúnculo antropomórfico com um
tentáculo
viscoso no lugar da cabeça.

O cimério nem sequer puxou a espada da bainha, pois


sentia que o pequeno ser tinha adentrado em
alguma rachadura da caverna,
fugindo rapidamente da cena onde o bárbaro se encontrava. Uma certeza se
apresentava ao cimério: o monstrinho sabia de sua presença e poderia avisar os
cultistas que ele estava ali, para
adentrar a montanha e causar confusão.

            Conan seguiu em frente mais uma vez.


Ao cair de mais uma noite, ele pôde vislumbrar uma inclinação que
descia até um
vale aberto entre as paredes rochosas de Zanzimar, onde uma grande entrada em forma
de arco
abrigava uma turba de pessoas de raças distintas. Era como uma clareira
de pedra em meio a paredões elevados,
um terraço, como se o desfiladeiro
literalmente entrasse num grande cume partido na ponta.

A turba estava dispersa, com alguns sujeitos dormindo


ao relento e outros ajoelhados em adoração.
Muitos estavam à beira de fogueiras
e alguns dividiam restos de carne de animais mortos em volta. Em comum a
todos
eles, de certo mesmo, os mantos negros em volta dos corpos cheios de chacras
abertas na pele,
provavelmente pelo constante autoflagelo imposto. Conan
vislumbrou alguns fanáticos ali utilizando sobre os
próprios corpos certos
instrumentos de açoite. Correntes em ferro pontudo ao lado de cordas de couro.

            O cimério seguiu adiante e logo


deixou seu garanhão mais afastado, amarrado a alguns galhos no paredão
de
pedra, temendo que o animal fosse atacado por alguns daqueles homens famintos
ali reunidos. Não era
incomum vislumbrar os olhos sediciosos de alguns daqueles
indivíduos, em direção a sua montaria. O odor era
insuportável e acre, visto
que alguns dos fanáticos estavam mortos e em decomposição em meio aos ainda vivos.
Esses sequer tiveram o trabalho de enterrar os mortos ou queimar as carnes apodrecidas,
o que denotava tratar-se
de algum motivo de culto ou mero desprezo.

            Logo, Conan se viu obrigado a chutar


alguns daqueles insanos que lhe abraçaram os joelhos em uma
espécie de
veneração sórdida. Não foi difícil a ele encontrar um manto negro, entre algum
dos mortos na clareira.
Não seriam aqueles desesperados a impedir o bárbaro de
entrar na caverna, visto que a passagem estava aberta e
parecia convidativa
para que novos fanáticos se juntassem à turba profana que preenchia aquela
montanha.

Provavelmente, pesou Conan, os corredores


cavernosos levavam a muitos dos salões de pedra no interior
de Zanzimar. Era o
momento final da empreitada e Conan sabia que sua passagem de ida para os
subterrâneos da
caverna profunda podia não ter volta. Talvez ele se perdesse
ali, durante dias, e talvez sequer conseguisse
encontrar Varínia, antes de seu
sacrifício.

Uma única certeza pairava na mente do cimério. Ele


não pereceria ali naquele lugar esquecido pelos
deuses, sem antes ceifar muitos
de seus filhos diabólicos. Os cultistas do poder oculto sob a montanha teriam
nele
um inimigo voraz, ansiando eles por algum auxílio de seu deus profano,
caso o bárbaro decidisse desembainhar
sua espada.

VII

OS SEGREDOS DA MONTANHA PROFANA

 
            Os horrores presenciados por Varínia
e mesmo por Conan no interior das cavernas de Zanzimar foram
muitos e pode-se
dizer que a sanidade da princesa foi para sempre afetada diante dos milhares de
mortos,
sacrifícios, canibalismos, autoflagelações de fiéis e visões sobrenaturais
cósmicas que ela presenciou. Pode-se
dizer até que, para o cimério, somente seu
espírito bárbaro primal o impediu de perder a respectiva razão,
mantendo ele
seu objetivo inicial envolto em seu pragmatismo característico.

Passaram-se três dias e três noites, desde que o


bárbaro adentrou os subterrâneos da montanha, e ele
aproveitou-se de tais
momentos para vasculhar o local, como se fosse mais um daqueles fanáticos de
mantos
negros e capuzes sob olhos insidiosos. Conan entendeu que havia duas
sessões bem distintas de ambos os lados da
câmara principal cavernosa, onde se
encontrava a turba de fanáticos em adoração. Todos eles em frente ao que
parecia ser uma imensa escultura de carne em descanso sobre um majestoso trono
de pedra.

De um lado da imensa caverna, um corredor estreito


que levava a salões menores e contínuos, onde se
encontravam os prisioneiros a
serem sacrificados, dispostos em gaiolas ou jaulas pendidas em elevações e
terraços
naturais de pedra, várias delas servindo como pórticos a cavernas
menores.

Era exatamente o local onde o bárbaro tinha


vislumbrado ao longe a princesa de Khymsha, esperando o
melhor momento para
libertá-la, sabendo ele que a moça era vigiada continuamente por cultistas e
lacaios. Do
outro lado da grande caverna da escultura de carne, ele notou um
corredor estreito selado com uma pesada porta
de ferro, provavelmente a
passagem para câmaras onde se abrigavam os cultistas líderes. Onde o bárbaro
poderia
entender melhor alguns segredos do lugar.

            Varínia estava aprisionada em uma


das diversas gaiolas e jaulas daqueles a serem sacrificados, ladeada por
nobres
pomposos de diferentes reinos civilizados, fossem eles do oriente próximo ou do
ocidente distante. A
princesa conheceu ali alguns indivíduos de raças diversas,
provenientes de reinos famosos, incluindo uma jovem
nemédia de nome Júlia e um
turaniano de Secunderam, conhecido pela alcunha de Khalid. Fora alguns irakzais
irritadiços com peitos e rostos
peludos, possuindo todos seu histórico mau humor fatalista e objetividade
latente
nos modos de falar.

Quando os dois nobres foram retirados de suas respectivas


jaulas por cultistas, mesmo que em dias
distintos, e quando ambos não mais
voltaram para a zona dos reféns, a moça teve a certeza de que eles tinham
sido,
por fim, sacrificados na grande caverna central de Zanzimar, aonde se
encontrava aquela divindade ancestral
e diabólica, adorada por um séquito de
fanáticos ensandecidos.

A princesa tinha vislumbrado a criatura mais de uma


vez quando fora levada em diferentes ocasiões para
se banhar em uma caverna
paralela. Sua mente entrou em paranoia a partir desse momento. O ser ignominioso
parecia um golem vivo de carne mumificada,
com quase três metros de altura caso ficasse de pé e não sentado no
imponente
trono de pedra. A criatura tinha um rosto com nariz aquilino e de formato
estígio, possuindo olhos
estreitos esverdeados sobrenaturais e brilhantes,
olhando comumente o vazio e sua frente.

O crânio da coisa tinha uma abertura estranha, como


uma ferida feita por um machado duplo. Dali
costumava sair, algumas vezes, uma
coisa minúscula em forma antropomórfica, mas com três tentáculos no lugar
de
cada um dos pequenos braços e mais um maior no lugar da cabeça, como se fosse
um pescoço retorcido e
flácido, semelhante ao tentáculo longilíneo de um polvo.

Varínia não sabia os motivos daquela pequena coisa


que saía e depois retornava ao crânio do ser titânico
sentado, mas ela notou um
padrão naquela estranha situação, o que a ajudou a manter sua mente arguta em
funcionamento. Quando o homúnculo se afastava, os olhos cerrados daquele grande
ser se abriam levemente,
ganhando certa expressão altiva na face. Quando, por
sua vez, o pequeno ser retornava ao crânio e adentrava
novamente na ferida
aberta, o grande deus cerrava novamente os olhos, ganhando novamente a
expressão usual de
um ser catatônico e sem vontade.

Parecia a Varínia, em seu discernimento limitado


diante de tão bizarra situação, que o homúnculo era um
pequeno parasita a sugar
a vontade do grande ser diabólico. Tudo era ainda mais estranho em razão dela,
mais de
uma vez, ter vislumbrado o pequeno ser diminuto no ombro do cultista
chefe, o mesmo homem que tinha liderado
os demais fanáticos em seu sequestro
das terras afghulis.

Enquanto isso tudo acontecia, Conan intentava


adentrar no salão com a porta de ferro. Ele esperou a
segunda noite, quando um
cultista vasculhou uma bolsa consigo e retirou dela um molho de chaves. Uma
delas
servia na fechadura da grande porta, alertando o cimério de uma situação
vantajosa. Logo depois de abri-la, o
homem teve seu pescoço quebrado pelo
poderoso braço titânico de Conan, que logo adentrou na câmara após
jogar o
corpo em alguma caverna paralela, de modo a escondê-lo dos demais cultistas.

Com as chaves em mãos, o cimério adentrou aquela


seção e logo pegou uma das tochas alocadas nas
paredes. Ele percebeu que tinha
tempo até o sacrifício da princesa, pois presenciou uma morte a cada noite, a
primeira, de um nobre com feições hirkanianas, o outra, de uma jovem mulher de
feições hiboriana,
provavelmente de origem nemédia ou aquilônia. O que mais
chamou a atenção de Conan ali foi o corredor que se
seguiu, algo deveras
estranho e que ele nunca tinha presenciado até então em sua vida agitada.

As paredes rochosas estavam cobertas com algo que


parecia ser diversos dutos de carne e tecido vivo,
como se fossem veias de
cores esverdeadas distintas, semelhantes a grossas teias de aranhas zamorianas,
em
variadas direções. Em algumas bifurcações, existiam o que pareciam ser estátuas
de carne mortificada, seres
antropomórficos com mantos acinzentados, como se fossem
feitos também de tecido humano, contendo capuzes a
tapar rostos aparentemente
humanos.

As diversas veias grudadas e dispostas nas paredes de


pedra se bifurcavam por todos os lados e algumas
delas entravam nas costas de
cada uma das diversas estátuas de carne e de músculos. Eram muitas delas, pensou
Conan, quase incontáveis à primeira vista, pois o cimério percebeu estar em uma
espécie de labirintos de
corredores, nas suas mais variadas direções.
Se Conan aproximava a tocha de um daqueles seres
esculpidos de pele, podia vislumbrar que embaixo de
seus capuzes de carne, existia
apenas um rosto sem face, mas com uma boca rasgada diante do fogo da tocha,
algo
que quando visto mais de perto, nublava os sentidos do cimério por alguns
instantes. Algumas vezes, vindo dos
dutos de veias tentaculares dispostas nas
paredes, Conan escutava um zunido leve e podia observar o que
pareciam ser alguns
pequenos feixes de raios faiscantes, como os que ocorriam nas piores
tempestades do oeste
distante.

O cimério não lembra por quanto tempo vagou por


aqueles corredores pulsantes de carne viva e
esculturas de tecidos humanos
esverdeados, mas ele procurou marcar seus passos e dobrar sempre em cada
bifurcação numa mesma direção, à direita, de modo a retornar depois ao ponto de
partida. Por alguma sorte do
destino, ele encontrou uma pequena porta fechada,
parecendo ser de madeira grossa de cedro, talhada com
símbolos arcanos
indecifráveis. Uma das chaves do molho que tinha em mãos abriu facilmente a fechadura
da
porta.

Ao abri-la, o cimério se deparou com uma pequena


sala de descanso e estudos. Dentro dela, um cultista
se encontrava sentado de
costas para ele, numa cadeira em frente a uma pequena mesa, o homem com capuz
baixo, lendo algo de forma absorta, mas virando-se abruptamente quando ouviu o
rangido da porta. O miserável
sequer teve tempo de pegar sua cimitarra encostada
ao lado da mesa, pois o bárbaro, de imediato partiu sua cabeça
como uma
abóbora, fechando a porta logo em seguida. Não havia sentido sair do pequeno
cômodo sem antes
vasculhar a escrivaninha e quem sabe, ler o pergaminho que o
homem estava perscrutando, desde que isso fosse
possível.

O cimério, em suas andanças mundo afora, tinha


aprendido algumas letras civilizadas, afastando-o de
seus irmãos de raça, visto
que os cimérios eram povos ágrafos. Ele sabia diversos idiomas naquele momento
de
sua vida e entendeu um pouco das linhas do pergaminho do cultista,
entendendo tratar-se ali de algum ritual de
sacrifício.  Vasculhando melhor a pequena mesa, ele
encontrou outros rolos dobrados, lhe chamando a atenção
uma espécie de carta
enrolada e lacrada, como uma espécie de códex selado. Ao abrir o rolo do
estranho códex,
Conan encontrou alguma satisfação no fato de entender a escrita
zamoriana ali disposta. Dizia o seguinte:

            Prezado
Rudabeh. Estou lhe requerendo que te juntes aos cultistas de Zanzimar, que
finalmente tomaram
controle sobre um poder muito antigo sob a montanha, um
Demônio da Noite Antiga. Isso graças às mágicas
ancestrais dos Profetas Negros
de Yimsha e de seu mestre, que descobriram um antigo ritual no incrível e
venerável Livro de Skelos.

A partir de tais conhecimentos,


os arcanos conseguiram criar, da própria essência da divindade da
montanha, uma
espécie de parasita diminuto de si mesmo, colocando a coisa maior em uma
espécie de torpor de
sonhos fugidios, ainda que tal parasita seja uma mera
manifestação do mesmo ser, desconhecedor dos desejos do
outro.

Assim sendo, a entidade conhecida


como Rei Negro, Caos Rastejante ou “O Entronado” seria
parasitado por uma
mimese diminuta da manifestação conhecida como Demônio de Língua Sangrenta, que,
segundo as linhas de Skelos, faz parte do mesmo poder ancião ali manifesto, como
que uma espécie de
homúnculo tentacular. Isso fará com que tenhamos o controle
sobre o poder sob a montanha, desde que
consigamos condicionar sua poderosa vontade.
Até agora, os sacrifícios que temos feito não conseguiram seus
intentos, pois o
deus se recusa a colaborar, mantendo seu olhar vazio diante de seus fiéis
canibais humanos. Tolos
malditos, é o que são, mas precisamos deles, como bem
sabes.

Também estamos com dificuldades


de controlar o ser minúsculo da própria essência do deus. Acho que,
cada vez
mais, ele percebe que é parte de uma mesma entidade que povos pré-cataclísmicos
um dia denominaram
de Nyarlatotep, o flautista, demônio exterior. Penso que ele
urde uma sanguinária e insidiosa vingança contra
nós, principalmente caso venha
a perceber a sina da qual ele mesmo faz parte. O fogo é a fraqueza do pequeno
homúnculo, mas temo que tudo isso não passe de um mero ardil de um ser que não
conseguimos sequer
compreender.

Suas veias titânicas crescem na


caverna, como teias incontroláveis e parece que a cada dia mais delas
aparecem,
além de mais esculturas de manifestações suas de carne, músculos e tecidos,
dispostas pelos
corredores dos salões cavernosos, como se o ser em questão estivesse
se fortalecendo aos poucos, caoticamente,
enquanto se diverte diante dos
sacrifícios que perpetramos em sua homenagem.

Mas não sejamos pessimistas, meu


caro. Temos nossa mágica e temos o fogo, caso tudo se afaste do
planejado.
Ainda acho que estamos brincando com algo muito além de nossos conhecimentos e
capacidades, mas
não é desistindo da arte que avançamos nos conhecimentos
arcanos do mundo.

                      A carta terminava abruptamente,


sem qualquer assinatura, mas Conan sabia que vira ali algumas
informações valiosas.
A existência de um parasita a controlar aquele grande ser mumificado na caverna;
o fato de
tratar-se de uma espécie de deus-demônio da noite antiga, aprisionado
por rituais executados por magos humanos;
a descoberta do fogo como uma fraqueza
para o pequeno ser que parasitava a coisa da caverna, sendo o pequeno
homúnculo
uma espécie de essência dela mesma.

Malditos necromantes, pensou o cimério. Brincam com


seus mistérios e conhecimentos confusos sem
sentidos apenas para descobrirem-se
marionetes dos deuses e entidades que cultuam. Conan considerou o quanto
tudo
aquilo era insólito, mas ele também não costumava se preocupar com a estranheza
do mundo, sabendo que
criaturas diabólicas e profanas existiam muito antes da
existência do homem. Além disso, ele elucubrou ali se o
pequeno ser
antropomórfico que tinha vislumbrado na superfície, antes de adentrar as
cavernas, não seria
exatamente aquele ser parasita mencionado na carta.

Fosse tal criatura ou não, Conan decidiu que, mesmo


sem plena certeza de todos os fatos de sua estranha
aventura, ele manteria
sempre uma tocha em mãos, pronto para queimar o pequeno homúnculo caso se
encontrasse
com ele. O cimério então teve uma ideia perigosa e decidiu executar tal
empreitada para tentar salvar
a princesa de seu cativeiro.
Ao invés de procurar retirá-la da jaula de
prisioneiros mediante sua habilidade com a espada, ele decidiu
que tentaria
livrá-la de seu jugo quando estivesse prestes a ser sacrificada diante do terrível
demônio, usando a
confusão do ataque em frente aos fanáticos como chamariz para
os cultistas. Um pouco de caos, ponderou o
cimério, poderia ajudar a escapar
daquela situação macabra, levando a monarca de Khymsha consigo.

O homem chamado Conan tinha sua espada, e agora uma


tocha, sempre em mãos, além de sua conhecida
temeridade frente ao desconhecido.
Ele ainda esperava auxílio de fora, tanto dos afghulis como dos kshatriyas,
mesmo não acreditando muito em tal possibilidade. No final das contas, pensou o
cimério, tudo caberia à fortuna,
aos desejos dos deuses.

Quem sabe, ele pudesse contar com qualquer um


desses malditos deuses ou mesmo demônios antigos de
que muitos falavam, oravam
e concediam presentes e oferendas, mas que nunca faziam nada de retorno aos reles
mortais. Que fossem para os infernos todos eles, praguejou o cimério, solitário.
Conan só precisava do sopro de
sua força titânica e de sua espada afiada, e
isso lhe bastava em meio ao desespero da luta pela vida contra a morte
e o
desespero.

VIII

LIBERTANDO DEUSES E PRINCESAS

            A princesa de Khymsha não tinha


mais esperanças de escapar de Zanzimar com vida. No terceiro dia de
cativeiro,
sua sanidade entrou finalmente em colapso. Ela vislumbrou o canibalismo dos
fanáticos na caverna,
além dos sacrifícios de dois irakzais, homens peludos temerários, mas que choraram como crianças
famintas
diante das torturas pelas quais passaram antes do ocaso final de suas
vidas.

O pior de tudo, na opinião da princesa, fora


vislumbrar de perto a criatura de carne enegrecida com olhos
esverdeados. Sua
expressão era usualmente catatônica, mas se tornava de extrema crueldade quando
o pequeno
homúnculo saía de seu crânio. Em uma das vezes, o ser diminuto saiu
para devorar a carne dos dois irakzais
recém sacrificados. Varínia notou que o deus em descanso no trono simplesmente
sorriu nesse instante, quase que
imperceptivelmente para os fanáticos da
caverna.

            A visita inesperada do nobre Punjar,


ao lado de dois conselheiros de sua corte apenas respaldou para a
princesa tudo
aquilo que ela já sabia. Que os tentáculos dos cultistas do poder oculto sob a
montanha chegavam às
cortes médio-orientais, incluindo Khymsha. A moça lembrou
das palavras do general Shan, de que aquele maldito
nobre, parente da princesa,
preferia efetuar acordos com cultistas fanáticos do que com os membros de sua
raça
ou mesmo de sua família. Punjar, sem qualquer dose de piedade ou cortesia,
falou a Varínia, postado em pé frente
à jaula da importante prisioneira:

            - Tu já podes entrar em desespero,


minha querida prima. Podes chorar alto, gritar e espernear como uma
mulher
frágil e infantil. Nada irá mudar o destino de sua sina final nesta montanha.
Esses homens acreditam que o
sacrifício de uma princesa virginal fará uma
mágica necromântica especial junto a seu deus de carne. O que
importa, minha
cara, mais do que tudo isso, é saber que sua morte me trará como prêmio uma linda
coroa em
minha cabeça.

            - Seu chacal maldito! – gritou a


princesa, em desespero. – Achas que esses lobos deixarão nosso reino em
paz? Que
não tornarão o povo de Khymsha uma parte de seu culto imoral? Consideras mesmo
que um demônio
como aquele, sentado em seu trono de pedra, não reclamará mais
prêmios em sangue e em vidas inocentes? Seu
tolo pretensioso!

                      -
Minha jovem e magnânima princesinha – respondeu o homem, com olhar cínico e
pretensamente
indiferente, mas sem esconder um sorriso malicioso nos lábios – o
que são alguns prêmios em vidas pelo alcance
do poder político? O que são relés
vidas mortais de pessoas das castas inferiores, diante do saciar de um deus com
poderes absolutos? Seu desespero denota apenas sua crescente insanidade. Seu
olhar vingativo desvela que sua
mente perecerá ainda antes de seu belo corpo. O
maior poder do “Entronado”, minha
jovem, é exatamente este.

“Segundo consta nos pergaminhos proibidos”, continuou


o homem, “ele desvela, aos homens e mulheres
mortais, que sua pretensa ordem natural
não passa de um ardil enganoso frente ao caos pleno da existência dos
seres
exteriores, que vieram ao mundo antigo. Seres que já existem no firmamento,
antes mesmo de Mitra ou do
pai Set, ou até mesmo da poderosa Ishtar.

            “Além disso, minha cara”, continuou Punjar


em sua parlamentação fanática, mostrando uma bolsa de
couro para Varínia, já
conhecida da princesa, “estou de posse do veneno que você, Fazil e o general
Shan
adquiriram em Khitai. Nada me impede de liberar o veneno quando eu me
retirar dessa maldita montanha,
deixando esse lugar vazio da presença humana.
Teríamos nós, os reais monarcas de Khymsha, um deus só nosso
para nos auxiliar,
para que possamos governar os homens. Essa empreitada, minha doce parente, você
jamais
poderia imaginar, não é mesmo?”.

            O homem não esperou sequer uma


resposta da princesa, virando as costas e se afastando da jaula de grades
de
ferro. A moça apenas se agachou diante das palavras ensandecidas de Punjar e,
pela primeira vez ali naquele
cativeiro, ela chorou copiosamente, sem conseguir
segurar as lágrimas por qualquer provável orgulho nobiliário.
Seu espírito
estava partido.
A princesa tinha finalmente desistido frente àquela
situação e diante de tal traição, ainda que deveras
prevista. As palavras de
Punjar desvelavam o futuro dos súditos de Varínia. Escravidão, sacrifícios de
crianças e
de mulheres inocentes, tirania de um rei sujo e vil a governar um
país em nome de um culto de fanáticos canibais.

Diante de tudo aquilo, ela apenas vislumbrou o


crescimento ininterrupto de uma religião profana, um
culto imoral em homenagem
a um demônio insaciável, mas que não demostrava sequer considerações por seus
súditos. Varínia não tinha mais forças para lutar contra aquilo. Seu próprio
sacrifício se tornou uma certeza
absoluta em sua mente dilacerada.

            Na noite seguinte, a princesa foi


banhada novamente, desta vez sendo ungida com aromas agridoces, óleos
orientais
mais a fantástica mirra, denotando que chegara o momento de seu sacrifício. A
jovem estava sem
qualquer vontade, aceitando seu destino passivamente, como se
não existisse qualquer fio de esperança em seu
coração, fosse para ela própria,
fosse para o reino e para seu povo. O culto ao deus entronado seria hegemônico
na
região médio-oriental, mesmo com os arroubos de Punjar, acreditando que o
veneno de Khitai poderia dar fim a
toda uma seita diabólica. Nem ela tinha planejado
desta forma, pois o veneno servia apenas para que o reino
pudesse ganhar tempo
para a chegada dos kshatriyas.

                      Os fiéis da montanha estavam em completo


frenesi na caverna do deus ancestral e a princesa foi
desnudada, banhada e, em
seguida, levada pelos cabelos sob a ação agressiva do cultista-chefe. O homem
encapuzado a maltratou sadicamente, conduzindo a jovem até os pés do trono do
deus amorfo.

O sacerdote-chefe, com feições de Zamora, entoava


cânticos e orações em alguma língua antiga e
indecifrável e a caverna pulsava
de forma diabólica. Não se tratava apenas das orações em júbilo dos fiéis ali
ajoelhados, em um frenesi coletivo, mas uma espécie de pulsar sobrenatural e
insólito, algo que fazia todo o
ambiente tremer.

Como se as próprias paredes rochosas latejassem,


como que se as mesmas paredes fizessem parte de
algum tipo de organismo vivo, aparecendo,
aos poucos, tubulações nas mesmas, até então invisíveis aos presentes,
deixando
o ambiente e o clima ainda mais tétrico e ameaçador para a monarca de Khymsha.
Em meio a
palavreados tórridos dos fiéis, fanáticos e cultistas ali reunidos,
Varínia conseguiu discernir um verbete em versos.
Algo como:

Que possas pulsar e nos elevar.

Que possas nos acariciar ao se


desvelar

            Foi no momento de maior intensidade,


de completo desespero da parte de Varínia, que a jovem finalmente
vislumbrou o
bárbaro Conan. Em um primeiro momento, ela considerou tratar-se de uma ilusão
oriunda de sua
mente enlouquecida, mas ao se deparar com aqueles olhos bárbaros
primordiais de cor azul, ela quase conseguiu
vislumbrar as chamas de todas as
hordas selvagens que singraram o mundo antigo.

Homens brutais a destruir civilizações inteiras de


reis civilizados, de magos necromantes diabólicos ou
sacerdotes poderosos,
incluindo adoradores de deuses ou demônios da noite antiga, com grandes
semelhanças ao
ser rastejante que agora se encontrava na caverna de Zanzimar.

O cimério empurrou com seu corpo titânico o líder sacerdote,


vergando a espada na mão direita e a tocha
acesa na poderosa mão contrária. A
princesa desfaleceu finalmente e não viu as ações que se seguiram. Em
primeiro
lugar, o susto do cultista-chefe, seu levantar confuso e surpreendido,
apontando lentamente sua adaga
curva em direção ao bárbaro cimério, como se ele
quisesse eliminar pessoalmente aquele invasor, como se ali
existisse um ritual
de sacrifício duplo a ser processado. Uma homenagem ao caos entronado.

Certamente que esse foi um dos erros mortais da


parte do cultista-chefe, visto que ele deixou os demais
ali presentes, seus seguidores
e lacaios, em uma espécie de prontidão destituída de ação concreta,
considerando
eles que tudo aquilo que vislumbravam fazia parte de algum
espetáculo em homenagem ao deus de carne alocado
diante de todos.

            Os cânticos eram ainda entoados e o


frenesi da turba se tornou ainda mais insano e teatral. Muitos homens
e
mulheres ali reunidos se ajoelharam em completa adoração ante o espetáculo
bizarro que se processava,
enquanto vislumbravam o cultista-chefe se
aproximando de Conan, tendo a princesa desmaiada ao chão. Todos
pareciam atores
trágicos, em uma peça ritualizada diante de uma plateia ensandecida, e do grande
ser mumificado
indiferente sentado no trono.

O cimério encontrava-se com seus sentidos em total


sincronia e ele logo percebeu dois movimentos
distintos, decidindo a partir de
tais informações, as melhores ações a serem tomadas. Em primeiro lugar, ele viu
o
aproximar lento do cultista-líder em sua direção. Ao mesmo tempo, ele captou
o movimento do pequeno
homúnculo saindo do crânio rachado do grande ser em
descanso, posicionando-se no ombro da imponente
criatura.

            Conan, mesmo que de forma


inconsciente, ansiou por esse momento quando elaborou seu plano arriscado,
pois
ele sabia que teria uma única chance de não ser engolido pelos atores do palco
que ele mesmo arquitetara.
Então, em movimentos rápidos e precisos, o guerreiro
cimério fez dois ataques brutais surpreendentes.

Primeiramente, ele correu em direção ao grande ser,


dando um salto fantástico e usando o próprio trono
de pedra como seu trampolim.
Com isso, Conan acertou o homúnculo com a ponta incandescente da tocha,
fazendo-o cair do ombro da grande criatura. Enquanto todos vibravam e urravam
sem saber o que significava tudo
aquilo, o cultista-chefe recuou, percebendo
agora, ainda que tarde demais e em completo desespero, que a
pequena criatura
estava sofrendo, debatendo-se em meio às chamas.
                      Em seguida, antes que o cultista-chefe
esboçasse qualquer outra reação mais concreta aos eventos
caóticos, o bárbaro
aproveitou-se de sua força titânica e agilidade felina para avançar em carga na
direção de seu
antagonista, agora segurando sua espada com suas duas mãos de
ferro, após largar a tocha ao chão.

O movimento foi novamente preciso e o sacerdote


zamoriano nem sequer teve tempo de levantar sua
adaga em forma de lua crescente.
Seu torso foi trespassado ao meio pela espada de Conan, quase que se dividindo
em dois, como uma espiga de milho ceifada brutalmente.

                      Foi somente nesse momento apoteótico


da peça teatral na caverna, em que o pequeno homúnculo se
debatia nas chamas e do
qual o cultista-chefe caía ao chão da caverna, envolto no próprio sangue
escarlate, que os
demais seguidores perceberam o que se passava ali, saindo de
seus respectivos frenesis catatônicos de fanatismo,
cantoria e adoração.

Como uma criança tola na flor da idade, um dos cultistas


bradou alto. Que todos estavam sob ataque,
sendo aquele bárbaro o inimigo a ser
abatido. Logo após tais gritos de ordem, os demais cultistas, lacaios e
fanáticos entraram em uma nova convulsão de caos e correria, alguns apontando
espadas e flechas na direção do
cimério. Conan aproveitou-se da confusão geral e
correu em direção à princesa, acordando a jovem em meio à
loucura que se seguiu.

            A caverna pulsou ainda forte e logo,


todos os presentes vislumbraram uma cena ainda mais insólita. O
gigante entronado
abriu os olhos e levantou de seu trono, lentamente. Sua face pulsava de ódio e de
dor, seus
olhos brilhavam como nunca. Logo, sua cabeça foi aos poucos se
tornando pontiaguda, perdendo o formato usual
humanoide, em uma espécie de
metamorfose lenta e sobrenatural.

Por fim, o que fora uma cabeça não passava agora de


um imenso tentáculo flexível, dobrando-se para
todos os lados. A pequena
criaturinha, por sua vez, ainda se debatia no fogo e, sem qualquer retidão, o golem de
três metros de altura pisou
nela, esmagando seu corpo como uma lesma de sangue verde.

Foi então que se processou outra necromancia


perversa. O grande ser absorveu a pequena criatura e seu
corpo se tornou ainda maior
e ao mesmo tempo mais semelhante à forma original da diminuta criatura
absorvida.
Os cultistas e fanáticos ali reunidos, diante daquela cena tétrica
titânica, se ajoelharam em completa veneração e
os canibais da caverna, pela
primeira vez desde que ali chegaram, ficaram em completo silêncio, prostrando-se
como escravos obtusos daquela besta primordial.

Conan não titubeou diante do acontecimento macabro.


Ele pegou a princesa no colo, pois a moça ainda
estava meio inconsciente, e
agiu como um lobo antes de ser percebido por seus temíveis caçadores. Mesmo
assim,
o cimério acabou parando em frente à própria criatura, visto que ela lhe
impedia de sair da caverna, postada de pé
à sua frente. O tempo parou, e o
grande ser pareceu encarar o cimério com seus olhos bestiais esverdeados, por
longos
momentos.

O guerreiro ergueu sua espada com uma das mãos,


enquanto a outra segurava desajeitadamente Varínia,
postando-se como um
protetor divino diante da profanação contra uma inocente. Da boca escancarada e
rasgada
do mostro tentacular, se esboçou algo totalmente inesperado, pois um leve
sorriso e depois um esgar convulsivo
foi dirigido ao cimério. Como se ambos,
besta e homem, fossem dois aliados momentâneos naquele teatro de
mortais
condenados e de seres ancestrais.

Então, o caos rastejante simplesmente virou as


costas para o cimério e no lugar de suas mãos, imensos
tentáculos começaram igualmente
se projetar, perfurando os corpos dos cultistas, fanáticos e lacaios ali presentes.
Todos passaram a correr e a fugir em desespero para todos os lados, e a tentar
sobreviver diante do que parecia ser
a fúria de um deus insaciável.

Corpos eram sumariamente perfurados por tentáculos


gelatinosos, muitos deles destroçados e esmagados
diante da fúria daquele ser
antigo, agora com cinco metros de altura e em constante crescimento. A caverna
pulsava ainda mais alto, caindo rochas por todos os lados e rachando-se o chão
em todas as direções possíveis.
Interessante que, se alguém parasse por um
instante, poderia ouvir levemente até o som de uma flauta onírica,
vindo do
grande ser tentacular.

            Para piorar ainda mais aquela


situação macabra, diversas outras criaturas com mantos de tecidos de carne
e
músculos apareceram, arqueadas e penduradas nas paredes da caverna magmática, escalando-as
como que se
fossem aranhas humanoides. Elas não passavam de mimeses do grande
deus vingador ali presente, lembrando-se
Conan que se tratavam exatamente das
estátuas que ele vislumbrara nos corredores por onde perambulou no
interior da
caverna.

Uma nova leva de humanos, fossem eles cultistas de


mantos negros ou apenas fanáticos despidos, era
sumariamente dizimada pelo novo
perigo que surgia na montanha profana. Os cultistas tentavam, em vão, invocar
suas mágicas necromânticas, alguns deles até orando a deuses antigos e
tradicionais que tinham abandonado em
nome do Caos Rastejante. Algo que não
teve qualquer chance de sucesso, claro.

O Entronado
era agora o deus vingador que rastejava entre os vivos, e ao mesmo tempo varava
corpos
com seus tentáculos viscosos longilíneos, enquanto filamentos de raios e
relâmpagos saíam de todos os lados e
atingiam muitos dos mortais que ainda
lutavam por suas vidas perenes.

A ironia do destino fora forjada em sangue e morte.


Não se podia querer agradar ou controlar o caos por
meio de rituais ordenados
contra uma vontade divina, pensou Conan. O cimério tentou de todas as formas
não se
desesperar diante da cena grotesca de morte e fúria do Demônio da Noite
Antiga e de seus asseclas monstruosos.

Ele seguiria com o plano e fazer valer sua promessa


a Varínia, levando a princesa a salvo da caverna, em
direção à liberdade. Conan
pegou um corredor diagonal, que ele sabia ser o caminho para o lado de fora da
montanha profana. O cimério traspassou vários cultistas e fanáticos
desesperados que se interpunham em seu
caminho. Um primeiro, ele cortou a cabeça
de forma precisa, enquanto dois outros, ele simplesmente varou o
ventre e o
peito, respectivamente.
Logo, a princesa foi recobrando seus sentidos,
mantendo ainda um tanto de sua confusão e desespero. O
cheiro de sangue era
insuportável, e aqueles que não caíam trespassados pela espada do cimério ou
pelos
tentáculos vingadores das criaturas profanas, eram literalmente dizimados
por raios e relâmpagos que surgiam de
todos os lados, tornando homens apenas
cinzas em um piscar de olhos.

Conan sequer teve tempo de pegar na mão da moça


para dizer algumas palavras de incentivo, pois ela
gritou para o cimério que
havia um nobre de seu reino que deveria ser detido imediatamente. Segundo a
moça,
tratava-se de um homem que estava de posse de uma bolsa perigosa. Uma bolsa
a envolver uma espécie de
pequena urna contendo um veneno perigoso, igualmente
profano. Provavelmente, falou ela ao cimério, o homem
estaria agora tentando
escapar da montanha, de modo a usar o conteúdo da bolsa, envenenando a todos com
sua
fumaça diabólica.

            O bárbaro foi novamente mais ágil e


rápido do que qualquer mortal naquela caverna. Ele seguiu em frente,
como uma
pantera esfomeada, literalmente trespassando a todos que se interpusessem em
seu caminho, fossem
cultistas, fanáticos ou humanos canibais. Mais atrás, tanto
ele como Varínia podiam ouvir as criaturas tentaculares
trespassando homens sem
qualquer piedade, fossem eles adoradores ardorosos do caos rastejante ou apenas
tolos
desesperados.

O titã de bronze não deixava de imaginar que, talvez,


o deus tenha feito tudo aquilo de acordo com
algum plano cósmico por ele
concebido. Que o deus tinha deixado tudo acontecer exatamente como queria,
fortalecendo, aos poucos, sua vontade no interior da caverna, ao mesmo tempo em
que brincava com os estúpidos
mortais ali reunidos em adoração. Homens tolos
que pretendiam controlar sua potente vontade, mas que não
passavam de joguetes
de um ser mais antigo do que o tempo ou a realidade.

            Não cabia mais devaneios ao cimério.


Na saída da caverna, o caos igualmente imperava entre os mortais
ali presentes.
No acampamento em frente à entrada, homens eram ceifados como moscas, dessa vez
por flechas
que varavam o céu noturno do inverno gélido das montanhas orientais.
Varínia então apontou para o chão,
chamando a atenção do cimério.

            - Olhe Conan. O homem de quem te falei!


Punjar!

            O nobre estava com os olhos vazios, devidamente


morto, com duas flechas no peito. A sacola com o
veneno mencionado pela
princesa se encontrava em seus braços. O cimério pensou rápido e de forma ágil,
sem
receios. Ele apontou para a mulher correr em direção ao desfiladeiro
localizado à esquerda, constituindo-se na
saída daquele terraço diabólico.
Depois, Conan correu atrás dela, varando outros dois cultistas que ousaram se
interpor em seu caminho. Em seguida, vendo que a princesa seguiu o plano urdido
por ele, o cimério jogou o
conteúdo da pequena urna com o veneno na direção da
entrada da caverna, entre seu arco principal.

            As fechas vinham dos paredões em


frente e Conan sabia o estilo dos ataques, entendendo imediatamente
de que tipo
de arcos elas provinham, pois ele conhecia o modo de luta dos afghulis como nenhum homem
ocidental.
Logo, o bárbaro seguiu a moça desfiladeiro abaixo, vislumbrando a fumaça
avermelhada saindo da
pequena ânfora jogada por ele – uma fumaça que não tardou
a se espalhar entre os homens ainda vivos ali naquela
elevação.

As flechas afghulis
continuavam chovendo na noite rubra, todas na direção da entrada da caverna,
acertando acólitos, fanáticos e até algumas criaturas tentaculares que
apareceram para esmigalhar e perfurar suas
presas. Lá dentro, o som de um urro
inumano era ouvido junto à melodia da flauta, tornando-se mais tênue e baixo
aos poucos, até que se seguiu o som de rochas caindo e batendo umas nas outras,
como que em um desabamento
impiedoso.

O poder sob a montanha tinha finalmente acordado e


ele tinha colocado fim ao próprio culto organizado
em seu nome. Parecia, ao bárbaro
cimério, uma ironia inexplicável do destino. Podia tratar-se de um jogo de
seres
ancestrais ou, quem sabe, a manifestação do caos em uma de suas
variantes, mas um fato se sobressaía. Que
Conan tinha, não apenas libertado uma
princesa de seu cativeiro, mas igualmente um deus ancestral ou Demônio
da Noite
Antiga.

VIII

VARÍNIA E CONAN

            - Parece que você finalmente se


convenceu a me auxiliar, Agmar – sinalizou Conan, sorrindo frente ao
agora novo
líder dos afghulis.

                      - Ah, não meu amigo. Muito lhe devo,


e por esse motivo, até enviei um mensageiro até a corte de
Ayodhya, mas não
decidi vir até aqui em seu auxílio, muito menos por qualquer sentimento de
consideração. Na
verdade, aquele homem ali me convenceu, bem como a todos os
guerreiros que aqui estão.

            Agmar apontou para um senhor de


idade, um sábio de barba branca, vestindo uma túnica tipicamente
vendhyana e
mais um arnês na cabeça, levemente caído sobre o lado da fronte. Montado em um
pequeno cavalo
pintado, o velho sorriu honestamente em direção ao cimério e fez
uma reverência saudosa, ainda que leve.
Tratava-se de Jharin, o mais eminente
sábio do Conselho dos Anciões de Khymsha, um homem deveras
respeitado naquelas
bandas e que Conan já ouvira falar pela boca pequena das mulheres montanhesas.

                      - Um homem sábio sempre tem bons


argumentos, presumo – falou Conan a Jharin, com um olhar
levemente zombeteiro
na face.

            - Na verdade... Eu apontei nada mais


do que certos fatos, meu caro bárbaro do ocidente – respondeu
Jharin. – Me
dirigi até Ghor, logo depois da saída da comitiva da princesa... Vamos dizer
que... Bem, que
arquitetei um plano secundário de pedido de auxílio. Afinal, se
tudo desse errado com o plano real, alguém
precisava tomar as rédeas da
situação... Pode-se dizer que levei mais ouro a Ghor, e simplesmente falei o
que
todos ali deveriam ouvir.

“Que os fanáticos, os canibais e os cultistas de


qualquer montanha profana... Eles não passam de
adoradores de demônios antigos,
e eles não costumam se preocupar com a extração de metais em minas de ouro
ou
prata... Muito menos com a fabricação de riquezas... Falei a todos, de forma, vamos
dizer, direta... Que o solo
de governos teocráticos de demônios antigos é comumente
estéril, e a fome toma conta das vilas e cidades
próximas... Falei que não
existem boas pilhagens em reinos assim e que tudo que sobra é sangue,
sacrifícios,
carniças e urubus a rondar os céus escarlates... Pois sim,
terminei afirmando que o modo de ser afghuli
não
ganharia em nada com tais governantes.

                     -
Palavras sábias, sem dúvida – respondeu Conan, olhando nos olhos do experiente
ancião, em total
concordância. – Usar um argumento pragmático para convencer os
afghulis a ajudarem uma causa de
terceiros
não é para muitos.

            - Diferente de você, meu caro, que


estava numa causa do salvamento de uma donzela em perigo, nós
pensamos sempre
na nossa própria causa, segundo a tradição montanhesa – sorriu Agmar, como que
entrando na
pilhéria do argumento contra o cimério.

            - Bem, eu tinha minha palavra a


cumprir. Além do mais – retorquiu Conan –, estava querendo mudar de
ares. Não
acho má ideia me tornar general de Khymsha e ajudar sua soberana a proteger
suas riquezas contra
montanheses perigosos, caso eles venham a atacar suas
vilas e cidades.

            - Pois vai ser assim? Depois de nos


deixar, irás te voltar contra nós? – perguntou Agmar, sem deixar de
esboçar um
tom irônico, mas sabendo que Conan faria exatamente aquilo que dizia.

            - Ora, eu sou um bárbaro errante e


um mercenário acima de tudo. Essa é a conduta dos Companheiros
Livres, pelo que
bem sabes. Minha espada vai para o lado que me concede maiores benefícios. Mas
não acho que
trocarei espadas com sua tulwar
ou cimitarra, meu amigo. Agora você e seus afghulis
têm um bom estoque de
ouro para se voltarem a outras paragens que não o reino
médio-oriental de Khymsha. Acho que seus liderados vão
gostar de atacar
caravanas turanianas, após terem adquirido uma boa quantia de metal precioso de
Varínia e Jharin
– respondeu Conan, dirigindo-se também ao velho, que concordou
com seus bons argumentos.

Sem dúvida que o cimério ganhou a simpatia do


ancião ali presente, mudando de imediato sua opinião
destituída de critérios no
que tange ao ocidental. Ele estava longe de ser o homem bruto que tinha vindo à
mente
de Jharin, quando ouvira falar de sua pessoa. O eminente conselheiro de
Varínia percebeu em Conan um guerreiro
deveras astuto e ágil em pensamento.
Isso se tornou um novo ensinamento para o sábio. Não se devia prejulgar
ninguém,
muito menos os integrantes da raça ciméria.

            - Bem. Que seja, meu amigo. Espadas sempre


podem ser cruzadas e também ainda podemos beber de um
bom caneco de vinho em
alguma taverna distante, ou quem sabe nos encontrarmos pelos ermos orientais.
Nada
disso nos impediria de seguir rumos diferentes, claro, de acordo com as
mais diferentes situações – respondeu
Agmar.

– Espero apenas que você possa ajudar a jovem


governante de Khymsha, pois ela não me parece nada
bem – terminou Agmar
apontando para Varínia, localizada mais distante de todos. A jovem se
encontrava sozinha,
ajoelhada na beira do precipício do desfiladeiro, com um olhar
vago para o vazio em frente.

            Conan dirigiu o olhar com seriedade


para os dois homens reunidos, e logo se virou de imediato. Ele
caminhou devagar
até a princesa, e percebeu que ela soluçava e parecia encolhida de frio e medo,
como se
destituída de razão e sanidade. O titã de bronze sabia que a jovem
tinha vislumbrado uma série de perfídias e
violências na caverna profana durante
três dias e noites. Sem falar na presença do gólem de carne tentacular, algo
completamente fora do normal e do natural.

Sem dúvida que manter a mente intacta, frente a


todos esses fatos, seria impossível para a maioria dos
mortais na mesma
situação de Varínia. Antes que Conan dissesse qualquer coisa, a princesa falou
a ele, sem
sequer se virar para o cimério.

            - Como você consegue, Conan? Como


podes seguir em frente, mantendo sua perspectiva da mesma forma
que antes? Como
passas por tudo que passamos ali na caverna sem sequer se desesperar?

            - Ora, garota. Eu simplesmente


decido que seguirei adiante, vivendo o instante de minha existência sem
me
importar com questões que vão muito além de minhas capacidades – respondeu o
cimério, abraçando a
princesa e encostando o rosto no dela. Varínia aceitou de
bom grado o afago do bárbaro e se viu envolvida pelos
braços titânicos de Conan,
como dois carvalhos imponentes a envolver seu corpo frágil.

            - Sem perder a razão, ou sem te


preocupar com o fato de que não somos nada diante de seres sobrenaturais
como
aquele? – perguntou a moça, deveras chorosa e trêmula.

            - Certamente. Pois o mundo e a


realidade são mais antigos do que nós, meros mortais. Não há porque me
preocupar em controlar uma realidade infinita ou me desesperar com questões
metafísicas complexas do mundo,
dos deuses e dos seres ancestrais. Já vi
demônios e raças antigas, animais titânicos e criaturas simiescas aladas, já
lutei
contra muitos deles até. Matei alguns, e perdi aqueles à minha volta frente a
tais seres perigosos. Mas sempre
continuei em frente, garota, com perdas ou não.

“Sendo o ser ali um deus ou apenas uma besta-fera,


não cabe a mim me preocupar com ela”, continuou o
cimério, “seu poder é maior
do que o nosso e, se minha espada consegue cortar sua carne para me defender,
tanto
melhor para mim. Caso eu não possa mais caminhar com minhas próprias
pernas no enfrentamento e tais
criaturas, bem, que eu consiga então apenas
viver até meu ocaso final.

“Sou um bárbaro, eu vivo meus instantes plenamente,


da mesma forma que faziam meus ancestrais. E, se
tem uma coisa que aprendi com
eles, com todos os bárbaros que vieram antes de mim, é que viver o instante é a
única forma de não perdermos a razão diante do caos a nossa volta.

“Deixo que os cães civilizados percam a sanidade ao


tentarem entender tudo que existe. Deixo que eles
se desesperem em sua ânsia infantil
de controlar todas as coisas, com sua petulância e falsa ilusão de ordem ou
organização social. No final, se o caos decide agir e matar seus próprios
seguidores, bem, princesa, só cabe a nós
não estarmos entre as pilhas de corpos
que ele deixa para trás ao passar com seus tentáculos viscosos”.

            - Tão simples assim? – perguntou a


jovem novamente, ainda incrédula, mas mais segura do que outrora.

                      - Sim, da forma como as coisas são no


mundo e não como deveriam ser segundo certos sábios
enganadores, ou mesmo adoradores
malditos de demônios – respondeu o cimério.

            Conan a virou para si e, antes mesmo


que ela pudesse se afastar ou até continuar a argumentar, ele a beijou
de forma
firme, envolvendo-a com seus braços musculosos e apertando-a junto de seu corpo
rígido. Varínia se
sentiu consolada, e até plena, naquele breve instante ali, à
beira do precipício. Parte de suas dúvidas se dissiparam
e ela aceitou
finalmente os dizeres melancólicos, porém sábios, do cimério.

A princesa sabia que Conan seguiria com ela até Khymsha


e que ele ficaria um bom tempo vivendo no
pequeno reino ao lado dela,
aproveitando os sabores da liderança de suas tropas, organizando as defesas da
capital
após a morte de seu imponente general.

O bárbaro sorvia tudo o que a vida lhe reservava e


ele jamais mudava seu jeito de ser, apenas passando
um verniz de civilização em
seu comportamento cotidiano diante dos demais homens civilizados. Conan era como
o carvalho frente ao tempo, do mesmo jeito de ser que tal árvore, intocada ante
as mudanças ocorridas, mantendo-
se mais resistente com as eras e ainda mais sábio
e temerário.

Ao final de um ciclo de seis meses ininterruptos, o


cimério partiu para o ocidente distante, de volta à sua
terra natal, deixando
sua enamorada, a princesa Varínia, sozinha com seus temores profanos, terrores
crescentes
em sua psique. Ela seria assolada por eles durante toda sua breve vida.
Tocada no inconsciente pela visão
assustadora daquele grande ser tentacular,
além das lembranças dos sacrificados na montanha profana.

Uma antiga canção hirkaniana relataria, em um


futuro distante, sobre o trágico destino da princesa de
Khymsha, quando ela
completou metade de sua vida após uma longa solidão no Palácio de Jade. Dizia a letra,
que a soberana do pequeno reino teria
vagado sozinha de volta à montanha profana de Zanzimar e que, de boa
vontade,
teria se prostrado diante do trono do ser colossal ali presente. Varínia tinha
se tornado o ansiado
sacrifício que o deus desejara presenciar em sua
existência mundana.

Pois o “Poder Oculto sob a Montanha” nunca cessou


suas atividades. Como bem falou Conan para a
princesa nos momentos em que
viveram juntos no reino: não caberia aos
mortais tentar ordenar o caos. Pois ele
sempre se voltaria contra os tolos que
tentavam impedir sua livre manifestação desenfreada.

FIM

Contos

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 ANTIGOS MAIS RECENTES 


Nas ruínas após a estrada do tempo O Olho da Morte

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1
Comentários

Unknown
22 fevereiro, 2021 19:56

NiarlaHotep triturando as mentes sofisticadas. As mentes que imaginam futuros possiveis e as mais
suicidas, aquelas que acham pode controla-los. Ass: Klaus do Iate.

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