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na fronteira da
(i)legalidade:
desmatamento e grilagem no matopiba
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na fronteira da
(i)legalidade:
desmatamento e grilagem no matopiba
1ª edição/ 2021
Salvador - AATR
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Organização: Diana Aguiar, Joice Bonfim e Mauricio Correia

Mapas: Eduardo Barcelos

Apoio Editorial: Morgana Damásio e Daiane Santiago

Design e ilustração: Alyssa Volpini, Luisa Caria e Marina Novaes

Textos: Adriane Santos Ribeiro, Antonio Gomes de Morais, Diana Aguiar, Eduardo Barcelos,
Emilia Joana Viana de Oliveira, Joice Bonfim, Juliana Oliveira Borges, Lorrany Lourenço Ne-
ves, Mauricio Correia Silva, Pedro Antônio Ribeiro, Roberta Maria Batista de Figueiredo Lima
e Valéria Pereira Santos ​

A realização do Dossiê “NA FRONTEIRA DA (I)LEGALIDADE: Desmatamento e grilagem


no Matopiba” contou com o envolvimento de representantes de movimentos, organizações
e pastorais sociais que compõem a Articulação de Resistência ao Matopiba da Campanha
Nacional em Defesa do Cerrado. Os créditos de autoria dos textos específicos e das fotogra-
fias estão atribuídos nos respectivos artigos.

Sistema de Bibliotecas
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SUMÁRIO
Na fronteira da (i)legalidade:
desmatamento e grilagem no Matopiba
Diana Aguiar, Mauricio Correia Silva, Joice
05
Bonfim e Eduardo Barcelos

Maranhão:
Território Tradicional Travessia do
Mirador: encruzilhada entre grilagens e
33 Piauí
Devastação do Cerrado e apropriação
ilegal de chapadas e “baixões” do
89
economia verde no rastro da expansão Rio Uruçuí Preto: o caso do Território
da fronteira agrícola Tradicional de Melancias
Diana Aguiar, Joice Bonfim, Antonio Gomes Adriane Santos Ribeiro, Emilia Joana Viana
de Morais, Eduardo Barcelos e Roberta Maria de Oliveira, Juliana Oliveira Borges e Mauricio
Batista de Figueiredo Lima Correia Silva

Tocantins:
Esquema de grilagem dos Binotto na
Gleba Tauá no Tocantins: 60
Bahia
Desmatamento, especulação e “grilagem
verde” nas áreas de manejo comunitário
121
Território tradicional devastado por dos Fechos de Pasto na Bacia do
família catarinense invasora de terras Corrente
Joice Bonfim, Diana Aguiar, Eduardo Barcelos, Mauricio Correia Silva, Adriane Santos
Lorrany Lourenço Neves, Pedro Antônio Ribeiro, Emilia Joana Viana de Oliveira, Diana
Ribeiro e Valéria Pereira Santos Aguiar e Eduardo Barcelos

Achados da pesquisa e
recomendações 158
Bios das/os autoras/es
162
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matopiba
na fronteira da
(i)legalidade:
Desmatamento e grilagem no Matopiba

Diana Aguiar, Mauricio Correia Silva, Joice


Bonfim e Eduardo Barcelos

Portal da Chapada Serra das Mesas Pedra Furada -Carolina (MA).


Crédito: Thomas Bauer (CPT).

Quando a Associação de Advogados/as de cados pela devastação, ameaças e violência. amplamente presente na região. Para con- ção, Ciência e Tecnologia Baiano (IFBaiano),
Trabalhadores/as Rurais no Estado da Bahia A persistência desses processos e a lentidão tar essa história comum de uma fronteira campus Valença, desenvolveu-se um amplo
(AATR) promoveu um diálogo com outras e obstáculos injustificados para a titulação permanente, então, foram analisados os trabalho cartográfico e de mapeamento de
organizações que compõem a Articulação dos territórios provoca desesperança, mas casos da Travessia do Mirador no Centro- bases geográficas e de levantamento e sis-
de Resistência ao Matopiba da Campanha ao mesmo tempo revela comunidades obs- -sul do Maranhão, da Gleba Tauá no Cer- tematização de documentos jurídicos, em
em Defesa do Cerrado a respeito da possi- tinadas a lutar pelo que lhes é de direito. rado tocantinense, do Território Melancias diálogo com as comunidades tradicionais e
bilidade de uma pesquisa sobre desmata- no Sul do Piauí e dos Fechos de Pasto Capão as organizações de assessoria. Os achados
mento e grilagem na região, ficou evidente Assim, os quatro casos neste estudo são re- do Modesto, Porcos-Guará-Pombas, Cupim mostram flagrantes esquemas de grilagem
que não faltavam casos a analisar. Nos qua- presentativos de uma dinâmica sistemáti- e Vereda da Felicidade na Bacia do Rio e a leniência dos órgãos de terra. O avanço
tro estados, as organizações acompanham ca no Matopiba, mas certamente apontam Corrente no Oeste da Bahia. Ao longo de brutal do desmatamento sobre o Cerrado
inúmeros casos de conflitos por terra, mar- apenas para parte de uma problemática meses, junto ao Instituto Federal de Educa- serve como instrumento central na consoli-
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dação desses processos de invasão e fraude, por reforma agrária. A partir da análise da im- analisados neste estudo – um por estado, dois
bem como novas formas de grilagem viabili- bricação entre desmatamento e grilagem em dentro e dois fora da Amazônia Legal, todos
zam a expansão do desmatamento. escala regional e em diálogo com exemplos sobre processos de desmatamento e grila-
dos quatro casos, é possível traçar padrões no gem tendo como alvo territórios tradicionais
A primeira seção deste artigo recupera a his- Matopiba sobre os mecanismos de operação – de modo a convidar para um aprofunda-
tória do Matopiba enquanto fronteira agríco- das fraudes em si, da relação do duplo inva- mento das realidades do Matopiba a partir da
la em construção desde ao menos a década são-fraude que caracteriza a grilagem de ter- leitura dos textos desses quatro casos.
de 1980, analisando a expansão desta por ras no Brasil, da “grilagem verde” e da relação
meio dos padrões e da evolução multitempo- entre destinação de terras e desmatamento.
ral do desmatamento e sua correlação com
o eixo das estradas, a transição com a Ama- A terceira seção enfatiza o tratamento insti-
zônia, o relevo, as águas e a ocupação para a tucional da questão fundiária no Matopiba,
produção de commodities. Ao mesmo tempo, contrastando as previsões constitucionais –
aponta os impactos, limites e repercussões da que priorizam a titulação dos territórios de
institucionalização da fronteira, mesmo após ocupação tradicional, a reforma agrária e a
a revogação do decreto que, em 2015, dispôs preservação ambiental – com os dispositivos
sobre o desenvolvimento agropecuário da re- de “reconhecimento de domínio particular” e
gião. E argumenta que, imbricada na expan- marcos temporais sendo criados em âmbito
são da fronteira agrícola, encontra-se a fron- estadual e federal para facilitar a legalização
teira como lugar de (des)encontros violentos do ilegal e tratar o desmatamento e a grila-
e conflitivos de territorialidades distintas, um gem como fatos consumados. Analisa tam-
fenômeno socioespacial permanente nos ser- bém a generalização grosseira de dados pela
tões do Cerrado do Norte-Nordeste. Embrapa-Gite, que acaba por distorcer a situ-
ação fundiária da região e encobrir a irrisória
A questão fundiária no Matopiba é o foco da titulação dos territórios indígenas e tradicio-
segunda seção, caracterizando a fronteira nais. Faz-se o alerta de que a situação fundi-
como eminentemente racializada e hierar- ária não equivale à territorialidade legítima
quizadora, tal como expresso, em especial, na ou à realidade de ocupação ou conflito vivido
forma como as instituições, por um lado, tra- no chão. Desse modo, aponta preocupações
tam como aliados os sujeitos que chegam de com processos de “regularização fundiária”
fora e invadem terras públicas – em sua maio- que parecem se colocar mais a serviço da ga-
ria homens, brancos e da região Sul do país rantia da segurança jurídica dos investidores,
– e, por outro lado, relegam à morosidade os especuladores e invasores de terras públicas,
processos de titulação dos territórios dos po- legalizando a grilagem, do que da titulação ¹ Ver: https://www.embrapa.br/tema-matopiba
vos indígenas, comunidades quilombolas e dos territórios e da reforma agrária.
² Evaristo Eduardo de Miranda, Lucíola Alves Magalhães e Carlos Alberto de Carvalho. Nota Técnica 1. Proposta de Deli-
tradicionais e a legitimação da posse de ou- mitação Territorial do MATOPIBA. Campinas: Embrapa-GITE, 2014. Disponível em: https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/
tras populações de base camponesa lutando Por fim, a quarta seção traz sínteses dos casos bitstream/item/139202/1/NT1-DelimitacaoMatopiba.pdf
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do decreto não implica, no entanto, em mi-
1. Matopiba como fronteira permanente Isso fica evidente ao observar que, muito
antes do decreto, diversos estudos usaram
nimizar os potenciais efeitos da “institucio-
nalização da fronteira”, em especial o aporte
termos distintos para se referir a variações de recursos públicos para o desenvolvimen-
de delimitação geográfica da região, mas to da produção e logística do agronegócio.
Desde que o Decreto Federal nº 8.447 de fica, de acordo com os autores, foram a área todas tendo em comum a ênfase nas áreas Ao mesmo tempo, embora o decreto tenha
maio de 2015 foi emitido – durante o gover- de Cerrado nos quatro estados e a dinâmica do Cerrado fora do Centro-Sul, áreas estas sido revogado antes de mesmo de sua efeti-
no de Dilma Roussef (PT) e com o Ministério da produção agropecuária e florestal e da in- com fronteira agrícola em expansão desde va implementação, suas intenções reverbe-
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento fraestrutura logística. os anos 1970/80: “Cerrados do Nordeste”³ ram institucionalmente de diversas formas.
(MAPA) então sob a gestão da pecuarista e “Novo Nordeste”⁴ (expressões que ainda
e atual senadora Kátia Abreu (PP/TO) –, o A vida institucional do Matopiba – além de não consideravam o Tocantins), BAMAPITO⁵ Do ponto de vista da logística de escoa-
Matopiba tem gerado pesquisas, debates não ter sido plenamente realizada, já que e “Cerrados do Centro-Norte”⁶ (que consi- mento de commodities agrícolas a partir
e ações de denúncia. O decreto dispunha o PDA e o Comitê Gestor não foram de fato derava somente o leste do Tocantins). Fora do Matopiba, uma série de projetos de fer-
sobre a finalidade do Plano de Desenvolvi- estabelecidos e iniciados – foi curta. Com a do âmbito das pesquisas acadêmicas, o uso rovia (como a Ferrovia de Integração Oes-
mento Agropecuário do Matopiba - PDA- abertura do processo de impeachment da de termos como MAPITOBA (menos usual te-Leste – FIOL na Bahia), de ampliação e
-Matopiba, indicando que este seria publi- ex-presidenta e seu afastamento em maio atualmente) e mesmo MAPITOBAPA (in- pavimentação de rodovia (como a BR-135
cado por ato do MAPA, bem como criava seu de 2016, o presidente do governo de exceção cluindo parte do Pará) também circularam. no Maranhão e a Transcerrados no Piauí),
Comitê Gestor. Michel Temer (MDB) nomeou o ruralista do Além disso, como a fronteira da soja sobre o de implantação de hidrovia (Hidrovia To-
Mato Grosso, Blairo Maggi, ao cargo de mi- Cerrado baiano é relativamente mais antiga cantins) e portos (como o Porto São Luís, no
No entanto, ainda que o Grupo de Inteligên- nistro do MAPA. O Matopiba caiu então em e consolidada do que a dos outros estados, Maranhão, e o Porto Sul, na Bahia) estão
cia Territorial Estratégica (Gite) da Empresa um limbo institucional até o Decreto Federal não é incomum ver menções mais diretas às em processo de estudo, construção e/ou
Brasileira de Agropecuária (Embrapa) te- nº 8.477/2015 ser oficialmente revogado em fronteiras mais recentes do MAPITO ou mes- concessão⁷, provocando intensos conflitos
nha estabelecido uma plataforma dedicada agosto de 2020 por Jair Bolsonaro (sem par- mo MAPITOPA (incluindo o Pará). territoriais. Do ponto de vista da tecnologia
ao Matopiba¹ com notável acervo, não há tido). produtiva, a Embrapa tem realizado pesqui-
qualquer documento público que possa ser Explicitar que o “Matopiba” existe para além sas e lançado variedades adaptadas ao solo
considerado, de fato, um “plano de desenvol- Tais fatos podem dar a falsa impressão de
vimento”. A própria delimitação da fronteira que o Matopiba não tenha consequência
alvo de políticas específicas de desenvolvi- prática. Ao contrário, o decreto de 2015 pôs
mento econômico parece ter sido definida em evidência uma fronteira agrícola que já
pela primeira Nota Técnica do grupo sobre existia e que seguiu existindo como tal após 3 Rogério Haesbaert. Des-territorialização e identidade: a rede gaúcha no Nordeste. Niterói: Eduff, 1997.
o Matopiba², publicada um ano antes do sua revogação. Nesse sentido, o decreto se
4 Rogério Haesbaert da Costa. Gaúchos e baianos no novo nordeste: entre a globalização econômica e a reinvenção das
decreto, em maio de 2014. Nesta define-se a configurava como uma profecia autorre- identidades territoriais. In: I. E. Castro et al. (Org.). Brasil: questões atuais sobre a reorganização do território. Rio de Janei-
delimitação de 31 microrregiões geográficas alizável, pois que se assentava sobre uma ro: Bertrand Brasil, 1996. p. 362-403.

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís- fronteira com cerca de quatro décadas de 5 Julia Adão Bernardes. Fronteiras da agricultura moderna no Cerrado Norte/Nordeste: descontinuidades e permanên-
tica (IBGE), que reúnem 337 municípios com expansão, ainda que de forma não contínua cias”. In: Julia Adão Bernardes; José Bertoldo Brandão Filho (Org.). Geografias da soja II: a territorialidade do capital. Rio
de Janeiro: Arquimedes/CNPq, 2009. p. 13-40.
cerca de 73 milhões de hectares (ha). Os cri- e espacialmente desigual ao longo desse pe-
6 Vicente Eudes Lemos Alves. Prefácio. In: Vicente Eudes Lemos Alves (Org.). Modernização e regionalização nos Cerrados
térios adotados para a delimitação geográ- ríodo nos quatro estados. do Centro-Norte do Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2015.
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e clima da região⁸, promovendo a expansão A multiplicidade de configurações geográfi- notável a associação do padrão do desmata-
dos monocultivos. Em relação à governança cas expressas nos diversos termos e acrôni- mento com rodovias como a Belém-Brasília
fundiária, que nos interessa especialmente mos denota a heterogeneidade dos tempos (BR-153), a BR-226 (ou Rodovia Transbrasilia-
nesse estudo, vamos analisar mais detida- da fronteira. A própria geografia da evolu- na entre Natal-RN e Paraíso do Tocantins), a
mente na seção 3 deste artigo. ção multitemporal do desmatamento na re- BR-230 (ou Transamazônica) e a BR-135.
gião permite visualizar isso, como no Painel
Por ora, cabe ressaltar que tramita atual- de Mapas 02 “Evolução do desmatamento” Neste sentido, apesar da ampla cobertura
mente no Congresso o Projeto de Lei Com- a seguir, construído a partir dos dados geo- de vegetação de cerrado, os dois estados que
plementar nº 246/2020, de autoria do Depu- espaciais do PRODES Cerrado (Programa se encontram total (Tocantins) ou quase to-
tado Federal Pastor Gil (PL/MA), que institui de Monitoramento do Desmatamento do talmente (Maranhão) dentro da Amazônia
o Complexo Geoeconômico e Social do Ma- Cerrado por Satélite) do Instituto Nacional Legal (AL) compartilham com os demais
topiba. No lugar do antigo PDA do decreto de Pesquisas Espaciais (Inpe) sobre a área estados da região amazônica um padrão de
de 2015, o projeto atualmente em debate do Matopiba delimitada pelo Gite-Embra- ocupação que se expande a partir do eixo
fala em um “Programa de Desenvolvimento pa em três escalas temporais – até 2000, das estradas construídas especialmente
Sustentável” (grifo nosso) e adota uma gra- até 2010 e até 2020. Cabe notar que como no governo Juscelino Kubistchek e na Di-
mática mais próxima à economia verde e a o PRODES Cerrado somente cobre o Bioma tadura Empresarial-Militar. Estradas estas
apelos de “sustentabilidade ambiental”, que Cerrado (IBGE) e a delimitação do Matopiba que foram projetadas sob o argumento da
podem acabar por atrair alguns setores do inclui algumas áreas do Bioma Amazônia (1 “integração nacional” e da ocupação de su-
ambientalismo de mercado. no mapa ou 7,3% do Matopiba) e do Bioma postos “vazios demográficos”. São, assim,
Caatinga (2 no mapa ou 1,7% do Matopiba), derivações da ideologia de frentes pionei-
O projeto foi aprovado em 22/09/2021 na que são cobertos por outras bases do PRO- ras de ocupação dos “sertões” presentes no
Comissão de Desenvolvimento Econômico, DES, o painel de mapas aqui apresentado bandeirantismo e na Marcha para Oeste de 7 Para um levantamento e análise desses processos
Indústria, Comércio e Serviços com substi- permite analisar principalmente a expansão Getúlio Vargas, que justificaram o genocídio de disputa e expansão da logística da soja, ver: Diana
Aguiar. Guerra das Rotas. In: Diana Aguiar. Dossiê Crí-
tutivo a partir do Parecer do Relator, Depu- do desmatamento do Cerrado, que, de todas indígena e os deslocamentos forçados nas tico da Logística da Soja: em defesa de alternativas à
tado Federal Capitão Fábio Abreu (PL/PI). A as formas, corresponde a 91% do Matopiba. terras tradicionalmente ocupadas do Brasil cadeia monocultural. Rio de Janeiro: FASE, 2021, pp.
22-35. Disponível em: https://fase.org.br/pt/acervo/bi-
principal modificação proposta no parecer Central. blioteca/dossie-critico-da-logistica-da-soja/
e aprovada pela comissão foi a inclusão de O primeiro mapa do painel, à esquerda,
parte do Estado do Pará que “faz fronteira mostra o avanço do desmatamento até o A Belém-Brasília é inclusive considerada um 8 Embrapa lança cultivar para a região do Matopiba.
Canal Rural, 03/07/2015. Disponível em: https://www.
territorial e agrícola com os Estados do Ma- ano 2000, que é o marco inicial do PRODES dos vetores do chamado “arco do desmata- canalrural.com.br/projeto-soja-brasil/embrapa-lanca-
ranhão e Tocantins”, o que significaria a in- Cerrado. Até aquele momento, cerca de 10,76 mento da Amazônia”, onde a devastação da -cultivar-para-a-regiao-do-matopiba/
Daniel Popov. Matopiba: soja da Embrapa resisten-
clusão de “aproximadamente mais 39 mu- milhões de hectares de cerrado nativo já ti- floresta é mais intensa. te a veranicos já pode ser comprada. Canal Rural,
03/06/2019. Disponível em: https://www.canalrural.
nicípios” paraenses e a mudança da sigla do nham sido devastados, o que corresponde a com.br/projeto-soja-brasil/noticia/matopiba-soja-da-
complexo geoeconômico para MAPATOPI- aproximadamente 16,18% da área total do -embrapa-resistente-a-veranicos-ja-pode-ser-compra-
da/
BA⁹. Os desdobramentos da tramitação do Cerrado no Matopiba (66,52 milhões de ha).
projeto podem implicar em uma renovada No caso do Maranhão e do Tocantins, que 9 Parecer do Relator ao Projeto de Lei Complementar
Nº 246 de 2020. Disponível em: https://www.camara.
ofensiva sobre os territórios. do ponto de vista da fronteira da soja têm leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte-
dinâmicas relativamente mais recentes, é or=2070678
MAPA 02 10
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Como explicitado por Aguiar e Torres¹⁰, o conter o avanço do desmatamento em áreas
arco corresponde justamente à transição como a Travessia do Mirador, como veremos
Cerrado-Amazônia, de onde a fronteira agrí- na próxima seção.
cola se expande a partir do Cerrado, configu-
rando-se não casualmente como a área de Assim, a evolução do desmatamento nas úl-
maior intensidade de conflitos no campo no timas décadas esteve bastante conectada à
Brasil (dados da Comissão Pastoral da Terra emergência da economia do agronegócio
– CPT). da commodity soja e, portanto, se acele-
rou pari passu com esta, ao ponto de ter
Por outro lado, o que se percebe especial- sido maior nos últimos 20 anos (cerca de 13
mente no Cerrado baiano e, em menor me- milhões de hectares) do que nos 500 anos
dida naquele momento (até 2000), no Sul anteriores, desde a invasão colonial (apro-
do Piauí e Maranhão é um padrão de des- ximadamente 11 milhões de hectares). Em
matamento bastante associado à ocupação 2020, a superfície desmatada de Cerrado no
das chapadas pelo agronegócio. Na Bahia, Matopiba já correspondia a 23,47 milhões de
o avanço nos últimos vinte anos, como é hectares, ou 35,28% da área total de Cerrado
visível no mapa, é no sentido de oeste (na na região. Cerca de 17% dessa área devasta-
borda dos chapadões) a leste (rumo aos va- da (4 milhões de hectares) estava destinada
les). Cabe frisar que esta devastação ocorre a monocultivos de soja em 2018 (ver Mapa
sobre as áreas de recarga e alimentação de 04 “Área plantada de soja”); 14,6 milhões
água (nas chapadas) do Aquífero Urucuia, de hectares destinados para pastagens (em
o que complexifica os conflitos e impactos 2020), com um aumento de 258% desde
na região. No caso do Piauí, ainda que em 1985¹¹. Juntos, criação de gado e monocul-
tempos mais recentes do que na Bahia, a tivo de soja correspondem a praticamente
devastação segue também o desenho do re- 80% da área de desmatamento acumulado
levo, como é visível no Painel de Mapas 03 até 2020 no Cerrado do Matopiba.
“Desmatamento do Cerrado” a seguir. A cor-
relação entre as chapadas, as áreas de maior
concentração de soja e o desmatamento no 10 Diana Aguiar e Maurício Torres. A boiada está pas-
sando: desmatar para grilar. In: Diana Aguiar e Valéria
Matopiba é inegável. As grandes exceções Pereira Santos (Orgs.). AGRO é FOGO: grilagens, desma-
que confirmam a regra – as chapadas do tamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal.
AGRO é FOGO, 2021. Disponível em: https://agroefogo.
Alto Rio Itapecuru no Maranhão e o leste do org.br/a-boiada-esta-passando-desmatar-para-grilar/
Tocantins – correspondem a terras públicas 11 Mapbiomas. Agropecuária cresce 258% no Matopiba
e tradicionalmente ocupadas que do ponto desde 1985 e ocupa área maior que o Amapá. Setembro
de 2021. Disponível em:
de vista da situação fundiária estão desti- https://mapbiomas.org/agropecuaria-cresce-258-no-
nadas (como unidades de conservação ou -matopiba-desde-1985-e-ocupa-area-maior-que-o-
-amapa
terras indígenas), o que acabou por ajudar a
MAPA 03 12
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Trata-se de uma fronteira em constituição
MAPA 04
MA) e o Projeto Campos Lindos (TO) foram
desde o fim dos anos 1970 e início dos 80,
ilustrativos dessa dinâmica. É possível ob-
configurando-se como um espraiamento do
servar reverberações disso ainda hoje com
processo de tropicalização da soja¹² no Cer-
esses municípios sendo centros irradiadores
rado que teve o Estado do Mato Grosso como
da economia do agronegócio nas suas res-
grande laboratório a partir dos anos 1970,
pectivas regiões.
por meio de diversas ações da Ditadura Em-
presarial-Militar a partir do Programa de
O Prodecer e outros programas foram tam-
Integração Nacional (PIN), como a criação
bém justificados como forma de conter a
da Embrapa (1973) e os projetos de coloni-
expansão da fronteira e a devastação sobre
zação no eixo da BR-163 (Cuiabá-Santarém).
a Amazônia¹³. Ainda mais, foram celebrados
Marcadas pela migração a partir da região
como uma espécie de redenção do Cerrado,
Sul do Brasil, com o tempo, novos caminhos
tida como uma terra infértil (sic), por meio
foram sendo abertos rumo aos cerrados do
de sua transformação em um celeiro de
Norte-Nordeste, com os “gaúchos” em bus-
commodities¹⁴. Subjacente a isso está uma
ca de novas oportunidades, à medida que ia
hierarquização ambiental, na qual a flores-
aumentando o preço da terra nas fronteiras
ta amazônica deve ser protegida e o Cerrado
mais consolidadas do Centro-Sul. ​
é ecologicamente irrelevante. Não é uma
visão relegada ao passado. Em um debate
Da mesma forma que no Mato Grosso, o Pro-
virtual intitulado “Seminário MATOPIBA –
grama de Cooperação Nipo-Brasileiro para
Desafios do Cerrado Nordestino” realizado
o Desenvolvimento Agrícola dos Cerrados
pela Fundação Perseu Abramo¹⁵, no dia 12
(Prodecer) e outros projetos de colonização
de agosto de 2021, a Senadora Kátia Abreu
foram vetores da atração dessa migração
encerrou sua fala dizendo que o Matopiba
“modernizante”. No Matopiba, o Prodecer II
é a “última fronteira agrícola do Brasil e do
(na atual Luís Eduardo Magalhães - BA e em
mundo” e explicando por quê:
Pedro Afonso - TO), o Prodecer III (Balsas -

12 Refere-se às transformações sociotécnicas que permitiram o cultivo da soja (originária de zonas temperadas) em latitu-
des cada vez mais baixas (como a zona tropical onde se encontram o Cerrado e a Amazônia), chegando inclusive à linha do
Equador.

13 Carlos Eduardo Mazzetto Silva. CERRADOS E CAMPONESES NO NORTE DE MINAS: Um estudo sobre a sustentabilidade
dos ecossistemas e das populações sertanejas. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Instituto de Geociências/UFMG,
março/1999.

14 Em livro de 2016 para celebração do Prodecer, a JICA apresenta as virtudes de um programa que teria convertido a terra
“infértil” (sic) do Cerrado em um celeiro de commodities. A. Hosono; C. M. C. da Rocha; Y. Hongo. (Eds.). Development for
Sustainable Agriculture: the Brazilian Cerrado. New York: Palgrave Macmillan, 2016.

15 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ofovnskUAaM&t=3756or=2070678


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Porque se nós olharmos pra direita do veitável do Matopiba. Se você contar a ção Cerrado-Amazônia. Além disso, no Mato Legal (Maranhão e Tocantins), o desmata-
mapa do Brasil, nós vamos ter o Semi- área de reserva, deixando a área de re- Grosso, o avanço da soja no Cerrado tem se mento é mais difuso e segue o eixo das es-
árido. Se nós olharmos pra esquerda do serva intacta, nós ainda podemos cres- dado especialmente sobre antigas áreas de tradas, com exceção das chapadas no sul do
mapa do Brasil, nós vamos encontrar a cer algo em torno de mais 27%, seria pastagens, empurrando a abertura de no- Maranhão que segue o padrão do Matopiba
floresta amazônica, que nós precisa- dobrarmos a nossa área de produção vas áreas para pecuária sobre a Amazônia, o fora da Amazônia Legal (Bahia e Piauí), no
mos preservar. Então se você olhar pra no Estado da Bahia. principal vetor do desmatamento da flores- qual o desmatamento é concentrado e in-
baixo do Brasil, no Sul já vem produzin- ta¹⁷. Vai se delineando o entrelaçamento dos tenso sobre as chapadas, praticamente se-
do, ocupando. O Matopiba agora estan- Não foi demonstrada a base dos dados e destinos do Cerrado e da Amazônia. guindo o contorno destas.
ca, nós não temos mais pra onde cres- onde exatamente se encontra essa área
cer agricultura. Essa é a última fronteira que permite dobrar a área plantada. Porém, No Cerrado do Matopiba, a dinâmica é dis-
agrícola do Brasil. Por que eu digo que considerando que o estado tem a fronteira tinta à do Mato Grosso. Cerca de 76% da 16 Campanha em Defesa do Cerrado. Peça de Acusação.
é a última fronteira agrícola do mundo? mais consolidada da região, com uma situ- expansão agrícola nos últimos cinco anos Sessão em Defesa dos Territórios do Cerrado do Tribunal
Permanente dos Povos. Setembro de 2021. Disponível
Porque a outra fronteira que existe é a ação grave de desmatamento das chapadas, na região foi realizada sobre áreas de vege- em: https://tribunaldocerrado.org.br/sessao-cerrado/
África, só que a África ainda vai demo- exaustão hídrica, grilagem e conflitos por tação nativa¹⁸, especialmente sobre as cha-
17 Aguiar e Torres, 2021.
rar muito pra chegar aonde nós chega- terra e água, a perspectiva do político é, con- padas, sendo vetor direto do desmatamen-
mos e produzir uma grande agricultura. forme aponta a acusação da Campanha em to. Como consequência, como já sugerido 18 Matopiba teve 76% da expansão agrícola sobre vege-
tação nativa nos últimos 5 anos. Globo Rural, 20 de ou-
(grifo nosso) Defesa do Cerrado acolhida pelo Tribunal na análise até aqui, grosso modo, é possível tubro de 2021. Disponível em: https://revistagloborural.
globo.com/Noticias/Sustentabilidade/noticia/2021/10/
Permanente dos Povos no dia 10 de setem- observar dois padrões de desmatamento na matopiba-teve-76-da-expansao-agricola-sobre-vegeta-
Em outras palavras, o Semiárido não serve, bro de 2021, de um cenário de aprofunda- região. No Matopiba dentro da Amazônia cao-nativa-nos-ultimos-5-anos.html
a Amazônia não pode, o Centro-Sul já foi, a mento irreversível do ecocídio do Cerrado,
savana africana vai demorar muito. Resta o atualmente em curso¹⁶. Além disso, acaba
Cerrado do Matopiba a devastar – “a última por normalizar a possibilidade de que o
fronteira agrícola do Brasil e do mundo”, di- agronegócio tome os territórios ainda sob
zem. Pouco depois de falar em agricultura posse tradicional, onde o Cerrado segue em
“carbono neutra” (jargão do ambientalismo pé, para expandir a área, seja de forma dire-
“para inglês ver”), é o ato “falho” da senadora ta ou para garantir compensação ambiental,
que confessa o lugar destinado ao Cerrado. já que a única área a se deixar “intacta”, de
No mesmo evento, o Vice-Governador da acordo com ele, seria a “reserva legal” dos
Bahia, João Leão (PP), descreveu assim as imóveis rurais.
oportunidades de expansão da fronteira no
Cerrado do estado: Evidentemente, a expansão da fronteira
sobre o Cerrado não somente não conteve
[No Matopiba] nós temos condições o desmatamento sobre a Amazônia, como
amplas ainda de crescer e muito, mas tornou-se a principal veia de transmissão da
muito mesmo. Para os senhores terem devastação para a floresta, tal como explíci-
uma ideia, no Estado da Bahia, nós só to na correspondência entre o chamado arco Plantação de eucalipto encostando na vereda - Palmeirante
atingimos até agora 27% da área apro- do desmatamento da Amazônia e a transi- (TO). Crédito: Thomas Bauer (CPT).
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dos por meio da convivência com o Cerrado
Apontamos também uma hipótese, a ser
mais bem analisada, de que a disponibili-
ao longo de gerações.
2. A imbricação entre o desmatamento
dade hídrica também difere relativamente O antropólogo Paul Little²⁰ defende que, e a grilagem na fronteira do Matopiba
entre esses dois “arcos” de desmatamento, na Amazônia, essa dialética da fronteira
com alguma correlação com o padrão de tem sido um fenômeno socioespacial per-
ocupação. No primeiro “arco”, grosso modo, manente. Argumentamos aqui que esse Antes de ser “Matopiba” ou qualquer outro governo e tratados como aliados dos pode-
as águas superficiais e as planícies apontam também é o caso dos “sertões” do Cerrado acrônimo que o valha, estamos falando do res públicos, inclusive, pasmem, em ações
para uma ocupação potencialmente mais do Norte-Nordeste, fronteira da soja mais Cerrado, savana mais biodiversa do plane- de “preservação ambiental”.
associada à pecuária e, de forma mais loca- recente do que o Cerrado do Centro Sul, e ta e espaço de territorialidades indígenas,
lizada, ao cultivo irrigado de arroz (especial- amplamente configurada pelo predomínio quilombolas, tradicionais – como geraizei- Os “gaúchos” no Matopiba e benefícios do
mente na planície alagada do Araguaia). No de terras devolutas, muitas das quais tradi- ras, fechos de pasto, veredeiras, ribeirinhas, Estado
segundo “arco”, grosso modo, as águas sub- cionalmente ocupadas e alvo de inúmeros quebradeiras de coco-babaçu –, além de
terrâneas nas chapadas implicam no uso de processos de apropriação violenta nos últi- comunidades assentadas ou sem-terra lu- Nos quatro casos analisados, a quase tota-
infraestrutura de captação por pivôs centrais mos cerca de 20 a 40 anos. tando por reforma agrária. Justamente por lidade dos esquemas de grilagem foi enca-
e um padrão de ocupação mais intensivo em isso, a expansão da fronteira agrícola sobre a beçada por invasores de terras públicas dos
capital, com foco em monocultivos de soja Essa fronteira permanente teve diversas con- região foi se traduzindo, como dito anterior- três estados da região Sul do país.
e, em menor medida, de algodão e cana-de- figurações ao longo do tempo, com histórias mente, na constituição da fronteira como lu-
-açúcar. socioterritoriais específicas. Os casos que gar de (des)encontros e intensos e violentos Maranhão
analisamos nesse estudo mostram como conflitos por terra.
Assim, estamos falando de uma região he- mesmo os processos de grilagem mais re- Na Travessia do Mirador, os três maiores
terogênea, com tempos diferentes em par- centes (nos últimos 20 a 30 anos) se assen- Como os quatro casos que compõem esse complexos responsáveis pelo desmatamen-
tes diferentes da fronteira, sofrendo forte tam sobre fraudes cartoriais mais antigas estudo demonstram, a alteridade da fron- to no entorno do Parque Estadual do Mira-
influência do relevo e da disponibilidade (não raro de mais de 40 ou 50 anos). Assim, teira é racializada e hierarquizadora. Os in- dor são:
hídrica no padrão de ocupação, mas tendo a fronteira agrícola moderna da soja, que vasores de terras públicas são majoritaria- * A Agro Serra, do empresário paranaense
em comum o avanço da grilagem e do des- vai se constituindo sobretudo a partir dos mente homens, brancos, oriundos do Sul do Pedro Augusto Ticianel, que é tratado como
matamento pelo agronegócio, provocando anos 1970/80, ganha novos impulsos com Brasil – daí a atribuição na região do gené- parceiro pelo Estado do Maranhão em ações
conflitos por terra e água com comunidades o boom das commodities e a corrida global rico “gaúcho” para se referir a eles – e social- de “preservação ambiental” no parque. Em
rurais, especialmente nas terras tradicional- por terras nos anos 2000, intensificando a mente construídos como empreendedores, uma história já corriqueira dos “gaúchos”
mente ocupadas. Nesse sentido, o Matopiba expansão dos monocultivos, o desmata- agentes da modernização de uma região que vieram “desbravar” os cerrados do Nor-
enquanto fronteira agrícola também se con- mento, a atração de investimentos especu- antes “atrasada”. Para que possam cumprir
figura como fronteira enquanto espaço do lativos em terra e a (re)invenção de velhas e essa “missão civilizatória”, a invasão e apro-
(des)encontro violento e conflitivo¹⁹ entre, novas formas de grilagem. priação de terras públicas, a fraude cartorial, 19 Ou, nas palavras de José de Souza Martins, “essencial-
mente o lugar da alteridade”. In: Fronteira: a degradação
por um lado, processos de modernização a concessão indiscriminada de outorgas do Outro nos confins do humano. 2a. ed. São Paulo: Con-
agrícola e monoculturação da vida e, por ou- hídricas e de supressão vegetal (desmata- texto, 2014, p. 133.

tro lado, modos de vida e de uso da terra ba- mento) são amplamente facilitadas institu- 20 Paul E. Little. Amazonia: Territorial Struggles on Peren-
cionalmente. São recebidos em gabinetes de nial Frontiers. Baltimore: The Johns Hopkins University
seados na sociobiodiversidade e desenvolvi- Press, 2001.
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deste, ele chegou à região de Balsas no início – mesmo contendo vícios evidentes – e ins- de terras públicas como particulares nos
dos anos 1980 e se orgulha de ter implanta- creveu os imóveis nos cadastros fundiários, cartórios, com participação decisiva de ser-
do o primeiro campo de soja acima de 1.000 além de ter emitido, sem competência legal, vidores e autoridades judiciais. Os primeiros
hectares do Maranhão. autorizações de desmatamento e deixado beneficiários destas grilagens em grande es-
Ao contrário, os povos do Cerrado – racial
* O Complexo Cachimbo se localiza exata- de realizar os atos para a efetiva destinação cala foram famílias gaúchas como a de José
e socioculturalmente diversos – são
mente sobre a área desafetada na parte les- da área para reforma agrária. Francisco do Amaral, ou paulistas como Ed-
invisibilizados ou construídos como
te do parque por meio de decreto estadual gar Khafif e Gianpaolo Stefano, que reivin-
atrasados, destituídos de saberes e
(2009), se beneficiando diretamente deste. Piauí dicam propriedades sobrepostas aos fechos
obstáculos ao desenvolvimento. O desprezo
Seu principal proprietário, o paranaense de pasto Vereda da Felicidade e Cupim, em
histórico pela relevância ecológica do
Paulo Alberto Fachin, é sócio fundador da No Piauí, o primeiro órgão de terras, a Com- Correntina. Mais recentemente, o catarinen-
Cerrado e seu tratamento como vazio
Agrex, subsidiária no Brasil do grupo japo- panhia de Desenvolvimento do Estado do se Luiz Carlos Bergamaschi e o gaúcho Dino
demográfico contribuiu para a irrisória
nês Mitsubishi. Piauí (Comdepi), delimitou e arrecadou em Rômulo Faccioni afirmam ser proprietários
demarcação de terras indígenas (TIs), de
* O Complexo Fazenda Faedo / União Qui- 1973 cerca de 2.424.221 hectares, que foram de imóveis rurais grosseiramente grilados e
territórios quilombolas (TQs), de outros
nhão do gaúcho Dagoberto Antonio Faedo, transferidas para “famílias de brasileiros sobrepostos aos territórios do fecho Capão
territórios tradicionais (como os fechos
principal vetor do desmatamento das terras vindos do Paraná” e outros estados do Sul do Modesto e Porcos-Guará-Pombas, entre o
de pasto) e de assentamentos de reforma
indígenas Porquinhos dos Canela-Apãn- do país, a preços irrisórios e com acusações Rio Correntina e Santo Antônio, cadastrados
agrária. São muitos os povos sem seu
jekra e Kanela Memortumré ao norte do de fraudes e favorecimentos ilegais. Grupos como reserva legal de outros imóveis.
território garantido, à mercê de processos de
parque, se beneficia diretamente da tese do como a Agropecuária Cosmos Ltda., do ca-
regularização e titulação claudicando com
marco temporal e da Instrução Normativa tarinense Ricardo Tombini e do gaúcho Edu-
injustificada lentidão ou bloqueio, o que os
09 da Funai (2020). ardo Dall’Magro, beneficiários destes títulos
deixa sujeitos ao amplo avanço da grilagem
de legalidade duvidosa, buscam ampliar
e desmatamento.
Tocantins suas áreas originais e promovem grilagem
verde no território tradicional de Melan-
Na Gleba Tauá, a família catarinense do cias. Outros grupos, como SLC Agrícola e os
patriarca Emilio Binotto reivindica desde irmãos Darci, Janailton e Leivandro Fritzen,
1992 – diretamente ou por meio de laranjas instalaram fazendas em terras públicas gri-
– mais de 11 mil hectares das terras de ocu- ladas por meio de inventários com imóveis
pação tradicional, tendo conseguido, ao lon- fictícios, com delimitações arbitrárias e sem
go do tempo, desmatar praticamente toda origem regular.
a área reivindicada para consolidar a grila-
gem, impondo um cotidiano de violência e Bahia​
constante guerra jurídica contra as comuni-
dades. Historicamente a família Binotto se A omissão do Estado da Bahia em identificar
beneficiou com procedimentos irregulares e delimitar as suas terras devolutas permitiu
e com a morosidade dos órgãos fundiários, a livre atuação de grupos de grileiros que in-
sobretudo do Incra, que em determinados ventaram os grandes latifúndios da região
períodos aceitou a documentação da família Oeste por meio de registros fraudulentos Novo desmatamento e vereda sendo aterrada para aumentar
o plantio em Palmeirante (TO). Crédito: Thomas Bauer (CPT).
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Processos de titulação dos territórios tradicionais e rio como terra pública da União. Ao longo Melancias reivindicam ao Instituto de Terras Bahia​
de legitimação de posse se arrastam por anos dos anos que se seguiram, titulou apenas do Piauí (Interpi) desde 1992 a demarcação
(ou décadas) 5.943,71 hectares em forma de 106 lotes in- e titulação das posses que exercem tradi- As comunidades tradicionais de fecho de
dividualizados, restando 11.791,29 hectares cionalmente, por sucessivas gerações. Com pasto da Bacia do Corrente têm reivindicado
Nos quatro casos analisados as comunida- de terras da União, ocupados pelas famílias diversos pedidos ignorados, apenas em 2018 a demarcação e titulação de seus territórios
des tradicionais e posseiras sofrem com a que não tiveram acesso ao título, e que hoje o órgão fundiário realizou um diagnóstico junto à Coordenação de Desenvolvimento
lentidão ou bloqueio injustificado da titula- se constitui como área em disputa e confli- fundiário e antropológico no território. Sem Agrário (CDA) há pelo menos duas décadas.
ção dos territórios ou legitimação de posse to. Com a chegada dos Binotto em 1992, as motivação razoável, somente dois anos de- O fecho de Vereda da Felicidade, por exem-
por anos ou décadas a fio, ficando sujeitas à comunidades foram ficando encurraladas pois, em janeiro de 2020, foram instauradas plo, desde 2012, tem protocolado pedidos de
expansão da grilagem e desmatamento. pelo avanço do desmatamento e dos esque- duas ações discriminatórias administrativas regularização fundiária ao órgão fundiário
mas de grilagem. Iniciou-se, a partir de en- (margem esquerda e direita do Rio Uruçuí- estadual, assim como Capão do Modesto,
Maranhão tão, uma saga jurídica para tentar garantir -Preto) para titulação, abrangendo as terras desde 2014. Mesmo ciente da conflitividade
a titulação de ao menos parte do território atualmente ocupadas nos “baixões”. Con- no território, onde não raro circulam pistolei-
Em 1977, o Estado do Maranhão ingressou tradicional e a criação de assentamentos de tudo, a ação foi encerrada abruptamente ros a serviço de grileiros, o Estado da Bahia
com uma ação discriminatória na área da reforma agrária. Somente em 2008 o Incra pelo chefe do Interpi em junho de 2020, por nada fez. Em fevereiro de 2021, após mais
Travessia do Mirador e, na ocasião, não men- iniciou o primeiro processo administrativo alegada necessidade de ingresso de ação ju- uma ação de queima do “rancho” de Vereda
ciona de nenhuma forma a intenção de criar para a legitimação das posses tradicionais, dicial, após desmatamento realizado pelo da Felicidade, finalmente foram instauradas
um parque estadual sobre a área, tal como que não foi concluído até hoje. O Incra che- fazendeiro Francisco Dias Rosal Júnior em 03 ações discriminatórias administrativas,
veio a fazer por meio de decreto em 1980. gou a desafetar os lotes dos grileiros e des- pequena parte do território demarcado. Não referentes às áreas de manejo comunitário
No entanto, naquele momento, a ação dis- tiná-los para a reforma agrária e a titulação houve sequer o levantamento das famílias de Capão do Modesto, Porcos-Guará-Pom-
criminatória de terras já havia sido julgada e dos territórios tradicionais. Desde então, posseiras, tampouco das certidões referen- bas e Vereda da Felicidade. Entretanto, nos
sua sentença publicada há dois anos (1978), dois assentamentos de reforma agrária tes aos pretensos imóveis sobrepostos, com últimos anos, os grileiros avançaram com os
declarando judicialmente que a área – sobre foram criados, mas não saíram do papel. o processo sendo encaminhado para a Pro- registros dos pretensos imóveis no cadastro
a qual viria a incidir o Parque Estadual do Mesmo o Programa Terra Legal tendo iden- curadoria Geral do Estado (PGE) sem as mí- ambiental rural e Sigef, operando ainda re-
Mirador – é terra devoluta estadual e que os tificado o esquema de grilagem em 2012, os nimas informações necessárias para qualifi- tificações para ampliação de área, como no
posseiros que a ocupam historicamente de- Binotto seguem arrendando os lotes, des- car o ingresso da ação pelo Estado. Por fim, caso da Fazenda Bandeirantes. No entanto,
veriam ter seus direitos garantidos. Mais de matando áreas, conseguindo empréstimos a ação judicial foi protocolada equivocada- os trabalhos de demarcação e investigação
4 décadas depois, isso não só não foi cumpri- bancários e alcançando vitórias jurídicas mente pela PGE na vara comum da Comarca dos títulos estão paralisados. Em junho de
do, como o Estado tem perseguido os possei- em ações de reintegração de posse contra de Bom Jesus (PI), ao invés da Vara Agrária 2021, o catarinense Luiz Carlos Bergamas-
ros e sido leniente com os grileiros no marco as comunidades (que até o momento foram existente nesta mesma comarca. O protoco- chi, que é o atual presidente da Associação
da gestão do parque estadual. revertidas antes de serem cumpridas). As lo foi realizado em 15 e 16/10/2020, e apenas Baiana de Produtores de Algodão (Abapa),
comunidades seguem na luta pela titulação em 08/07/2021 o processo foi remetido para foi recebido pelo Governador Rui Costa para
Tocantins tradicional e a reforma agrária. a Vara Agrária, onde desde então encontra- tratar destes procedimentos de regulari-
-se paralisado e sem impulsionamento pelo zação fundiária e, desde então, a comissão
Em 1984, o Grupo Executivo das Terras do Piauí autor da ação - o Estado do Piauí - ou pelo especial do órgão fundiário não retornou à
Araguaia-Tocantins (Getat) arrecadou as magistrado. região para conclusão dos trabalhos de de-
terras da Gleba Tauá e registrou em cartó- As comunidades do território tradicional de marcação dos fechos.
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Em todos os casos analisados, vemos proces- ao mesmo tempo sobre essa terra pública da das” sobre essas áreas por meio de fraudes tiva. Opera por meio da fraude sobre essas
sos de grilagem encabeçados por empresá- União, que é área de ocupação tradicional. que seguiram as dinâmicas mais tradicio- terras com o objetivo específico de averbá-
rios e especuladores com variações de uma Por meio da violência, assédio e ameaças, os nais de grilagem. As comunidades foram -las como reserva legal de outros imóveis ou
dinâmica comum que associa duas ações grileiros conseguiram consolidar a invasão, perdendo acesso às áreas de uso comum das mesmo recebimento de valores de créditos
características: A) a invasão “no chão”, fre- ocupação e o desmatamento sobre grande chapadas e ficando restritas aos vales, com de carbono. Essa nova forma de grilagem
quentemente consolidada com o desmata- parte da gleba. A fraude nos registros de pro- o território tradicional sendo fragmentado. tem significado uma dissociação espacial
mento das áreas invadidas e o uso de pisto- priedade só não foi plenamente realizada Essas áreas passaram a ser alvo de uma nova das duas ações características da grilagem
leiros para ameaçar, aterrorizar, dificultar até o momento em razão da obstinada luta forma de grilagem – a “grilagem verde”. no Brasil: a grilagem “tradicional” pode
o acesso e destruir as benfeitorias das co- das comunidades e pelo incansável trabalho acontecer em uma área (com invasão, expul-
munidades; B) a fraude no registro da terra de assessoria da Comissão Pastoral da Terra. Assim, com o advento do Código Florestal são, desmatamento e fraude), por exemplo
sendo grilada, tanto cartorial, quanto nos de 2012, que permitiu que a reserva legal de nas chapadas, e provocar em outra área, por
cadastros autodeclaratórios fundiário e Os casos analisados dos outros três estados um imóvel rural esteja em área não contígua exemplo nos vales, ainda sob posse das co-
ambiental. se localizam em regiões com paisagem típi- ao imóvel, a “grilagem verde” se tornou uma munidades e com o Cerrado preservado, a
ca de Cerrado, caracterizadas por chapadas prática cada vez mais comum no Cerrado do fraude no registro para fins de compensação
Um dos casos analisados – a Gleba Tauá no e vales. Nessas regiões, as chapadas foram, Matopiba sobre as áreas de ocupação tradi- ambiental, expandindo inclusive as possibi-
Tocantins – se caracteriza por uma dinâmica em grande medida, invadidas e devastadas cional que seguem sob posse comunitária, lidades de desmatamento na área da grila-
de grilagem “tradicional”, que envolve todos ao longo das últimas décadas, bem como justamente porque é onde se encontram os gem mais antiga.
os elementos das duas ações acontecendo propriedades gigantescas foram “inventa- principais remanescentes de vegetação na-

Posto Rosário na divisa com Goiás BA | Crédito: Thomas Bauer (CPT).


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A associação entre as duas ações que caracterizam Tocantins Piauí cartorial, e em outros há descompasso entre
a grilagem de terras um e outro momento. No caso do fecho de
Na Gleba Tauá, a invasão territorial e fraude A temporalidade entre a aquisição dos títu- Vereda da Felicidade e Cupim, a “fazenda”
Nos quatro casos analisados, os processos foram caminhando juntas como parte do los (viciados) da Comdepi, primeiras fraudes Bandeirantes, cujo registro ilegal se deu em
de grilagem encabeçados por empresários esquema de grilagem dos Binotto. As frau- cartoriais e a efetiva tomada de posse das 1980, instalou por volta de 1983 uma sede e
e especuladores contemplam variações de des cartoriais e as tentativas de registro nos chapadas e “baixões” no Piauí não é coinci- monocultivos de pinus, eucalipto e caju, com
uma dinâmica comum que associa duas cadastros fundiários, bem como ações de re- dente. Ainda em 1951, foram demarcadas financiamento público do Instituto Brasilei-
ações características da grilagem de terras gularização fundiária no Incra têm sido pro- judicialmente – sem indicação da origem – ro de Defesa Florestal (IBDF), em peque-
no Brasil – invasão e fraude. líferas desde 1992, quando chegaram à área. 86.000 mil hectares de terras das chamadas na parte da área. Estes cultivos foram logo
A fraude teve, em ao menos uma ocasião, “datas” Riachão e São Félix. Estas demarca- abandonados, e o banqueiro Edgar Khafif e
Maranhão​ conexão direta com a obtenção de emprés- ções seriam a origem de imóveis sobrepos- sócios jamais pagaram os R$ 20.000.000,00
timo bancário, tendo o registro como lastro. tos no vale do Uruçuí-Preto e na chapada que captaram junto ao IBDF (em valores
Na Travessia do Mirador, a invasão de terras Ao mesmo tempo, veio o início do processo do Riachão. Entretanto, apenas a partir dos atuais). A fazenda Santa Teresa, cujo regis-
públicas acontece sobretudo nas chapadas de invasão da área por meio do assédio e vio- anos 2000, quando passaram a ser vendi- tro ilegal tem mesma origem e ano (1980),
no entorno da área demarcada como Parque lência contra as comunidades. O caso é um dos títulos oriundos de antigos inventários instalou sua sede apenas no ano de 2003,
Estadual do Mirador, com desmatamento exemplo clássico de como o desmatamento que citam essas “datas” como origem de apossando-se de uma pequena parte da
acelerado e forte expansão de monocultivos foi um instrumento de consolidação de uma pretensos imóveis, é que o desmatamento e área total grilada (cerca de 30.088 hectares).
de soja, irradiando a partir da fronteira de invasão/ocupação que nem sequer foi ainda instalação das fazendas se intensificou, rea- Atualmente, busca ampliar a apropriação fí-
Balsas. Dentro do parque, a área está basi- referendada institucionalmente. Apesar de lizando a fraude operada meio século antes. sica da área por meio do cadastro de reserva
camente preservada e ainda caracterizada todas as irregularidades, o Incra emitiu, em Do mesmo modo, nas terras com títulos ad- legal sobre a área de manejo comunitário –
pela ocupação tradicional, em que pese o 1998, segundo o Programa Terra Legal, auto- quiridos pela Agropecuária Cosmos Ltda., a disputa está judicializada desde 2012 em
assédio sofrido pelas comunidades. No en- rizações de desmatamento de uma área to- controlada por Ricardo Tombini e Eduardo ação possessória movida pela associação
tanto, apesar da realidade dentro do parque tal de 11.965 hectares, mesmo sem ter com- Dall’Magro, que em parte tem origem nas comunitária. No caso dos fechos de Capão
não estar caracterizada pela invasão de gri- petência para isso, já que quem deve emitir arrecadações – irregulares – realizadas pela do Modesto e Porcos-Guará-Pombas, a grila-
leiros-desmatadores, o registro de imóveis autorizações de desmatamento é o órgão Comdepi em 1973, apenas uma pequena gem se deu em três momentos. O primeiro,
nos cartórios da região e no Sigef do Incra ambiental, que no caso do Tocantins é o Na- parte foi imediatamente apropriada, e so- foi o registro de transcrição de posse como
e de CAR no Sicar, bem como o anúncio de turatins. O desmatamento é fundamental mente nos últimos 20 anos foram desmata- se fosse propriedade em ação de inventá-
vendas de imóveis para compensação am- para incrementar a dinâmica produtiva li- das em sua totalidade. rio no ano de 1960, no Cartório de Registro
biental na plataforma OLX indicam que a gada ao agronegócio na Gleba Tauá, ou seja, de Imóveis de Santa Maria da Vitória (BA).
fraude tem se dado sobretudo para fins de para a criação de gado e para a plantação Bahia Deste registro, não decorreu nenhuma im-
especulação e grilagem verde. Nesse senti- de soja. O fato é que atualmente a família plicação prática no território – se tratava de
do, a fraude dentro do parque se associa à Binotto controla territorialmente, seja dire- Os fechos de pasto estão no médio curso uma “fazenda fantasma”, só existindo no
invasão e fraude no entorno do parque, via- tamente, seja por meio de arrendamentos, a dos rios que formam a Bacia do Corrente, no papel. Não constava nenhuma delimitação
bilizando a ampliação do desmatamento na maior parte da Gleba Tauá e isso se dá, prin- sopé das chapadas que foram apropriadas nesse registro, e em 1993, em inobservância
região. cipalmente, tendo o desmatamento como e desmatadas em larga escala pelo agro- da lei de registros públicos, foi realizado o
um instrumento importante. negócio. Há casos em que houve tentativa registro da dimensão da área no cartório,
imediata de tomada de posse após a fraude com 16.400 hectares. Em 2006, houve ge-
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orreferenciamento na área e o registro da “Grilagem verde” e o uso da questão ambiental em julgado, ou seja, não cabe mais qualquer Tocantins
“fazenda fantasma” (transcrição) foi trans- contra as comunidades tradicionais tipo de recurso e deve ser cumprida, não é
ferido para o cartório de Correntina, e logo realista pensar que os grileiros possam re- Sobrepostos à Gleba Tauá existem 93 regis-
após desmembrada em várias matrículas, Os quatro casos analisados demonstram vertê-la. Assim, ao ignorá-la e estabelecer tros de CAR, ocupando uma área total de
vendidas para a Agropecuária Sementes Ta- como a “grilagem verde” se tornou uma prá- o parque e as diversas ações supostamente 13.498 hectares, o que corresponde a 65% da
lismã Ltda., Luiz Carlos Bergamaschi, Dino tica cada vez mais comum sobre as áreas de ambientais contra as comunidades, o Esta- Gleba. A área registrada como sendo de re-
Faccioni, dentre outros deste grupo, com a ocupação tradicional que seguem sob posse do do Maranhão permite que na prática os serva legal é de apenas 1.883 hectares. É im-
finalidade de cadastrá-las como reservas le- comunitária, justamente porque é onde se grileiros ganhem tempo e novas oportuni- portante lembrar que a Gleba Tauá é área de
gais de outros imóveis – mesmo sendo áreas encontram os principais remanescentes de dades de lucro, em especial aquelas relacio- Cerrado inserida na Amazônia Legal, o que
de cerrado preservadas pelas comunidades vegetação nativa. nadas à grilagem e especulação verde. A es- exige 35% de reserva legal. No caso da Gleba
de fecho. Apenas a partir do ano de 2014, en- tratégia está desenhada de forma explícita Tauá, de todos os registros de CAR, apenas
tretanto, os pretensos proprietários contra- Maranhão​ nos anúncios de venda ilegal de imóveis ru- 14% está reservado como área protegida, o
taram pistoleiros e empresas de segurança rais dentro do parque que podem ser encon- que aponta para uma dinâmica de absoluta
para tentativas de expulsão dos animais das Em um primeiro momento, as comunida- trados na plataforma OLX com o objetivo devastação da área. A existência de cadas-
famílias fecheiras, instalando cercas e placas des da Travessia do Mirador viram o parque declarado de compensação de reserva legal tros ambientais sobrepostos na Gleba Tauá,
com indicativo de reserva legal. Atualmente, como uma “solução” para os conflitos fundi- ou garantia real para empréstimos. Nos li- que até o momento são válidos – apesar de
a área segue em disputa em ação possessó- ários que enfrentavam. Mas foram confron- mites atuais do parque, há mais hectares em ilegais – pois em sua maioria não foram sus-
ria que tramita na Comarca de Correntina, tados com um cotidiano de cerceamento registros no Sicar (511.366 ha) do que a área pensos ou cancelados, acaba legitimando
ainda sem desfecho. de práticas típicas da ocupação tradicional realmente existente no próprio perímetro tanto o desmatamento quanto a apropria-
da terra no Cerrado. Mesmo tendo seus di- do parque (quase 500 mil hectares). Nos re- ção privada realizada pela família Binotto
reitos territoriais garantidos judicialmente gistros no Sigef vale ressaltar a imobiliária, e seus laranjas. Uma medida simples de
Outra dinâmica associada a isso e analisada desde 1978, se viram alvo de uma construção domiciliada no Paraná, 4W Administração cruzamento dos dados ambientais com as
nos casos é o uso institucional da questão política de que são vetores da devastação de Bens e Investimentos S/S LTDA que rei- informações fundiárias facilmente identifi-
ambiental contra as comunidades, cons- da Travessia e que devem ser reassentados vindica 19.270 hectares, os impressionantes caria que grande parte da Gleba Tauá é terra
truindo-as como agentes de devastação e educados para a preservação ambiental. 42.915 hectares reivindicados em um único pública federal, cancelaria os registros do
ambiental em razão de suas práticas tra- O órgão ambiental estadual (SEMA) chega imóvel por Gilberto Marques Bontempo e CAR e tornaria o desmatamento na Gleba
dicionais de manejo do Cerrado (roças de a associar diretamente pobreza rural com Pedro Augusto Ticianel que, como pessoa efetivamente ilegal. No entanto, a existên-
toco, queima controlada para rebrota de devastação ambiental. Enquanto isso, o física ou por meio da Agro Serra, reivindica 8 cia de tantos registros de CAR, associados
pastagens nativas e campos de capim dou- agronegócio é tido como parceiro e aliado. propriedades na região totalizando cerca de ao desmatamento na Gleba, acaba demons-
rado etc.). Enquanto isso, seus territórios, Mesmo com o vasto desmatamento nas cha- 90 mil hectares. Todos esses registros estão trando que o Estado é absolutamente coni-
onde o Cerrado segue em pé, se tornam padas no entorno do parque, sobretudo para sobrepostos à área do parque e a diversas vente com o esquema de grilagem historica-
alvo da “grilagem verde” do agronegócio, dar lugar a monocultivos de soja, a Associa- das comunidades tradicionais da Travessia e mente construído.
com leniência do Estado. O racismo fundi- ção Brasileira dos Produtores de Soja do por imagens de satélite é possível perceber
ário e ambiental das instituições é, assim, Maranhão (Aprosoja MA) e a empresa Agro que não estão sob exploração para mono- Piauí
estruturante na operação dos mecanismos Serra são parceiras do Estado em ações de cultivos (à exceção de partes dos imóveis da
de operação da grilagem, em suas clássicas “educação e preservação ambiental”. Consi- Agro Serra), o que aponta para seu provável No território de Melancias, a área sobrepos-
e novas formas. derando que a sentença de 1978 já transitou uso para especulação imobiliária e “verde”.
MATOPIBA | 21
ta ao CAR alcança 19.029 hectares, corres- verde nestes territórios, formando uma com a criação tradicional do gado nas privados no Sistema de Gestão Fundiá-
pondendo a 84% da área atualmente reivin- espécie de condomínio de reservas. Es- pastagens naturais, a desembargadora ria (Sigef) do Instituto Nacional de Colo-
dicada. Até mesmo as residências e quintais tas áreas foram objeto da grilagem com mudou seu entendimento, mantendo a nização e Reforma Agrária (Incra). Mas
das comunidades estão cadastradas como origem na “fazenda fantasma” “Riacho liminar mesmo diante da comprovação como o caso da Travessia do Mirador
reserva legal por terceiros. O levantamento do Capão”. Com alegada propriedade da de que se tratava de área de manejo tra- demonstra, a existência de um parque
das reservas legais sobrepostas ao territó- fazenda Tâmara (7.652 hectares), fruto dicional de fecho de pasto. estadual não impediu a imensa sobrepo-
rio soma 17.989 hectares e correspondem a da notória grilagem relacionada à matrí- sição de registros privados nos Cartórios
80% do território reivindicado. O fenômeno cula 2280 nas terras de chapada, a Agro- de Registro de Imóveis (CRI) da região e
da grilagem verde dos “baixões” (vales) está pecuária Sementes Talismã, por exem- no Sigef, apesar de que essas delegações
intimamente relacionado com o desma- plo, adquiriu 2.499 hectares sobrepostas públicas e o órgão fundiário não pode-
Para aprofundar no entendimento da
tamento nas chapadas – com a consigna- aos fechos referidos, possibilitando no- riam aceitá-los. Além disso, a Instrução
relação entre desmatamento e grilagem
ção de imóveis nesta área, novas terras nas vos desmatamentos naquele imóvel. Do Normativa 09 da Fundação Nacional do
no Cerrado do Matopiba um dos cami-
chapadas se tornaram, em tese, disponíveis
mesmo modo, Luiz Carlos Bergamaschi nhos percorridos foi o de traçar para- Índio (Funai), emitida em abril de 2020,
para o desmatamento. Desde 2012, a Fazen-
indicou o conjunto de fazendas Vale do lelos com essa dinâmica na Amazônia, permitiu a certificação de propriedades
da Cosmos, os irmãos Fritzen, o grupo Bom
Correntina, com 1.140 hectares, como que tem pesquisas mais consolidadas, privadas sobre TIs não homologadas, o
Jardim, dentre outros, tentam incorporar as
parte da reserva legal das fazendas Xan- incluindo a contribuição notável do pes- que tem viabilizado a expansão da grila-
áreas dos “baixões” da margem esquerda e
xerê (localizadas também na chapada). quisador Maurício Torres²¹. Algumas gem sobre territórios indígenas. Por fim,
direita do rio, onde se encontram as áreas
A possibilidade da indicação de reservas de suas análises se sustentam quando o Cadastro Ambiental Rural (CAR), por
de moradia e roças das famílias ribeirinhas
legais fora dos imóveis fez com que anti- transportadas para a realidade do Cerra- ser autodeclarado e raramente verifica-
e brejeiras.
gas tentativas de grilagem nestas áreas, do. Torres enfatiza porque o alvo priori- do pelos órgãos ambientais, tem se con-
abandonadas pelo fato das terras não figurado como mais um instrumento de
Bahia​ tário da grilagem são as terras públicas
serem próprias para produção de grãos, não destinadas: o grileiro tem por ob- grilagem digital sobre terras públicas e
fossem reavivadas. O grupo que promo- jetivo a eventual consolidação da frau- tradicionalmente ocupadas, mesmo, em
Nos 369.731 hectares das áreas de mane-
veu a grilagem com origem na fazenda de e isso só poderá acontecer caso seja alguns casos, as já destinadas.
jo de fecho de pasto da Bacia do Corren-
fantasma “Riacho do Capão” move ação possível destacar a terra do patrimônio
te, foram cadastrados por terceiros no
possessória contra membros da comuni- público e transferi-la ao patrimônio pri- De todas as formas, grosso modo, é possí-
CAR/CEFIR 1.262 imóveis pretensamente
dade Capão do Modesto, visando impe- vado. vel afirmar que quanto mais difícil de re-
particulares – destes, apenas 70 cadas-
dir o uso tradicional da área. Concedida verter é a situação fundiária de destina-
tros, com áreas acima de 15 módulos fis-
a medida liminar, ela foi logo depois Em princípio, as terras públicas destina- ção dessas terras, menos atraentes elas
cais, correspondem a 303.440 hectares.
suspensa por decisão da desembarga- das (como as unidades de conservação, se tornam para o grileiro para ocupação
As áreas de reserva legal indicadas nes-
tes cadastros totalizam 82.300 hectares dora Telma Brito, do Tribunal de Justiça TQs e algumas modalidades de assen- produtiva. Nesse sentido, no Cerrado do
sobrepostos aos fechos de pasto. As áre- (TJ-BA). Entretanto, no julgamento fi- tamento de reforma agrária menos co- Matopiba se mantém a correlação levan-
nal do recurso, acatando o argumento muns no Cerrado) e os territórios origi-
as mais atingidas são os fechos de Capão
dos grileiros de que as famílias do fecho nários em processo de demarcação como 21 Ver em especial: Mauricio Torres; Juan Doblas; Daniela
do Modesto e Porcos-Guará-Pombas, Fernandes Alarcon. “Dono é quem Desmata”: conexões
estariam promovendo a “degradação TIs não deveriam sequer ser passíveis de
totalizando 8.130 hectares de grilagem entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense.
ambiental” da área da “reserva legal”, sobreposição com registros de imóveis Pará: Instituto Agronômico da Amazônia, 2017.
MATOPIBA | 22
tada por Torres: como o desmatamento Destinação de terras e limites ao desmatamento Tocantins Uruçuí-Una, com 135.000 hectares na
custa caro, o grileiro tende a investir Serra Grande – embora tenha sido alvo
nisso principalmente quando acredi- Os quatro casos analisados mostram Quando o Getat arrecada as terras da de desmatamento pela fazenda Cerro
ta na possibilidade de consolidação da a relação direta entre a destinação de Gleba Tauá em 1984, destina somente ¼ Azul/Galileia, do grupo Insolo/HMC/Ha-
fraude, cujas chances são reduzidas em terras públicas e o avanço da grilagem e da área para a legitimação da ocupação vard. Ao seu redor, é visível o rastro da
terras públicas destinadas e territórios desmatamento. Mas na ausência de des- de famílias posseiras. A área remanes- devastação promovida pelo agronegó-
originários demarcados. Especialmente tinação, são as comunidades que têm cente, ainda que arrecadada e registrada cio, especialmente nos últimos 20 anos.
no caso de monocultivos – em que o des- especialmente contido a invasão e des- em cartório como terra da União, per- Nas áreas de vale, onde se encontram as
matamento é uma necessidade –, esse matamento de terras públicas sob sua manece sem destinação, sendo alvo do áreas de moradia e em grande parte ain-
“obstáculo fundiário” é decisivo. ​ posse ou ocupação tradicional. Assim, é esquema de grilagem (invasão e frau- da na posse das comunidades tradicio-
nos territórios tradicionais que o Cerrado de) dos Binotto. As únicas áreas sobre nais, o desmatamento é ínfimo – o que,
O Mapa 05 “Destinação de terras e li- do Matopiba segue em pé, o que torna a as quais não conseguiram avançar são por outro lado, tem tornado estas áreas
mites ao desmatamento na região do titulação desses territórios não somen- justamente as tituladas pelo Getat na alvo da grilagem verde. Como houve ar-
Matopiba”, a seguir, permite visualizar te uma questão de garantia de direitos, década de 1980 que ainda permanecem recadação de uma dimensão significa-
isso. As áreas com unidades de conserva- como também uma necessidade ecoló- nas mãos dos antigos posseiros e as áre- tiva de terras públicas devolutas nessas
ção (UCs) e TIs demarcadas são as princi- gica. as do território tradicional que as comu- chapadas, especialmente na Serra das
pais grandes “ilhas” de vegetação nativa nidades conseguiram manter a posse, Guaribas, Serra Grande e Serra do Qui-
no Cerrado do Matopiba. Esta é a forma Maranhão​ em que pese toda violência e assédio. O lombo, há uma grande responsabilidade
mais direta de demonstrar a correlação caso mostra como a mera discriminação do Estado sobre o atual cenário de perda
entre desmatamento e grilagem em es- A Travessia do Mirador mostra essa cor- e arrecadação de terras públicas, sem a de vegetação nativa. Nos anos 70, 80 e
cala da região do Matopiba. relação de forma explícita. A destinação efetiva destinação para fins de reforma 90, era comum constar nos títulos conce-
da área como parque estadual tem sido agrária ou titulação de territórios, tem didos a obrigação de desmatar as áreas
Os casos analisados nesse estudo, ao importante elemento de contenção da limites na contenção do avanço do des- para instalação de projetos agropecuá-
aproximar-se da escala do chão do Cer- expansão do desmatamento na área, matamento e grilagem e como são as rios. Entretanto, no entorno do Território
rado, permitem trazer nuances e expli- em que pese os generalizados registros comunidades tradicionais que acabam de Melancias, não foram encontrados
citar os mecanismos de operação desses ilegais em cartórios, no Sigef e no Sicar. sendo o principal obstáculo ao avanço registros ou documentos que indiquem
processos. Ao mesmo tempo, é funda- Quando em 2009, o Estado do Maranhão territorial dos grileiros. que estes desmatamentos tenham sido
mental enfatizar o papel dos povos e desafeta a porção leste do Parque Esta- autorizados pelo órgão ambiental.
comunidades na defesa de seus terri- dual do Mirador, imediatamente inicia- Piauí
tórios, o que, em muitas áreas de mata -se o processo de desmatamento da área Bahia​
nativa, se configura como o principal pelo Complexo Cachimbo, cujo maior Nas chapadas do alto Parnaíba, mais
obstáculo concreto no chão à entrada proprietário é Paulo Augusto Fachin, especificamente no vale do Rio Uruçuí- O Cerrado baiano possui pouquíssimas
dos invasores. sócio fundador da Agrex, subsidiária do -Preto, onde se localiza o território tra- áreas oficialmente protegidas do ponto
grupo japonês Mitsubishi no Brasil. dicional de Melancias, a área de cerrado de vista ambiental. As áreas remanes-
mais preservada é a Estação Ecológica centes de Cerrado, em geral, são aquelas
que ainda permanecem na posse das
MAPA 05
03 23
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comunidades tradicionais geraizeiras e de gado (no caso do Cerrado, as TIs na tivas, mesmo que não configure desma-
de fecho de pasto. Sem uma política de Ilha do Bananal, por exemplo, estão in- tamento (corte raso) em si²³. Com isso,
identificação, delimitação e arrecada- No entanto, isso não significa dizer que vadidas por pecuaristas desde a década busca-se lembrar que desmatamento
ção de terras devolutas na região, a ne- a destinação de terras põe fim aos con- de 1960²²). Isso pode significar perda e grilagem não são as únicas ameaças
cessária interface entre uma política de flitos pelos usos da terra em determina- parcial ou total de controle territorial territoriais enfrentadas por povos e
zoneamento ambiental e ordenamento do território. Ao contrário, a invasão de para os povos e comunidades, mesmo comunidades, mas certamente estão
fundiário foi prejudicada, retirando ins- terras públicas destinadas e de territó- que a ameaça de fraude na propriedade entre as principais, em razão do baixo
trumentos essenciais para que o poder rios originários demarcados acontece da terra não esteja em questão. E pode nível de regularização e titulação das
público pudesse estabelecer áreas es- com frequência para a exploração ilegal significar ataques com fogo (incêndios terras tradicionalmente ocupadas no
peciais de proteção, especialmente nas de madeira, garimpo ou mesmo criação florestais) e degradação das matas na- Cerrado do Matopiba.
chapadas nascentes e zonas de recarga
do Aquífero Urucuia. A não exigência de
licenciamento ambiental para atividades
agropecuárias, medida inconstitucional
imposta via decreto, fez com que a análi-
se das autorizações de supressão vegetal
seja realizada de modo fragmentado e
meramente cartorial e burocrático, não
havendo estudos sobre os reais impactos.
Não há análise, por exemplo, sobre a re-
gularidade da cadeia dominial do imóvel
objeto do requerimento para desmata-
mento, contribuindo para que supressões
de vegetação autorizadas pelo Estado
sejam utilizadas como meio para consoli-
dação da grilagem de terras. Segundo da-
dos oficiais levantados no Diário Oficial
do Estado da Bahia, somente entre 2011 e
2021, foram concedidas 761 Autorizações
de Supressão de Vegetação para ativida-
des agropastoris na região Oeste, numa
área total de 774.127 ha. Em 2011, foram
30 autorizações que alcançaram 23.884 22 Eliane Franco Martins. Fogo ameaça povo indígena iso-
lado na Ilha do Bananal. In: AGROéFOGO, 2021. Disponí-
ha. Em 2021, apenas até setembro, foram vel em: https://agroefogo.org.br/blog/2021/03/16/fogo-a-
meaca-povo-indigena-isolado-na-ilha-do-bananal/
137 autorizações que já alcançam 130.702
ha, um recorde da década. Colheita de milho em Balsas (MA). Crédito: Thomas Bauer (CPT). 23 Aguiar e Torres, 2021.
MATOPIBA | 25

3. A ameaça da “governança e regularização fundiária”


a serviço da expansão da fronteira agrícola
A correlação entre a garantia da situação o ocupante não pode já ser proprietário ação da “legitimação de posse”, conceden- que tal prazo seja novamente alterado
fundiária e a viabilidade de empreen- de imóvel rural. As ocupações legítimas do a grileiros (invasor) mais direitos até em futuro próximo.
dimentos que dependem do desmata- nesses termos não precisam de “regula- que aos posseiros (ocupante legítimo), e
mento de extensas áreas tem alimentado rização”, mas de legitimação. Ocupação são, portanto, inconstitucionais²⁵. O advento dos “marcos temporais”, aliás,
esforços institucionais para legalizar a in- ilegítima, ao contrário, não é posse e sim tem sido um dos principais dispositivos
vasão de terras públicas na região. No en- detenção e seu sujeito é grileiro (invasor Os dispositivos de “reconhecimento de de consolidação do binômio desmata-
tanto, a Constituição de 1988 reconhece o de terra pública) e não posseiro, devendo domínio” reconhecem como válidos mento e grilagem. O chamado “Novo
direito originário dos povos indígenas so- ser alvo de ação de retomada de terras²⁴. documentos que não cumprem os re- Código Florestal” (Lei 12.952/2012), ao
bre seus territórios (art. 231) e a prioridade quisitos de comprovação da legalida- criar o conceito de “área rural consolida-
de destinação das terras devolutas para a Mas o que se observa em toda parte no de de destaque do patrimônio público, da”, anistiou os infratores ambientais de
reforma agrária – inclusive a titulação de Matopiba é a relegação desses dispositi- basicamente legalizando a grilagem. recompor a vegetação nativa em áreas de
territórios quilombolas e tradicionais – e vos legais em prol dos interesses do agro- Embora existam critérios comuns como Área de Preservação Permanente (APP)
para a preservação ambiental (art. 188, negócio, criando mecanismos para facili- a necessidade de haver beneficiamentos e Reserva Legal (RL) desmatadas até
parágrafo único). As constituições esta- tar a transferência de domínio de terras na área e aquisição de “boa fé” de títulos 22.07.2008, legalizando o desmatamen-
duais igualmente indicam essas priorida- públicas para particulares. Para atender a viciados, de difícil comprovação aliás, o to ilegal e o avanço da fronteira agrícola
des. demanda por terras na esteira da expan- aspecto mais grave destes dispositivos, sobre cerca de 29 milhões de hectares. Na
são da fronteira agrícola, vão se abrindo que configura uma burla constitucional, prática, o Código consolidou o desmata-
A legitimação de posse, presente na le- brechas a partir de mudanças legislati- é a ausência de limites para a dimensão mento histórico no Cerrado e, como dito
gislação fundiária desde a primeira lei de vas, em especial nas leis ambientais e do imóvel²⁶, abrindo brecha para con- anteriormente, abriu o caminho para que
terras, no Decreto-Lei nº 9.769/1946, ratifi- de terras estaduais. Essas mudanças já centração fundiária com terras públi-
cada pelo Estatuto da Terra (1964) e pela vinham se dando no tempo da expansão cas, e na destinação preferencial, que é
Lei Federal nº 6.383/1976, é também um da fronteira (Bahia em 1972 e 1975; Mara- o público abarcado no Plano Nacional 24 Torres et al, 2017.
instrumento necessário para o reconhe- nhão em 1991) e têm se intensificado no de Reforma Agrária. São dispositivos
25 Para um detalhamento dessas mudanças legislativas
cimento das ocupações legítimas, ou seja, ritmo desta (Bahia em 2011; Tocantins e acompanhados de “marcos temporais”, e sua inconstitucionalidade, ver: Joice Bonfim, Débora
aquelas que se caracterizem pela “cultura Piauí, 2019; Projeto de Lei em tramitação que reconhecem como válidos documen- Assumpção, Juliana Borges, Mauricio Correia e Silvia
Helena Coelho. Legalizando o ilegal: legislação fundi-
efetiva e moradia habitual”, exercidas di- no Maranhão), continuamente “legali- tos de propriedade até uma determinada ária e ambiental e a expansão da fronteira agrícola no
Matopiba. Salvador: AATR, 2020. Disponível em:
retamente pelo posseiro e seus familiares, zando o ilegal” e facilitando a expansão data, mesmo que não cumpram os requi- https://www.aatr.org.br/post/matopiba-estudo-sobre-
em área que pode variar conforme o esta- e consolidação da grilagem no Matopiba. sitos, anistiando a grilagem até aquele -institucionaliza%C3%A7%C3%A3o-da-grilagem-%-
C3%A9-lan%C3%A7ado
do ou se terras da União, mas geralmen- Essas leis têm criado a figura do “reconhe- momento e estimulando novas ondas de
te alcança até 100 hectares. Além disso, cimento de domínio”, a partir da desvirtu- apropriação ilegal com a expectativa de 26 Apenas a lei de terras do Maranhão limita a 1.000
hectares.
MATOPIBA | 26
a região do Matopiba – onde se localizam mesmo que seus direitos territoriais es- terras públicas não destinadas, a grila- nefastas para os direitos territoriais de
os maiores remanescentes de cerrados – tejam consagrados na Constituição Fe- gem é generalizada. A centralidade da povos indígenas, comunidades quilom-
se torne palco privilegiado dos processos deral, lei maior do país. preocupação com a resolução da “segu- bolas e tradicionais, assentadas de refor-
de “grilagem verde”, viabilizando a expan- rança jurídica” dos investimentos em ma agrária e de trabalhadores/as rurais
são do desmatamento. Assim, como já visto, se mesmo em ter- terra é tal que os órgãos fundiários da sem terra, tal como denunciado em Car-
ras públicas destinadas, com todos os região, em parceria com o Banco Mun- ta Pública de abril de 2021, assinada por
Outro marco temporal, ainda mais in- limites da situação fundiária, ocorrem dial, tem se engajado em esforços de “re- 70 organizações e movimentos sociais
fame e atualmente em julgamento no casos de grilagem cartorial e digital, nas gularização fundiária”, com implicações (ver Quadro “Carta Pública”).
Supremo Tribunal Federal (STF), é o ar-
gumento jurídico de que as terras tra-
dicionais seriam apenas aquelas onde
houvesse a presença de povos indígenas
na data da promulgação da Constituição,
em outubro de 1988. Na prática, descon-
sidera as históricas expulsões e desloca-
mentos forçados, consolidando e legali-
zando-os.

Mas não se trata somente de mudan-


ças legislativas ou de jurisprudência e
suas repercussões. Como os quatro ca-
sos analisados nesse estudo ilustram,
há uma atuação sistemática dos órgãos
fundiários e ambientais nacionais e es-
taduais e de instituições do sistema de
justiça no sentido de não realizar ações
discriminatórias de terras públicas e
as destinações destas para os fins de-
terminados constitucionalmente. Não
é incomum que a atuação institucional
ocorra a contrapelo do sentido da nor-
ma. E é assim que a vida de tantos povos
e comunidades está marcada por uma
história e cotidiano de invasões, ataques
e ameaças, lutando pela titulação que
se arrasta por anos (e até décadas) a fio, Unidade da Cargil na Serra do Centro - Campos Lindos (TO). Crédito: Thomas Bauer (CPT)
Ato ninguém vai morrer de sede ao lado do rio Arrojado
Correntina (BA). Crédito: Thomas Bauer (CPT).
27
CARTA PÚBLICA

Em defesa de direitos territoriais das comunidades do


Cerrado, os povos do campo merecem ser escutados
Os governos e mesmo o poder judiciário No mesmo sentido, em 09 de junho de
dos estados da região têm firmado acor- 2020, por meio da Portaria Conjunta do
dos com o Banco Mundial para financia- Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e
mento de ações de regularização fundiá- Conselho Nacional do Ministério Público
ria e mudanças nas legislações estaduais (CNMP), houve a inclusão do MATOPIBA
de terras que objetivam declaradamente no Observatório Nacional sobre Ques-
oferecer segurança jurídica para grupos tões Ambientais, Econômicas e Sociais
nacionais e internacionais que compra- de Alta Complexidade e Grande Impacto
ram ou pretendem comprar grandes ex- e Repercussão do CNJ e do CNMP. ​
tensões de terras na região. Trata-se, na
realidade, de propostas que visam lega- Fonte: Trecho da Carta Pública (2021). Desse modo, a posição aqui defendida é ʈ Todas as UCs devem ter Plano de
lizar o ilegal, ou seja, validar grilagens de que: Manejo construído com respeito ao di-
terras públicas e tradicionalmente ocu- Disponível em: https://www.aatr.org.br/ ʈ Qualquer “regularização fundiária” reito à consulta livre, prévia e informada
padas que deram origem aos latifúndios post/carta-pública! que aponte no sentido do inconstitu- com base na Convenção 169 da Organi-
do agronegócio, assim como permitir a cional de “reconhecimento de domínio” zação Internacional do Trabalho (OIT);
continuidade desse processo. particular sobre terras públicas – estan- bem como a relação entre os órgãos am-
Causa preocupação o fato de que “regu- do, portanto, a serviço do agronegócio, bientais e as comunidades tradicionais
Por outro lado, as Corregedorias dos Tri- larização fundiária”, nesse sentido, sig- dos grileiros e dos especuladores – seja nessas áreas tem que ser revista, no sen-
bunais de Justiça Estadual dos quatro nifique uma política de fato consumado interrompida de imediato. tido de promover o diálogo de saberes e
estados têm se reunido, desde 2018, no em relação à invasão de terras públicas o respeito às territorialidades e modos
chamado Fórum Fundiário dos Correge- e ao desmatamento, se aproximando ʈ Os esforços dos Estados, em suas de vida que mantêm o Cerrado em pé.
dores Gerais de Justiça do MATOPIBA, mais do artifício inconstitucional do três esferas (executivo, legislativo e judi- Nos casos em que UCs de proteção in-
em eventos com participação restrita, “reconhecimento de domínio”. Ou seja, ciário), sejam dirigidos a titular e demar- tegral tenham sido demarcadas sobre
sem participação da sociedade civil or- sirva mais à legalização da grilagem, car prioritariamente todos os territórios terras tradicionalmente ocupadas, a mo-
ganizada, especialmente as comunida- do que à reforma agrária entendida em indígenas, quilombolas e tradicionais dalidade da UC deve ser revista de modo
des, movimentos sociais e organizações seu sentido amplo, incluindo a criação da região, bem como criar os assenta- a garantir o direito à posse, uso e manejo
do campo que são diretamente impac- de assentamentos de reforma agrária, a mentos de reforma agrária e realizar a da terra e a reprodução social das comu-
tadas pelas alterações normativas e de legitimação de posses e a titulação dos legitimação da posse das comunidades nidades tradicionais. Além disso, os re-
resoluções que têm sido promovidas territórios indígenas, quilombolas e tra- e famílias camponesas aguardando sua centes processos de concessão de UCs à
desde então. dicionais. terra. iniciativa privada devem ser suspensos.
MATOPIBA | 28
A prioridade de titular e demarcar mação de posse já estivesse prevista em indígenas e UCs. No estudo “Legalizando o Ilegal”²⁹, a
lei. AATR levantou a discrepância entre os
os territórios
A sexta nota técnica do Gite-Embrapa, números da Embrapa e outros dados
Havendo, no entanto, terras devolutas de dezembro de 2014, buscava levantar públicos. Enquanto a Embrapa fala em
O sentido de priorizar a demarcação e
sem nenhuma ocupação tradicional, ca- o “quadro agrário” do Matopiba: 28 TIs, o IBGE identifica 517 localidades,
titulação de territórios tradicionais e
berá ao poder público a arrecadação para o que inclui as terras indígenas delimita-
indígenas não decorre apenas de deter-
a criação de assentamentos de reforma De um total de 969 áreas legalmente das, as não delimitadas, as aldeias e ou-
minação constitucional, mas de uma
agrária e proteção dos ecossistemas. Nos atribuídas, 42 Unidades de Conserva- tros agrupamentos indígenas. Enquanto
avaliação do que tem sido até aqui a po-
estados onde é possível a venda de terras ção ocupam uma extensa área de 8,8 a Embrapa fala em 34 “áreas quilombo-
lítica de destinação de terras públicas no
para instalação de projetos agropecuá- milhões de hectares, além de 28 terras las” (sic), que somam parcos 250 mil hec-
Brasil. Como vimos, há um mito de que
rios, esta opção também deve se dar de indígenas com 4,1 milhões de hectares, tares, a Fundação Cultural Palmares
as terras públicas são e estão “desocu- 865 assentamentos de reforma agrária
acordo com os parâmetros constitucio- reconhece ao menos 342 comunidades
padas”, situação distante da realidade com cerca de 3,7 milhões de hectares e
nais, com respeito aos limites de dimen- certificadas e o IBGE fala em 506 locali-
do Matopiba, onde as chapadas, por 34 comunidades quilombolas em pra-
são do lote e respeitando a função social dades quilombolas, obviamente a maio-
exemplo, sempre foram utilizadas pelas ticamente 250 mil hectares, num total
da propriedade em todos os seus termos ria das quais aguardando demarcação e
comunidades, mesmo que as áreas de de quase 17 milhões de hectares legal-
– inclusive ambientais e trabalhistas (art. titulação.
moradia se localizem nas zonas ribeiri- mente atribuídos. (grifo nosso) ²⁸
186 da Constituição Federal).
nhas dos vales.
Grileiros têm justamente se aproveitado
Tal sistematização caracteriza com ex- da morosidade desses processos de ti-
Caso os governos sigam políticas mas- cessiva simplicidade uma situação fun-
Ao contrário, vemos uma tendência no tulação para registrar supostos imóveis
sivas de demarcação de glebas públicas diária e de conflitos por terra muito mais
tratamento institucional do tema de e cadastros fundiários e ambientais em
visando sua divisão em lotes individuais caótica e violenta. Em primeiro lugar, a
considerar os territórios e UCs já titula- cartórios e plataformas digitais sobre
para venda antes que se reconheçam e contagem e mensuração de terras indí-
dos e demarcados como a realidade pa- áreas ocupadas e/ou reivindicadas por
delimitem as terras tradicionalmente genas, territórios quilombolas e assen-
cífica e definitiva das “áreas protegidas” esses povos e comunidades. Além disso,
ocupadas, estas, em razão da própria tamentos de reforma agrária a partir de
no Matopiba. Em artigo intitulado “Na a Embrapa ignora por completo outras
dinâmica diferenciada de ocupação pe- sua efetiva titulação invisibiliza as ter-
las comunidades (uso temporário, por agricultura, a preservação dos Cerrados”,
ras tradicionalmente ocupadas e passí-
exemplo), tenderão a ser alvo de grila- de 2015, o coordenador do Gite-Embra-
veis de destinação para reforma agrária
gem oficial. Essa dinâmica está muito pa Evaristo de Miranda afirma que: “Dos
sendo reivindicadas por povos indíge- 27 Evaristo E. de Miranda e Carlos Alberto de Carvalho.
presente nos casos estudados no Piauí e 204 milhões de hectares dos cerrados, Na agricultura, a preservação dos Cerrados. Revista
nas, comunidades quilombolas, tradi-
no Tocantins, onde a arrecadação de ter- cerca de 25 milhões já são áreas prote- AgroDBO – Outubro de 2015. Disponível em: https://
cionais, camponesas e de trabalhado- www.cnpm.embrapa.br/projetos/gite/projetos/ma-
ras devolutas pelo Estado objetivando gidas [em referência a TIs e UCs]. No topiba/151030_CERRADOS_MATOPIBA.pdf
res/as rurais sem terras, cujos processos
a venda para particulares – ou mesmo restante dos cerrados cabe à agricultura 28 Marcelo Fernando Fonseca e Evaristo Eduardo de Mi-
de regularização encontram inúmeros
criação de assentamentos e UCs – resul- assegurar o futuro desse bioma e de sua randa. Nota Técnica 6. MATOPIBA: Caracterização do
obstáculos para realização, em especial Quadro Agrário. Dezembro de 2014. P. 29. Disponível
tou na expropriação de territórios tradi- biodiversidade.”²⁷ Curioso notar que a em:https://www.cnpm.embrapa.br/projetos/gite/pu-
a própria captura das instituições fun-
cionalmente ocupados, embora a legiti- “agricultura”, para Miranda, é coisa di- blicacoes/NT6_QuadroAgrario.pdf
diárias pelos interesses do agronegócio.
versa das práticas que existem nas terras 29 Bonfim et al.
MATOPIBA | 29
modalidades de territórios de povos e preendimentos agropecuários. As duas pão no Cerrado tocantinense, terras de decretação de UCs na modalidade prote-
comunidades tradicionais como os ter- microrregiões são classificadas pelo Gite ocupação tradicional quilombola desde ção integral sem respeito às territoriali-
ritórios de fundo e fechos de pasto na como a primeira e a segunda com maior ao menos o fim do Século XIX, onde as dades previamente existentes³³.
Bahia. Só na Bacia do Rio Corrente são porcentagem de sua área destinada comunidades desenvolveram saberes
ao menos 40 fechos sendo reivindicados, como UC. de manejo dos agroecossistemas, com Os casos do Parque Estadual do Mira-
totalizando uma área de 369.731 ha. Isso diferentes tipos de roça, criação tradicio- dor, sobreposto ao Território Tradicional
é mais do que a área total dos territó- A segunda distorção é a menção às UCs nal de gado e práticas agroextrativistas Travessia do Mirador, e do Mosaico de
rios quilombolas já titulados em todo o como uma realidade não disputada, o (como buriti e capim dourado)³⁰. Desde UCs do Jalapão, sobreposto a diversos
Matopiba, o que mostra a discrepância que se configura como mais um apaga- o início dos anos 2000, passaram a sofrer territórios quilombolas, são ilustrati-
entre os territórios (quilombolas e tradi- mento das territorialidades tradicionais conflitos com UCs decretadas sobre seus vos do quanto a situação fundiária de
cionais) efetivamente titulados e os rei- por parte da nota técnica. Justamente territórios, em especial o Parque Estadu- uma área em determinado momento
vindicados. em razão do fato de que é sobretudo al do Jalapão (2001) com 160 mil hecta- não pode ser tomada como represen-
nos territórios tradicionais que o Cerra- res, a Estação Ecológica Serra Geral do tativa das territorialidades legítimas
Quase metade do que o Gite-Embrapa do permanece em pé, há diversos casos Tocantins (2001) com 707 mil hectares e e da realidade vivida no chão dessa
chama de “áreas legalmente atribuídas” em que UCs são decretadas sobre estes, o Parque Nacional das Nascentes do Rio
corresponde a unidades de conserva- ignorando as territorialidades pré-exis- Parnaíba (2002), que envolve áreas do
ção (48,5%), representando, de acordo tentes e não raro tratando as comuni- Tocantins e da Bahia, com cerca de 107 30 Boletim Cartografia da Cartografia Social: uma sín-
com eles, 8,8 milhões de hectares. Esse dades como invasoras em seus próprios mil hectares³¹. tese das experiências / Comunidades Quilombolas do
Jalapão: os territórios Quilombolas e os conflitos com
dado distorce e infla o argumento de ao territórios e como vetoras da devasta- as unidades de conservação. N. 5 (Dez. 2016). Manaus:
menos duas maneiras. A primeira é que ção das paisagens que ajudaram a ma- Além de ter que lidar com conflitos e UEA Edições, 2016. Disponível em: http://novacartogra-
fiasocial.com.br/download/comunidades-quilombo-
o Gite inclui na conta algumas UCs na nejar ao longo de diversas gerações. O cerceamentos de seus modos de vida las-do-jalapao-os-territorios-quilombolas-e-os-confli-
tos-com-as-unidades-de-conservacao/
modalidade desenvolvimento sustentá- uso da narrativa ambiental contra as co- a partir da decretação das UCs, as co-
vel, que existem basicamente no papel e munidades tradicionais constitui-se em munidades enfrentam agora uma nova 31 APA-TO. Mapa Comunidades Quilombolas do Jala-
pão. Outubro de 2016. Disponível em:
estão tomadas por grileiros e invasores. uma camada adicional de violência. Se ameaça. O governo do Estado do Tocan- http://novacartografiasocial.com.br/download/05-ma-
São dignos de nota os casos da Área de tomamos como referência o caso do Par- tins almeja conceder o parque estadual pa-comunidades-quilombolas-do-jalapao/

Proteção Ambiental (APA) Rio Preto com que Estadual do Mirador, vemos como, a à iniciativa privada, com sérios riscos à 32 Carta Aberta. Lideranças quilombolas do Jala-
1,15 milhão de ha e da Bacia do Rio de partir da generalização do Gite-Embra- autonomia das comunidades quilom- pão denunciam violações de direitos no processo
de concessão do Parque por parte do Governo do
Janeiro com 351.300 ha, ambas na mi- pa, um território tradicional de cerca de bolas sobre seus territórios, ainda não Tocantins. 15 de setembro de 2021. Disponível
crorregião de Barreiras na Bahia, bem 500 mil hectares vai sendo naturalizado titulados³². Os programas de privatiza- em: http://conaq.org.br/noticias/liderancas-qui-
lombolas-do-jalapao-denunciam-violacoes-de-
como da APA Leandro (Ilha do Bananal/ como UC de proteção integral, moda- ção de UCs como o Adote um Parque do -direitos-no-processo-de-concessao-do-parque-
Cantão), com área de 1.678.000 ha e lo- lidade que não permite a existência de Governo Federal (com 132 UCs incluídas -por-parte-do-governo-do-tocantins/
calizada na microrregião Miracema do assentamentos rurais. na proposta) e o Programa de Estrutura- 33 Mariana Campos. Programa Adote um Parque:
Tocantins. Essas APAs estão incluídas na ção de Concessões de Parques Naturais privatização das áreas protegidas e territórios
tradicionais. Terra de Direitos e FASE, setembro
lista de “áreas protegidas” do Gite, mas Outro exemplo emblemático dessa di- do Banco Nacional de Desenvolvimento de 2021. Disponível em:
estão tomadas por grileiros e ampla- nâmica, ainda que não analisado direta- Econômico e Social (BNDES) expõem e https://www.terradedireitos.org.br/uploads/ar-
quivos/af-adote-um-parque.pdf
mente desmatadas para dar lugar a em- mente no marco desse estudo, é o Jala- aprofundam a gravidade e a violência da
MATOPIBA | 30
mesma área. Enquanto a situação fun- Assim, a generalização do Gite-Embra- em 2006, certamente há muitos, se não no sentido da titulação dos territórios e
diária pode se fundar em decretos e atos pa a partir de dados agregados pro- a maioria, sem títulos válidos. Essa é a da reforma agrária.
arbitrários dos poderes executivo, legis- move uma simplificação da questão “insegurança jurídica” que parece preo-
lativo e judiciário, eivados de interesses fundiária no Matopiba, inflando o que cupar os esforços institucionais de “regu-
econômicos, as territorialidades e reali- se considera “áreas protegidas” e apa- larização fundiária”.
dades estão fundadas em uma história gando a realidade da imensa maioria
socioterritorial dinâmica, forjada nos dos povos indígenas, comunidades qui- De acordo com o Gite, em sua primeira
enfrentamentos contra os invasores e no lombolas e tradicionais, que seguem lu- Nota Técnica em maio de 2014, a deli-
exercício dos modos de vida dos povos tando pela titulação de seus territórios. mitação proposta para o Matopiba já es-
e comunidades. A defesa dos direitos tava sendo utilizada “no planejamento
territoriais desses povos e comunida- Outro exemplo de generalização é a me- dos processos de governança fundiária
34 Fernando Luís Garagorry, Evaristo Eduardo de
des se assenta na necessidade de que a todologia do Gite-Embrapa para calcu- do Incra”³⁵. Ou seja, mesmo antes do de- Miranda e Lucíola Alves Magalhães. Nota Técnica
situação fundiária respeite, reconheça lar a área da região que se configuraria creto de 2015 e certamente depois de sua 7 - Matopiba: Quadro Agrícola. Campinas: Em-
brapa-GITE, novembro de 2014. Disponível em:
e reitere as territorialidades legítimas, como privada. Para isso, trabalha com revogação, o Matopiba tem sido tratado https://www.cnpm.embrapa.br/projetos/gite/
mesmo em face de uma realidade de os dados do Censo Agropecuário do Ins- como uma realidade objetiva a guiar es- publicacoes/NT7_Matopiba_Quadro_Agricola.
expulsões e fragmentação territorial. tituto Brasileiro de Geografia e Estatísti- forços institucionais em matéria fundi- pdf

ca (IBGE) de 2006 e indica um “total de ária. O que gera preocupação é que não 35 Miranda, Magalhães e Carvalho, 2014, p. 14 (gri-
A falta de correspondência e a contra- 324.326 estabelecimentos agrícolas em parece haver qualquer prioridade ao que fo nosso).
dição entre a situação fundiária de uma uma área equivalente a 33.929.060 ha”³⁴, está constitucionalmente determinado,
área, as territorialidades legítimas e a o que representava então 46,28% da
realidade dos conflitos vividos no chão área delimitada do Matopiba. A escolha
(a história socioterritorial) é ainda mais do Censo Agropecuário e não de bases
evidente em regiões de fronteira. Ainda fundiárias como o Sigef do Incra aponta
mais comum que o conflito com UCs, para uma representação mais precisa da
há incontáveis casos de grilagem sobre realidade da ocupação, porque os recen-
terras devolutas (situação fundiária) em seadores visitam os inúmeros estabele-
áreas que na realidade são de ocupação cimentos. Há, como os casos nesse es-
tradicional (territorialidade legítima) tudo demonstram, diversos registros no
sendo ameaçadas e violentadas por Sigef sem correspondência de ocupação
agentes do agronegócio, em associação no chão, sobrepostos a territórios tradi-
com agentes dos poderes públicos (rea- cionais e inclusive a UCs. No entanto, a
lidade dos conflitos vividos), tais como realidade da ocupação não implica, de
os casos da Gleba Tauá, Território Me- forma alguma, sua legitimidade ou sua
lancias e Território de Fechos de Pasto da regularização fundiária. Ou seja, entre
Bacia do Rio Corrente demonstram. os quase 34 milhões de hectares siste-
matizados no levantamento do Censo Pivo central em Balsas (MA). Crédito: Thomas Bauer (CPT)
MATOPIBA | 31

MAPA 06
03
4. Na fronteira da (i)legalidade: casos de
grilagem analisados nos quatro estados

A partir dessa análise da interface entre ria e regularização fundiária. Mais de 4


o contexto do Matopiba e o que emer- décadas depois, as comunidades tradi-
ge dos casos, fica explícito como as si- cionais da Travessia e seus descenden-
tuações concretas permitem refinar os tes ainda esperam o cumprimento da
entendimentos, superar generalizações sentença que reconhece seus direitos. O
grosseiras e demonstrar os mecanismos caso revela que o Estado do Maranhão
de operação e imbricação da grilagem e agiu com “dois pesos e duas medidas”.
desmatamento no Cerrado do Matopiba. Por um lado, deixou de cumprir as suas
obrigações de demarcação da área, sen-
Nessa pesquisa, foram analisados qua- do conivente com a massiva apropriação
tro casos, um por estado do Matopiba, privada ilegal da Travessia e a grilagem
dois dentro da Amazônia Legal e dois verde, que até os dias atuais são fontes
fora desta. Todos envolvem territórios lucrativas para as empresas agrícolas e
tradicionais cuja titulação se arrasta, en- fazendeiros que promovem intenso des-
quanto grileiros e desmatadores avan- matamento no seu entorno. E ao mesmo
çam com velhas e novas formas de grila- tempo, o Estado promove o cerceamento
gem. das práticas tradicionais das comunida-
des da Travessia, violências e ameaças de
O caso analisado no Maranhão é o da expulsão por meio da gestão do parque.
Travessia do Mirador, uma área de ocu-
pação tradicional com fortes conflitos No Tocantins, é analisado o caso da
fundiários pelo menos desde a década Gleba Tauá, terra pública registrada
de 1970, com a chegada de produtores em nome da União desde 1984, que é
rurais do Sul do Brasil. Desde 1978, a jus- palco de graves conflitos associados à
tiça estadual do Maranhão reconheceu grilagem de terras e desmatamento ile-
a área como terra devoluta, declarando gal. Uma área de mais de 18 mil hecta-
como ilegais as propriedades reivindica- res, que abriga territórios tradicionais e
das por diversos grileiros e demandando camponeses lutando por regularização
que o Estado realizasse a demarcação da fundiária e reforma agrária, tem sido, ao
área, destinando-a para reforma agrá- longo dos últimos 30 anos apropriada
MATOPIBA | 32
de forma ilegal e violenta pela Família comuns para viabilizar o registro ilegal e o desmatamento tem se configurado lações de direitos territoriais e da devas-
Binotto. A família catarinense desenvol- do mosaico de latifúndios que atual- como um instrumento para que a grila- tação, bem como da impunidade de que
veu, ao longo dos anos, diversas estraté- mente estão no entorno do território. gem se torne um fato consumado. As co- desfrutam os invasores de terras públi-
gias de grilagem, “atirando para todos Após a interdição do uso das chapadas munidades tradicionais desenvolveram cas, especialmente as tradicionalmente
os lados” numa guerra jurídica contra promovida por estes grupos de grileiros estratégias de defesa, constituindo os fe- ocupadas.
as comunidades da Gleba. Algumas fo- e empresários que adquiriram títulos chos de pasto sobre as áreas de uso e ma-
ram operadas nos cartórios de registros viciados sobre estas terras, atualmente nejo comunitário que seguiam sob sua
de imóveis, outras por meio do Poder as comunidades ocupam as regiões dos posse. Sobre estes, empresários, imobili-
Judiciário e outras ainda contando com “baixões”, onde reivindicam a demarca- árias e banqueiros arquitetaram a inven-
o apoio de órgãos como o Incra e das le- ção e titulação de 22.583 hectares. São 30 ção de “fazendas fantasmas”, visando,
gislações que legalizam a grilagem. Na anos de reivindicações de demarcação e em um primeiro momento, a especula-
Gleba Tauá, o desmatamento ilegal foi titulação do território, mas apenas em ção fundiária, o acesso a crédito subsi-
uma arma fundamental da Família Bi- janeiro de 2020 o Instituto de Terras do diado pelo Estado brasileiro e emprésti-
notto para a consolidação da grilagem, Piauí (Interpi) abriu procedimento com mos bancários. Em razão da resistência,
tornando sua permanência na área um essa finalidade. Este período de omissão é justamente nos fechos que o Cerrado
fato consumado, e sendo um instrumen- foi suficiente para que empresas e indi- segue em pé. E é por isso que, após vários
to de violência e afronta aos territórios víduos se utilizassem de títulos viciados anos de abandono dos esquemas de gri-
tradicionais e camponeses. Hoje a Gleba para a inserção de imóveis inexistentes lagem sobre estas áreas, elas passaram a
está quase totalmente devastada e, se ou com fronteiras alteradas nos cadas- ser novamente cobiçadas diante de uma
não fossem os territórios e a resistência tros digitais auto declaratórios (SNCI, Si- nova possibilidade de lucro: a grilagem
popular, não haveria mais Cerrado para gef e CAR), sobrepondo sobre o território verde. Ao mesmo tempo, o processo de
contar essa história. reivindicado especialmente as áreas de demarcação e titulação dos fechos cami-
reserva legal dos latifúndios que foram nha a passos lentos, e com isso os inva-
No Piauí, foi analisado o caso do terri- desmatados no planalto das chapadas. sores ganham tempo para consolidar a
tório tradicional de Melancias, que se grilagem.
localiza nas nascentes Rio Uruçuí-Pre- O caso analisado na Bahia é o dos terri-
to, afluente do Rio Parnaíba. As terras tórios de fechos de pasto da Bacia do A riqueza dos achados na análise do des-
ocupadas por sucessivas gerações de Rio Corrente. A ocupação tradicional matamento e grilagem nesses quatro
famílias brejeiras e ribeirinhas são alvo das terras do Cerrado baiano foi sendo casos permitiu traçar linhas sobre o que
de grilagem oficial desde os anos 1950, fragmentada com a chegada dos inva- há de comum (sistemático) e específico
seja por meio de decisões judiciais ou da sores, sobretudo a partir das décadas (diverso) de modo a construir parâme-
arrecadação e venda de terras pelo Es- de 1960 e 70. Os esquemas de grilagem tros para entender essas dinâmicas no
tado ao invés de priorizar a legitimação seguiram um padrão usual de “inventar Cerrado do Matopiba. Além disso, mer-
de posse. Fraudes em inventários onde nos inventários”. Como consequência gulhar nas histórias socioterritoriais se-
surgem imóveis com falsa origem em da ocupação das chapadas pelo agro- lecionadas não deixará de surpreender e
“datas” e demarcações, também foram negócio, diversos rios estão morrendo indignar, diante da persistência das vio-
33

ma
Território Tradicional
Travessia do Mirador
encruzilhada entre grilagens e economia
verde no rastro da expansão da fronteira
agrícola
Diana Aguiar, Joice Bonfim, Antonio Gomes de Morais (Criolo),
Eduardo Barcelos e Roberta Maria Batista de Figueiredo Lima Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA

A Travessia do Mirador é uma área de ocupa- realizasse a demarcação da área, destinan- tradicionais da Travessia e seus descenden- de demarcação da área, sendo conivente
ção tradicional no centro-sul do Maranhão do-a para reforma agrária e regularização tes ainda esperam o cumprimento da sen- com a massiva apropriação privada ilegal da
com fortes conflitos fundiários pelo menos fundiária. Ao contrário de cumprir a decisão tença que reconhece seus direitos e sofrem Travessia e a grilagem verde, que até os dias
desde a década de 1970, com a chegada de judicial, dois anos depois, em 1980, o Estado violências da gestão do parque. No entorno atuais são fontes lucrativas para as empre-
produtores rurais do Sul do Brasil. Desde decretou a criação do Parque Estadual do da área do parque, as chapadas são desma- sas agrícolas e fazendeiros que promovem
1978, a justiça estadual, no âmbito de uma Mirador – unidade de conservação que por tadas para dar lugar a monocultivos. Dentro intenso desmatamento no seu entorno. E ao
ação discriminatória ingressada pelo pró- princípio não permite a presença de comu- deste, a grilagem digital e verde avança. mesmo tempo, o Estado promove o cercea-
prio Estado do Maranhão, reconheceu a nidades – sobre as terras tradicionalmente mento das práticas tradicionais das comuni-
área como terra devoluta, declarando como ocupadas. O caso revela que o Estado do Maranhão agiu dades da Travessia, violências e ameaças de
ilegais as propriedades reivindicadas por di- com “dois pesos e duas medidas”. Por um expulsão por meio da gestão do parque.
versos grileiros e demandando que o Estado Mais de 4 décadas depois, as comunidades lado, deixou de cumprir as suas obrigações
MARANHÃO | 34

1. Travessia do Mirador
Território tradicional judicialmente destinado à reforma agrária há 4 décadas
Como sistematizado em processo de Car- meio da comercialização nas feiras da re- distância de ao menos quatro quilômetros genas não estavam com a posse integral do
tografia Social¹ pelo Núcleo de Estudos e gião, em especial a farinha de mandioca (fa- e cada povoado é ocupado por membros de território em 1988, sofrendo, portanto, hoje
Pesquisas em Questões Agrárias (NERA) da rinha de puba). A importância da produção uma mesma família⁵. as consequências da tese do marco tempo-
Universidade Federal do Maranhão (UFMA) da farinha na Travessia para o abastecimen- ral.
e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) Ma- to dos municípios próximos é tal que as co- A área da Travessia do Mirador que está em
ranhão, a Travessia do Mirador é um territó- munidades são conhecidas na região como conflito com o parque é o foco do presen-
rio tradicional no Cerrado da macrorregião os “pubeiros do Itapicuru”³. te estudo, mas vale ressaltar o mosaico de
centro-sul do Estado do Maranhão, locali- terras indígenas (TIs) e assentamentos de
zada dentro da Amazônia Legal. É tradicio- O agroextrativismo de frutos do Cerrado – reforma agrária na região (ver Mapa 02 “Mo- ¹ As informações foram obtidas por meio da realiza-
ção de oficinas junto às comunidades no contexto da
nalmente denominada de “travessia” por como o pequi e buriti (esse último muito uti- saico territorial”), que, ainda que certamen- realização do projeto de pesquisa “Comunidades Tra-
representar a passagem entre os rios Itape- lizado para a produção de em média 15kg de te não representem o reconhecimento pleno dicionais, Conflitos Socioambientais e Práticas Partici-
pativas de Mapeamento” desenvolvido pelo NERA, em
curu e Alpercatas. Além das territorialidades doce, por família, para venda) – e de raízes e dos direitos territoriais dos povos indígenas parceria com a CPT, de novembro de 2017 a agosto de
indígenas, a ocupação tradicional na região ervas medicinais para ofícios tradicionais de e comunidades tradicionais e camponesas 2021, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e
ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Mara-
foi se configurando também a partir da che- cura compõem as práticas socioprodutivas da região, expressam as lutas e as conquistas nhão (FAPEMA).
gada de famílias fugindo das estiagens na das comunidades da Travessia. Além disso, o desses povos. Para produções no âmbito da pesquisa, ver:
A gente dormiu Travessia e acordou Parque: conflitos
região do Semiárido cearense e piauiense e gado, como é comum em sistemas tradicio- territoriais na Travessia do Mirador, MIrador-MA. CPT-
vaqueiros que migravam para comercializar nais, cumpre diversos papéis, dentre eles o No entorno norte do parque, as terras indí- -MA, São Luís, Edição Independente, 2020, 20p.
Júlia Letícia Pereira Ferreira. “A GENTE QUER VIVER A
gado e se estabelecer nas terras do Mara- de reserva de valor, a poupança para tempos genas (TIs) em diferentes fases de reconheci- VIDA QUE A GENTE VIVIA ANTES DO PARQUE CHE-
GAR”: uma leitura sobre a disputa socioterritorial entre
nhão. de necessidade. O avanço dos monocultivos mento são expressão da histórica ocupação o poder público-privado e as comunidades tradicionais
sobre as chapadas ao longo das últimas dé- indígena na região. Uma dessas, a TI Porqui- dos rios Itapicuru e Alpercatas. 2019. 64 p. Monografia
(Graduação em Geografia) – Centro de Ciências Huma-
As famílias foram se estabelecendo nos vãos cadas e o cerceamento das práticas tradicio- nhos dos Canela-Apãnjekra, tem a demar- nas, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2019.
(vales) dos rios e produzindo territorialida- nais pela gestão do parque tem provocado cação da totalidade do território tradicional
² Alexandre Gonçalves; Carlos Walter Porto-Gonçalves;
des muito típicas da vida entre as chapadas rupturas na integralidade do território tra- sob disputa. Com o massacre da Aldeia Tra- Diana Aguiar; Fernanda Testa Monteiro; Helena Lopes;
e os vales do Cerrado²: a conjugação de prá- dicional e nos modos de vida desenvolvidos vessia na primeira metade do século XX por Julianna Malerba; Mauricio Correia; Paulo Rogério
Gonçalves; Samuel Britto. A Vida entre as Chapadas e
ticas agroextrativistas, de criação tradicio- ao longo de gerações na convivência com o grileiros e seus capangas, os sobreviventes se os Vales: Comunidades Geraizeiras, Fechos de pasto e
nal de gado e as roças de toco no manejo Cerrado⁴. refugiaram na aldeia Porquinhos, há 40 km Apanhadoras de Flores Sempre Viva. In: Diana Aguiar;
Helena Lopes. (Org.). Saberes dos Povos do Cerrado
dos dois componentes da paisagem entre o dali. Várias décadas depois, em 1977, o Esta- e Biodiversidade. 1ed. Rio de Janeiro: Campanha em
período chuvoso (quando o gado é levado Como é possível visualizar no Mapa 01 “Tra- do brasileiro decidiu demarcar a TI e, apesar Defesa do Cerrado e ActionAid Brasil, 2020, p. 32-65.
Disponível em: https://campanhacerrado.org.br/sabe-
para pastar nas chapadas) e o período seco vessia do Mirador”, a seguir, há cerca de 78 da reivindicação do território tradicional de respovoscerrado
(quando o gado pasta nos vãos). Essas diver- comunidades identificadas na área sobre a 301 mil ha pelos Canela-Apãnjekra, por pres- ³ Cartografia Social, supracitado.
sas práticas tradicionais permitem o manejo qual foi decretada o parque, especialmente são do regime militar foram demarcados
4 Cartografia Social, supracitado.
dos agroecossistemas, a soberania alimen- concentradas no entorno norte e sul da Serra apenas 79.520 hectares. Por essas violências
tar das famílias e a geração de renda, por do Itapicuru. Entre as comunidades, há uma e vícios do processo de demarcação, os indí- 5 Cartografia Social, supracitado.
MAPA 01 35
MAPA 02 36
37
A ampliação da TI para abarcar o território
tradicional foi retomada em 2007 com a pu-
blicação do relatório circunstanciado e pros-
seguiu em 2009 com a assinatura da Porta-
ria Declaratória da TI. Logo depois, diversos
municípios da região entraram com recurso
no Supremo Tribunal Federal (STF), buscan-
do reverter a decisão e alegando “prejuízos
econômicos e sociais”. Foram atendidos em
2014 pela 2ª turma, que anulou a Portaria
Declaratória a partir da tese do marco tem-
poral. Os indígenas seguem lutando pelo
território integral⁶, enquanto aguardam de-
cisão final do Supremo. Com a mudança dos
limites do Parque Estadual do Mirador em
2009, o parque passou a se sobrepor a parte
do território tradicional indígena e da vizi-
nha TI Kanela Memortumré, cuja demarca- Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA
ção foi travada em 2019 pelo então Ministro
da Justiça Sérgio Moro utilizando parecer de
2017 do ex-presidente Michel Temer tam- aprovadas após a IN 09. A área sobreposta A história conflitiva do reconhecimento dos descritivo apresentado pelo Estado do Ma-
bém aplicando a tese do marco temporal⁷, somava 142 mil hectares, ou 48% da área em territórios indígenas revela que os conflitos ranhão não contava com um georreferencia-
fazendo com que o processo de demarcação, demarcação da TI Porquinhos e 34% da área fundiários na região não são recentes. A ex- mento mais preciso. O georreferenciamento
que já estava em fase final, fosse devolvido em demarcação da TI Kanela Memortumré. pansão da fronteira agrícola para os cerrados seria feito no decorrer da discriminatória.
à Funai. Em razão das sobreposições e avanço do maranhenses se deu desde cedo pelo instru-
desmatamento na área (como veremos no mento da grilagem, com a intensa chegada 6 Renato Santana. TI Porquinhos: marco temporal im-
A situação foi agravada pela emissão da Ins- Mapa 03 “Principais desmatadores”), a lide- de grileiros da região Sul do Brasil, generica- pede reparação. In: Revista Porantim. CIMI. Ano XXXVII
- No 383 Brasília-DF - março de 2016. Disponível em:
trução Normativa 09 da Funai em abril de rança da TI Porquinhos, Olímpio Apãnjekra mente referidos na região como “gaúchos”. https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Poran-
tim-383_mar-2016.pdf
2020, já no governo Bolsonaro, que permite Canela, relembra a área do massacre da al- Foi em reação a isso que, em 1977, antes
a certificação de propriedades privadas so- deia Travessia do início do século XX: “Ali na mesmo da criação do Parque Estadual do 7 Rubens Valente. Moro usa parecer de Temer e trava
demarcação de 17 terras indígenas no país. Folha de São
bre TIs não homologadas. Como resultado, Travessia diz que eles [os grileiros] já têm Mirador (1980), a Procuradoria Geral do Es- Paulo, 20/01/2020. Disponível em: https://www1.folha.
até o final de 2020, havia 35 certificações campo, já acabaram todo o Cerrado lá, o pé tado do Maranhão ingressou com uma ação uol.com.br/poder/2020/01/moro-usa-parecer-de-te-
mer-e-trava-demarcacao-de-17-terras-indigenas-no-
aprovadas sobre a TI Porquinhos, 16 delas de bacuri, o pé de buriti, o pé de cocunhã. O discriminatória sobre a área da Travessia do -pais.shtml
após a IN 09; nove sobre a TI Kanela Memor- governo não quer ajudar os povos indígenas. Mirador. A área a ser discriminada, no âmbi-
8 Tiago Miotto. Certificação de propriedades avança
tumré, todas após a IN 09; e outras 13 que A empresa diz que é dona, mas não é. Nós to da ação, era de aproximadamente 500 mil sobre terras indígenas no Maranhão, beneficiando em-
se sobrepõem a ambas as TIs Kanela Por- que somos donos desse lugar, onde massa- hectares. Naquele momento, apontou-se presas e fazendeiros. CIMI, 21/07/2021. Disponível em:
https://cimi.org.br/2021/07/certificacao-propriedades-
quinhos e Kanela Memortumré, 7 das quais craram nosso bisavô⁸”. um tamanho aproximado, pois o memorial -terras-indigenas-maranhao-in09/
MARANHÃO | 38
O que é ação discriminatória? pessoal. Esses grupos contrários aos proces- Na ação discriminatória, o próprio Estado da Data Cachoeira ou Pindaíba; e a Família
sos desenvolvimentistas nada mais aspiram do Maranhão apresenta uma lista de aproxi- Arruda que reivindicou como sendo de sua
Ação discriminatória é a ação judicial que do que as satisfações dos seus próprios inte- madamente 300 posseiros/as que deveriam propriedade a área denominada de Data Al-
tem como objetivo identificar as terras de- resses”. ser chamados para ingressarem no processo percatas, que também teria sido adquirida
volutas estaduais, delimitá-las, separá-las e dizerem em que condições ocupam a área originalmente por meio de herança e estaria
do patrimônio privado, transferi-las para e se pretendem ter a regularização fundiária sendo demarcada em um processo judicial.
o Estado e registrá-las em cartório. É mui- Entendendo o contexto da ação de suas posses. O Estado afirmou de forma Neste caso, como o processo de demarcação
to comum que a ação discriminatória pro- discriminatória muito direta que as famílias que estivessem da Data Alpercatas não havia sido concluído
mova anulação de títulos de propriedade ocupando as terras de forma legal (ou seja, ainda, a área não estava definida, não havia
privada que são irregulares e ilegalmente A discriminatória foi ingressada um pouco para a moradia e pequenas plantações de sido registrada em cartório, ela não foi reco-
sobrepostos ao patrimônio público. depois da edição do Estatuto da Terra (edita- até 100 hectares) seriam regularizadas. As- nhecida pelo Estado do Maranhão.
do em 30 de novembro de 1964), que em tese sim, articulados pelo Sindicato dos Traba-
teria como objetivo combater a lógica do la- lhadores Rurais de Mirador e pela Federa-
tifúndio improdutivo. Esta perspectiva se re- ção dos Trabalhadores Rurais Agricultores e
laciona com a compreensão - de uma parte Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetae-
É curioso notar que quando o Estado in- da elite agrária - de que naquele momento ma), 302 posseiros/as de 68 localidades dife- O que é uma “Data”?
gressa com a ação discriminatória, em histórico deveria se combater os latifundiá- rentes, que afirmavam já no fim da década
1977, não menciona de nenhuma forma rios clássicos, entendendo a reforma agrária de 1970 ocupar a área do Mirador há mais “Data” é um termo utilizado para se referir
a intenção de criar o Parque Estadual em como um caminho para a “modernização da de 50 anos (em alguns casos), se apresen- a uma concessão pública de terras, seja por
1980. Ao contrário, o Estado do Maranhão, agricultura”. taram na ação e pleitearam a regularização meio de antigas “sesmarias” ou qualquer
desde o início da discriminatória, afirmou fundiária. O Estado do Maranhão também outro instrumento previsto em lei, que
de forma categórica que a área descrita, É importante ressaltar também que o Esta- requereu que, no âmbito da ação, fosse cha- transfira porções de terras do Estado para
e que hoje incide no Parque Estadual do do do Maranhão, considerando que as déca- mada a Fundação Nacional do Índio (Funai), o particular com a obrigação de cultivá-las.
Mirador, é composta por terras devolutas das de 1970 e 1980 foram marcadas por mo- na dúvida se algumas das famílias que ocu-
estaduais e que deveria ser destinada à vimentos de expansão da fronteira agrícola, pam a área seriam indígenas. A Funai não se
implementação de uma política de regu- com invasão desordenada - e outras vezes manifestou e a discriminatória seguiu sem
larização fundiária. Segundo afirmava o ordenada e planejada - e ilegal de terras pú- aprofundar esta dimensão.
próprio Estado do Maranhão no marco da blicas (grilagem), buscou se antecipar dian-
discriminatória em 1977, o objetivo desta te das ações dos grileiros. E agiu, naquele Também se apresentaram na ação discri-
ação seria a “defesa do pequeno lavrador momento, de forma acertada, já que, como minatória pessoas que afirmavam ter pro-
vítima dos industriais de ocupação de ter- veremos adiante, algum tempo depois, após priedades particulares dentro da área dis-
ras”, e que não caberia “titubear diante dos definida que a área onde hoje está encrava- criminada, ou seja, dentro do que hoje foi
obstáculos obstinadamente criados pelos do o Parque Estadual do Mirador se constitui reconhecido como terra devoluta estadual
grileiros”. Ainda de acordo com a discri- como terra pública devoluta estadual, foram e que integra o Parque Estadual do Mirador:
minatória: “O Estado não pode parar, nem surgindo “propriedades” sobrepostas ao Par- a Família Lima que, em janeiro de 1978, afir-
deve amarrar-se a interesses de grupos que que que hoje, por conta da ação discrimina- mou ser proprietária de 22.193,60 hectares,
julgam a situação estadual pelo seu ângulo tória, já são reconhecidamente ilegais. que teriam adquirido por herança, a chama-
39

Foi desta forma que se constituiu a proprie- Já a Data Alpercata, reivindicada pela Famí-
dade da Família Lima sobre a Data Cachoeira lia Arruda, consiste em 96.879,7705 hectares
ou Pindaíba, reivindicada no âmbito da ação na área oeste do perímetro do Parque. Ape-
discriminatória. Após o inventário, a Família sar da reivindicação da família ter sido inde-
Lima ingressou com uma ação demarcatória ferida pela justiça do Maranhão e da Data
que, mesmo se tratando de áreas sem regis- ter sido considerada terra devoluta estadual
tro anterior, ao final reconheceu uma pro- já em 1978, incidem sobre a área da antiga
priedade de mais de 22 mil hectares. Data ainda hoje registros de propriedades
privadas no Sistema de Gestão Fundiária -
Considerando isso, o Estado do Maranhão, Sigef do Instituto Nacional de Colonização
Grilagem por meio de sentença sem uma análise mais aprofundada sobre e Reforma Agrária (Incra) em nome da em-
de inventários os documentos apresentados pela Família presa Agropecuária e Industrial Serra Gran-
Lima reconheceu a suposta propriedade e de LTDA, conhecida como Agro Serra, do
De acordo com o estudo “Legalizando o Ile- “uma posse de terras”, sem registro anterior aceitou que a mesma fosse excluída da ação ruralista Pedro Augusto Ticianel, bem como
gal”⁹, publicado pela AATR em 2020, a gri- no Cartório de Imóveis (muitas vezes sem discriminatória. Como veremos no Infográfi- um registro de 42.915,9006 ha em nome de
lagem por meio de sentenças de inventários delimitação, sem tamanho e muito menos co “Cronologia”, esta área, na prática, não foi Gilberto Marques Bontempo. Em tempo: A
é uma das formas mais comuns e apresenta georreferenciamento - justamente por se de fato excluída pois foi doada ao Estado do Agro Serra é “parceira” do Estado do Mara-
uma boa aparência de legalidade, já que é tratar de posse), que por meio de sentença Maranhão, com a condição de compensação nhão na gestão do Parque Estadual do Mi-
reconhecida via sentença judicial, ou seja, do próprio inventário, ou em ações judiciais de reserva legal de outros imóveis e hoje é rador.
pelo próprio Poder Judiciário. No arrolamen- posteriores de demarcação, são demarcadas terra pública estadual, integrante do Parque
to de bens da pessoa falecida, faz-se constar e registradas em cartório. do Mirador.

Depois de todas estas movimentações, em trumento da legitimação de posse (de área


24 de outubro de 1978 a ação discriminatória até 100 hectares) seja pela preferência na
foi julgada e sua sentença publicada. Com compra. Por fim, a sentença determina que
isso, foi declarado judicialmente que a área o Estado do Maranhão realize a demarcação
discriminada (em que hoje está o Parque de toda a área, que identifique os posseiros
Estadual do Mirador) pertence ao Estado do que a ocupam de forma legal, e que após isso 9 Joice Bonfim, Débora Assumpção, Juliana Borges,
Maranhão, por se tratar de terra devoluta es- faça o registro da área em nome do Estado. Mauricio Correia e Silvia Helena Coelho. Legalizando o
ilegal: legislação fundiária e ambiental e a expansão da
tadual. A sentença também garantiu os di- fronteira agrícola no Matopiba. Salvador: AATR, 2020.
reitos dos posseiros que estavam ocupando Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/matopi-
ba-estudo-sobre-institucionaliza%C3%A7%C3%A3o-
a área de forma legal, seja por meio do ins- -da-grilagem-%C3%A9-lan%C3%A7ado
40

O RECONHECIMENTO INSTITUCIONAL
DA ÁREA COMO TERRA PÚBLICA SER DESTINADA PARA A
ESTADUAL DEVOLUTA, E QUE DEVERIA REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA
DOS PEQUENOS
POSSEIROS

05 de setembro de 1977: Estado do Maranhão, por meio da Procuradoria Geral


do Estado, ingressou com uma ação discriminatória, que é a ação judicial que
tem como objetivo identificar as terras devolutas estaduais, delimitá-las, o objetivo desta ação seria a
transferi-las para o patrimônio do Estado e registrá-las em cartório.
“defesa do pequeno lavrador vítima dos
industriais de ocupação de terras”,
e que não caberia
“titubear diante dos obstáculos
aproximadamente 500 mil hectares obstinadamente criados pelos grileiros”.

Na Ação Discriminatória, o próprio Estado do Maranhão apresenta uma lista de aproximadamente 300 posseiros/as que
deveriam ser chamados para ingressarem no processo e dizerem em que condições ocupam a área e se pretendem ter a
regularização fundiária de suas posses. O Estado afirmou de forma muito direta que as famílias que tivessem ocupando as
terras de forma legal (ou seja, para a moradia e pequenas plantações de até 100 hectares) seriam regularizadas.
41
A Família Lima afirma ser
proprietária de 22.193,60 hectares, equivalente a
adquiridas por meio de herança 26.900 campos
de futebol

O Estado do Maranhão, sem uma análise mais aprofundada sobre os


documentos apresentados pela Família Lima reconheceu a suposta
propriedade e aceitou que a mesma fosse excluída da ação discriminatória.

A Família Arruda reivindicou como sendo de sua


Em 24 de outubro de 1978 a ação
discriminatória foi julgada e sua sentença publicada: propriedade a área denominada de Data Alpercatas.
- Área discrimidada pertence ao Estado do Maranhão, por
Também adquiridas por meio de herança
se tratar de terra devoluta estadual; 96.879,7705 equivalente a
- Reconheceu os 22 mil hectares reividicados pela Família Lima; 117.429 campos
- Determina que o Estado do Maranhão realize a demarcação de toda a área, hectares de futebol
que identifique os posseiros que ocupam a área de forma legal (garantindo
seus direitos), e que após isso faça o registro da área em nome do Estado.

e o estado tem perseguido os posseiros


40 anos depois, ISSO NÃO FOI CUMPRIDO,

!!!
e sido tolerante com os grileiros
A sentença reconhece que
Com a sentença de 1978, há o reconhecimento oficial de que a área sobre a qual hoje incide o Parque os posseiros que ocupam
Estadual do Mirador é terra devoluta estadual e que os posseiros que ocupam a área historicamente a área historicamente
deveriam ter seus direitos garantidos. Mais de 4 décadas depois, isso não só não foi cumprido, como
o Estado tem perseguido os posseiros e sido leniente com os grileiros no marco da criação e gestão deveriam ter seus
do Parque estadual, como veremos a seguir.
direitos garantidos!
42

2. DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS: A INÉRCIA DO ESTADO DO MARANHÃO EM REALIZAR A DEMARCAÇÃO DA ÁREA
Inércia do Estado diante da determinação judicial de regularizar a situação dos E A CRIAÇÃO DO PARQUE DO MIRADOR
posseiros, enquanto permite avançar a grilagem e o desmatamento
INCENTIVO À GRILAGEM E VIOLÊNCIA CONTRA
AS COMUNIDADES DA TRAVESSIA DO MIRADOR
Após a publicação da sentença que reconhe- Depois deste momento, o Estado do Mara-
O Estado do Maranhão deveria ir a campo para realizar
ceu que a área discriminada era de fato terra nhão abandonou a ação discriminatória,
pública devoluta estadual, o Estado do Ma- deixou de movimentá-la, não realizou o pro-
os trabalhos de georreferenciamento e as marcações
ranhão deveria realizar a sua demarcação, cesso de demarcação, e a partir daí iniciou-se
dos limites em toda a área de propriedade do Estado.
ou seja, ir a campo para realizar os trabalhos uma verdadeira saga judicial para que o Es- DEVERIA RESGUARDAR
de georreferenciamento e as marcações dos tado do Maranhão realizasse a demarcação E PROTEGER A ÁREA.
limites em toda a área de propriedade do e fizesse o registro no cartório em seu nome.
No início, o Estado mostrou
Estado. Além disso, com a sentença reco- Além disso, contrariando os seus próprios
cuidado noticiando novas
nhecendo sua propriedade, o Estado deveria interesses descritos na ação discriminató-
tentativas de grilagem na área
realizar todos os atos necessários para o res- ria (impedir a ação dos grileiros e realizar a
e requerendo as medidas do
guardo e proteção da área. regularização fundiária dos posseiros que
Poder Judiciário
ocupam a área tradicionalmente), o Estado
Logo no início, o Estado do Maranhão se do Maranhão em junho de 1980, por meio
mostrou diligente, inclusive noticiando no- do Decreto Estadual nº 7641, criou o Parque
vas tentativas de grilagem na área e reque- Estadual do Mirador. Depois o Estado do Maranhão abandonou
rendo as medidas do Poder Judiciário, como
a ação discriminatória,
em 23 de julho de 1979, quando informou na
ação que na região denominada “Travessia”, - deixou de movimentá-la,
localizada na área discriminada houve “gi- - não realizou o processo de
gantesca invasão de terras devolutas no mu- demarcação da área
nicípio do Mirador”. Neste momento requer
que seja proibida a retirada de cobertura ve- e iniciou-se uma saga judicial para que o
getal, construção de cercas, alteração de li- Estado realizasse a demarcação e fizesse
o registro no cartório em seu nome.
PARQUE
mites e divisas. Afirma que as invasões estão
ameaçando as centenas de posseiros que
ESTADUAL DO
ocupam a área. E que a pretensão do Estado MIRADOR
é legitimar a posse dos posseiros antigos. O
O Estado do Maranhão em junho de 1980,
juiz à época concedeu o pedido feito pelo por meio do Decreto Estadual nº 7641,
Estado, proibindo qualquer alteração de li- criou o Parque Estadual do Mirador.
mites e divisas e informando isso às pessoas
que foram apontadas como grileiros.
MARANHÃO | 43
Em um primeiro momento, as comunida- achou uma boa ideia porque aí ao invés da da realidade vivida pelas comunidades da proliferação de grilagens e apropriações pri-
des tradicionais viram a criação do parque gente estar nas mãos dos grileiros, a gente ia Travessia é que a ação discriminatória do vadas na área da Travessia do Mirador (como
como uma potencial solução para os con- estar em contato com o governo, pensou que Mirador e a decretação do parque correm demonstram os mapas que evidenciam as
flitos fundiários que enfrentavam, como ia ficar bom”. em paralelo por quase 3 décadas, como se sobreposições). Ao mesmo tempo, atuou
aponta o relato de Félix Carreiro, da Comu- não se tratasse exatamente da mesma de forma violenta contra as famílias que
nidade Anjico, ao NERA e CPT-MA no marco No entanto, o decreto de criação do parque área. É importante destacar que a criação histórica e tradicionalmente construíram
da Cartografia Social: “Quando foi criado o e seus desdobramentos apontam para uma do Parque Estadual do Mirador somente suas vidas naquela área, tratando-as como
Parque em 1980, já existia uma luta da gente série de ambiguidades e contradições na foi mencionada na ação discriminatória em invasoras em seu próprio território e cerce-
da denominada Travessia do Mirador que já ação do Estado do Maranhão, que foram 2008 (quando pela primeira vez o Instituto ando seus modos de vida sob a justificativa
era uma área de conflitos com grileiros da complicando a situação fundiária e a reali- de Terras do Maranhão - Iterma se manifes- de “proteção ambiental”. A cronologia a se-
região de São Raimundo das Mangabeiras, dade vivida pelas comunidades tradicionais tou), ou seja, 28 anos depois da sua criação. guir demonstra como o Estado foi omisso
Formosa da Serra Negra e outros municípios na Travessia do Mirador. Durante todo este tempo, e até os dias atu- em relação à proteção do seu patrimônio
que nem sabemos de onde vinham. Aí em ais, o Estado do Maranhão ignorou a senten- e, ao mesmo tempo, conivente e atuante
1980 surgiu esse projeto do Parque pra sur- Aquela que possivelmente é a maior contra- ça da ação discriminatória de 1978, não fez a favor das ações dos grileiros que hoje se
presa da gente e até no tempo a gente até dição complicadora da situação fundiária e o georreferenciamento da área e permitiu a apropriam da Travessia do Mirador.

o judiciário
ITERMA
JULHO DE 1979 Inquiriu o Estado sobre o interesse Estado do Maranhão
Não realizou os trabalhos
no prosseguimento da ação
o processo ficou se manifesta afirmando que
Juiz responsável pela ação na
parado por quase os técnicos não fizeram a
Estado do Maranhão época precisou mais uma vez
15 anos até que em demarcação por “absoluta
Indicou dois técnicos do ITERMA intimar o Estado do Maranhão
para que o mesmo desse falta de recursos
para a realização de trabalho de financeiros”.
campo de demarcação da área andamento na ação que ficou
parada novamente. NÃO FOI quase seis
REALIZADA
anos depois

ITERMA finalmente se
manifesta no processo afirmando Como a demarcação não foi Estado do Maranhão
que não tem recursos para a Após quase 03 anos realizada pelo Estado do Maranhão,
(passados mais 03 anos) se manifesta indicando novos
realização da demarcação da área Juiza em tese
técnicos do ITERMA para a
definitiva
e indica que pode ser aproveitada A Juiza da época determina data realização do trabalho de
Designa nova data
a demarcação georreferenciada para realização da demarcação demarcação
para a perícia: 21 de NÃO FOI
do Parque Estadual do Mirador, pelo ITERMA: 06/12/2005
maio de 2008 NÃO FOI REALIZADA
realizada em 2002 REALIZADA
Concluídos os trabalhos de campo iniciamos os
serviços de processamento dos dados Ao identificar estas propriedades 44
OU SEJA, O ITERMA TENTOU, POR DENTRO DA
topográficos originados de levantamento com (reconhecidamente irregulares) sobrepostas ao
AÇÃO DISCRIMINATÓRIA, LEGITIMAR AS
GPS e de imagens de satélite, onde com utilização Parque Mirador, o Iterma sugere que elas sejam
PROPRIEDADES GRILADAS QUE FORAM SENDO
do so�tware Microstation foi gerada a Planta e reconhecidas no processo e excluídas tanto da
CRIADAS APÓS A SENTENÇA QUE RECONHECE
Memorial Descritivo quando ficou constatado Ação Discriminatória quanto da delimitação do
A ÁREA DA TRAVESSIA DO MIRADOR COMO
que o Parque Estadual do Mirador possui uma Parque do Mirador.
TERRA PÚBLICA DEVOLUTA ESTADUAL!!
área de 437.800,1797 hectare. O órgão fundiário se posiciona citando a exclusão
das Datas, indicando o remanescente da área
discriminada como sendo 291.872,5916.
PA RQ UE
ES TA DU AL DO
M IR AD OR
Este é o primeiro momento em que o Iterma
se manifesta e em que o Estado do Maranhão
UMA CONIVÊNCIA COM A
comunica à Justiça a criação do Parque Estadual
do Mirador (que, como vimos, foi criado em 1980).
GRILAGEM ESCANCARADA!
Neste momento o Iterma requer que seja aproveitada
a demarcação já realizada do Parque Estadual do
Mirador e afirma que o órgão teria identificado dentro
do Parque algumas propriedades que seriam é a vez do Ministério Público se manifestar, Ao que tudo indica, este
particulares e que deveriam ser reconhecidas atestando a omissão do Estado do Maranhão processo ficou engavetado por
como privadas. em realizar as diligências necessárias para a mais de 12 anos, até 18/02/1992.
demarcação e se posicionando de forma Daí claudicou um pouco até
contrária ao reconhecimento das propriedades 1996, para ganhar mais um
ilegais, criadas após a sentença que reconhece a tempo de prateleira, até 2002, e
Travessia do Mirador como terra pública depois voltar a tropegar.
devoluta:
O autor, diligente no começo, abandonou seus
interesses, suas responsabilidades, deixando
ao largo o procedimento de demarcação
Procuradoria do Estado do Maranhão A juiza responsável pelo processo no
Concorda que somente a Data Cachoeira ou momento aceita a demarcação realizada
“De modo contrário, os técnicos responsáveis pelo
Pindaíba estariam ressalvadas, assim como para o Parque Estadual do Mirador, mas
trabalho de demarcação do Parque anotaram que,
os direitos dos posseiros que ocupam a área intima o Iterma para realização de
além da “Data Cachoeira”, existiriam outras áreas
histórica e tradicionalmente. As demais, demarcação complementar, ressalvando
cujos proprietários não se habilitaram ao tempo da
devem ser consideradas como títulos nulos. que apenas a Data Cachoeira ou Pindaíba
ação discriminatória: “Data Alpercatas”, “Data Boi
deveria ser reconhecida como
Morto” e “Data Marruás”. Não se habilitaram, não
propriedade legítima. Em resumo, indica
foram reconhecidos na sentença, não recorreram.
que deve ser realizada uma demarcação
Se todas essas áreas tivessem que ser excluídas,
complementar, excluindo APENAS a Data
o Parque sofreria uma absurda mutilação, com a
Cachoeira ou Pindaíba
perda de 145 mil hectares”
45
Passado quase 02 anos, foi certificado Foi determinado que o presidente do ITERMA
no processo ausência de manifestação ITERMA
da época, Mauro Jorge Gonçalves de Meio, fosse
do ITERMA quanto à realização da intimado para que no prazo improrrogável de Responde afirmando que a demarcação
demarcação complementar e feita 10 dias se manifestasse sobre a realização da complementar não foi realizada. Que
novamente a intimação do órgão demarcação complementar, sob pena de foi realizada apenas a demarcação do
fundiário. ocorrência do crime de desobediência e multa Parque do Mirador, apontando a exclusão
diária de R$ 1000 reais, que deve recair sobre o das “propriedades privadas” sobrepostas
patrimônio do gestor. ao Parque. E que para a realização dos
trabalhos, necessita recursos, que não
O Estado do Maranhão se manifesta constam no orçamento do órgão.
afirmando que a Data Cachoeira ou Pindaíba
foi integrada ao patrimônio do Estado pois a É de causar espécie, para usar a expressão do
recebeu em doação de Sebastião Beethoven momento, que uma sentença judicial, transitada
Brandão e outros para a “constituição de em julgado no ano de 1978, até a presente data
desoneração das reservas legais de imóveis não tenha sido cumprida em sua integralidade.
rurais”. Relata também que isso aconteceu em Só esse fato já implicaria em dizer que este juízo
28 de março de 2011, tendo sido informado no Estado do Maranhão se manifesta afirmando que está
não pode esperar mais. buscando soluções administrativas para solucionar a
processo somente em 2016. O não término dos trabalhos de demarcação da ausência de recursos.
área objeto desta discriminatória tem causado
uma série de implicações a este juízo, inclusive O juiz responsável pelo processo à época proferiu
com a provocação pelo cartório extrajudicial nova decisão dando o prazo fatal de 90 dias para o
desta comarca solicitando medidas urgentes no Estado do Maranhão realizar o processo de
sentido de solucionar em definitivo a situação demarcação complementar, impondo multa diária
posta no autos, porquanto a disputa pela área de R$1000 reais em caso de descumprimento.
objeto da presente ação tem acarretado
Afirma que não há mais inúmeras questões relativas à matrícula
de diversos imóveis
necessidade de demarcação
complementar para excluir a Data O juiz à época reconheceu a demarcação do Parque
Cachoeira ou Pindaíba e pede que seja Estadual do Mirador, a doação da Data Cachoeira ou
Pindaíba para o Estado e determinou a abertura da
aberta a matrícula da área de 437.845,4685 matrícula da área de 437.845,4685 hectares em nome do
Estado do Maranhão.
hectares em nome do Estado do Maranhão. Oficiou o Cartório do Mirador para que o mesmo pudesse
informar sobre a eventual existência de matrículas
sobrepostas ao Parque, para que fossem anuladas.
46
Estado do Maranhão
Como pode haver Foi anexada ao processo a
lista das matrículas
propriedade particular se a
Se posiciona pelo cancelamento das matrículas sobrepostas ao Parque.
que não foram reconhecidas quando da
97 matrículas
área foi doada para o Estado?
sentença da ação discriminatória. Além disso,
apesar de ter recebido a Data Cachoeira ou apresentadas.
Pindaíba em doação, indica que ainda existe
Isso é o que o juiz manda questionar ao Estado propriedade particular na área.
do Maranhão em 19 de abril de 2021.

Nesse sentido, a criação do parque parece, (parque), modalidade que não prevê a pre- Para aumentar a confusão, um decreto de
mais que qualquer outra coisa, uma estra- sença de assentamentos rurais. Ao invés de 2009 altera os limites do parque e estabe-
tégia para não cumprir a sentença da ação regularizá-los, o Estado, por meio da gestão lece uma área ainda maior que o decreto
discriminatória que destinava a área para a do parque, passou a assediar os posseiros e anterior, de 766.781 hectares. A base carto-
regularização fundiária dos posseiros. Isso realizar ações institucionais contra sua per- gráfica dos novos limites não se encontra
fica evidente quando analisamos que, além manência no território, mesmo em face do em nenhuma base pública, o que implica
de correr em paralelo, o próprio decreto de fato de que a ocupação tradicional já havia em falta de transparência e publicidade de
criação do parque e sua implementação sido reconhecida. Assim, a partir da criação informações que deveriam ser amplamen-
entra em contradição com a sentença da do parque em 1980, a sentença de 1978 resul- te acessíveis. A partir de diálogos informais
ação discriminatória. O decreto de 1980 de tante da ação discriminatória deixou de ser nos foi transmitida uma base que, pelos cál-
criação do parque reconhece que a área so- cumprida reiteradamente, tanto pela não culos do sistema de informação geográfica,
bre a qual está sendo estabelecido o parque é demarcação, quanto pela não execução da consiste em 499.378 hectares, ou seja, ainda
“constituída por terras devolutas pertencen- desapropriação dos grileiros, e mesmo pela menor do que o tamanho da base de 1980,
tes ao Patrimônio do Estado do Maranhão não realização da reforma agrária para ga- gerando uma discrepância ainda maior com
e, será oportunamente demarcada para a rantir o direito real de uso dos posseiros so- o tamanho apontado no novo decreto. Cabe
implementação do disposto no presente bre suas terras tradicionalmente ocupadas. perguntar quem ganha com tantas contra-
decreto”. No entanto, como exposto antes, dições e falta de transparência em relação
a ação discriminatória que julgou a proprie- Soma-se a isso o persistente caos dos limi- aos limites e tamanho do parque. Certamen-
dade pública da área também determina a tes do parque. O decreto de 1980 estabe- te os grileiros.
prioridade da reforma agrária, por meio da lece uma área de 700.000 hectares, sendo
regularização dos posseiros, fato que é ig- que as bases cartográficas existentes para
norado pelo estabelecimento de uma uni- o perímetro do parque no Serviço Florestal
dade de conservação de proteção integral Brasileiro apontam para 551.474 hectares.
MARANHÃO | 47

O decreto de 1980 diz que o


Parque Estadual do Mirador
tem A base cartográfica pública
do parque equivale a
700.000 hectares
551.474 hectares

A partir de diálogos
Caos dos O decreto de 2009 altera
informais nos foi limites os limites do parque e
transmitida uma estabelece uma área
base que maior
499.378 hectares
aponta
766.781 hectares

Há vasta sobreposição de imóveis


rurais sobre a área do parque
mas também é possível perceber que
um complexo do agronegócio, ligada a uma subsidiária da A base cartográfica dos novos limites não
empresa japonesa Mitsubishi foi largamente beneficiada se encontra em nenhuma base pública, o
pela desafetação da parte leste do parque. que implica em falta de transparência
e publicidade de informações que
deveriam ser amplamente acessíveis.
NÃO SE SABE AO CERTO OS LIMITES REAIS DO PARQUE.
QUEM GANHA COM ESSA DESINFORMAÇÃO?
MARANHÃO | 48
Nesse sentido, a alteração dos limites do “A empresa diz que é dona, mas não é. Nós nio privado, o que geralmente acontece em res da região que, a partir do entorno, aden-
parque em 2009 é digna de nota. Seja pe- que somos donos desse lugar, onde massa- terras públicas não destinadas¹º. Enquanto tram o parque, provavelmente para garantir
los limites novos ou antigos, há vasta so- craram nosso bisavô.” a porção leste da Travessia do Mirador cons- áreas de reserva legal onde seria por princí-
breposição de matrículas de imóveis rurais Olímpio Apãnjekra Canela tava do ponto de vista da situação fundiária pio muito difícil desmatar sem responsabi-
sobre a área do parque. Mas a desafetação como parque estadual, havia um obstáculo lização, há alguns outros registros dignos
da parte leste do parque beneficiou lar- Complexo Agro Serra / Pedro Ticianel à consolidação do processo de grilagem. de nota (ver Mapa 05 “Invasão de terras pú-
gamente um complexo do agronegócio, Uma das principais empresas de monocul- Além disso, realizar corte raso de áreas aci- blicas” a seguir). Atenção para as empresas
ligado a uma subsidiária da empresa ja- tivos no entorno oeste do parque e mesmo ma de 6,35 hectares (limite a partir do qual como a imobiliária, domiciliada no Paraná,
ponesa Mitsubishi. Analisando o Mapa 03 dentro deste, a Agro Serra, empresa do ru- o desmatamento é detectável por satélite) 4W Administração de Bens e Investimentos
“Principais desmatadores”, é possível perce- ralista paranaense Pedro Ticianel, é “par- dentro de um parque estadual é incorrer em S/S LTDA reivindicando 19.270 ha dentro do
ber que justamente sobre a área desafetada ceira” do governo do Estado do Maranhão evidente crime ambiental. No mesmo senti- Parque ou os impressionantes 42.915 ha rei-
encontra-se o Complexo Cachimbo (1), cujo na gestão do parque, mesmo tendo estado do, vale também frisar que a Fazenda Faedo vindicados por Gilberto Marques Bontempo.
principal proprietário, o paranaense Paulo envolvida em denúncias de trabalho escravo União Quinhão (2) registrada pelo gaúcho Todos os registros estão sobrepostos à área
Alberto Fachin, é sócio fundador da Agrex, e reivindicando propriedade sobre terras de- Dagoberto Antonio Faedo é responsável pelo do parque e a diversas das comunidades tra-
subsidiária do Grupo Mitsubishi do Japão. volutas estaduais. desmatamento no entorno norte do parque, dicionais da Travessia e por imagens de sa-
Além disso, fica evidente que a desafetação sobre as duas terras indígenas que sofrem o télite é possível perceber que não estão sob
da área promove diretamente o avanço do Complexo Cachimbo impacto da tese do marco temporal. Após a exploração para monocultivos, o que apon-
desmatamento na parte leste do parque. A desafetação da área leste do parque em decisão do STF contra os indígenas em 2014, ta para seu provável uso para especulação
2009 favoreceu sobretudo o Complexo Ca- o desmatamento na propriedade reivindica- imobiliária e “verde”. Retornaremos a isso na
chimbo, cujo proprietário da maior parte da sobre o território originário acelerou. seção 3.
dos lotes, o paranaense Paulo Alberto Fa-
chin, é sócio-fundador da Agrex, subsidiária Em razão dessa relação direta entre des-
do Grupo Mitsubishi do Japão, envolvida em matamento e viabilidade da consolidação
denúncias de compra ilegal de terras por es- da grilagem, a situação fundiária da área
trangeiros e principal promotora do avanço do parque acaba contendo a expansão do
Principais desmatadores da Travessia do desmatamento na parte leste do parque. desmatamento por grileiros dentro da Tra-
do Mirador e seu entorno vessia. Assim, a área do parque está tomada
por registros ilegais no Sigef do Incra, mas a
Fazenda Faedo/ União Quinhão A explicação para isso é justamente a rela- incidência de desmatamento é baixa, muito
Registrada pelo gaúcho Dagoberto Antonio ção entre desmatamento e grilagem de ter- provavelmente por essas razões. Na realida-
Faedo, a fazenda é responsável pelo avanço ras públicas: o desmatamento (corte raso) é de, como veremos na próxima seção, esses
do desmatamento no entorno norte do par- uma ação custosa e o grileiro tende a investir registros ilegais têm servido sobretudo a
que sobre duas terras indígenas que sofrem nela caso acredite que será possível conso- propósitos de grilagem verde, facilitando o
o impacto da tese do marco temporal. Após a lidar o processo de grilagem no papel, por desmatamento fora do perímetro do par- 10 Diana Aguiar e Maurício Torres. A boiada está pas-
decisão do STF contra os indígenas em 2014, meio de diversos processos de fraude docu- que.
sando: desmatar para grilar. In: Diana Aguiar e Valéria
Pereira Santos (Orgs.). AGRO é FOGO: grilagens, desma-
o desmatamento na propriedade reivindica- mental para atestar o destaque do patrimô- tamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal.
da sobre o território originário acelerou. AGRO é FOGO, 2021. Disponível em: https://agroefogo.
nio público e a transferência para o patrimô- Além dos registros dos maiores desmatado- org.br/a-boiada-esta-passando-desmatar-para-grilar/
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MARANHÃO | 52
O caso do Complexo Cachimbo configura-se
como evidente exceção no que tange à au-
dade para o abastecimento pleno da cidade
de São Luís” e pelo “potencial para garantir a
3. O ATRASO É LUCRO
sência de desmatamento justamente em ra- diversidade genética de espécies típicas dos grilagem verde, especulação imobiliária e a construção política das
zão da desafetação da área do parque sobre cerrados maranhenses”. O parque, inclusi-
a área grilada pelas propriedades do com- ve, passou a compor a chamada Reserva da
comunidades tradicionais como problema ambiental
plexo. Embora a área não seja de proprieda- Biosfera do Cerrado, reconhecida pela Unes-
de direta da Agrex e sim de seu sócio funda- co e ampliada para englobar unidades de
dor, acende-se um sinal de alerta. A Agrex conservação do Tocantins, Piauí e Maranhão Como dito anteriormente, em um primeiro ele insistiu e construiu a casa, recebeu ame-
do Brasil S.A. (AGB) e a Agrex do Brasil Patri- em 2001. No entanto, o próprio decreto in- momento, as comunidades viram o parque aças de que iriam queimá-la. Um pai relata
monial S.A. (Agrex Patrimonial) respondem dica que “os solos arenosos das nascentes da como uma “solução” para os conflitos fun- que na época do levantamento dos morado-
a dois processos administrativos¹¹ no Incra bacia do Itapecurú são considerados pouco diários que enfrentavam. Mas, ao contrário res do parque feito pelo governo, um de seus
que apuram irregularidades na aquisição de aptos ou inaptos para o uso agrícola intensi- das expectativas, foram confrontados com filhos já era casado e tinha casa e por isso
terras por estrangeiros e possíveis descon- vo”, como se a proteção ambiental ali pudes- um cotidiano de cerceamento de práticas entrou no cadastro. Mas o agente da SEMA
formidades com a Lei 5709/1971 que impõe se acontecer justamente por não confrontar tradicionais, como a criação familiar de disse que se outro filho ou filha sua quiser
limitações legais à compra de imóveis fun- interesses do agronegócio. gado, as roças de toco, a construção de casas morar lá, não pode aumentar a família, tem
diários por estrangeiros. Os processos são a partir da ampliação das famílias, a cons- que morar com ele. Um comunitário diz que
do ano de 2016, mas pouco avançaram em Ao mesmo tempo, ao redor da área do par- trução de pequenas pontes para facilitar o o proibiram de “botar roça”. Outro relata que
sua tramitação, havendo apenas ofícios di- que, diversas chapadas com vegetação na- trânsito no território. A Cartografia Social re- estava trabalhando na roça quando agentes
recionados às empresas Agrex com pedido tiva de Cerrado e entornos de nascentes de alizada pelo NERA e CPT-MA na Travessia do da SEMA mandaram parar e “já foi atiran-
de informações, que não sabemos ao certo rios têm sido tomadas por empreendimen- Mirador traz diversos relatos de situações de do”. Outro homem conta que um agente da
se foram respondidos, pois não há acesso tos do agronegócio sem que o Estado faça terror a partir da atuação da gestão do par- SEMA disse que ele não tinha cadastro para
público. Destaca-se que manter os imóveis algo para deter. Ao contrário, uma das prin- que¹². Qualquer uma dessas práticas, típicas morar em sua comunidade, mesmo sendo
das empresas em titularidade dos seus só- cipais empresas que desmatam o cerrado da ocupação tradicional da terra no Cerrado, ele e sua mãe nascidos e criados lá. Conta
cios brasileiros é uma das principais formas para dar lugar a monocultivos no entorno pode ser lida como vetor de devastação am- que seu pai preferiu ir embora por causa do
de burlar a aplicação da Lei 5709 e as limita- oeste do parque e mesmo dentro deste, a biental, deixando os comunitários sujeitos assédio. Outro comunitário relata que cons-
ções de aquisição de terras por estrangeiros Agro Serra, é “parceira” do governo do Esta- a ameaças, multas, assédio e intimidações. truíram uma ponte para facilitar o trânsito
impostas por esta. do do Maranhão na gestão do parque. E isto O Estado trata as comunidades tradicionais no território e logo após encontraram a pon-
mesmo tendo estado envolvida em denún- como invasoras em seu próprio território, te cortada e incendiada¹³.
​ or fim, queremos destacar a contradição
P cias de trabalho escravo e reivindicando pro- sendo que há quatro décadas a justiça es-
entre a narrativa ambiental e as práticas priedade sobre terras devolutas estaduais. tadual sentenciou a regularização fundiária
de defesa dos interesses do agronegócio Na seção a seguir, aprofundaremos como das posses dessas famílias.
pelo Estado do Maranhão. O decreto justi- essa dimensão contraditória entre a nar-
fica a criação do parque em razão de que em rativa ambiental do Estado e a defesa dos Um comunitário relata que o agente da Se-
sua área se localizam as nascentes dos rios interesses do agronegócio tem promovido cretaria de Estado de Meio Ambiente e Re- 11 Processos administrativos nº 54000.000429/2016-00
e 54000.000167/2016-75, em curso no Incra.
Alpercatas e Itapecuru, os principais cursos práticas de grilagem verde sobre o Parque cursos Naturais (SEMA) disse que ele não po-
12 Cartografia Social, supracitado.
d’água da bacia do Itapecuru, a “mais viável Estadual do Mirador. dia construir uma casa, que tinha que morar
alternativa para garantir água de boa quali- com o pai, mesmo tendo três filhos. Quando 13 Cartografia Social, supracitado.
53
Ao longo do tempo, muitas famílias foram do parque e na porção leste desafetada, so-
saindo da Travessia ou sendo expulsas pelo bretudo para dar lugar a monocultivos de
Estado. Outras ficaram e resistiram. Mesmo soja, a Associação Brasileira dos Produtores
tendo seus direitos territoriais garantidos de Soja do Maranhão (Aprosoja MA) foi par-
judicialmente, se viram alvo de uma cons- ceira do Estado em uma ação de “educação
trução política de que são vetores da de- ambiental” e de coleta de pilhas e baterias,
vastação da Travessia e que devem ser re- já que, de acordo com a avaliação dos téc-
assentados e educados para a preservação nicos da SEMA, há “um grande consumo de
ambiental. Em especial nos últimos anos pilhas pelos residentes” e que “quando des-
é possível encontrar notícias da própria cartadas de forma incorreta se torna um lixo
SEMA que apresentam essa construção de tóxico e pode trazer grandes riscos ao meio
forma explícita. ambiente”¹⁵ . Não há no site da SEMA qual-
quer notícia de preocupação ou responsa-
Em notícia de novembro de 2016 intitulada bilização dos grileiros-desmatadores que,
“SEMA vem atuando firme dentro do Par- ao indicarem como reservas legais as áreas
que Estadual do Mirador”, o Secretário de griladas no interior do parque, ficam “aptos”
Estado de Meio Ambiente e Recursos Na- para devastarem as chapadas da região para
Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA
turais, Marcelo Coelho, é citado dizendo: plantar soja e se organizam em associações
“As ações são várias. Estamos trabalhando como a Aprosoja. Ao contrário, como sinteti-
para disciplinar a comunidade que mora zado nas palavras de um comunitário: “Esse
na localidade, como forma de preservar a negócio dessas leis de preservação, eu não
fauna, a flora e as nascentes dos rios Itape- tenho nada contra não. O negócio é que eles vieram “desbravar” os cerrados do Nordeste,
curu e Alpercata”. A notícia chega ao ponto deixam muita coisa errada do povo grande ele chegou à região de Balsas no início dos
de associar o modo de vida tradicional e a e quer descontar na gente.” A mesma con- anos 1980 e se orgulha de ter implantado o
pobreza rural à devastação ambiental, di- tradição está traduzida na fala de outro co- primeiro campo de soja acima de 1.000 hec-
zendo que “As ações de fiscalização realiza- munitário: “Companheiro, será que a roça de tares do Maranhão. Ticianel também afirma
das confirmam que a cultura alimentar da toco destrói mais que o desmatamento? Eu que “nunca tivemos um único caso de morte 14 SEMA vem atuando firme dentro do Parque Estadu-
população, a condição social, o baixo nível acho que o desmatamento destrói mais.” ¹⁶ por exaustão no trabalho”¹⁷, um estranho al do Mirador. SEMA, 3/11/2016. Disponível em: https://
www.sema.ma.gov.br/sema-vem-atuando-firme-den-
de escolaridade, têm contribuído, signifi- parâmetro para afirmar a qualidade das tro-do-parque-estadual-do-mirador/
cativamente, para cometimento de crimes A maior expressão desse comportamento condições de trabalho da empresa.
15 Você sabe o que a SEMA FAZ? Superintendência de
contra a flora e a fauna silvestre.” ¹⁴ de “dois pesos e duas medidas” por parte Economia Verde. SEMA, 3/03/2020. Disponível em: ht-
do Estado é a relação com a Agropecuária e Talvez Ticianel quisesse afastar a lembrança tps://www.sema.ma.gov.br/voce-sabe-o-que-a-sema-
-faz-superintendencia-de-economia-verde/.
Enquanto os comunitários são tratados Industrial Serra Grande (Agro Serra). A em- do fato de que a Fazenda Agrossera, localiza-
como invasores e infratores, o agronegó- presa sucroalcooleira, que também atua no da no município de São Raimundo das Man- 16 Cartografia Social, supracitado.

cio é tido como parceiro e aliado da pre- monocultivo de soja, é do empresário pa- gabeiras (MA), foi fiscalizada em outubro de 17 Entrevista com Pedro Augusto Ticianel – Agro Serra.
Revista Ecoenergia. Sem data. Disponível em: https://
servação ambiental. Mesmo com o amplo ranaense Pedro Augusto Ticianel. Em uma 2005, pelo Ministério Público do Trabalho www.yumpu.com/pt/document/read/40434886/pe-
desmatamento nas chapadas no entorno história já corriqueira dos “gaúchos” que (MPT) e Polícia Federal (PF) e, na ocasião, fo- dro-augusto-ticianel-revista-ecoenergia
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ram flagrados 103 trabalhadores em condi- mentos e congratulações.²º
ções análogas à escravidão. Com base no re- ​É no mínimo estranho que as comunidades
latório da fiscalização, o Ministério Público tradicionais que deveriam ter tido suas pos-
Federal do Maranhão (MPF/MA) apresentou ses regularizadas há 4 décadas sejam perse-
denúncia contra seis responsáveis, entre os guidas como invasoras e infratoras ambien-
quais o proprietário Pedro Augusto Ticianel, tais, enquanto empresários que cometem
além de gerentes e aliciadores. A denúncia grilagem e desmatamento de terras públi-
foi recebida pela Justiça Federal em 16 de cas são parceiros das ações de preservação
maio de 2006¹⁸. ambiental do Estado do Maranhão. Mas as
contradições entre o uso da narrativa am-
Ticianel, como pessoa física ou por meio biental contra as comunidades e a realidade
da Agro Serra, reivindica 8 propriedades na vivida por elas não param por aí.
região da Travessia, parcial ou totalmente
inseridas no parque em sua porção e entor- O Parque tornou-se ao longo dos últimos
no oeste, totalizando cerca de 90 mil hec- anos palco importante de ações da SEMA e
tares. O desmatamento no entorno oeste especialmente de sua Superintendência de
do parque se concentra em algumas dessas Economia Verde no marco do Programa Ma-
propriedades e mesmo porções desmata- ranhão Verde. O programa foi estabelecido
das no interior do parque (noroeste) (ver o pela Lei Estadual nº 10.595/2017 e é “destina-
Mapa “Principais desmatadores”). Apesar do a fomentar e desenvolver projetos volta-
do histórico de crimes trabalhistas e de evi- dos para apoio à conservação e recuperação
dências de grilagem e crime ambiental, a ambiental”. As famílias beneficiárias selecio-
Agro Serra é parceira do governo do Estado nadas recebem a “Bolsa Maranhão Verde” e
do Maranhão na gestão do parque, com a precisam participar de ações de capacitação
logo da empresa estampando as placas dos
postos do Parque Estadual do Mirador, como
levantado em campo pelo NERA. Em abril
18 Bianca Pyl. Atlas revira entranhas do trabalho escra-
de 2021, a SEMA realizou “ações de vistoria, vo no Maranhão. Laboratório de Demografia e Estudos
Populacionais (UFJF), 7 de fevereiro de 2011. Disponível
monitoramento e campanha educativa nas em: https://www.ufjf.br/ladem/2011/02/07/atlas-revi-
regiões das nascentes dos rios Balsas e Rio ra-entranhas-do-trabalho-escravo-no-maranhao/
Itapecuru” e no Parque Estadual do Mirador. 19 SEMA promove ações nas regiões das nascentes
A expedição às nascentes do rio Itapecuru dos rios Balsas e Itapecuru. SEMA, 23/04/2021. Dis-
ponível em: https://www.ma.gov.br/agenciadenoti-
foi guiada por ninguém menos que Pedro cias/?p=302985
Augusto Ticianel¹⁹. Em 2017, o governador
20 Governador participa de inauguração de fábrica de
Flávio Dino esteve presente na inauguração calcário, em Balsas. Folha do Cerrado, 9/10/2017. Dispo-
de uma fábrica de calcário da Agro Serra em nível em: https://www.folhadocerrado.com.br/gover-
nador-participa-de-inauguracao-de-fabrica-de-calca-
Balsas, ocasião na qual trocaram agradeci- rio-em-balsas/
Travessia do Mirador. Crédito: Acervo NERA/UFMA
55
técnica “sobre o que é preservação e conser- como se estas estivessem em ocupação irre- transitou em julgado, ou seja, não cabe
vação, além de boas práticas de manutenção gular da área, devendo ser reassentados. Na mais qualquer tipo de recurso e deve ser
do ecossistema”²¹. O programa é executado Cartografia Social feita pelo NERA e CPT-MA cumprida, não é realista pensar que os gri-
no Parque Estadual do Mirador, por meio do no Parque, um comunitário declara estra- leiros possam revertê-la. Assim, ao ignorá-la
Projeto Berço do Rio Itapecuru, com a parti- nhamento com a forma como o processo foi e estabelecer o parque e as diversas ações
cipação de 189 famílias do parque²² que re- conduzido: participaram da discussão do supostamente ambientais contra as comu-
cebem cerca de 300 reais a cada dois meses. Termo de Compromisso e repentinamente nidades, o Estado do Maranhão permite
sentiram que “mudou tudo”, com a discus- que na prática os grileiros ganhem tempo e
Ainda que possa configurar uma importante são passando a ser sobre a proposta de um novas oportunidades de lucro, em especial
fonte de renda monetária para as famílias e assentamento estadual em uma terra tam- aquelas relacionadas à grilagem e especula-
potencialmente representar o reconheci- bém na encosta do Itapecuru. Para a surpre- ção verde.
mento do papel das comunidades tradicio- sa deles, descobriram que a área já está em
nais na conservação, manejo e reprodução conflito fundiário²⁴. Apesar da área estar com situação fundiá-
da biodiversidade do Cerrado, as ações do ria estabelecida como sendo terra pública
programa e a forma como este é apresen- Ao não cumprir a sentença judicial da ação destinada como unidade de conservação,
tado no site da SEMA contribuem para a discriminatória e estabelecer uma unidade isso não tem impedido o Incra de ilegal-
construção política dos comunitários como de conservação de proteção integral sobre mente permitir o registro de propriedades
agentes da devastação, que precisam ser a área destinada para a reforma agrária, o privadas no Sigef ou Sistema Nacional de
educados e disciplinados. Há uma postura Estado do Maranhão tem, ao longo dos úl- Certificação de Imóveis (SNCI) sobre a área.
21 Você sabe o que a SEMA FAZ? Superintendência de
unilateral de transmissão do conhecimento, timos 40 anos, reiteradamente violado os Soma-se a isso o caráter autodeclaratório do Economia Verde. SEMA, 3/03/2020. Disponível em: ht-
na qual quem melhor conhece o território e direitos territoriais das comunidades tra- Sistema Nacional de Cadastro Ambiental tps://www.sema.ma.gov.br/voce-sabe-o-que-a-sema-
-faz-superintendencia-de-economia-verde/
o protege há décadas tem sua experiência e dicionais da Travessia do Mirador. Mesmo Rural (Sicar) e a falta de verificação por parte
conhecimentos não reconhecidos e desper- tendo direito à regularização fundiária de da Sema e temos uma receita para que a so- 22 SEMA entrega cartões do Programa Maranhão Verde.
SEMA, 11/04/2019. Disponível em: https://www.sema.
diçados, enquanto são “ensinados” por técni- suas posses, as comunidades têm participa- breposição de registros nas três bases sobre ma.gov.br/sema-entrega-cartoes-do-programa-mara-
cos da SEMA. do das discussões no marco do parque, in- o parque e as comunidades tradicionais do nhao-verde/

clusive reivindicando a criação do Conselho parque gerem um verdadeiro caos de regis- 23 SEMA discute termo de compromisso para
Todo esse processo também é reforçado Gestor e a elaboração do Plano de Manejo tros fundiários e ambientais na área. convivência das famílias do Parque Estadual
do Mirador. SEMA, 12/04/2018. Disponível em:
pela discussão de um Termo de Compromis- do Parque²⁵. No entanto, têm vivido uma https://www.sema.ma.gov.br/sema-discute-ter-
so para a convivência das famílias do Parque, realidade de cerceamentos e a sua represen- mo-de-compromisso-para-convivencia-das-fa-
a ser firmado com as famílias residentes e tação como vetores da destruição do Parque. milias-do-parque-estadual-do-mirador/
identificar as que desejem ser realocadas Enquanto isso, as chapadas do entorno es- 24 Cartografia Social, supracitado.
em assentamento estadual.²³ É notável que tão tomadas por grileiros e desmatadores,
25 Governo realiza primeira audiência pública
a sentença da ação discriminatória de 1978 que são vistos como parceiros nas ações de para discutir a gestão e situação atual do Par-
é continuamente ignorada. Ao contrário de “conscientização ambiental” das comunida- que Estadual do Mirador. SEMA, 29/01/2016.
regularizar as posses das famílias das comu- des tradicionais. Disponível em: https://www.sema.ma.gov.br/
governo-realiza-primeira-audiencia-publica-pa-
nidades tradicionais tal como determinado ra-discutir-a-gestao-e-situacao-atual-do-par-
judicialmente há 4 décadas, o Estado age Considerando que a sentença de 1978 já que-estadual-do-mirador/
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Considerando a impossibilidade de conso- processo é facilitado pelo fato de que o Có- forma aberta estarem localizados dentro ramente ilegal, o esquema da grilagem ver-
lidar a grilagem feita nas bases digitais em digo Florestal permitiu que áreas não con- do Parque Estadual do Mirador e com área de é escancarado, com todos sem exceção
ocupação da terra para monocultivos sem tíguas às “propriedades” sendo cadastradas “devidamente registrada no cartório de re- explicitando o objetivo de compensação de
mudar a situação fundiária do parque, cabe possam ser registradas como sua reserva gistro de imóveis”, o que viola frontalmen- reserva legal ou garantia real para emprés-
perguntar qual o sentido da manutenção legal. Assim, supostamente cumprindo a te tanto a sentença da ação discriminatória timos. Um dos anúncios chegava a detalhar
desses registros flagrantemente ilegais por obrigação de preservar sua reserva legal em como a própria lei de registros públicos (Lei que a compensação pode acontecer em
parte dos grileiros. Uma pista para a respos- outra parte, esses empreendimentos des- 6015/1973), que não permite o registro de “qualquer estado do bioma” Cerrado, outro
ta pode ser encontrada numa fala do em- matam as porções que anteriormente man- propriedade “particular” em terra pública. falava em “sequestro de carbono no bioma
presário Pedro Augusto Ticianel em entre- tinham como reserva legal. Outros também asseguram que a área tem Cerrado” e ainda outro em “créditos de car-
vista, alegando ter a maior “quantidade de “georreferenciamento certificado” e CAR. bono”.
terras particulares averbadas para reserva Como o Sicar não preza pela transparência Além do anúncio de venda de um título cla-
ambiental permanente no Estado do Mara- das informações, não disponibilizando os
nhão”²⁶. Ticianel reivindica no Sigef proprie- dados de quem reivindica o cadastro, não é
dade sobre milhares de hectares em imóveis possível apresentar casos concretos sobre a
sobrepostos ao parque e às comunidades autoria dos registros de Cadastro Ambiental
tradicionais. Essas áreas reivindicadas por Rural (CAR) na área do parque, mas não seria
ele, com exceção de uma porção na parte no- difícil deduzir que muitos registros dentro
roeste do parque, estão com cobertura vege- da unidade de conservação estão sendo usa-
tal nativa do Cerrado, o que significa que não dos como reserva legal para permitir o avan-
estão sendo exploradas economicamente ço do desmatamento no entorno do parque
por projetos de monocultivo. Mas, diante da e até em outras localidades. Vale lembrar
leniência do Incra ao permitir registros ile- como a antiga Data Cachoeira ou Pindaíba
gais no Sigef e da falta de verificação dos re- (na área sudeste do parque) foi reconhecida
gistros autodeclarados no Sicar, abre-se um em nome da Família Lima na sentença da
mercado de grilagem verde e especulação, ação discriminatória (1978) e posteriormen-
que tem encontrado no Parque Estadual do te (2011) foi doada ao Estado do Maranhão,
Mirador um espaço lucrativo. como condição de compensação de reserva
legal de outros imóveis (ver Infográfico “Cro-
Se tomarmos como referência os limites atu- nologia”).
ais do parque (decreto de 2009) que, a partir
do cálculo da base cartográfica chega a pou- A estratégia está desenhada de forma explí-
co menos de 500 mil hectares, vemos que há cita nos anúncios de venda de imóveis rurais
mais hectares em registros no Sicar (511.366 dentro do parque que podem ser encontra-
ha) do que os realmente existentes no pró- dos na plataforma OLX. Com meia dúzia
prio perímetro do parque. Além disso, cerca de anúncios ativos do tipo no momento da
de 35% da área atual do parque (176.611 ha) realização da presente pesquisa, é possível
está registrada como Reserva Legal. Esse encontrar um padrão. Todos afirmam de 26 Revista Ecoenergia, supracitada.
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Com o comércio de títulos ilegais sobre ter- Neste sentido, a não execução da sentença
ras devolutas estaduais dentro do Parque da ação discriminatória, conjugada com as
Estadual Mirador para fins de burlar a obri- ações de “preservação ambiental” do Esta-
gação de manter a reserva legal obrigatória do – como o estabelecimento do parque e
em outros imóveis rurais acontecendo de o disciplinamento das comunidades – tem
forma tão flagrante, cabe perguntar por permitido atrasar a regularização fundiária
que o Estado do Maranhão não desmonta dos posseiros e ganhar tempo para os grilei-
os esquemas de grilagem e estelionato que ros. O atraso para os grileiros, nesse caso, é
envolvem diversos agentes, como cartórios lucro. Para as comunidades tradicionais vai
da região e imobiliárias. Ao contrário, na constituindo um processo de constante de-
prática, vemos como a narrativa ambiental sassossego e desesperança de ver seus direi-
é utilizada contra as comunidades tradi- tos territoriais realizados.
cionais que têm direitos territoriais sobre e
conservam a Travessia há décadas, enquan-
to essa mesma narrativa é apropriada de for-
ma oportunista por grileiros, especialmente
a partir do Código Florestal de 2012, para no-
vas oportunidades de negócio.
TOCANTINS | 60

to
Esquema de grilagem dos Binotto Diana Aguiar, Joice Bonfim, Eduardo
Barcelos, Lorrany Lourenço Neves, Pedro
Antônio Ribeiro e Valéria Pereira Santos

na Gleba Tauá no Tocantins


Território tradicional devastado por família catarinense
invasora de terras

Foto: Quintal produtivo na Tauá. Crédito: Valéria Santos (2018)


TOCANTINS | 61
A Gleba Tauá, terra pública registrada em
nome da União desde 1984, é palco de gra-
1. GLEBA TAUÁ
ves conflitos associados à grilagem de terras Luta pela terra na encruzilhada do Matopiba com a Amazônia Legal
e desmatamento ilegal.
A Gleba Tauá é um exemplo emblemáti- sarial-Militar, articulado com setores da
Um território tradicional de cerca de 20 mil co que revela como se deu o processo de agricultura ligados à produção intensi-
hectares, que abriga comunidades tradicio- modernização da agricultura, expansão de va de grãos, sobretudo soja, e criação de
nais e camponesas lutando por regulariza- fronteiras e consolidação do agronegócio no gado, e que esteve historicamente calcado
ção fundiária e reforma agrária, tem sido, Cerrado brasileiro e mais especialmente na na apropriação ilegal de terras públicas
ao longo dos últimos 30 anos apropriada de porção inserida na Amazônia Legal. Toda a (grilagem) e na violência contra comuni-
forma ilegal e violenta pela família Binotto. borda sul e leste da floresta, na transição dades tradicionais e camponesas. Não por
Cerrado-Amazônia, foi palco de um pro- casualidade, mas como resultado desse pro-
A família catarinense desenvolveu, ao longo cesso de ocupação violento, promovido cesso, toda essa área passou a ser conhecida
dos anos, diversas estratégias de grilagem, pelo Estado brasileiro, principalmente como o “arco do desmatamento” da Ama-
“atirando para todos os lados” numa guerra desde a abertura de estradas durante o zônia, por ser onde se acumula a devastação
jurídica contra as comunidades da Gleba. governo Juscelino Kubistchek (JK), mas da floresta, empurrando a partir do Cerrado
em especial a partir da Ditadura Empre- no eixo das estradas¹.
Algumas foram operadas nos cartórios de
registros de imóveis, outras por meio do Po-
der Judiciário e outras ainda contando com
o apoio de órgãos como o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e
das legislações que legalizam a grilagem.

Na Gleba Tauá, o desmatamento ilegal foi


uma arma fundamental da família Binotto
para a consolidação da grilagem, tornando
sua permanência na área um fato consuma-
do, e sendo um instrumento de violência e
afronta às comunidades tradicionais e cam-
ponesas. Hoje a Gleba está quase totalmen-
te devastada e, se não fosse a resistência po- Abertura de novas áreas para produção de soja. Crédito: Thomas Bauer - CPT.
pular, não haveria mais cerrado para contar
essa história.
Dona Raimunda Santos, matriarca ¹ Diana Aguiar e Maurício Torres. A boiada está passando: desmatar para grilar. In: Diana Aguiar e Valéria Pereira Santos
das famílias posseiras da Tauá. (Orgs.). AGRO é FOGO: grilagens, desmatamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal. AGRO é FOGO, 2021. Dispo-
Crédito: Thomas Bauer - CPT. nível em: https://agroefogo.org.br/a-boiada-esta-passando-desmatar-para-grilar/
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Apesar do Tocantins se caracterizar por uma anos 1990, faz de Campos Lindos e região O Getat e a federalização de terras no eixo Empresarial-Militar criou o órgão, vinculan-
geografia da soja mais difusa e menos con- um dos polos do agronegócio e um palco de das estradas na Amazônia Legal do-o diretamente ao Conselho de Seguran-
centrada do que nos outros estados do Ma- disputas fundiárias. ça Nacional da Presidência, para acelerar a
topiba, a produção de grãos, e junto com Em 1971, já no contexto da Ditadura Militar, regularização fundiária e conter os conflitos
elas os conflitos por terra e o desmatamen- A Belém-Brasília, construída no governo JK foi editado o Decreto-Lei 1164/71 que fede- por terra⁴.
to, acabam acompanhando não somente os no final da década de 1950, e pavimentada ralizou as terras da Amazônia Legal que se
projetos de colonização - como o já citado durante o regime militar na década de 1970, encontravam a 100 km das margens das ro- Nesse contexto, a organização dos trabalha-
Projeto Campos Lindos e outros, como o Pro- substituiu o eixo de transporte fluvial do Rio dovias federais, ou seja, transformou estas dores rurais era reprimida. Os servidores do
áreas em terras públicas federais. Coube aos Getat detinham o controle sobre o processo
grama de Cooperação Nipo-Brasileira para o Tocantins e teve o objetivo, assim como ou-
órgãos fundiários federais delimitar, demar- de regularização fundiária, selecionando
Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer tras estradas da era JK (como a Brasília-Porto
car e registrar em cartórios estas terras em famílias e levando-as até o local de assenta-
III) em Pedro Afonso e o Projeto Rio Formoso Velho), de integrar a recém-criada região da
nome da União. mento. Configurava-se, assim, uma política
em Formoso do Araguaia e Lagoa da Con- Amazônia Legal internamente e com a nova fundiária com protagonismo do Estado, com
fusão -, mas também o eixo das estradas e capital federal, Brasília. A Belém-Brasília é Um desses órgãos foi o Grupo Executivo das os beneficiários sendo então denominados
outros investimentos em infraestruturas. símbolo da “integração nacional” e reflete, Terras do Araguaia-Tocantins (Getat), criado “colonos” ou “clientes”, e tendo pouco ou ne-
Assim, o entorno do principal eixo rodoviá- em sua essência, a falsa ideia de que as re- por meio do Decreto-lei nº 1767 de 1980 com nhum espaço de manobra ou poder de bar-
rio no estado, a BR-153, também chamada de giões da Amazônia e do Cerrado são “vazios “ a finalidade de coordenar, promover e exe- ganha na definição de seus destinos5.
rodovia Belém-Brasília, orienta a expansão demográficos”, “terras de ninguém”, repre- cutar as medidas necessárias à regulariza-
da fronteira agrícola e a destinação de terras sentam o atraso econômico e que deveriam ção fundiária no Sudeste do Pará, Norte de O Sudeste do Pará foi a área de maior ênfase
para a produção de grãos no Tocantins. Isso, ser alvo de projetos desenvolvimentistas Goiás [que veio a se tornar posteriormente o da ação do Getat, mas no Tocantins (à época
conjuntamente com a irradiação das conse- ligados à modernização agrícola. Foi jus- Estado do Tocantins] e Oeste do Maranhão”. Norte de Goiás), o órgão também demar-
quências do projeto agrícola estadual dos tamente a partir da rodovia Belém-Brasília Foi extinto pelo Decreto-lei nº 2328 de 1987, cou e arrecadou áreas, inclusive no entorno
que foi criada a Gleba Tauá. com o Incra herdando suas atribuições. da Belém-Brasília. O Decreto-Lei 1164/71 foi
revogado pelo Decreto-Lei 2375/87, editado
O Getat foi criado em razão do acirramento no ano de 1987, que alterou as regras para a
dos conflitos relacionados à posse da terra transformação em terras públicas federais
no final dos anos 1970. A região, que havia das áreas que margeiam as rodovias fede-
sido palco pouco tempo antes da Guerrilha rais, mas manteve as terras públicas federais
do Araguaia, era considerada prioritária do já delimitadas e arrecadadas em nome da
ponto de vista estratégico. Então a Ditadura União.

2 Nesse contexto está a construção da Usina Hidrelétrica 3 A Amazônia Legal foi constituída como região para efeitos
Estreito, inaugurada em 2012, que atingiu a população de planejamento econômico e implantação de projetos de
do município de Barra do Ouro. Algumas famílias de ocu- desenvolvimento em 1953, pela Lei 1806/53
pantes da Gleba Tauá eram barqueiras, pescadoras, va-
zanteiras ou barraqueiras (que tinham barracas na praia 4 Camila Penna. Gênese da relação de parceria entre Incra e
de Barra do Ouro). A Ferrovia Norte-Sul também foi im- movimentos sociais como modelo para implementação de
portante no processo de valorização das terras da região, políticas de reforma agrária. Lua Nova (105), setembro-de-
especialmente para a produção de grãos, estando interli- zembro 2018.
Tipo de cerrado predominante na Tauá. gada com o porto seco de Colinas do Tocantins, no muni-
cípio de Palmeirante (TO), e sendo estrutura chave para o 5 Penna, 2018.
Crédito: Valéria Santos (2020). escoamento da produção de milho e soja da região.
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O Mapa 01 Gleba Tauá - Território Tradicio-
Dentre elas estava a Gleba Tauá, que foi nal, a seguir, demonstra que atualmente a
delimitada, arrecadada e registrada em Gleba Tauá é reconhecidamente terra públi-
cartório em nome da União, em 1984, ca, registrada como tal no Sistema de Ges-
como uma gleba pública, com 17.735,00 tão Fundiária do Incra (Sigef público), assim
hectares. como as áreas vizinhas (Glebas Serrinha,
Garimpo, São José e Barriguda). De acordo
com o Sigef, a Gleba Tauá está delimitada
O que é uma gleba? com 20.463 hectares, um pouco maior do
que seu tamanho original registrado em car-
Gleba é uma porção de terra delimitada com tório. Esta divergência se explica pelo fato
a finalidade de promover o ordenamento e da Gleba Tauá ter sido georreferenciada e
a regularização fundiária por meio de lote- certificada pelo Incra apenas quando da sua
amentos urbanos ou rurais, legitimação de inscrição no Sigef em 2019 e este georrefe-
posse, ações de reforma agrária e projetos renciamento delimitou um tamanho mais
de colonização. preciso, que ainda não foi atualizado em
cartório.
Área invadida por monocultivos (amarela),
área desmatada em 2020 (marrom) e área
conservada de cerrado (verde). Crédito: Va-
léria Santos (2020).

Área invadida por monocultivos de soja e


milho. Crédito: Valéria Santos (2020).
MAPA 01
03 64
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Além de arrecadar as terras e instituir a Gle- Esses títulos concedidos pelo Getat em 1984 chos e nascentes (as famosas cabeceiras)
ba, ao longo dos anos, o Getat e o Incra re- não constam no sistema digital do Incra (Si- que formam e alimentam os rios e são fun-
gularizaram a situação de algumas famílias gef) e, portanto, não temos sua localização damentais para relações sociais, territoriais,
posseiras que viviam na área. Mas titulou exata, mas podemos presumir, por exclusão, culturais e econômicas estabelecidas pelas
apenas 5.943,71 hectares na forma de 106 que estejam nas áreas “vazias” do mapa fun- famílias que lá vivem. São as águas que in-
lotes individualizados, restando 11.791,29 diário, onde nem estão os lotes reivindicados clusive nomeiam as áreas de ocupação tra-
hectares de terras da União, ocupadas pelas pelos grileiros, nem estão as áreas remanes- dicional do território. Cabeceira do Duque,
famílias que não tiveram acesso ao título. O centes do território tradicional reivindicadas Cabeceira do Coã, Rebojento, Santa Rita e
processo de arrecadação da área ocorreu à ainda hoje pelas comunidades tradicionais Santo Antônio formam um território tra-
revelia de grande parte das populações que da gleba. É justamente nas terras públicas dicional único, símbolo da luta pela terra
ali viviam e trabalhavam. As muitas famílias não tituladas naquele momento que prova- na Tauá, e são exemplos de como as águas
que não tiveram as terras tituladas ficaram velmente se concentrou o esquema da grila- orientam as formações territoriais, dando
vulneráveis ao ambicioso plano de grilagem gem a partir da década seguinte. nome aos lugares, ao território. Não se trata
de terras que seria iniciado em 1992 pelo ca- da totalidade do território tradicionalmente
tarinense Emilio Binotto e seus familiares. Há mais de um século vivem na Tauá fa- ocupado, mas das áreas remanescentes que
mílias que chegaram na região vindas dos ainda hoje, após cerca de três décadas de
E mesmo no caso das famílias que tiveram Estados do Maranhão e Piauí. O território, ataques por parte dos grileiros, as comuni-
suas áreas regularizadas, a titulação, que que vivencia constantes processos de apro- dades tradicionais reivindicam a titulação
poderia ser uma forma de garantia da per- priação privada, é ocupado, por um lado, por (ver Mapa 02 “Luta pela regularização e titu-
manência das famílias na terra, não só não comunidades que estabelecem com ele re- lação”), para conseguir viver com alguma se-
garantiu como, ao contrário, facilitou ao lações históricas e tradicionais e que lutam gurança, sossego e garantir sua reprodução
grileiro pressionar individualmente cada pela permanência e titulação territorial e, social.
proprietário a vender os seus lotes. Isso sig- por outro lado, por comunidades campone-
nificou a chegada do desassossego para as sas, com ocupação mais recente, que plei-
famílias, que relatam que quando os Binot- teiam a constituição de assentamentos de
to apareceram na região, já trouxeram con- reforma agrária e também por algumas co-
sigo várias máquinas para trabalhar a terra, munidades e famílias que já conseguiram a
e logo que conseguiram expulsar o primei- regularização e titulação de suas terras. Con-
ro morador, começaram a desmatar para tra todas, está a família catarinense invasora
plantar soja. A partir de então, os moradores de terras, os Binotto, mais conhecidos pela
titulados começaram a ser pressionados, in- empresa Binotto S/A Logística Transporte e
clusive com uso da violência, como queima Distribuição, do ramo de transporte rodovi-
de casas e assassinato de animais. Amedron- ário de cargas.
tadas, muitas famílias venderam suas terras
para o grileiro, que, com a posse de alguns tí- Banhada pelos rios Tocantins, Ouro e Tauá,
tulos, cercou outras áreas públicas que eram a Gleba Tauá é formada por uma presença
ocupadas por posseiros antigos. marcante de corpos d’águas, córregos, ria-
MAPA 02
03 66
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As águas, o cerrado, as comunidades tradi- uma profunda mudança no território da Incra⁶, os documentos apresentados pelos da União já se constituía como uma área de
cionais do território da Tauá como um todo Tauá, não só pelo processo de grilagem de supostos proprietários não se sustentavam ocupação tradicional, formada por territó-
têm vivenciado um processo violento de terras e desmatamento, como também pela juridicamente, sendo apenas títulos paro- rios tradicionais e camponeses. No entanto,
transformação, com constantes e perma- própria violência cultural, já que os espaços quiais sem qualquer validade e, por esta todo o esquema de grilagem e apropriação
nentes ameaças. Desde a arrecadação da sagrados das comunidades não são respei- razão, foram devidamente anulados quan- privada da área promoveram, principalmen-
Gleba Tauá pelo Getat, mas sobretudo a par- tados, cemitérios foram destruídos e as tra- do da arrecadação. O entendimento sobre a te a partir da chegada da família Binotto em
tir de 1992, especificamente com a chegada dições subjugadas. validade destes documentos e as transações 1992, graves e intensos conflitos e violências
do catarinense Emilio Binotto, esse processo que ocorreram a partir de 1984 é a origem do contra as comunidades da Tauá.
de violência e desterritorialização aumen- Ainda no momento da arrecadação e re- esquema de grilagem que se desenvolveu
tou. Ao longo dos anos, as comunidades da gistro da Gleba Tauá como terra pública ao longo dos anos, como demonstraremos Como veremos a seguir, a família Binotto
Tauá foram (e ainda são) obrigadas a convi- federal, havia alguns registros sobrepostos mais adiante. Mas fato é que, no momento tem travado, há pelo menos 30 anos, uma
ver com incêndios de suas casas, morte de à área, como se esta pertencesse a 10 pro- da arrecadação da Gleba Tauá pelo Getat, os verdadeira guerra desigual contra as comu-
animais, expulsões e ameaças. Isso provoca prietários particulares. De acordo com o títulos sobrepostos foram anulados e a área nidades da Tauá. Ao mesmo tempo em que
desenvolveu diversas estratégias jurídicas
e administrativas - muitas delas contando
O desmatamento avança até sobre os cemitérios
com o apoio direto de órgãos públicos (como
das comunidades. Crédito: Valéria Santos (2020).
o Incra), de cartórios (como o Cartório de
Goiatins) e do próprio Poder Judiciário - tam-
bém se utilizou, e tem se utilizado, de méto-
dos violentos, associados ao desmatamento
e com suporte das instituições de polícia
com a intenção de se apropriar formalmente
das terras públicas da Gleba e expulsar as co-
munidades que tradicionalmente ocupam a
Tauá. Seja pelas vias institucionais, seja pela
ação violenta associada ao desmatamento, a
família Binotto, para consolidar a grilagem e
se apropriar da Gleba Tauá, atira para todos
os lados.

6 Informações contidas no Processo Judicial


nº 5000260-2010.827.2720
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2. ATIRANDO PARA TODOS OS LADOS: lizadas pela família Binotto, cometeram di-
versas ilegalidades, afrontaram a legislação⁷
a guerra jurídica dos Binotto contra as comunidades tradicionais do Território Tauá e colaboraram diretamente com o processo
de grilagem.

O Infográfico “Revelando o esquema da


grilagem” explica o passo a passo e indica
que a família Binotto afirma ter adquirido
o imóvel de uma pessoa que foi, na reali-
dade, gerente de sua fazenda por vários
anos e que este teria comprado dos antigos
“proprietários”, os mesmos que tiveram
seus documentos anulados quando da ar-
recadação da terra pública. Ou seja, o em-
pregado comprou de quem nunca foi dono,
vendeu para o seu patrão, e continuou em-
pregado. Com os documentos de compra e
venda simulados, mas registrados em car-
tórios, inicia-se a guerra jurídica contra as
famílias tradicionais, buscando a consolida-
ção da grilagem por meio da regularização
fundiária.

A família Binotto ingressou diretamente


com processos administrativos no Incra, di-
vidiu a área em 07 lotes, como se tivesse ven-
Como indicado anteriormente, a família Bi- ral, não haveria razões - e nem justificativas e venda simuladas que a grilagem da famí- dido para 07 pessoas diferentes, todas elas
notto se apresenta na Gleba Tauá no ano de - possíveis para uma tentativa de grilagem lia Binotto começou. Eles apresentaram aos ligadas diretamente à própria família, assu-
1992 se afirmando proprietária de grande estar se arrastando juridicamente por tanto órgãos fundiários e ao Poder Judiciário di- mindo, portanto, o clássico papel que con-
parte da Gleba. Neste momento, a Gleba tempo. versos documentos que afirmam que teriam figura a fraude: laranjas. Mesmo após a di-
Tauá já havia sido arrecadada e registrada adquirido (comprado) a parte da Gleba Tauá visão da área alvo do esquema da grilagem
em cartório como terra pública federal há No entanto, quando se trata de questões não titulada (disponível), ou seja, cerca de
08 (oito) anos. Ou seja, a União Federal já fundiárias em terras brasileiras, o esdrúxulo 11.900 hectares de terras, em 1992. Mas, sen-
era formalmente dona da Gleba Tauá. Con- é mais que provável, é a regra. Mesmo sendo do a terra pública e federal, apenas a União 7 Especialmente a legislação sobre Registros Públicos, a
siderando isso, a discussão sobre quem te- terra pública federal, arrecadada, delimi- poderia vendê-la. Apesar disso, os cartórios Lei 6015/73, que estabelece as regras sobre registros de
imóveis, indicando a impossibilidade de abertura de
ria direito sobre o imóvel não deveria nem tada e registrada, a Gleba Tauá foi alvo de da região registraram as transações, e ao matrículas em terras públicas ou com base apenas em
ter sido iniciada. Sendo terra pública fede- grilagem. Foram com processos de compra registrar as supostas compras e vendas rea- contratos de compra e venda referentes a posses.
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em 07 lotes, as áreas continuaram grandes Ao acelerar procedimentos para a regula- mentos principais das ações desenvolvidas apenas o lote 146 está com registro válido,
(latifúndios), não se enquadrando no limite rização das ocupações de áreas públicas de pela família Binotto na Gleba Tauá. O Painel inscrito no Sigef, em razão da anteriormente
da legislação de regularização fundiária fe- até 1.500 ha na Amazônia Legal, facilita a de mapas 3 “Território tradicional, grilagem referida titulação em nome de um dos “la-
deral vigente à época. legalização da apropriação ilegal de terras e desmatamento” a seguir demonstra justa- ranjas” por determinação de ordem judicial.
​No caso dos grileiros da Tauá, vale ressaltar públicas⁸. Em razão disso, ficou conhecida mente a atual configuração da apropriação
que, ainda que o Programa Terra Legal fa- na época como “lei da grilagem”. privada da Gleba Tauá, o seu avanço sobre o Comparando este mapa com o mapa se-
cilitasse a regularização de terras griladas território tradicional, na tentativa de conti- guinte do painel, referente à localização de
dentro da Amazônia Legal, instituiu um li- nuar promovendo cada vez mais expulsões, parte do território tradicional atualmente
mite de 15 módulos fiscais para a área a ser e a promoção do desmatamento como es- reivindicado por famílias de uma das comu-
regularizada. Por esta razão, a área reivin- Ao longo dos anos a família Binotto, seja tratégia de consolidação da grilagem. nidades que ocupam a Tauá há mais de um
dicada pelos grileiros foi mais uma vez di- diretamente, seja por meio de laranjas, in- século, pode-se perceber claramente que
vidida, desta vez em 15 lotes, para novos 15 gressou com pelo menos 22 processos ad- O primeiro mapa deste painel (Mapa 03) re- os lotes reivindicados pelos grileiros estão
laranjas. ministrativos no Incra buscando a legitima- vela que a Gleba Tauá está em sua grande quase que integralmente sobrepostos ao
ção da grilagem por meio da regularização parte sendo reivindicada pela família Binot- território tradicional. Estas sobreposições
fundiária. Em diversos destes processos, a to. Os 07 lotes (lotes 141 a 147) delimitados estão sendo discutidas judicialmente, como
O Programa Terra Legal e a grilagem de ter- fraude foi detectada pelo próprio Incra e no mapa são os lotes das 07 pessoas que se veremos adiante, e são uma reafirmação de
ras em áreas de Cerrado dentro da Amazô- pelo Programa Terra Legal e nenhum deles configuram como laranjas dos Binotto, os como a grilagem é fonte de violência, con-
nia Legal foi concluído a favor dos grileiros. Segundo quais estão sendo requeridos tanto via pro- flito e desterritorialização para as comu-
os órgãos administrativos, as áreas requeri- cessos administrativos no Incra quanto via nidades da Gleba Tauá, já que as famílias
Como leis e programas específicos são dirigi- das pelos “laranjas”, na verdade, se configu- processos judiciais. A estratégia de divisão ocupam a terra de forma tradicional há pelo
dos à região da Amazônia Legal, as áreas de ravam como uma fazenda só, de um único da área em 15 partes não foi bem sucedida menos 03 gerações, mas foram sendo ao
Cerrado dentro desta - localizadas nos Esta- dono, com uma única sede. Ou seja, simu- e o caminho para a regularização via os 07 longo do tempo pressionadas e tendo seu
dos do Mato Grosso, Tocantins e Maranhão lou-se uma demanda de regularização fun- laranjas é o que tem se mostrado mais efi- território diminuído por conta das invasões
- sofrem a incidência de normativas que não diária como se fossem pequenas áreas de caz para os grileiros, já que, inclusive como e desmatamento.
valem para outras partes do Cerrado. Foi as- diversas pessoas, mas na verdade se tratava está demonstrado no mapa e no esquema
sim com a lei que federalizou as terras nas de uma estratégia voltada para a reconcen- da grilagem, um dos lotes foi titulado, com Assim, associada às estratégias de divisão da
margens de rodovias federais dentro da re- tração fundiária. fundamento em decisão judicial. Gleba Tauá em lotes, e de ingresso de pro-
gião durante a Ditadura Empresarial-Militar. cessos judiciais e administrativos para regu-
E mais recentemente com o Programa Terra Por outro lado, nem o Incra e tampouco o Os 07 lotes dos laranjas ocupam uma área larização da grilagem e retirada das famí-
Legal e com as exigências diferenciadas de Terra Legal concluíram os processos admi- de 11.955 hectares, o que corresponde a qua- lias, o desmatamento, que tem como aliado
Reserva Legal no marco do Código Florestal nistrativos que buscavam a regularização se 60% de toda a área da Gleba Tauá georre-
de 2012. fundiária das famílias camponesas e tra- ferenciada. Segundo consta em um relatório
dicionais. Sem resolução do conflito e com do Programa Terra Legal, que detalha a gri-
8 Mauricio Torres; Cândido Neto da Cunha; Natalia
O Programa Terra Legal, criado pela Lei a conivência do Estado com a grilagem, a lagem desenvolvida pela família Binotto, es- Ribas Guerreiro. Ilegalidade em moto contínuo: o
11.952/2009 e alterado pela Lei 13.465/2017, violência, a apropriação privada da terra, as tes lotes já estiveram inscritos nos cadastros aporte legal para a destinação de terras públicas e
expulsões, o uso abusivo de agrotóxicos e a grilagem na Amazônia. In: Ariovaldo Umbelino
flexibiliza as regras de alienação de terras fundiários no Incra, mas foram cancelados Oliveira. (org.). A grilagem de terras na formação
públicas da União em favor de particulares. o desmatamento passaram a ser os instru- por indícios de irregularidades. Atualmente territorial brasileira. São Paulo: FFLCH/USP, 2020.
MAPA 03
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a violência, se mostrou uma arma essencial chamado atestado de pobreza, para obter o das), o desmatamento foi se efetivando. A
para a guerra travada pela família Binotto. benefício da aposentadoria e também para apropriação concreta territorial, no chão,
Até 2020 a Gleba Tauá tinha 12.334 hecta- ter acesso à assistência judiciária gratuita. por meio da expulsão, desmatamento e cer-
res de cerrado desmatados, boa parte dos camento caminhou de forma conjunta com
quais nos últimos 20 anos e principalmen- De acordo com a reportagem, trechos do a fraude documental.
te localizados dentro dos perímetros das processo mostram que ela afirmou em audi-
áreas reivindicadas pelos grileiros. Esta- ência que o marido, Emílio, trabalhava como A Gleba Tauá é um exemplo clássico de
mos falando de uma terra pública federal, motorista e que “achava que ele já era apo- como o desmatamento foi um instrumen-
cuja área oficialmente titulada para peque- sentado”. Ela declarou possuir sítio próprio to de consolidação de uma posse que nem
nos agricultores de algumas comunidades com o marido, onde tem uma horta, “um sequer foi ainda referendada institucio-
tradicionais é de um pouco mais de 5.000 pouco de gado, porcos e galinhas”. Declarou nalmente. Além disso, o desmatamento
hectares, ou seja, que deveria em sua gran- ainda que eles não contratam empregados, também é fundamental para incrementar
de parte estar sob controle e posse da União pagam diárias de R$ 30 ou R$ 40 para alguns a dinâmica produtiva ligada ao agronegó-
Federal e sendo destinada para a reforma vizinhos, e que não têm trator. Por fim, a cio na Gleba Tauá, ou seja, para a criação de
agrária - incluída aí a titulação das posses empresária informou que a transportadora gado e para a plantação de soja. O fato é que
que atualmente ocupam parte do territó- Binotto é de seus filhos, donos de uma viní- atualmente a família Binotto controla terri-
rio tradicional -, mas que, ao contrário, está cola. Após diversos habeas corpus impetra- torialmente, seja diretamente, seja por meio
sendo completamente devastada por uma dos pela defesa de Rosa, o TRF-4 absolveu de arrendamentos, a maior parte da Gleba
família de empresários catarinenses. a acusada, interpretando que a mentira em Tauá e isso se dá, principalmente, tendo o
testemunho não constituía infração penal. desmatamento como um instrumento im-
Vale ressaltar que este não é o único episó- portante.
dio de fraude contra o patrimônio público Não há dúvidas de que, no caso da Gleba
por parte da família. De acordo com apura- Tauá, a estratégia de fraude no processo da
ção de reportagem do Observatório De Olho grilagem desenvolvida pela família Binotto
nos Ruralistas⁹, a matriarca da família Rosa contou com o desmatamento como aliado
Bernardi Binotto, mulher de Emílio Binot- fundamental. Este, muitas vezes associado
to e falecida em 2020, havia entrado com a incêndios criminosos, e sempre associado
processo para obter a aposentadoria rural, à violência, foi de fato uma arma contra as
benefício concedido a trabalhadores rurais, comunidades tradicionais, que chegaram a
em que pese a família ser sócia de diversas registrar 20 boletins de ocorrência por ame-
empresas. Em 2010, foi aberto um inquérito aças sofridas por meio de agentes da família
policial contra ela, que acabou se tornan- catarinense, somente nos últimos 3 anos¹º. À
9 Julia Dolce. Em três anos, camponeses denunciam 20
do uma investigação no Tribunal Regional medida em que a família Binotto ia reque- ameaças de grileiros em Barra do Ouro (TO). De Olho
Federal da 4ª Região (TRF-4), por falsidade rendo a regularização fundiária no Incra, ou nos Ruralistas, maio de 2021. Disponível em: https://
deolhonosruralistas.com.br/2021/05/30/em-tres-anos-
ideológica, falso testemunho e declaração ingressando com ações de reintegração de -camponeses-denunciam-20-ameacas-de-grileiros-
descabida de pobreza para obtenção de posse contra as famílias (algumas delas bem -em-barra-do-ouro-to/.

benefício. Rosa declarou hipossuficiência, o sucedidas, com liminares de despejo deferi- 10 Dolce, maio/2021.
MAPA 04
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Analisar os mapas de evolução do desmata- a área suprimida dobrou de tamanho, che-
mento da Gleba Tauá nos ajuda a compre- gando a 9.561 hectares. Após 2014, o des-
ender como foi se dando a sua apropriação matamento foi incrementado na esteira do
territorial pela família Binotto. Até 2006, as Decreto de criação do Matopiba e foi a partir
manchas de desmatamento se concentra- daí que os arrendamentos se evidenciaram
vam nas porções norte e sul do Gleba, per- na Gleba. Até 2020, a Tauá acumulava 12.334
manecendo a porção central em sua gran- hectares de áreas desmatadas de Cerrado,
de parte preservada. Segundo o Programa o que representa 60% da área total da gle-
Terra Legal, no final da década de 1990 e ba, enquanto que em 2000, a área desma-
início dos anos 2000, o Incra emitiu autori- tada representava 22% da gleba. Em 2020
zações de supressão de vegetação de uma quase não há grandes extensões de cerrado
área de quase 12 mil hectares de cerrado, preservadas e as poucas porções que ainda
mesmo sem ter competência para isso, já têm cerrado em pé são aquelas que estão
que qualquer autorização de desmata- sob controle das comunidades tradicionais,
mento cabe aos órgãos ambientais e não onde está delimitada a parte que sobrou do
ao órgão fundiário. Foram com estas au- território tradicional, após as expulsões.
torizações (ilegais) que a família Binotto
desmatou e se apossou da porção norte Na Tauá, assim como nos outros casos
da Gleba, expulsando de forma violenta a analisados, as comunidades tradicionais
ocupação tradicional exercida. assumem um papel de contenção ao des-
matamento. O cerrado integra a vida das
A partir de 2006, mais precisamente em comunidades tradicionais como parte fun-
2007, ano em que os laranjas ligados à fa- damental, é base da reprodução social, eco- sua maior parte estão atualmente controla- Gestão Fundiário Público do Incra (Sigef
mília Binotto ingressaram com novos pe- nômica, cultural e conforma a própria iden- dos por eles. O que causa espanto, na verda- público), o Sistema Nacional de Cadastro
didos de regularização fundiária no Incra tidade das comunidades cerradeiras. Não de, é identificar esta dinâmica em uma terra Ambiental Rural (Sicar) deveria identifi-
e com ações de reintegração de posse que há qualquer surpresa em identificar que só pública federal que deveria estar sob contro- car de forma imediata as sobreposições e
acabaram gerando decisões liminares fa- existe cerrado em pé no Matopiba porque le da União e ser destinada à reforma agrária impedir o cadastro de imóveis particula-
voráveis aos grileiros, o desmatamento existem (e resistem) as comunidades tradi- e regularização de posses tradicionais. res em terras públicas. No entanto, o fato
começou a se expandir para as porções cionais e os povos indígenas. Ao contrário, a A sobreposição do Cadastro Ambiental Ru- da base do cadastro ser autodeclaratória
centrais da Gleba, ganhando uma dimen- lógica que orienta a forma de ocupação dos ral (CAR) na Gleba Tauá demonstra a ab- e considerando a inexistência tanto de
são impressionante. agentes externos, dos atores ligados ao agro- soluta ausência de controle estatal no que fiscalização por parte dos órgão ambien-
negócio, é a da devastação, é a da derrubada diz respeito à gestão fundiária e ambiental tais quanto de interface entre os órgãos
Detalhando os dados do desmatamento na do cerrado: limpar a terra das matas e suas de suas próprias terras e, ao mesmo tem- ambientais e fundiários, as sobreposições
Tauá, entre 2000 e 2010, a gleba perdeu gentes para dar lugar aos monocultivos. Isso po, a fragilidade do instrumento do CAR. de registros no CAR, com terras públicas,
mais áreas de cerrado do que em toda a explica o fato da maior incidência de desma- Sendo terra pública federal, registrada terras indígenas, territórios quilombolas
série histórica. Até o ano 2000, foram 4.574 tamento da Gleba Tauá estar sobreposta aos em cartório, delimitada, certificada, ge- e de outras comunidades tradicionais é
hectares de Cerrado destruídos. Até 2010, lotes reivindicados pelos grileiros, que em orreferenciada e inscrita no Sistema de uma realidade.
MAPA 05
03 74
MAPA 06
03 75
TOCANTINS | 76
Sobrepostos à Gleba Tauá existem 93 regis-
tros de CAR, ocupando uma área total de
3. REVELANDO O ESQUEMA DA GRILAGEM
13.498 hectares, o que corresponde a 65% da
Gleba. A área registrada como sendo de re-
serva legal é de apenas 1.883 hectares. É im- A família Binotto desenvolveu, ao longo No entanto, as comunidades tradicionais e
portante lembrar que a Gleba Tauá é área de dos anos, diversas estratégias de grilagem camponesas da Gleba Tauá também cons-
Cerrado inserida na Amazônia Legal, o que buscando sempre a tentativa de sua conso- truíram diversas ações de resistência, com
exige 35% de reserva legal. No caso da Gleba lidação. Algumas delas foram desenvolvidas o objetivo de proteção do território e dos
Tauá, de todos os registros de CAR, apenas diretamente pelos membros da família, ou- espaços históricos de vida, moradia e culti-
14% está reservado como área protegida. É tras foram por meio de terceiros, que aqui vo. Para isso, se organizaram coletivamente
fato que com o Código Florestal de 2012 é estamos chamando de “laranjas”. Algumas e também buscaram o Poder Judiciário e o
possível que as reservas legais dos imóveis delas foram operadas nos cartórios de re- Incra e, apesar do contexto de violência e de
estejam em outras áreas não contíguas ao gistros, outras por meio do Poder Judiciário avanço da família Binotto, estão conseguin-
imóvel rural, desde que no mesmo bioma, e outras contando com o apoio dos órgãos do se manter em parte do seu território.
no entanto a diferença é muito significativa administrativos, principalmente o Incra. Por
e aponta para uma dinâmica de absoluta de- isso, estamos afirmando que a família Bi- No infográfico a seguir, estão os fatos fundi-
vastação da Gleba Tauá. notto, para se apropriar ilegalmente de ter- ários mais importantes da construção do es-
ras públicas federais e expulsar as famílias quema de grilagem da Tauá, identificando
A existência de Cadastros Ambientais sobre- camponesas e tradicionais de seu território, as diversas estratégias executadas, e apon-
postos na Gleba Tauá, que até o momento “atira para todos os lados”. tando como foram desenvolvidas e no que
são válidos - apesar de ilegais - pois em sua resultaram.
maioria não foram suspensos¹¹ ou cancela-
dos, acaba legitimando tanto o desmata-
mento quanto a apropriação privada rea- GUIA DE LEITURA pelas cores, elas sinalizam as
PARA O INFOGRÁFICO estratégias utilizadas pela
lizada pela família Binotto e seus laranjas. família Binotto
você pode realizar a leitura de
Uma medida simples de cruzamento dos diversas formas, segue aqui alguns
dados ambientais com as informações fun- caminhos possíveis : as indicações de LEIA MAIS
diárias facilmente identificaria que grande assim como informações
adicionais sobre estes
parte da Gleba Tauá é terra pública federal, fatos e estratégias
cancelaria os registros do CAR e tornaria o podem ser encontradas
ANOS

pela cronologia, no ANEXO deste capítulo


desmatamento na Gleba efetivamente ile- dividida em faixas
gal. No entanto, a existência de tantos regis- horizontais atenção! as estratégias
desencadeam outras ações 11 Em 2015 o Instituto Natureza do Tocantins - Natura-
tros de CAR, associados ao desmatamento tins, órgão ambiental do Tocantins, chegou a cancelar
na Gleba, acaba demonstrando que o Estado algumas autorizações de desmatamento e cadastros
ambientais rurais que estavam em nome da família Bi-
é absolutamente conivente com o esquema notto e outras pessoas a ela ligadas. No entanto, a quan-
de grilagem historicamente construído. tidade de CAR sobreposto à Gleba Tauá e a evolução do
desmatamento ao longo dos anos comprova a ineficá-
cia da ação do Naturatins.
77

ESPIRAL DO TEMPO
REVELANDO O ESQUEMA DA GRILAGEM
GUERRA JURÍDICA DA FAMÍLIA CATARINENSE BINOTTO CONTRA AS
COMUNIDADES TRADICIONAIS E CAMPONESAS DA GLEBA TAUÁ

!!!
1984

O Grupo Executivo das Terras do


Araguaia-Tocantins (GETAT) arrecadou a área que A Tauá se constituía

!!!
corresponde a 17.735 hectares, constituindo a como um território
Gleba Tauá, dentro do limite de 100 km da tradicional para
Se a Gleba Tauá foi
Rodovia Federal BR-153 (Belém-Brasília), várias comunidades.
arrecadada e registrada
tratando-se de uma terra pública federal! como terra pública em
Neste momento o Getat identificou a sobreposição 1984, como pode ter sido
de documentos de terras ilegais na Tauá vendida como propriedade
(grilagem), que foram cancelados. particular em 1992? Como é
LEIA MAIS possível que quem teve
seus documentos

!!!
cancelados em cartório
Família Emílio Binotto chega à região SIMULAÇÕES DE COMPRA E possa vender uma área que
1992

promovendo desmatamento. Tentam se VENDA PARA DISSIMULAR A pertence à União?


apropriar de mais de 11 mil hectares GRILAGEM DE TERRAS PÚBLICAS
DENTRO DA GLEBA TAUÁ
apresentando documentos de compra e venda
simulados e gerando intensos conflitos.
LEIA MAIS
1994

Neste momento é formado o


A família Binotto em tese vende mais de 11 mil “Grupo dos 7 laranjas” ,
hectares da Gleba Tauá para 07 pessoas diferentes , que ao longo dos anos ingressam
com diversos processos
todas elas ligadas de algum modo à própria família.
LEIA MAIS administrativos e judiciais buscando
1996

a apropriação formal da Gleba Tauá.


1998
TENTATIVA DE
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
NO INCRA PROTAGONIZADA O Programa Terra Legal identificou 78
PELO GRUPO DOS 07 LARANJAS nestes processos indícios de alteração
grosseira e falsidades nos documentos.
POR MEIO DE PROCESSOS Apesar de todas as irregularidades, o
ADMINISTRATIVOS SUSPEITOS Incra emitiu autorizações de
Antes eu andava por essas terras e
sabia exatamente onde ficava cada E INDICANDO DISSIMULAÇÃO desmatamento de uma área total de
grota d'água, cada caminho para as 11.965 hectares , mesmo sem ter
casas das famílias amigas . Hoje competência para isso
em dia, com esse desmatamento, eu
não reconheço mais nada, não sei “Com todos esses procedimentos duvidosos, o que eram apenas LEIA MAIS
mais caminhar por aí. documentos meras cessões de direitos registrados em diversos cartórios, de
diversas cidades, tornaram-se áreas cadastradas no INCRA, áreas com
Dona Raimunda, autorização de desmatamento e com financiamentos bancários, e a partir
uma das lideranças do território deste momento consubstancia-se a grilagem de terras, surgindo assim um
simulacro de posse da área por estes requerentes, valendo-se das falhas na
estrutura organizacional da autarquia agrária.”
Programa Terra Legal

!!!
A família Binotto ingressa com novos processos
2002

Com os cadastros dos laranjas e da própria


administrativos no Incra - não mais por meio
família Binotto, a Gleba Tauá foi do Grupo dos 7 laranjas, mas sim em nome da própria
TENTATIVA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO
registrada no Incra duas INCRA PROTAGONIZADA DIRETAMENTE PELA
família - requerendo a inscrição das áreas no Sistema
Nacional de Cadastro Rural. O Incra registrou os imóveis
vezes, dobrando de tamanho FAMÍLIA BINOTTO - OBJETIVO DECLARADO DE apesar dos pedidos estarem fundamentados em
e chegando a 37.500 CONSEGUIR FINANCIAMENTO
documentos sem cadeia dominial e com inconsistências.
hectares ” LEIA MAIS
2007

O GRUPO DOS 07 LARANJAS ACIONA


O Grupo dos 07 laranjas O PODER JUDICIÁRIO, BUSCANDO O Grupo de 07 Laranjas conseguiu a primeira
ingressa com novo pedido de decisão favorável de uma ação possessória
regularização fundiária perante o Incra,
EXPULSAR DA GLEBA TAUÁ AS contra as famílias de ocupação tradicional .
COMUNIDADES TRADICIONAIS
buscando consolidar a Isto significou o acirramento do con�lito fundiário ,
apropriação dos 07 lotes , pois a partir da concessão da liminar a família Binotto se
que juntos somam um total de 11.955 sentiu ainda mais autorizada a praticar diversos atos de
hectares (maior inclusive do que seria a violência, destruindo e incendiando casas, roças, e
área disponível da Gleba Tauá) promovendo ainda mais desmatamento.
LEIA MAIS LEIA MAIS

A RESISTÊNCIA E ARTICULAÇÃO Com o acirramento do conflito, as comunidades tradicionais


COMUNITÁRIA PROMOVEM
registraram na Ouvidoria Agrária Nacional (OAN) a
DIVERSAS DENÚNCIAS E AÇÕES
EM DEFESA DOS TERRITÓRIOS primeira denúncia referente à grilagem ,
desmatamento e ameaças por parte dos Binotto.
LEIA MAIS

!!!
2008

O INCRA PROMOVE ALGUMAS Os procedimentos de regularização


INICIATIVAS PARA CRIAÇÃO fundiária apresentavam diversas
DE ASSENTAMENTOS RURAIS irregularidades documentais.
DESTINADOS AO PÚBLICO DA Foram 07 novos processos
O GRUPO DOS 07 LARANJAS, INCONFORMADO
REFORMA AGRÁRIA requerendo que o Poder Judiciário obrigasse
COM A NÃO FINALIZAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS o Incra a realizar a regularização fundiária
DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA REQUERIDOS dos grileiros vinculados à família Binotto.
O Incra iniciou o Posteriormente alguns destes processos
primeiro processo administrativo POR ELE, ACIONA O INCRA NA JUSTIÇA.
foram julgados favoráveis aos grileiros e
para regularização fundiária das posses das outros contrários.
comunidades tradicionais e dos pequenos
ocupantes, o qual não foi concluído. LEIA MAIS
Logo após a criação do Programa Terra Legal e

2010
com as novas leis de regularização fundiária, foi
O GRUPO DOS 15 LARANJAS construída uma nova estratégia de
INGRESSA COM PROCEDIMENTOS grilagem pela família Binotto .Os mais de 11 mil 79
ADMINISTRATIVOS NO INCRA hectares foram fragmentados em 15 lotes, ampliando ainda mais
REQUERENDO A REGULARIZAÇÃO o consórcio da grilagem. O objetivo de (re)dividir a Gleba Tauá em
15 lotes foi a necessidade de enquadramento ao tamanho da terra
FUNDIÁRIA, COM BASE NO exigido pelo Terra Legal para regularização fundiária
PROGRAMA TERRA LEGAL
LEIA MAIS

O grupo dos 07 laranjas conseguiu uma


Os documentos juntados neste pedido indicam que os renovação da medida liminar que neste
15 novos proprietários (laranjas) compraram a Gleba momento foi transformada em
dos 07 antigos laranjas e curiosamente a venda reintegração de posse .Isto determinou
de todos os lotes se deu no mesmo dia Algumas das famílias do a desocupação de toda a Gleba Tauá, as
evidenciando mais uma vez a simulação de Território Tauá, requerem moradias e roças dos posseiros ficaram
compra e venda para dissimular a formalmente ao Incra a em condição de absoluta insegurança .
grilagem de terras públicas. regularização fundiária da área Esta decisão não foi cumprida, por conta
onde residem e cultivam da resistência comunitária.
historicamente.
LEIA MAIS
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2012

O Programa Terra Legal


produz uma Peça
Informativa sobre indícios
de grilagem na Gleba,
identificando a estratégia da
família Binotto como
promotora da
PROGRAMA TERRA LEGAL reconcentração fundiária
Abertura de mais um procedimento
administrativo no Incra para a criação de um IDENTIFICA A GRILAGEM LEIA MAIS
Assentamento de Reforma Agrária na Gleba Tauá, DE TERRAS NA GLEBA TAUÁ
voltado para a regularização fundiária das posses As comunidades tradicionais
das comunidades tradicionais. conseguiram reverter a decisão liminar
que determinava a desocupação dos seus
territórios tradicionais na Gleba Tauá.
LEIA MAIS
A ordem de desocupação foi então,
Por requisição do Ministério Público Federal foi mais uma vez, suspensa!
instaurado Inquérito Policial para apurar os crimes de
usurpação de terra pública da União, ameaça, falsidade LEIA MAIS
ideológica e material, estelionato e contra o meio
ambiente supostamente praticados pela família Binotto
e demais pessoas envolvidas na grilagem da Gleba Tauá.
LEIA MAIS

Contra esta decisão foi


2013

Mais uma reviravolta judicial... foi interposto recurso.


sentenciada a ação em favor dos grileiros, Além disso, o processo de
determinando a imediata reintegração de resistência e articulação
posse, ou seja, a expulsão das comunidades das famílias impediu a
tradicionais e camponesas. concretização do processo
LEIA MAIS de expulsão.

Muita pressão por parte das comunidades:


2015

As 15 áreas reivindicadas pelos grileiros foram desafetadas Após as diversas denúncias realizadas pelas comunidades
pelo INCRA e disponibilizadas para regularização fundiária tradicionais, em conjunto com a Comissão Pastoral da
das famílias das comunidades tradicionais e implementação Terras, o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins)
de projeto de assentamento de reforma agrária. suspendeu as Autorizações de Exploração Florestal e
alguns Cadastros Ambientais Rurais (CAR) emitidas pelo
LEIA MAIS Mas a regularização fundiária não próprio órgão ambiental em nome de Emilio Binotto.
aconteceu, e inclusive, um dos lotes foi
titulado em nome de um dos 07 laranjas. LEIA MAIS
2016
Em resposta, o juiz da Comarca de 80
Goiatins mandou cumprir a sentença de Ao analisar o recurso, o Desembargador do Tribunal de Justiça do
2013... Com isso, foram iniciados os Tocantins identificou o interesse da União no processo. Com isso,
trâmites, o que acirrou ainda mais os a sentença que determinou a expulsão e o seu cumprimento
con�litos, gerando muita tensão. foram suspensos, aguardando a análise da Justiça
Federal. Essa decisão foi resultado da resistência e luta das
LEIA MAIS comunidades do Território Tauá.
LEIA MAIS

Incra cria o Assentamento Rio Tauá ,


2018

porém ele está parcialmente sobreposto a um estes Assentamentos


nunca foram efetivados e
lote que é reivindicado por um dos 07 existem apenas no papel
laranjas. Este mesmo lote foi arrendado por
Emilio Binotto para exploração agrícola de
uma terceira pessoa… a pergunta que fica é:.
O Incra cria o Assentamento
São Pedro da Tauá , que também
está sobreposto a um lote
reivindicado por um dos 07 laranjas...
Se o lote está sendo reivindicado, O judiciário decidiu que a área deveria ser
considerando que ele foi vendido pela família titulada em nome de Paulo Costa, mesmo o Incra
Binotto em 1994, como pode ser arrendado já tendo criado formalmente um Assentamento
para uma terceira pessoa? na área voltado para 20 famílias.

LEIA MAIS LEIA MAIS


2019

O Incra foi requerido a fim de que prosseguisse e


O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL concluísse o processo de regularização fundiária de
PROPÕE UMA AÇÃO CIVIL PÚBLICA pelo menos 04 núcleos familiares tradicionais.
VOLTADA PARA GARANTIR A LEIA MAIS

REGULARIZAÇÃO DE PARTE DO
TERRITÓRIO TRADICIONAL DA TAUÁ
O grileiro desde 2018, após ser multado, tem realizado o
desmatamento por etapas: primeiro, usa o correntão para
retirar as árvores maiores e vender a madeira (pequi, oiti,
bacuri, sucupira e outras). Depois, já em 2019, passou o
trator retirando as árvores menores, e no mês de setembro
2021

3 grileiros do grupo dos 7 Interessante lembrar que as áreas dos 7


laranjas conseguiram uma grileiros, incluindo estes 3 da ação de 2021, incendiou as áreas desmatadas ilegalmente e as roças de
decisão de suspensão da teriam supostamente sido vendidas em 2009 muitas famílias ocupantes e posseiras. Em 2020, no mês de
decisão e da Ação Civil para 15 pessoas, então o que justifica esta julho, o grileiro voltou a desmatar novas áreas, e em
Pública. nova demanda por efetivação da setembro incinerou o resto da madeira que sobrava no local.
LEIA MAIS regularização fundiária???
Valdineiz Pereira
liderança da comunidade

Enquanto o Incra permite a continuidade das


fraudes sobre as terras públicas e não regulariza as
partes do Território Tradicional atualmente reivindicadas por
algumas das comunidades, os grileiros usam do
desmatamento, de ameaças e violências como armas para
consolidar a grilagem.
Nos últimos 3 anos, foram registrados ao menos 20 boletins de
ocorrência contra jagunços e policiais contratados pelos grileiros
para ameaçar moradores das comunidades.
TOCANTINS | 81
O esquema de grilagem construído pela Atualmente vivem na Gleba Tauá comuni-
família Binotto é um exemplo clássico do dades tradicionais, entre elas famílias com
tipo de grilagem desenvolvido em terras posses tituladas, famílias que reivindicam a
públicas federais da Amazônia Legal. A con- titulação e famílias que pleiteiam a criação
solidação da posse por meio do desmata- de assentamentos de reforma agrária, que
mento e a busca por regularização fundiária estão em conflito cotidiano e luta perma-
contando com as legislações que anistiam e nente pela garantia do território Tauá. Como
beneficiam os grileiros é uma das principais vimos no esquema da grilagem, o Poder Ju-
marcas do caso da Gleba Tauá. Ao longo dos diciário tem tido papel decisivo na discussão
anos o esforço da família Binotto envolveu a em torno do (não) reconhecimento da gri-
apropriação territorial no local, de um modo lagem. Foram as decisões judiciais - equivo-
que aparentasse a adequação em relação cadas - que legitimaram a posse da família
às legislações que versam sobre regulariza- Binotto e colaboraram com a dinâmica de
ção fundiária em terras federais. Por isso a desmatamento. Hoje as ações que discutem
tramitação dos PLs 2633 e 510 no Congresso a posse tradicional e que averiguam a grila-
Nacional atualmente representam um peri- gem estão reunidas, aguardando posicio-
go real para o desfecho deste caso. namento da Justiça Federal. Enquanto isso,
o processo de violência na Gleba Tauá tem
Sem adentrar nos detalhes de cada uma das se acirrado. Os últimos atentados contra as
propostas legislativas, é importante desta- comunidades¹² foram graves e demonstram
car que ambos os projetos são ainda mais que as forças institucionais estão alinhadas
condescendentes com a ocupação irregular, com os interesses privados ligados à grila-
ou seja, com a grilagem, em terras públicas gem. No entanto, afirmando a continuidade
federais – na Amazônia Legal e fora dela. A da resistência, as comunidades da Tauá se-
cada nova alteração na legislação que tra- guem em luta e demandando da Justiça um
ta sobre regularização fundiária em terras posicionamento firme de combate à grila-
públicas federais, vão sendo estabelecidos gem e de proteção do Cerrado e seus povos.
marcos temporais mais recentes e limites de
tamanhos maiores que acabam regularizan-
do as ocupações irregulares anteriores, in-
clusive em latifúndios. Na prática, o Estado
reconhece ou garante o domínio – mesmo
que de forma onerosa – mediante paga-
12 Julia Dolce. Patrulhas rurais da PM atuam para
mento muito abaixo do preço de mercado – agronegócio e contra camponeses. De Olho nos
a quem usa do desmatamento e da violência Ruralistas, julho de 2021. Disponível em: https://
para invadir e grilar terras públicas. E essa é deolhonosruralistas.com.br/2021/07/08/patru-
lhas-rurais-da-pm-atuam-para-agronegocio-e-
a expectativa da família Binotto. -contra-camponeses/
TOCANTINS | 82
Anexos Infográfico Atirando para todos os lados: LEIA MAIS

1984 Aquino Tavares, Carlos Alberto Ayres e sua mulher Telma Lei-
te de Andrade Noleto Ayres, Lena Maria Noleto Ayres e seu
Como resultado dessa venda dissimulada e ¹ Emilio Binotto, Edilson Sergio Binotto, Edemilson
Pedro Binotto, Elizabeth Binotto Bazzo e Djalma Mi-
esposo Joberto Soares Guimarães. da chegada dos Binotto na Gleba, as muitas randa.
Por se tratar de uma terra da União, que está famílias que não tiveram as terras tituladas
dentro do limite de 100 km da Rodovia Fe- ficaram vulneráveis. E mesmo no caso das
deral BR-153 (Belém-Brasília)¹, em 1984, o famílias que tiveram suas áreas regulariza-
Grupo Executivo das Terras do Araguaia-To- das, a titulação, que poderia ser uma forma
cantins (Getat) arrecadou a área que cor- 1992 de garantia da permanência das comuni- 1994
responde a 17.735 hectares², constituindo a A família de Emílio Binotto¹, vinda de San- dades na terra, não só não garantiu como, Entre 1994 e 1996 a família Binotto em tese
Gleba Tauá. No momento da arrecadação o ta Catarina, chega à região retomando um ao contrário, facilitou ao grileiro pressionar vende o remanescente da Gleba Tauá (mais
Getat identificou a existência de documen- esquema de grilagem e promovendo des- individualmente cada proprietário a ven- de 11 mil hectares) para 07 pessoas¹ dife-
tos irregulares sobre as áreas em nome de 10 matamento no entorno e dentro da Gleba. der os seus lotes. Isso significou a chegada rentes, todas elas ligadas de algum modo à
fazendeiros³. De acordo com o Incra, estes Para justificar a tentativa de apropriação do desassossego para as comunidades, que própria família (um dos supostos compra-
documentos foram cancelados em cartório dos mais de 11 mil hectares de terras públi- relatam que quando os Binotto aparece- dores - Rafael Valcanaia - é dirigente de uma
por serem fraudulentos e este cancelamento cas não tituladas da Gleba, a família Binotto ram na região, já trouxeram consigo várias transportadora catarinense pertencente aos
teve a devida concordância dos fazendeiros. afirma, apresentando documentos de com- máquinas para trabalhar a terra, e logo que Binotto) e moradores de Lages - SC. Os docu-
O processo de arrecadação da área ocorreu pra e venda suspeitos, que comprou a Gleba conseguiram expulsar o primeiro morador, mentos dessas vendas (contratos e cessões
à revelia de grande parte das comunidades Tauá de Euclydes José Bruschi, em 02 de se- começaram a desmatar para plantar soja. de direito) estão nos diversos procedimen-
tradicionais que ali viviam e trabalhavam. tembro de 1992. Euclydes Bruschi teria com-
tos administrativos de regularização fun-
Ao longo dos anos o Getat titulou apenas prado a Gleba, também em 1992, dos supos- A partir de então, os moradores titulados diária que já tramitaram no Incra e foram
5.943,71 hectares em forma de 106 lotes in- tos antigos proprietários que tiveram seus começaram a ser pressionados, inclusive sistematizados pelo Programa Terra Legal.
dividualizados, restando 11.791,29 hectares registros fraudulentos cancelados e teria com uso da violência, como queima de casas Neste momento é formado o “Grupo dos 7
de terras da União, ocupados pelas famílias vendido pelo mesmo preço para os Binotto. e assassinato de animais. Amedrontadas, laranjas”, que ao longo dos anos ingressam
que não tiveram acesso ao título, e que hoje Euclydes Bruschi foi, durante muito tempo, muitas famílias venderam suas terras para com diversos processos administrativos e
se constitui como área em disputa e conflito. gerente das fazendas da Família Binotto, o o grileiro, que, com a posse de alguns títu- judiciais buscando a apropriação formal da
que demonstra o caráter de simulação das los, cercou outras áreas públicas que eram
¹ O Decreto-Lei 1.164 de 1971, instituído no marco do Progra-
Gleba Tauá.
ma de Integração Nacional (PIN) da Ditadura Empresarial-
compras e vendas para dissimular a grila- ocupadas tradicionalmente. O desassossego
-Militar, federalizou as terras nas duas margens (até 100 km) gem das terras públicas. das comunidades não está relacionado ape- ¹ Gilmar de Lima, Amauri Miranda, Rafael Anderson Valca-
de rodovias federais dentro da Amazônia Legal, como é o naia, Marlene Maria Bazzo, Mauro Bitencourt, Paulo Costa e
caso da Belém-Brasília dentro do estado do Tocantins. nas à violência física, patrimonial e moral, Benjamin Dalmolin.
Se a Gleba Tauá foi arrecadada e registrada mas principalmente com a violência cultu-
² Provavelmente o tamanho indicado para a gleba nos docu-
mentos é herança de um cálculo estimado aproximado da como terra pública em 1984, como pode ter ral, que é praticada contra os seus modos de
década de 1980 quando as terras foram arrecadadas. Quando sido vendida como se propriedade parti- vida. Desde a chegada desse grupo, as co-
o georreferenciamento é feito, chega-se ao valor preciso do
Sigef (20.489 hectares), um pouco maior do que o estimado. cular fosse em 1992? Como é possível que munidades tiveram seus espaços sagrados
quem teve seus documentos cancelados destruídos, interferidos de forma violenta
³ Nerina Carvalho Ayres de Medeiros, Luzia Ayres Coelho
Marques, Rosa de Carvalho Ayres e seu esposo Paulo Mara- em cartório possa vender uma área que pelo plantio da soja.
nhão Ayres, Adah Ayres de Aquino e seu esposo Bernardino pertence à União?
TOCANTINS | 83
1998 veis apesar dos pedidos estarem fundamen- o requerimento de registro dos 07 supostos ¹ Os lotes do Grupo dos 07 Laranjas estão assim divididos: Lote
141 (também conhecido como Fazenda Morro Fino, requeri-
tados em documentos sem cadeia dominial proprietários quanto os requerimentos fei- do por Gilmar de Lima), Lote 142 (também conhecido como
Exatamente no dia 20 de fevereiro de 1998 e com inconsistências. Nos próprios reque- tos diretamente pela família Binotto foram Fazenda Morro do Descanso, requerido por Djalma/Amauri
todos os 07 novos “donos” da Gleba Tauá (o Miranda), Lote 143 (também conhecido como Fazenda Santa
rimentos a família afirma que o motivo da deferidos. E as áreas remanescentes da Gle- Rosa, requerido por Rafael Valcanaia), Lote 144 (também co-
Grupo dos 7 Laranjas) ingressam com pedi- solicitação é a aquisição de financiamento ba Tauá (não tituladas pelo Getat na década nhecido como Fazenda Vale do Outro, requerido por Marlene
Bazzo), Lote 145 (também conhecido como Fazenda Vale do
do de regularização fundiária no Incra, com bancário. de 1980) foram registradas no Incra duas ve- Tauá, requerido por Mauro Bittencourt), Lote 146 (também
07 processos diferentes, mas todos seguindo zes, com registros sobrepostos que somados conhecido como Fazenda Nova Conquista, requerido por
Paulo Costa) e Lote 147 (também conhecido como Fazenda
o mesmo padrão e formalizados no mesmo Se a família Binotto já havia dividido a Gle- chegaram a 37.516 hectares. Atualmente os Vale do Tocantins, requerido por Benjamim Dalmolin)
dia. De acordo com o Terra Legal, o Incra ba Tauá e vendido para o Grupo dos 7 laran- registros encontram-se cancelados e oculta- ² Processo administrativo nº 54400.000555/2007-5
identificou nestes processos diversas irregu- jas, como podem ter sido beneficiados com dos do sistema do Incra.
laridades, havendo inclusive indícios de alte- os registros dos imóveis no Incra em seus
ração grosseira em documentos e falsidade próprios nomes? Isso nos indica, sem dúvi-
documental. das, que as 07 pessoas que supostamente 2007 2007
compraram a Gleba na verdade são pessoas Pela segunda vez, os 07 supostos proprie- O Grupo dos 07 laranjas ingressam com uma
Apesar de todas as irregularidades, o In- ligadas à família e as vendas foram simula- tários ligados à família Binotto, ou seja, o ação possessória¹ contra as comunidades
cra emitiu, segundo o Programa Terra das com o objetivo de ocultar os verdadeiros Grupo dos 07 laranjas, ingressam com novo tradicionais, especialmente D. Raimunda,
Legal, autorizações de desmatamento de interessados, esconder que trata-se de um pedido de regularização fundiária perante uma das matriarcas do Território Tauá, bus-
uma área total de 11.965 hectares, mes- único imóvel - latifúndio - e se aproximar o Incra, buscando consolidar a apropriação cando impedir que elas exercessem a posse
mo sem ter competência para isso, já que dos parâmetros exigidos para a regulariza- dos 07 lotes¹, que juntos somam um total tradicional em seu território e requerendo
quem deve emitir autorizações de desma- ção fundiária. de 11.955 hectares (maior inclusive do que toda a área da Gleba Tauá disponível. E em
tamento é o órgão ambiental, que no caso
seria a área disponível da Gleba Tauá). To- outubro deste mesmo ano conseguiram a
do Tocantins é o Naturatins. Os documentos juntados pela família Binot- dos os requerentes estavam representados primeira decisão favorável, determinando
to para requerer os CCIRs referentes à Gleba pelo mesmo advogado e o Incra identificou, o afastamento das comunidades do Territó-
O Incra também cadastrou as 07 áreas no Tauá indicam que os antigos donos da área em laudo de vistoria, que a área dita como rio que historicamente vivem. Esta decisão
Sistema Nacional de Cadastro Rural - SNCR. - que teriam vendido para os Binotto - são explorada economicamente é contínua, liminar foi proferida pelo Juiz de Goiatins à
pessoas diferentes daquelas indicadas an- configurando um único imóvel, com uma época, Gladiston Espedito Pereira, e signifi-
teriormente. Ou seja, em 2002 os Binotto única sede e administração. Identificou tam- cou o acirramento do conflito fundiário, pois
2002 afirmam que compraram a área não mais bém a existência de ocupantes antigos que a partir da concessão da liminar a família Bi-
de Euclydes Bruschi e sim de Alfredo Ribeiro estavam vivenciando conflito fundiário com notto se sentiu ainda mais autorizada a pra-
Curiosamente, em 2002 a família Binotto
Lopes e de Amélia Teixeira Ribeiro, represen- a família Binotto e que inclusive já tinham ticar diversos atos de violência, destruindo
ingressa com novos processos administrati-
tadas por Francisco Aurélio Guimarães Bou- sido obrigados a deixar parte de suas áreas e incendiando casas, roças, e promovendo
vos no Incra - não mais por meio do Grupo
cinhas. ocupadas historicamente. Neste processo² o ainda mais desmatamento.
dos 7 laranjas, mas sim em nome da própria
Incra se posicionou pela criação de um Pro-
família - requerendo a inscrição das áreas ¹ Esta ação tem como número original 2007.0002.6016-7/0,
Ou seja, os Binotto apresentaram documen- jeto de Assentamento (PA) na área, inclusive
no Sistema Nacional de Cadastro Rural e a mas posteriormente ganhou um novo número: 5000260-
tos de compra e venda diferentes, certamen- indicando possibilidade de indenização aos 2010.827.2720.
emissão de cadastros de imóveis (CCIR). Se-
te fraudados, para conseguirem registrar grileiros que estavam requerendo a “regula-
gundo o Terra Legal, o Incra registrou os imó-
os imóveis no Incra. E conseguiram. Tanto rização fundiária”.
TOCANTINS | 84
2007 fundiária dos grileiros vinculados à família zação fundiária, cada lote tivesse o tamanho pulsões, onde residem e cultivam historica-
Binotto. Posteriormente alguns destes pro- máximo de 15 módulos fiscais (aproxima- mente em ocupação tradicional constituída
Com o acirramento do conflito, as comuni- cessos foram julgados favoráveis aos gri- damente 1200 hectares na época). Os docu- por laços de parentesco: áreas tradicionais
dades registraram na Ouvidoria Agrária Na- leiros e outros contrários¹. A grande parte mentos juntados neste pedido indicam que Cabeceira do Duque, Cabeceira do Coã, Re-
cional (OAN) a primeira denúncia referente deles hoje está em fase de recurso, mas em os 15 novos proprietários (laranjas) compra- bojento, Santa Rita e Santo Antônio. No
à grilagem, desmatamento e ameaças por um deles o Incra foi obrigado, por decisão ram a Gleba dos 07 antigos laranjas e curio- mesmo ano, diante dos conflitos fundiários
parte dos Binotto. A Ouvidoria Agrária in- judicial, a realizar a regularização fundiária samente a venda de todos os lotes se deu no vivenciados, parte das comunidades busca
clusive se manifestou no processo judicial e atualmente o lote 146, referente à Fazenda mesmo dia, 22 de abril de 2009, dois meses a justiça para defender suas posses, ingres-
requerendo a suspensão da liminar diante Conquista, está titulado em nome de Paulo depois da edição da Medida Provisória 458, sando com uma ação judicial¹ contra Emilio
do conflito e considerando tratar-se de co- Costa. que deu origem à lei que instituiu o Terra Le- Binotto e outros, mas não conseguiu até o
munidades tradicionais que há pelo menos gal, e ficou nacionalmente conhecida como momento uma decisão judicial favorável.
5 décadas viviam na Gleba Tauá. Após o re- ¹ Os processos extintos ou julgados contra os grileiros são de
a primeira Medida Provisória da grilagem.
Rafael Anderson Valcanaia (lote 143), Gilmar de Lima (lote
gistro na Ouvidoria, o Ministério Público foi 141), Amauri Miranda (lote 142) e Marlene Maria Bazzo (lote ¹ Processo nº 5000258-37.2010.827.2720

também, por diversas vezes, ao longo dos 144). Os processos julgados favoravelmente aos grileiros
são de Paulo Costa (lote 146), Benjamin Dalmolin (lote 147) Segundo o Terra Legal, os cadastros com
anos, acionado e oficiado acerca do conflito e Mauro Bittencourt (lote 145). Com exceção do processo de
Paulo Costa, julgado definitivamente a favor dele, os demais
pedido de regularização em nome dos 15 2010
e da grilagem em terras públicas federais. estão pendentes de recurso foram feitos indicando como endereço de
alguns dos requerentes a Prefeitura de Barra A ação ingressada pelo Grupo dos 07 laran-
do Ouro e os valores de venda foram muito jas em 2007 segue a todo vapor e eles con-
abaixo dos valores de mercado, evidencian- seguem uma renovação da medida liminar
2008 2010 do mais uma vez a simulação de compra e que neste momento foi transformada em
venda para dissimular a grilagem de terras reintegração de posse. Com a reintegração
Depois de vistoriar a Tauá, o Incra iniciou o Logo após a criação do Programa Terra Legal públicas.​ de posse revigorada pela decisão da juíza
primeiro processo administrativo para re- (criado pela Lei 11.952/2009 e alterado pela
Aline M. Bailão Iglesias determinando a
gularização fundiária das posses das comu- Lei 13.465/2017) e com as novas leis de regu- ¹ Os 15 requerentes são: Carmen Terezinha Bazzo, Antonio
Petrati Neto, Maria Patrícia Gobetti, Carlos Della Justina, desocupação de toda a Gleba Tauá, as mo-
nidades tradicionais, por meio da criação de larização fundiária, foi construída uma nova Thiago Binotto, Lais Binotto Bazzo, Zenilda Dalmolin, Vera radias e roças das comunidades ficaram
um assentamento que englobasse toda a estratégia de grilagem pela família Binotto Lucia Bazzo, Francisco Teleginski, Elaine Branco Dematê, Ju-
liano Jasper, Graciele Dalmolin Soares, Julita de Lima, João em condição de absoluta insegurança. Esta
área da Tauá. Este processo administrativo voltada para a tentativa de consolidar a re- Luiz Schuchting, Eva Catarina Martins Gobetti.
decisão não foi cumprida pois conseguiu-se
não foi concluído. gularização das terras griladas.
reverter a liminar, com decisão do Tribu-
nal de Justiça do Tocantins, Além disso, o
2008 O Grupo dos 7 laranjas fragmentou os mais 2010 Incra ingressou no processo e o mesmo foi
de 11 mil hectares em 15 lotes para pessoas
deslocado, provisoriamente, para a Justiça
O Grupo dos 07 laranjas, depois de ingres- ligadas à família Binotto¹, ampliando ainda Algumas das famílias do Território Tauá, que
Federal. No entanto, por decisão da própria
sarem com ação judicial contra as comu- mais o consórcio da grilagem. O objetivo representam núcleos familiares interligados
Justiça Federal o processo retornou à Justiça
nidades tradicionais, decidiram acionar o de (re)dividir a Gleba Tauá em 15 lotes foi e historicamente conectados, requerem for-
Estadual, quando novamente a decisão de
próprio Incra na justiça. Foram 07 novos pro- a necessidade de enquadramento ao exi- malmente ao Incra a regularização fundiária
reintegração de posse foi revigorada.
cessos requerendo que o Poder Judiciário gido pelo Terra Legal, que, segundo a Lei da área do território tradicional que ainda
obrigasse o Incra a realizar a regularização 11.952/2009 determinava que, para regulari- está em posse das comunidades após as ex-
TOCANTINS | 85
2012 2012 Araguaia-Tocantins, com denúncias junto ao 2016
Ministério Público Federal (MPF), Ouvidoria
O ano de 2012 marca também a abertura de
Após vistoria da área e análise dos mais Agrária Nacional e Regional, Superinten- Em resposta ao processo de resistência lo-
mais um procedimento administrativo¹ no
diversos procedimentos de regularização dência Nacional de Regularização Fundiá- cal e denúncias que apontam a grilagem na
Incra para a criação de um Assentamento
fundiária sobre a Gleba Tauá, o Programa ria na Amazônia Legal (SRFA-9) – ligada ao Gleba Tauá, o juiz da Comarca de Goiatins
de Reforma Agrária na Gleba Tauá, voltado
Terra Legal produz uma Peça Informativa Programa Terra Legal – e à Advocacia Geral mandou cumprir a sentença proferida em
para a regularização fundiária das posses
sobre indícios de grilagem na Gleba, identi- da União (AGU), é que todos os requerimen- 2013 que determinava a expulsão das comu-
das comunidades tradicionais. Este procedi-
ficando a estratégia da família Binotto como tos de regularização fundiária dos grileiros nidades da Tauá. Com isso, foram iniciados
mento foi instaurado considerando inclusi-
promotora da reconcentração fundiária, e foram indeferidos pelo Incra. As 15 áreas rei- os trâmites para o cumprimento, o que acir-
ve recomendação expedida pelo Ministério
encaminhando as informações para a Po- vindicadas pelos grileiros foram desafetadas rou ainda mais os conflitos, gerando muita
Público Federal².
lícia Federal, Ministério Público Federal e pelo Incra e disponibilizadas para regulari- tensão.
¹ Procedimento nº 54400.000735/2012-00 Conselho Nacional de Justiça, por se tratar zação fundiária das famílias das comunida-
de grilagem de terras, havendo indícios de
2016
² Inquérito Civil Público PR/TO nº 1.36.000.000199/2012-18
des tradicionais e implementação de proje-
crimes federais, com registros irregulares de to de assentamento de reforma agrária. Mas
documentos no Cartório de Goiatins. Ao analisar o recurso ingressado pelas co-
2012 a regularização fundiária não aconteceu, e
inclusive, como já apresentado, um dos lotes munidades tradicionais contra a sentença
Como resultado das denúncias realizadas foi titulado em nome de um dos 07 laranjas. que determinou a reintegração de posse
no MPF, por requisição do Ministério Públi-
2013 na área, o Desembargador João Rigo Gui-
co Federal foi instaurado Inquérito Policial¹ marães do Tribunal de Justiça do Tocantins
para apurar os crimes de usurpação de terra Em menos de 01 ano após a decisão liminar identificou o interesse da União no processo
pública da União, ameaça, falsidade ideoló- de reintegração de posse ter sido revertida 2015 e remeteu o processo, mais uma vez para a
gica e material, estelionato e contra o meio pela segunda vez no Tribunal de Justiça do Justiça Federal. Com isso, a sentença que de-
Após as diversas denúncias realizadas pelas
ambiente supostamente praticados pela fa- Tocantins, o juiz titular da Comarca de Goia- terminou a expulsão e o seu cumprimento
comunidades, em conjunto com a Comissão
mília Binotto e demais pessoas² envolvidas tins, Luatom Bezerra Adelino de Lima, sen- foram suspensos, aguardando a análise da
Pastoral da Terras, o Instituto Natureza do
na grilagem da Gleba Tauá. Não há informa- tencia a ação em favor dos grileiros, deter- Justiça Federal.
Tocantins (Naturatins) suspendeu as Auto-
ções precisas sobre a conclusão do Inquérito minando a imediata reintegração de posse, rizações de Exploração Florestal e alguns
e possíveis encaminhamentos de eventuais ou seja, a expulsão das comunidades. Con- Cadastros Ambientais Rurais (CAR) emiti-
denúncias. tra esta decisão foi interposto recurso. Além das pelo próprio órgão ambiental em nome
¹ Inquérito Policial nº 0047/2012-4-DPF/AGA/TO
disso, o processo de resistência e articulação de Emilio Binotto e outros na Gleba Tauá, 2018
das comunidades impediu a concretização em razão de terem sido identificadas irre-
² O Inquérito foi instaurado contra Euclydes José Bruschi, do processo de expulsão. Incra cria o Assentamento Rio Tauá, de
Alfredo Ribeiro Lopes, Rafael Anderson Valcanaia, Gilmar gularidades nas Certidões de Propriedades 2.606 hectares¹, que prevê a criação de 57
de Lima, Djalma Miranda, Marlene Maria Bazzo, Mauro Bit- apresentadas, nas próprias autorizações de
tencourt, Benjamin Dalmolin, Emilio Binotto, Edison Sergio unidades agrícolas familiares. Este assenta-
Binotto, Edemilson Pedro Binotto, Elizabeth Binotto Bazzo, exploração florestais e considerando que “os mento está parcialmente sobreposto ao lote
Amauri Miranda, Maria Patricia Gobetti, Eva Catarina Mar-
tins Gobetti, Elaine Branco Dematé, Graciele Dalmolin Soa- 2015 mesmos têm desmatado milhares de hecta- 147, que é reivindicado por um dos 07 “la-
res, Thiago Binotto, Lais Binotto Bazzo, Antonio Petrati Neto, res nos últimos anos” ranjas” ligados à família Binotto, Benjamim
João Luiz Schlichting, Vera Lucia Bazzo, Carmem Therezinha Após muita pressão por parte das comuni-
Bazzo, Francisco Teleginski, Carlos Della Justina, Zenilda Dal- Dalmolin. O curioso é que há um contrato de
molin e Juliano Jasper dades e da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
TOCANTINS | 86
parceria referente à exploração agrícola des- 2019
te mesmo lote assinado por Pedro Amaro e
Emilio Binotto, transferindo a área para que O Ministério Público Federal ingressa com 2021
seja explorada por Edian França de Souza. Ação Civil Pública¹, requerendo do Incra o
A pergunta que fica é: se o lote está sendo prosseguimento e conclusão do processo No entanto, mais uma reviravolta judicial
reivindicado por Benjamin, considerando de regularização fundiária de pelo menos impede que o Incra conclua o procedimento
que ele foi vendido pela família Binotto em 04 núcleos familiares que tradicionalmente de regularização fundiária das posses tradi-
1994, como pode ao mesmo tempo ter sido ocupam parte da Gleba Tauá. Em dezembro cionais. Os grileiros Mauro Bittencourt, Ben-
arrendada por Pedro Amaro e Emilio Binotto deste mesmo ano, o Juiz Federal Adelmar Ai- jamin Dalmolin e Paulo Costa ingressaram
para uma terceira pessoa, Edian França? Res- res Pimenta da Silva proferiu decisão deter- com mais uma ação judicial¹, buscando a
salta-se que este Assentamento nunca foi minando que o Incra concluísse o processo anulação da decisão de 2019 que determi-
efetivado e existe apenas no papel. de regularização fundiária dos 04 núcleos nou que o Incra efetivasse a regularização
familiares no prazo de 30 dias. O Incra não fundiária em nome das famílias, e consegui-
¹ Portaria nº 285, de 01 de março de 2018, resultado do Pro- cumpriu a decisão e a regularização fundi- ram uma decisão de suspensão da decisão e
cesso Administrativo nº 54400.000211/2017-15
ária não foi efetivada. Concretamente, hou- da Ação Civil Pública, com o argumento de
ve avanços nos processos administrativos e que o judiciário já havia determinado que
judiciais em favor das comunidades, mas as o Incra garantisse os lotes aos mesmos². Ou
2018 decisões tiveram pouco efeito no sentido de seja, a expectativa de algumas comunida-
No mesmo ano, mais precisamente na mes- garantir a segurança das famílias e de impe- des tradicionais de terem finalmente parte
ma data, o Incra cria outro Assentamento¹ dir a destruição ambiental na Tauá. do seu território garantido foi frustrada pelo
no interior da Gleba Tauá, denominado As- Poder Judiciário. Interessante é que as áreas.
sentamento São Pedro da Tauá, com 714,60 Segundo Valdineiz Pereira, liderança da co-
¹ Embargos de Terceiro nº 1001344-94.2021.4.01.4301
hectares, voltado para a criação de 20 unida- munidade, “o grileiro desde 2018, após ser
multado, tem realizado o desmatamento ² Como ressaltado anteriormente, Paulo Costa, Mauro Bitten-
des agrícolas familiares. Este Assentamento, court e Benjamin Dalmolin conseguiram de fato decisões fa-
que também nunca foi efetivado, está so- por etapas: primeiro, usa o correntão para voráveis. No entanto, apenas Paulo foi titulado e os processos
dos demais ainda estão pendentes de recurso.
breposto ao lote 146, reivindicado por Paulo retirar as árvores maiores e vender a ma-
Costa - um dos 07 laranjas ligados à família deira (pequi, oiti, bacuri, sucupira e outras).
Binotto, e em favor de quem o Poder Judici- Depois, já em 2019, passou o trator retirando
ário decidiu pela titulação. Ou seja, o judici- as árvores menores, e no mês de setembro
ário decidiu que a área deveria ser titulada incendiou as áreas desmatadas ilegalmen-
em nome de Paulo Costa, mesmo o Incra já te e as roças de muitas famílias ocupantes e
tendo criado formalmente um Assentamen- posseiras. Em 2020, no mês de julho, o gri-
to na área voltado para 20 famílias. leiro voltou a desmatar novas áreas, e em
​ setembro incinerou o resto da madeira que
¹ Portaria nº 268, de 01 de março de 2018, resultado do Proces-
so Administrativo n º 54400.000141/2017-03 sobrava no local”.

¹ Processo nº 1004683-32.2019.4.01.4301
TOCANTINS | 87
Anexos Infográfico Atirando para todos os lados: FATOS E ESTRATÉGIAS

mentou a área, inicialmente para 07 pessoas


SIMULAÇÕES DE COMPRA E VENDA TENTATIVA DE REGULARIZAÇÃO TENTATIVA DE REGULARIZAÇÃO
(Grupo dos 07 laranjas) e posteriormente o FUNDIÁRIA NO INCRA
PARA DISSIMULAR A GRILAGEM FUNDIÁRIA NO INCRA
DE TERRAS PÚBLICAS DENTRO DA Grupo dos 07 laranjas vendeu para 15 pes- PROTAGONIZADA PELO GRUPO PROTAGONIZADA DIRETAMENTE
GLEBA TAUÁ soas (Grupo dos 15 laranjas). A estratégia da DOS 07 LARANJAS por meio de PELA FAMÍLIA BINOTTO - OBJETIVO
fragmentação, que ocorreu posterior à si- processos administrativos suspeitos DECLARADO DE CONSEGUIR
e indicando dissimulação FINANCIAMENTO
Foram com processos de compra e venda si- mulação de primeira compra e venda ilegal
muladas que a grilagem da família Binotto realizada pela família Binotto, se deu pela
começou. necessidade de adequação às legislações Depois de terem adquirido os 11.900 hecta- Mesmo tendo, em tese, “vendido” a área em
que tratam sobre a regularização fundiária. res da família Binotto, com a simulação de 1994, a família Binotto também ingressou
A família Binotto apresentou aos órgãos Estas legislações determinam um limite de “compra”, o Grupo dos 07 Laranjas dividiu a em 2002 com pedido de inscrição dos imó-
fundiários e ao Poder Judiciário diversos tamanho para as áreas serem regularizadas. área em 07 lotes. Ao longo dos anos ingres- veis (que somam mais de 11.900 hectares)
documentos que afirmam que a família ad- E por isso, a estratégia de fragmentar a área saram com pedidos de regularização fundi- no Cadastro de Imóveis do Incra. Mesmo
quiriu (comprou) a parte da Gleba Tauá não foi necessária para enquadrar os lotes no ta- ária no Incra. Os primeiros foram em 1998 com documentos duvidosos, o Incra registra
titulada (disponível), ou seja, cerca de 11.900 manho exigido. (que foram 07 processos diferentes em nome os imóveis no cadastro em nome dos Binot-
hectares de terras, em 1992. Nesta data, a dos 07, mas fundamentalmente iguais), que to. Como estes mesmos imóveis já estavam
Gleba Tauá já havia sido arrecadada pela não foi finalizado, e o segundo em 2007 (foi registrados no cadastro em nome do Grupo
União, ou seja, já era terra pública federal um processo apenas, em nome dos 07), que dos 07 laranjas, a Gleba foi registrada duas
devidamente, registrada em cartório. também não foi finalizado. Nestes procedi- vezes, duplicando de tamanho.
mentos administrativos, o Grupo dos 07 jun-
Diante disso, uma questão que podemos tou diversos documentos irregulares, que
destacar é: sendo terra pública federal arre- serviram de fonte para o Programa Terra
cadada e registrada em cartório desde 1984, Legal e para o próprio Incra (em alguns mo-
nenhuma transação ou contrato de compra mentos) afirmarem a grilagem. No entanto,
e venda pode ser válido ou deveria ter sido estes procedimentos serviram também para
registrado. Sendo a terra pública e federal, que o Grupo dos 07 conseguisse - por um pe-
apenas a União poderia vendê-la. E os cartó- ríodo de tempo - registrar os lotes no Siste-
rios, ao registrarem as compras e vendas re- ma de Cadastro de Imóveis do Incra.
alizadas pela família Binotto, cometeram di-
versas ilegalidades, afrontaram a legislação
e colaboraram diretamente com o processo
de grilagem.

Mesmo com essa ilegalidade tão escancara-


da, ao longo dos anos a família Binotto frag-
TOCANTINS | 88

O GRUPO DOS 07 LARANJAS O GRUPO DOS 07 LARANJAS, O GRUPO DOS 15 LARANJAS


ACIONA O PODER JUDICIÁRIO, INCONFORMADO COM A INGRESSA COM PROCEDIMENTOS
BUSCANDO EXPULSAR DA NÃO FINALIZAÇÃO DOS ADMINISTRATIVOS NO INCRA
GLEBA TAUÁ AS COMUNIDADES PROCEDIMENTOS DE REQUERENDO A REGULARIZAÇÃO
TRADICIONAIS REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA FUNDIÁRIA, COM BASE NO
REQUERIDOS POR ELE, ACIONA O PROGRAMA TERRA LEGAL
INCRA NA JUSTIÇA

No mesmo ano em que requerem do Incra, Os procedimentos de regularização fundiá- Vimos que com a criação do Programa Ter-
pela segunda vez, a regularização fundiária, ria ingressados, no Incra, pelo Grupo dos 07 ra Legal, em 2009, estabeleceu-se um limite
o Grupo dos 07 entra com ação judicial (pos- laranjas (07 separados em 1998 e 01 em con- máximo de tamanho para o enquadramen-
sessória) requerendo a expulsão das comu- junto em 2007) não foram finalizados dian- to na política de regularização fundiária na
nidades tradicionais do Território Tauá. As te das diversas irregularidades documen- Amazônia Legal - que na região seria de 1200
comunidades tradicionais inclusive vivem tais. Diante disso, o Grupo decidiu acionar hectares. Com isso, mais uma estratégia ar-
na área há mais de meio século. Entre idas a Justiça contra o Incra, ingressando com 07 ticulada foi a fragmentação da área em 15
e vindas, a ação judicial foi sentenciada de- ações judiciais requerendo a mesma coisa: e o ingresso de 10 novos procedimentos de
terminando a expulsão das famílias. O pro- que o Poder Judiciário determine que o Incra regularização. Em 2015 estes procedimentos
cesso de resistência, denúncia, articulação e faça a regularização fundiária em nome dos foram indeferidos e as áreas desafetadas,
organização das comunidades, com o apoio grileiros. Foi uma estratégia que tem gerado destinadas formalmente para o Programa
da Comissão Pastoral da Terra, conseguiu se- efeitos positivos para os grileiros. O grileiro Nacional de Reforma Agrária ou regulariza-
gurar o cumprimento da sentença. Até que o do lote 146, Paulo Costa, inclusive conseguiu ção fundiária das famílias das comunidades
Tribunal de Justiça do Tocantins suspendeu uma decisão favorável e hoje está titulado tradicionais.
a ação e determinou a remessa dela para a na área.
Justiça Federal, por haver interesse do Incra.
89

PI
Devastação do Cerrado e apropriação
ilegal de chapadas e “baixões” do Rio
Uruçuí Preto: o caso do Território
Tradicional de Melancias
Adriane Santos Ribeiro, Emilia Joana Viana de Oliveira, Juliana
Oliveira Borges e Mauricio Correia Silva Área desmatada nas chapadas do entorno do território de Melancias. Créditos: Debora Assumpção

No Piauí, as comunidades do território de das águas por agrotóxicos e com a grilagem dos anos 70, e visou a transferência massiva posseiros tradicionais fossem parte do pro-
Melancias enfrentam graves conflitos na verde. de terras devolutas para indivíduos e em- cesso, resultando em sentenças que deram
luta pela demarcação e titulação do seu presas privadas, especialmente do Sul do origem a parte dos latifúndios que promo-
território tradicionalmente ocupado, que Historicamente, o principal operador da país, a preços irrisórios e com critérios pou- veram a devastação sem precedentes das
formalmente consistem em terras devo- apropriação ilegal das chapadas e vales da co transparentes. Contrariando as próprias chapadas do Cerrado piauiense, no intervalo
lutas estaduais. Encurraladas nos vales ou região do alto Uruçuí-Preto é o próprio Es- normas da época, não foram respeitadas as de apenas 20 anos.​
“baixões”, as famílias brejeiras e ribeirinhas tado do Piauí, especialmente por meio do terras ocupadas por posseiros, que deveriam
sofrem com os danos causados pela apro- Poder Executivo e Judiciário. O processo de ter sido objeto de legitimação de posse. Do No caso do Território Tradicional de Melan-
priação ilegal das chapadas do entorno, com entrega do valioso patrimônio constituído mesmo modo, ações judiciais de demarca- cias, são 30 anos de reivindicações de de-
o desmatamento acelerado, contaminação pelas terras públicas tem início no começo ção de terras foram promovidas sem que os marcação e titulação do território, mas ape-
PIAUI | 90
nas em janeiro de 2020 o Instituto de Terras
do Piauí (Interpi) abriu procedimento com
1. Território Tradicional de Melancias de combate daqueles que foram narrados
como ‘’povos hostis’’ contra os povos Tim-
essa finalidade. Este período de omissão foi biras, Acoroá, Guegué, Amanajós, Acoroás,
suficiente para que empresas e indivíduos se Jaicós e Juromenha. Junto do extermínio
utilizassem de títulos viciados para a inser- Nas nascentes do Rio Uruçuí-Preto, impor- co anos⁶, com a intensificação de ameaças deliberado de povos indígenas que ocupa-
ção de imóveis inexistentes ou com frontei- tante afluente do Rio Parnaíba, se localiza contra moradores, violação de direitos terri-
ras alteradas nos cadastros digitais auto de- o território tradicionalmente ocupado de toriais e contaminação das águas. Dentre os
claratórios (SNCI, SIGER e CAR), sobrepondo Melancias¹. É a região Sul do Piauí, onde as estudos realizados recentemente por órgãos
sobre o território reivindicado especialmen- comunidades Melancias (I e II), Brejo das públicos, destaca-se o “Diagnóstico Técnico ¹ Mini-documentário sobre a comunidade disponível
te as áreas de reserva legal dos latifúndios Éguas, Riacho dos Cavalos, Passagem da - Território das Melancias Gilbués-PI”, ela- em:
https://www.youtube.com/watch?v=43gkTmrSgxU
que foram desmatados no planalto das cha- Nega e Sumidouro desenvolveram ao longo borado por antropólogo a serviço do Interpi
padas. do tempo modos de fazer, criar e viver que em 2018, e o Parecer Técnico⁷ elaborado pela ²​ O período da seca vai de abril a outubro, e das chuvas
entre novembro e março.
possibilitaram uma cultura própria, interli- equipe do Ministério Público Federal em
gada aos ciclos do “verão” (seca) e “inverno” 2019, a pedido da Procuradoria da República ³ Com moradias e roças de subsistência nas proximida-
des dos rios e brejos, os espaços das chapadas perdidos
(chuvas) característicos do Cerrado². Elas se da regional do município de Corrente (PI)⁸.​ ao longo das últimas três décadas eram usados para
auto identificam como ribeirinhas e brejei- criação extensiva de gado em pastagens comuns e para
extrativismo.
ras³. As famílias se sustentam com o plantio Como nos demais territórios afetados pela
4 Interpi - Instituto de Terras do Piauí. Diagnóstico Téc-
de cultivos de subsistência, grãos e raízes, do fronteira agrícola do MATOPIBA, no Estado nico - Território das Melancias Gilbués-PI. Comunida-
extrativismo e coleta de frutos e da criação do Piauí também foram construídas narrati- des Tradicionais, Sul do Estado do Piauí: Passagem da
Nega, Sumidor, Brejo das Éguas, Riacho dos Cavalos e
de gado solto nas pastagens naturais. Os ex- vas que são parte e continuidade do projeto Melancias I e II. 2018.
cedentes são comercializados nas feiras das colonial pelo apagamento da presença de
5 Certidões de Nascimento, de óbito, certidões de ba-
cidades da região.​ povos indígenas e comunidades tradicio- tizados, requerimentos a órgãos públicos, fotografias,
nais. A narrativa do vazio demográfico na re- dentre muitos outros.

O território é marcado por extensas chapa- gião entre o Rio São Francisco e o Rio Parnaí-
⁶ Como demonstrado por Rede Social de Justiça e Direi-
das e “baixões”, como são conhecidas as áre- ba foi se inserindo na construção de espaços tos Humanos (2016; 2019) e Carla Morsch (2020).
as de vale, onde são encontradas espécies de memórias sobre os territórios e sujeitos
como o jatobá, o angico, o pau-d’arco, a aro- negros/as e indígenas. ⁷ Parecer Técnico nº 119/2019 - Secretaria de Perícia, Pes-
quisa e Análise da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão
eira, o pequizeiro, etc. Outro elemento que da Procuradoria Geral da República - Populações Indí-
genas e Comunidades Tradicionais, Ministério Público
informa o território tradicional é a presença Desde o final do século XVI traz um con- Federal, 2019.
das águas - é cortado, por toda parte, por pe- junto de ordens e comunicações⁹ da coroa
quenos brejos e riachos⁴. portuguesa para as guerras contra os povos ⁸ Na PRM/MPF-Corrente, tramitam 03 inquéritos civis
públicos que apuram violações de direitos, inclusive
indígenas no Piauí, documentos sesmariais territoriais, de comunidades tradicionais do Cerrado no
A posse tradicional dessas comunidades, e de disposições sobre a organização fundiá- Sul do Piauí, incluindo Melancias.
presente em relatos orais e provas docu- ria do estado. Os documentos trocados entre ⁹ Catálogo de documentos manuscritos avulsos refe-
mentais⁵, tem sido confirmada por estudos o conselho ultramarino e o governo do Piauí rentes à capitania do Piauí existentes no arquivo histó-
rico ultramarino de Lisboa, disponível em: https://actd.
acadêmicos e relatórios técnicos de apoio mencionam diversas ordens para “guerra” ou iict.pt/eserv/actd:CUc016/CU-Piaui.pdf
realizadas especialmente nos últimos cin- “campanhas” justificadas pela necessidade
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A invasão portuguesa e as terras devolu- Bahia¹³. Embora muito poderosos, aparen- piauiense estava na condição de terras pú- http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/
anpuhnacional/S.25/ANPUH.S25.1030.pdf
tas no Sul do Piauí temente não fizeram questão de demarcar blicas devolutas¹⁶, o Estado do Piauí deu iní-
as terras que ocupavam, conforme determi- cio a um processo de demarcação e arreca- ¹³ Mais informações: Laécio Barros Dias. O Sertão
Piauiense em Pé de Guerra: o conflito armado entre
Segundo Luiz Mott, em 1697 “(...) existiam nava a Lei de Terras de 1850. Pelo menos foi o dação de extensas áreas de terras devolutas José Honório Granja e a família Lustosa Nogueira (1922-
no Piauí nada menos do que 129 fazendas caso do Barão do Paraim, mencionado como na região de Cerrado, objetivando a “coloni- 1926). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
-Graduação em História do Brasil do Centro de Ciências
de gado, passando para 400 em 1730 e para antigo proprietário de terras na “Data São zação” da região. Com viés patrimonialista e Humanas e Letras, da Universidade Federal do Piauí.
578 em 1772¹⁰.” Foi o surto da invasão inicial Félix”, origem duvidosa de uma parte dos la- privatista, estas demarcações e registros de Teresina, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpi.
br/xmlui/bitstream/handle/123456789/770/Disserta%-
do território indígena onde hoje se encontra tifúndios sobrepostos ao território tradicio- terras ocorreram ignorando completamente C3%A7%C3%A3o_LA%C3%89CIO%20BARROS.pdf ?-
o território do estado, conduzido especial- nal de Melancias.​ as comunidades que faziam o uso tradicio- sequence=1
mente pelo bandeirante Domingos Mafren- nal destas áreas¹⁷. ​
se e pela Casa da Torre da Bahia – a família Era costume da elite detentora de terras não ¹⁴ Mais informações sobre essa dinâmica: Ligia Osório
Silva. Terras Devolutas e Latifúndio: efeitos da lei de
Guedes de Brito. ​ delimitar ou confirmar os limites de suas Este movimento foi impulsionado pelas fa- 1850. 1ª Ed., 1996, Ed. Unicamp, São Paulo; e Márcia Ma-
concessões para estar em contínua expan- cilidades de acesso que seletos grupos pio- ria Menendes Motta. Nas Fronteiras do Poder: Conflito
e Direito à Terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro,
Revoltas indígenas e reclamações de pos- são em busca dos “pastos bons”, imposta neiros obtiveram junto ao Sistema Nacional Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/Vício de
seiros indicam que essa “conquista” foi len- pela força de milícias particulares, dos títu- de Crédito Rural (SNCR), ao Fundo de Finan- Leitura, 1998.
ta, penosa e, a rigor, segue ainda em curso. los honoríficos, patentes militares e contro- ciamento de Exportação (Finex), à Política ¹⁵ Consta no artigo “Sinopse de Terras Devolutas”, de
Em pleno século XIX, fazendeiros da região le familiar dos cartórios¹⁴. As concessões de de Garantia de Preço Mínimo (PGPM), ao Raimundo Marlon Reis de Freitas, ex-procurador jurí-
de Parnaguá foram atacados por índios Pi- terras que eventualmente possuíam e dei- dico chefe do Interpi: “Conforme levantamento feito
Fundo de Investimento Setorial (Fiset) e ao na Casa Anísio Brito por procuradores do INTERPI, o
menteiras que “colocaram fogo nas casas xaram de herança, ao menos no território de Fundo de Investimento do Nordeste (Finor). Estado do Piauí foi objeto de poucas concessões de ses-
dos moradores da região do rio Mearim”. Melancias, não passaram pelo processo de Foram distribuídos pelo Estado centenas de marias o que atingiria no máximo 10% de seu território
entretanto observa-se que na região norte é predomi-
Antes disso, em 1743, posseiros reclamaram posse. De barões a coronéis, estas terras, no títulos de terras com grandes dimensões nante a existência de pequenas e médias propriedades,
ao Conselho Ultramarino acerca das imen- século XX, permaneceram devolutas, pois para empresas e pessoas físicas, especial- enquanto que nas comarcas da região sul do Piauí pre-
dominam as grandes propriedades, principalmente em
sas sesmarias que foram concedidas pelos não foram destacadas do patrimônio públi- mente oriundas do Estado do Paraná e ou- Bom Jesus, Cristino Castro, Uruçuí, Ribeiro Gonçalves,
governadores da Bahia e Pernambuco a co de forma devida.​ tros estados da região Sul, em um processo Gilbués e Santa Filomena. Nestas comarcas milhares
de hectares foram demarcados e registrados sem que
partir de 1744 e foram limitadas à dimensão no qual foram recorrentes as denúncias de exista nos autos de demarcação qualquer referência
de 1 légua de frente por 3 de lado¹¹, e aque- Alguns herdeiros desta família continuaram favorecimento ilegal e venda de terras por à sesmaria que originou o título de propriedade. Por
presentes na política e disputas de poder na meio de pesquisas já localizamos escrituras com mais
las maiores e mais antigas em sua maioria preços irrisórios.¹⁸ de 100.000,00,00 (cem mil) hectares.” Mais informa-
retornaram para fazenda pública do Piauí região, assim como seguiram ignorando a ções em: Raimundo Marlon Reis de Freitas. Sinopse de
como terras devolutas¹². legislação de terras e de registros públicos, ¹​ ⁰ Luiz R. B. Mott. Piauí Colonial: população, economia e
Terras Devolutas. Interpi, 2006. Disponível em: http://
www.interpi.pi.gov.br/noticia.php?id=6
partilhando “sortes”, “braças” e “mil cruzei- sociedade. Projeto Petrônio Portela, Teresina (PI), 1985.
No século XIX, o Barão do Paraim, Barão de ros de terras” em sucessivos inventários, que ¹¹ Mott, 1985 ¹⁶ Segundo Ariovaldo Umbelino de Souza, haveriam
Santa Filomena e o Marquês de Parnaguá, buscaram dar aparência de legalidade a “da- mais de 9 milhões de hectares de terras devolutas no
Piauí. Mais informações em : Ariovaldo Umbelino de
irmãos que pertenciam à família “Nogueira tas” de terras sobrepostas ao território tra- ¹² Após sua morte e sem deixar herdeiros, as sesmarias
Souza. A política da reforma agrária no Brasil. In: Eva-
de Domingos Mafrense foram doadas à Companhia de
Lustosa” e “Parnaguá”, eram figuras influen- dicional de Melancias, com a conivência ou Jesus. Após a expulsão dos jesuítas, “as fazendas pas- nize Sydow e Maria Luisa Mendonça (Orgs.). Direitos
cumplicidade de oficiais de Cartório de Re- saram para a Real administração, sendo denominadas Humanos no Brasil 2009. Relatório da Rede Social de
tes na política do século XIX, além de de- Fazendas do Fisco ou Fazendas Reais e após a procla- Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social,
tentores de grande rebanho de animais que gistro de Imóveis e mesmo de magistrados.​ mação da Independência, tornaram-se patrimônio do 2009. Disponível em: https://www.social.org.br/dh%20
governo imperial.” Mais informações em: Ana Stela de no%20brasil%202009.pdf
pastavam nos gerais da região de Gilbués,
Negreiros Oliveira e Nívia Paula Dias de Assis. Padres e
Santa Filomena, Parnagua, além de Santa Por outro lado, a partir de 1975, reconhe- Fazendeiros no Piauí Colonial – Século XVIII. ANPUH – ¹⁷ Reydon e Monteiro, 2006.
Rita de Cássia e Formosa do Rio Preto, na cendo que a maioria¹⁵ das terras do Cerrado XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza,
2009. Disponível em: ¹⁸ Reydon e Monteiro, 2006.

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vam ancestralmente o território, em que gena e negra ao território do Sul do Piauí, ve período de garimpo. Atualmente vivem ¹⁹ Maria Rodrigues de Sousa (org.) et. al. Dossiê Espe-
pese a construção de um vazio demográfico desfazendo a imagem de uma escravidão no território 53 famílias ²³: “Melancias é qua- rança Garcia: símbolo da resistência na luta pelo direito.
Teresina: EDUFPI, 2017.
que apaga a presença tradicional, também branda relacionada às atividades de agro- se tudo uma mesma família, com os que são
chama atenção nos documentos o desloca- pecuária e a desrracialização da imagem do casados com gente da nossa família. Nós so- ²º Segundo o dossiê, os dados das fazendas em 1774
apresentam “o quanto a escravidão estava disseminada
mento de povos indígenas para o Maranhão vaqueiro, cabe também destacar as agências mos ribeirinhos brejeiros. O rio aqui acom- naquelas fazendas agropastoris, públicas e privadas da
e o Pará, bem como a ‘’entrega” de crianças por liberdade constituídas por experiências panha o brejo” (Juarez Celestino, morador da época. Entranhanda em todo o tecido social, a escravi-
dão se perpetuava enquanto instituição legitimadora
indígenas para famílias do Piauí.​ de reivindicação por melhores condições de comunidade Melancias). do status social e como elemento potencializador dos
ganhos materiaisos seus senhores, uma vez que era no
vida e deslocamentos. ​ labor diário com o gado que estes escravos estavam, na
Parte das cartas trocadas são de Oeiras e Inviabilizando os modos de viver e conviver sua grande maioria, envolvidos (Sousa, 2017, p. 48).
Campo Maior, cidade palco da disputa Ba- Explicaram os moradores de Passagem da com o Cerrado por estes povos na região, ²¹ Como adiantado, a tese de uma suposta ausência da
talha do Jenipapo, disputa central para a Nega que esta nomenclatura transmitida destaca-se a presença de empresas, grileiros mão-de-obra escravizada no desenvolvimento da ativi-
dade pecuária, apesar de já suplantada pela revisão his-
independência protagonizada no território oralmente advém de narrativas sobre ho- e atividades que, sistemática e amplamente, toriográfica recente, ainda ecoa sobre a interpretação
contra tropas portuguesas, em 1822. O even- mens e mulheres negros/as que saiam de promovem desmatamento, cercamentos, da ocupação e formação socioterritorial do sertão nor-
destino. Particularmente, quanto à realidade piauien-
to, quase desconhecido, apaga a agência da- fazendas próximas ou mesmo cruzando o violências, poluição das águas por agrotó- se esta narrativa se refletiu na construção de um mito
queles povos que reposicionam a narrativa que é hoje a divisa entre os Estados da Bahia xicos e demais resíduos carregados para os localmente reverenciado como marca distintiva do
regime escravista no atual território do Piauí, a carac-
de que o povo brasileiro assistiu aos eventos e do Piauí, fixando residência nas margens rios da região. Como apresentado por Rey- terização de uma escravidão branda, reforçando-se as
narrativas paternalistas na relação senhor e escraviza-
da independência. Outro episódio que me- do Rio Uruçuí-Preto. Nesse período, a mata don e Monteiro: do, em síntese: que as fazendas de gado constituíam o
rece destaque ao interditar a narrativa de ainda fechada, próximo aos brejos e vere- lugar de certa liberdade de africanos, negros, mestiços e
indígenas no período colonial. Ver: Rodrigo Portela Go-
que a escravidão na região deu-se de forma das, servia como local perfeito para morar Na década de 1970, houve um processo de mes. Constitucionalismo e Quilombos: famílias negras
branda, é a carta de Esperança Garcia ¹⁹ mu- e não ser visto com tanta facilidade. Tais cir- ocupação de terras, nesses municípios, por no enfrentamento ao racismo de Estado. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2019.
lher negra, que, na condição de escravizada cunstâncias podem ter ocorrido num perío- meio dos incentivos do governo federal para
redige em 1770 documento reconhecido do pós-abolição, onde foi muito comum que a produção de caju, que não resultou em pro- ²² Interpi, 2018, p. 17

pela Comissão da Verdade da Escravidão negros e negras recém libertos migrassem dução efetiva, mas apenas em ocupação es- ²³ Interpi, 2018
Negra no Brasil - Piauí como uma petição de suas fazendas de origem para outras fa- peculativa. Na década de 1990, com a soja já ²⁴ Bastiaan Philip Reydon e Maria do Socorro Lira Mon-
também a coloca no lugar temporal de pri- zendas locais, buscando ficar perto de espo- consolidada no cerrado dos estados vizinhos teiro. A ocupação do Cerrado Piauiense: um processo de
valorização fundiária. In: Brasil - Ministério do Desen-
meira advogada negra, ao expor as condi- sas, filhos e parentes que foram separados – Maranhão e Bahia –, o sudoeste do Piauí volvimento Agrário (MDA). Núcleo de Estudos Agrários
ções precárias vividas e requerer direitos ²º.​ pela escravidão ou mesmo buscando me- transformou-se na nova fronteira da soja, re- e Desenvolvimento Rural. Mercados de terras no Brasil:
estrutura e dinâmica / Bastiaan Philip Reydon e Fran-
lhores condições de vida²². valorizando aquelas propriedades ocupadas cisca Neide Maemura Cornélio (organizadores). Vários
Seja para encobrir, silenciar ou relativizar as Os mais “antigos” moradores de Melancias no ciclo anterior e criando uma nova onda de autores. Brasília: NEAD, 2006. p. 96

repercussões no presente, essas narrativas datam a ocupação do território pelos últi- ocupações de terras devolutas²⁴.
promovem tensões que chegam à concre- mos anos do século XIX e primeiros anos
tude e atravessam do passado ao presente do século XX. Foi resultado da chegada e
quando observamos a organização territo- permanência de alguns núcleos familiares
rial e a experiência de sujeitos e territórios e possui três momentos marcantes: fuga,
racializados, nos conflitos existentes na esconderijo e lar de negros escravizados, mi-
região²¹. Na linha de reposicionar uma nar- gração de sertanejos durante a seca de 1932
rativa sobre vazio trazendo a presença indí- e migração de pessoas por conta de um bre-
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Ao longo dos últimos vinte anos essas co- A partir dos anos 2000, o desmatamento é
munidades, assim como as vizinhas de Salto impulsionado por empresas do agronegócio ²⁵ Reydon e Monteiro, 2006, p. 103.
(brejeira) e Morro D’água (Akroá-Gamela), nacional e internacional, a exemplo dos gi- ²⁶ Os migrantes chegam a Uruçuí a partir de 1988 e ad-
vêm perdendo acesso às áreas das chapadas, gantes SLC Agrícola e Radar S/A²⁷, e também quirem terras de particulares, inclusive a Fazenda Itália
e a Cotrirosa compram terras de antigos proprietários
onde realizavam extrativismos e a criação de o fundo patrimonial dos professores norte- de projetos financiados pelo Finor-Agropecuário, o que
gado de forma extensiva, em certas épocas -americanos da Harvard Management Com- deixa claro que os novos arranjos institucionais, dife-
rentemente das décadas de 1970 e 1980, são decisivos
do ano. Desse modo, se cria um panora- pany (HMC), que passaram a vislumbrar na para dinamizar o mercado de terras e efetivar uma ocu-
pação produtiva nos moldes empresariais modernos
ma de concessões de terras públicas que região com terras outrora desvalorizadas (Reydon e Monteiro, 2006, p. 111).
se transformaram com o tempo em ativos, a oportunidade de ganhos com “abertura”
²⁷ Mais informações no relatório “INCRA e Poder Judi-
favorecendo a especulação e a grilagem, de e instalação de fazendas para produção de ciário reconhecem fraudes na aquisição de terras no
modo que: soja e com a especulação imobiliária²⁸. Brasil por fundos de pensão de TIAA-CREF/ COSAN
e Universidade de Harvard” (2020), da AATR, Grain e
Rede Social de Justiça de Direitos Humanos. Disponível
A aquisição de terra, no Estado do Piauí, his- O desmatamento acelerado do Cerrado das em: https://www.social.org.br/files/pdf/Land_grab-
bing_in_Brazil_PT.pdf
toricamente representou importante forma chapadas para instalação de fazendas, fize-
de aplicação de riqueza de diferentes agentes ram com que atualmente as comunidades ²⁸ Mais informações nos relatórios: Rede Social de Jus-
tiça e Direitos Humanos. Imobiliárias agrícolas trans-
econômicos, pois o processo desenvolve-se, do território Melancias reivindicassem ape- nacionais e a especulação com terras na região do MA-
TOPIBA. São Paulo: Editora Outras Expressões, 2018.
sempre, de acordo com os interesses dos gran- nas a parte do território tradicionalmente Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Especulação
des proprietários, e, por conseguinte, de forma ocupado correspondente às áreas dos bai- com terras na região MATOPIBA e impactos socioam-
bientais. São Paulo: Editora Outras Expressões, 2020.
extremamente descoordenada. A diferença é xões, com 22.583 hectares (ha), na margem Disponíveis em: https://www.social.org.br/revistas/re-
que, antes de 1970, a apropriação de grandes esquerda e direita do Rio Uruçuí Preto. ​ vistas-portugues
extensões de terra dá-se em decorrência das
atividades extrativa e pecuária, e após 1970, O território é circundado, na margem es-
são o Finor-Agropecuário, o Fiset e as facilida- querda do rio, pela Serra das Guaribas e Ser-
des concedidas pelo governo estadual que es- ra Grande; e na margem direita pela Chapa-
timulam sua aquisição²⁵. da do Riachão e Serra do Quilombo, como se
nota no Mapa 01 “Território Tradicional de
No final dos anos 80²⁶, com a chegada de Melancias” a seguir. Mais adiante, veremos
grileiros de outras regiões, se tornaram co- como estas chapadas foram alvo de intenso
muns os cercamentos e o desmatamento do e acelerado processo de grilagem seguido
Cerrado para especulação e/ou conversão de desmatamento da quase totalidade da
de áreas para produção de grãos e outros vegetação nativa.
monocultivos. Houve resistência das famí-
lias que vivem ali, porém, foram constantes
nesse período o uso de ameaças, agressões,
queima de casas, processos de criminaliza-
ção e reintegrações de posse.
MAPA 01 94
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O território está no limite entre os municí- agrícolas. As imobiliárias agrícolas transna-
pios de Bom Jesus, Santa Filomena, Gilbués, cionais geralmente não atuam diretamente
Baixa Grande do Ribeiro e Monte Alegre do na grilagem, mas a inflação do ativo terra e
Piauí. Embora abundante em águas, atu- a promessa de alta dos preços futuros mo-
almente as comunidades do Território de vem a percepção de que tais empresas irão
Melancias sofrem com a contaminação das demandar mais terras, o que estimula as ex-
águas por agrotóxicos e afirmam ter havido propriações²⁹.​
diminuição de 50% do fluxo do Rio Uruçuí-
-Preto, fato que atribuem ao desmatamento, O impacto da atividade compromete a saú-
que resultou em erosão e assoreamento do de das populações, compromete e interfere
leito do rio e seus tributários – a exemplo do na fauna e flora da região, afetando a dispo-
Riacho dos Cavalos e Riachão. ​ nibilidade alimentar para consumo próprio
e comercialização, como no depoimento a
As empresas instalam as lavouras no alto seguir:
das chapadas e, com as chuvas ou demais
processos antrópicos, as águas escorrem Hoje a gente pode dizer que não está pescan-
para os baixões, chegando aos rios. Nas épo- do, os peixes se acabaram. Depois que nós
cas das chuvas, o uso do rio provoca alergia estamos aqui cercados por agrotóxicos, aí a
nas pessoas. O uso excessivo de agrotóxicos pesca acabou. Não é porque a nossa cultura
nas fazendas também trouxe pragas para a de pescar acabou ou acabou a necessidade,
lavoura das comunidades, bem como a ex- acabou foi o peixe ³⁰ (Morador da comunidade,
tinção de aves que ao comer a soja, morrem em depoimento ao Interpi).
por envenenamento.
Existem registros ainda relacionados ao “fe-
As áreas planas dos baixões também têm chamento ou precarização das escolas ru-
sido griladas para a produção industrial e rais e outros serviços públicos, ameaças de
intensiva de gado e para a produção de soja morte, obstrução de estradas, queimadas de
irrigada com pivôs centrais. Nossa pesqui- lavouras, destruição criminosa de moradias ²⁹ Rede Social de Justiça de Direitos Humanos. Imobiliárias
agrícolas transnacionais e a especulação com terras na re-
sa de campo registrou casos recentes, por e violência de gênero.”³¹ Mais recentemen- gião do MATOPIBA. São Paulo: Editora Outras Expressões,
exemplo, em Santa Filomena, na Chapa- te, com a possibilidade aberta pelo Código 2018.
da Até Que Enfim, onde as comunidades Florestal (Lei nº 12651/2012), que autoriza a ³⁰ Interpi, 2018
dos baixões tiveram suas terras cercadas declaração de Reserva Legal ambiental fora
³¹ Carla Morsch Porto Gomes. A formação de um novo mer-
e expropriadas por jagunços funcionários da área do imóvel rural correspondente, as cado global de terras no Brasil: land grabbing e “última fron-
das empresas de soja. A prática do “abraço” comunidades passaram a ser afetadas tam- teira agrícola” – MATOPIBA. Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em Ciências
continua a ser utilizada por grileiros locais, bém pelo fenômeno da grilagem verde, Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, 2020.
empresas do agronegócio e imobiliárias como veremos em tópico específico.
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2. “É muito dono”! De onde vieram esses latifúndios?

As fazendas estão nos encurralando. Os fa- corporações do agronegócio.​


zendeiros pegaram os baixões e nós ficamos
encurralados na beira do rio. E mesmo nessas O principal método deste grupo pioneiro foi
áreas que a gente tá, hoje tem gente que diz a manipulação de antigos inventários e for-
que é dono. É muita fazenda. É muito dono! mais de partilha³⁵, mas ele também operou
Tem as fazendas de Passaginha, Roda de Fer- por meio da aquisição de títulos junto ao In-
rovia, Riachão, Serra Alta, Santo Isidório, Al- terpi, a preços irrisórios e com fortes indícios
vorada, Galileia, Celeiro, São Pedro e Cosmo, de irregularidades. ​
que está arrendando para o Grupo Produzir. O
Riachão, que é afluente do Rio Uruçuí Preto, foi Em 2012, Simone De Carli, filha de Euclides,
cercado pela Alvorada. Outros afluentes, como e o próprio Interpi foram alvo de ação civil
Riacho dos Cavalos, que a Alvorada diz que é a pública³⁶ movida pelo Ministério Público do
dona, já cercaram também³² (Juraci Celestino, Piauí, por meio do Grupo Especial de Regula-
morador de Melancias). rização Fundiária e de Combate à Grilagem
(Gercog), que apontou ilegalidades na aqui-
O crescente interesse na aquisição de terras
pelos maiores grupos do agronegócio no
país, além de fundos e capitais estrangeiros,
atuando em parceria ou de forma coorde-
nada, fomentou uma intensa onda de grila-
gem nesta região próxima às nascentes do
Rio Parnaíba, na divisa entre o Maranhão e
o Piauí³³.

Um dos maiores e mais conhecidos esque-


³² Ministério Público Federal, 2019.
mas de grilagem de terras nas chapadas do
alto Parnaíba foi liderado por Euclides de ³³ Fazem parte também deste conjunto de chapadas as
que estão localizadas no município de Campos Lindos
Carli, um empresário de São José do Rio Pre- (TO).
to (SP) que desde os anos 80 iniciou suas in- ³⁴ Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2018 e
vestidas na região, partindo de Balsas (MA) 2020.
em direção a Bom Jesus (PI), Santa Filome- ³⁵ Ver quadro “Inventando nos Inventários”, no estudo
Apropriação dos “baixões” do território de Melancias por empresas do agronegócio.
na (PI) e outros municípios do Piauí³⁴. Estas de caso do Oeste da Bahia.
Créditos: Debora Assumpção
terras foram em grande parte vendidas para
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sição da Fazenda Ludmila (2.300 ha) em a Fazenda Cosmos, controlada por Ricardo Ao norte dela, no vale do Rio Riachão, ao tensamente particulares cadastrados no
2010³⁷. No Piauí, a forte presença de atores Tombini, Lucina Tombini Dorneles e Edu- meio encontra-se a Serra do Quilombo, Sistema Nacional de Certificação de Imóveis
institucionais privados são os fundos, que, ardo Dall’Magro, atualmente com preten- onde o Interpi demarcou e arrecadou terras (SNCI), entre 2009 e 2013, totalizando 9.978
segundo Gomes, têm origem e protagonis- sos 30.497 ha, e a Fazenda Cerro Azul, com registradas como Gleba fronteira e Caatin- ha; e 23 sobreposições de imóveis cadastra-
mo no mercado financeiro e atuam tendo: 16.446 ha, registrada em nome da Galileia gueiro, o que não foi suficiente para evitar dos no sistema Sistema de Gestão Fundiária
Agroindustrial Ltda., subsidiária da Insolo novas grilagens nesta área, a exemplo da (Sigef) entre 2014 e 2020, totalizando uma
A terra como ativo multiuso aparece de for- Agroindustrial S/A, controlada pelo fundo que foi - e está sendo - operada pela empre- área de 9.945 ha. Considerando os dois ca-
ma muito visível nesses casos, pois, embora HMC/Harvard. Mais ao sul, nesta chapada, sa Bom Jardim Empreendimentos Rurais (e dastros, são 19.923 hectares sobrepostos,
o principal sejam os papéis que circulam nas está demarcada e registrada desde 1987 a grupo associado). correspondendo a 87% do território reivin-
bolsas de valores, há grande interesse no con- gleba pública “Serra das Guaribas e do Ouro”, dicado.
trole e na especulação das coisas essenciais à com área remanescente de 8.500 ha. Como No vale, entre uma chapada e outra, estão
manutenção da vida, como as terras, águas, veremos, à exceção da gleba pública, a atu- localizadas na proximidade das nascentes
alimentos, minérios e energia. Esse domínio al configuração destes imóveis é resultado do Rio Uruçuí-Preto as fazendas Passagi-
territorial e de recursos naturais em tempos de ou de registros ilegais e/ou da ampliação nha, reivindicadas por Celso Constantino
crises econômicas e ambientais possivelmen- da área original de outros títulos duvidosos de Aguiar e Silva, com alegada origem na
te poderá conferir a esses atores um poder do concedidos pela Companhia de Desenvolvi- “Data São Félix”, demarcada no início dos
monopólio como nunca antes se teve oportu- mento do Piauí (Comdepi). anos 1950 sem observância dos parâmetros
nidade³⁸. mínimos para este tipo de procedimento.
Esses pretensos imóveis estão localizados
O Gercog/MPE desde então ingressou com na margem do rio e foram desmembrados
diversas ações judiciais anulatórias de ma- em outros menores, a exemplo da Fazenda
trícula relacionadas aos imóveis deste gru- Paraíba, vendida para Francisco das Chagas
po e outros grupos junto à Vara Agrária da Na Chapada do Riachão, à margem direita Dias Rosal Júnior, irmão do atual prefeito de ³⁶ Ação Civil Pública inibitória c/c Antecipação de Tutela
Comarca de Bom Jesus-PI³⁹. Em apenas um do rio, a apropriação ilegal de terras públicas Monte Alegre do Piauí (PI). Em 07 de maio (Proc. nº 0000651.11.2012.8.18.0042) proposta pelo Mi-
devolutas se deu a partir do registro irregu- nistério Público Estadual contra o Estado do Piauí e o
dos processos, envolvendo Euclides de Carli de 2020, ele adentrou com duas retroesca- Interpi, que vinha realizando arrecadações sumárias e
e associados, foram identificadas fraudes lar dos pretensos imóveis rurais Fazenda vadeiras desmatando a área para formação titulações de terras de modo precário e com indícios de
favorecimento pessoal.
na aquisição e registro de 20 imóveis rurais Alvorada e Riachão controladas pelos agro- de pasto, mas foi interrompido após denún-
que alcançaram 124.491 mil ha, resultando negociantes Darci, Janailton e Leivandro cia das comunidades para a SEMAR. ³⁷ Mais informações em: AATR, GRAIN e Rede Social de
no bloqueio de todas as matrículas vincula- Fritzen (irmãos Fritzen), e Serra Alta, de Os- Justiça e Direitos Humanos, 2020.

das⁴⁰. O maior destes imóveis, com 48.000 mar Conrad, além de Faz. Riachão, da Agro- Outros imóveis com essa origem na “Data ³⁸ Gomes, 2020.
ha, estava localizado na Serra das Guaribas, pecuária Ferreira LTDA, Faz. Riacho dos Ca- São Felix” são as fazendas Katarina, Setem-
próxima ao território tradicional, e foi regis- valos, de Fernando Biachini, dentre outras. brino, Valentina, São Miguel e Agro Saggin, ³⁹ Após 2018, com mudanças na equipe do MPE/Gercog
e titularidade da Vara Agrária, o ritmo de ações com
trado no Cartório Único de Santa Filomena A controversa “Data Riachão” (ver tópico controladas por Carlos Rone Saggin. Pelo esse objetivo diminuíram significativamente nesta re-
(PI).​ seguinte) é a origem apontada dos imóveis levantamento realizado com base em da-
gião.

que formam esse conjunto de fazendas des- dos do Instituto Nacional de Colonização ⁴⁰ Bloqueio efetuado por decisão do magistrado da
ta chapada. Vara Agrária da Comarca de Bom Jesus em 05/07/2016,
Nesta mesma serra, margem esquerda do e Reforma Agrária (Incra), há sobreposição mantida por decisão do Tribunal de Justiça do Piauí em
Rio Uruçuí-Preto, está localizada também ao território reivindicado de 11 imóveis pre- 30/01/2018.
MAPA 02 98
PIAUI | 99

3. Glebas, datas e demarcações de terras no alto Rio Uruçuí-Preto

No Piauí, a atuação do órgão fundiário es-


tadual de terras na identificação e delimita-
ção das terras devolutas, desde meados dos
anos 70, é o principal fator que o diferencia
da dinâmica de grilagem, por exemplo, da PASSO A PASSO TRANSFORMADA EM
BRECHA PARA
região Oeste da Bahia. A destinação das ter-
ras, no entanto, nem sempre observou cri-
DE UMA DEMARCAÇÃO JUDICIAL A GRILAGEM
térios constitucionais e de transparência na
gestão do patrimônio público⁴¹. Um exem-
plo é a Gleba Serra Grande, com a superlati-
va dimensão de 756.000 hectares.​ SÍNTESE (AUSÊNCIA DE)
ORIGEM DA “DATA”
O Poder Judiciário, no início dos anos 50, As “datas” “São Felix” e “Riachão”
também teve um papel determinante para são a origem alegada de pretensos
imóveis rurais Embora o nome “data” sugira que tenha sido
atribuir aparência de legalidade aos títulos
originária numa sesmaria, no tempo da colônia,
de terras atualmente ocupados por empre- sobrepostos ou de terras arrecadadas pelo Estado do Piauí,
sas do agronegócio sobre a área do território estas duas glebas (cada uma com 43.000
tradicional, como observamos nos casos das ao território reivindicado de hectares) não possuem origem legal legal, ou
Datas “São Félix” e “Riachão”. Na análise do- Melancias (“baixão”) e chapada do seja, com destaque do patrimônio público.
cumental é possível identificar as principais Riachão (na margem direita do rio Estas demarcações, realizadas no mesmo
datas e glebas apontadas como origem das Uruçuí-Preto) – a exemplo do conjunto período, foram resultado de demarcação
terras atualmente nas chapadas e vales do Riachão, dos irmãos Fritzen, e da faz. judicial conduzida e sentenciada em 1953 pelo
Paineira, da SLC Agrícola. Juiz José Plácido Bessa, sem observar critérios
alto Uruçuí-Preto.
básicos para este tipo de procedimento.

É um caso típico
de como um instrumento legal para resolução de conflitos fundiários foi
utilizado para criar propriedades inexistentes por meio do arrolamento posterior de
pretensos imóveis rurais em ações de inventário e formais de partilha.
A ação de demarcação judicial é adequada para reavivar antigos marcos, solucionar
pacificamente a sobreposição ou indefinição de limites entre imóveis rurais.
⁴¹ Em 1998, essas e outras concessões foram objeto de
investigação na Assembleia Legislativa pela Comissão
Parlamentar de Inquérito dos conflitos agrários e da
análise jurídica das alienações das terras públicas pa-
trimoniais.
100

O PASSO 01
Alegar con�lito de limites de imóveis
dentro de em uma determinada“data”
“data”
e ingressar com ação de demarcação no
P poder judiciário “DATA GRILO”
Vamos imaginar, hipoteticamente, que cinco indivíduos
alegam ter uma “posse de terras em comum” com

A outros herdeiros da “Data” de terras chamada “Grilo”.


Informam que estas terras foram concedidas por sesmaria
ao antigo “barão” ou “coronel” da região e que, com o tempo,
após sucessivos inventários e heranças as partes de terras da
“Data Grilo” estão sem divisão entre elas, exigindo a ação de

S demarcação judicial para reavivar os limites e


resolução de con�litos surgidos com o tempo. Mas
não apresentam o título de concessão que seria a origem do
direito sobre as terras. Os cinco alegam ser vizinhos entre si,

S apresentando declarações mútuas de que são


confrontantes.

O PASSO 02
Demarcar toda a área da suposta “data”
Embora os cinco aleguem ocupar, por exemplo, apenas
1.000 hectares, afirmam que o total da gleba é de 10.000
hectares, ocupadas por desconhecidos, e requerem a
demarcação de toda a área – o que é aceito pelo
juiz. No entanto, apenas cinco indivíduos se

A manifestam (concordando entre si) durante todo o


processo, mesmo após publicação de edital.
101
PASSO 03
P Registro das áreas conhecidas “DATA GRILO”
S
Os cinco indivíduos demarcam seus pretensos imóveis dentro da I E T ÁRIO S
A área de 1.000 hectares que alegam ocupar - com 200 delas para cada um.
Os 9.000 hectares restantes são declarados como de posse e
PR
PRO ONHECI
DES
C
DO
E
proprietários desconhecidos dentro da “Data Grilo”, que jamais
existiu, mas agora possui uma delimitação promovida judicialmente.

S A E D
B D
C
PASSO 04 C

S Aproveitamento da área restante para novos grilos A


B
Os parentes destes cinco indivíduos passam então a listar dezenas de
imóveis rurais com suposta origem na “Data Grilo” em novas e antigas

O ações de inventário para divisão de “partes ideais” de heranças, e sua


demarcação como origem lícita dos seus imóveis rurais. Sem delimitação,
estas terras eram medidas em “braças”, ou em “mil réis” e, da mesma
forma, não havia delimitação de tais “quinhões” de herança. Tempos
depois, estas terras eram então vendidas pelos herdeiros para terceiros,
(...) na propositura da ação de demarcação e divisão de terras deveria
que promoviam o georreferenciamento arbitrário deste “quinhões”. No constar o título de propriedade com origem em sesmaria, o que
caso da “Data Grilo”, por exemplo, poderia ser registrados 50 imóveis infelizmente não observado nos processos judiciais que geralmente se
indicando que fazem parte da área remanescente de 9.000 hectares – prenderam tão-somente a demonstração da qualidade de posseiro. É
porém a soma deles ultrapassa 30 mil hectares quando somados. exatamente na Ação de Demarcação e Divisão de Terras Particulares
que o juiz e o promotor deveriam ter averiguado a legalidade do
título ofertado como documento de propriedade dentro da respectiva
área em divisão, o qual deveria ser proveniente de uma sesmaria e
AS CONSEQUÊNCIAS somado às áreas de todos os condôminos não poderiam ultrapassar a
área de uma sesmaria. Assim as sesmarias foram divididas em
Datas, Glebas e Quinhões, porém a origem do título é a
As “datas” “São Félix” e “Riachão” foram forjadas com roteiro fonte que forma uma cadeia dominial sucessória¹.
semelhante, com imensos prejuízos para as famílias do território
tradicional de Melancias. Mas as ações de demarcação deste tipo
foram generalizadas na região do Cerrado piauiense, segundo informa
um ex-procurador jurídico do Interpi, o órgão de terras estadual.

1. Mais informações em: Raimundo Marlon Reis de Freitas. Sinopse de Terras Devolutas.
Interpi, 2006. Disponível em: http://www.interpi.pi.gov.br/noticia.php?id=69
PIAUI | 102

3.1 Data São Félix estes títulos indicavam terras medidas em


“braças”, ou em “mil réis” e, da mesma forma,
Rio Uruçuí-Preto e na margem direita, até
encontrar imóveis com origem na “Data Ria-
a fazenda Paineira, que “foi arrendada para
os próximos anos e possui 12.892 hectares
não havia delimitação de tais “quinhões” de chão”. de área total, sendo toda ela própria”⁴³ (grifo
herança. nosso). Para que esses registros fossem efe-
As terras demarcadas por esta “data” se ini- tuados no Cartório de Registro de Imóveis
ciam nas proximidades das nascentes do Alípio Murici, que seria eleito vereador em (CRI), transformando supostas posses em
Uruçuí-Preto e se sobrepõem ao território Gilbués no ano de 1951, pela União Demo- propriedade, bastou a muitos desses reque-
tradicional do vale, especialmente Sumi- crática Nacional (UDN), neste mesmo ano 3.2 Data Riachão rentes apenas indicar genericamente que
douro e Passagem da Nega. Embora o nome ingressou com ação de demarcação da “Data tal “parte” de terras estariam localizadas na
“data” sugira que tenha sido originária numa São Felix”. Apenas ele e mais seis supostos “Data Riachão”, e de pronto lhe era atribuída
sesmaria, no tempo da colônia, ou de terras herdeiros ou adquirentes se manifesta- A origem e a dimensão da Data Riachão é se- uma origem válida.
arrecadadas pelo Estado do Piauí, esta gleba ram na ação que envolvia uma área total melhante à “Data São Félix”, com a qual su-
de 43 mil hectares não possui origem regu- de 43.000 ha, supostamente a totalidade postamente faz divisa, totalizando também
lar com destaque do patrimônio público, da gleba. Conseguiram a demarcação de 43 mil ha. Foi julgada por sentença do mes-
tendo sido resultado de uma ação de de- registro de 6.973 ha, sendo 36.277 ha indi- mo Juiz José Plácido Bessa, em 10/09/1953,
marcação judicial conduzida e sentenciada cados como de “terceiros ou ausentes” que por requerimento dos supostos herdeiros
nos anos 1950 pelo Juiz José Plácido Bessa, não se manifestaram. Ainda assim, o juiz Pedro Damasceno Nogueira e Francisco
sem que sequer tenha sido citado o Estado homologou a demarcação de toda a gleba, Leopoldo Lustosa. Também não foram in- ⁴²​No mesmo artigo mencionado em nota acima, o ex-
do Piauí. Indica uma antiga sesmaria com cujo maiores interessados estavam ausentes timados os posseiros e o Estado do Piauí,
-procurador jurídico chefe do órgão fundiário reafirma
esse entendimento: “(...) a sesmaria que era dada a uma
este mesmo nome que teria pertencido ao do processo - os reais posseiros das comu- tampouco apresentou o título da sesmaria pessoa foi dividida em várias frações de terras, e dessa
Barão de Piraim (1813-1888), mas não consta nidades de Melancias e o Estado do Piauí, ou concessão originária, não havendo, por-
divisão nasceu o condomínio. Com um elevado núme-
ro de proprietários dentro de um condomínio veio as
nenhum documento comprobatório no pro- titular formal do domínio. Oficializou-se a tanto, a comprovação do destaque do patri- Ações de Demarcação e Divisão das Terras Particulares
cesso de demarcação. grilagem, mas a sentença não transformou mônio público.​
para individualizar seus pedaços. Forçoso é enfatizar
que na propositura da ação de demarcação e divisão
as terras em patrimônio privado tendo em de terras deveria constar o título de propriedade com
Alegando ser possuidor em comum com ou- vista que ela não se configura como desta- A Data Riachão, portanto, foi utilizada para
origem em sesmaria, o que infelizmente não observado
nos processos judiciais que geralmente se prenderam
tros herdeiros, a partir de 1944 o senhor Alí- que do patrimônio público, sendo possível grilagens realizadas tanto nas áreas dos
tão-somente a demonstração da qualidade de possei-
ro. É exatamente na Ação de Demarcação e Divisão de
pio Carvalho Murici, natural de Balsas (MA), concluir que permanecem sem origem le- “baixões” quanto acima da chapada da mar- Terras Particulares que o juiz e o promotor deveriam
começa a adquirir por meio de escrituras de gal.⁴²​ gem direita do rio. Indicam origem nesta
ter averiguado a legalidade do título ofertado como
documento de propriedade dentro da respectiva área
compra e venda diversos “quinhões” de he- data também a “Faz. Riachão” (mat. 579), em divisão, o qual deveria ser proveniente de uma ses-
rança de supostos “condôminos” da fazenda Dentre os imóveis rurais que possuem ale- da Agropecuária Ferreira, e da Faz. Santo
maria e somado às áreas de todos os condôminos não
poderiam ultrapassar a área de uma sesmaria. Assim
“São Félix”, a exemplo de Areolino Mascare- gada origem na “Data São Felix” em seus re- Antônio, que foi adquirida pela gigante do as sesmarias foram divididas em Datas, Glebas e Qui-
nhas Lustosa, Maria Ignez Alencar Lustosa, gistros estão a Faz. Passaginha (I e II); Faz. agronegócio SLC Agrícola (mat. 2503). As
nhões, porém a origem do título é a fonte que forma
uma cadeia dominial sucessória.” Mais informações
Antonina Lustosa e Brito, dentre outros, ale- Paraíba; Faz. Agro Saggin; Faz. Katarina; nascentes do Rio Riachão e chapada acima, em: Raimundo Marlon Reis de Freitas. Sinopse de Terras
Devolutas. Interpi, 2006. Disponível em: http://www.in-
gando que os sucessivos inventários no de- Faz. São Miguel; Faz. Valentina; Faz. Vale que integram esta data, são também reivin- terpi.pi.gov.br/noticia.php?id=69
correr do tempo dificultavam a definição de das Veredas, dentre outras. Elas estão lo- dicadas pelo grupo SLC, compondo, junto 43
Com informações do site da empresa:
limites. Sem definição de dimensão precisa, calizadas nas proximidades da nascente do com área onde ele deságua no Uruçuí-Preto, https://www.slcagricola.com.br/nossas-fazendas/fa-
zenda-paineira/
PIAUI | 103
das cláusulas dispostas na referida Resolu- ⁴⁴ É o Governo do Estado do Piauí autorizado a alienar

3.3 Gleba Serra Grande ção, não há como reconhecer valor jurídico 3.4 Gleba Serra das à Companhia de Desenvolvimento do Piauí - Comdepi,
sociedade de economia mista do Governo do Estado,
à escritura pública de compra e venda”⁴⁵ criada pela Lei nº 3.118, de 29 de novembro de 1971, cin-

com origem nestes títulos (ver Infográfico 1).​ Guaribas e Ouro co áreas de terras públicas, sendo uma localizada na
região nordeste, uma na região centro e as demais na
região sul do Estado, com 166.550 ha (cento e sessenta
O Estado do Piauí demarcou 756.100 hec-
Segundo o próprio Interpi, foram distribuí-
(8.500) e seis mil e quinhentos e cinco hectares), 1.200.000 ha
(um milhão e duzentos mil hectares) e 1.057.671 ha (um
tares de terras nesta gleba no ano de 1975. milhão e cinqüenta e sete mil e seiscentos e setenta e
Embora a delimitação seja imprecisa na dos títulos de terras de grandes dimensões um hectares), respectivamente, descritas e caracteri-

certidão analisada, ela parte da nascente do para “94 famílias de brasileiros vindos do zadas de acordo com a Lei Estadual nº 3.271, de 14 de
dezembro de 1973.
Riozinho, na Serra das Guaribas, e alcança- Paraná”. Algumas destas concessões ultra- Em 1987 foi finalizada a Ação discriminató-
ria os limites do município de Uruçuí (PI), a passam os 24 mil hectares, vendidas a pre- ria - Serra das Guaribas, na chapada de mes- ⁴⁵Ação judicial relacionada à aquisições feitas pela em-
presa Agropecuária Mundo Novo S/A registradas no CRI
quase uma centena de quilômetros dali. ​ ços ínfimos⁴⁶. Deste total de 756.100 hecta- mo nome que fica na margem esquerda do do município de Alvorada do Gurguéia (PI).
res, 135.000 hectares foram doados para a rio. Em uma dessas ações o Interpi arrecadou
⁴⁶ Raydon e Monteiro, 2006.
O Governo do Piauí ingressou com pedido União, para a criação da Estação Ecológica 8.500 hectares de terras da atual Gleba Pú-
de autorização no Senado Federal para ven- Uruçuí-Una. É também a origem de parte blica com o mesmo nome (ver mapa). ⁴⁷ Mais informações: Patrícia da Silva. Regularização
der terras num total de 2.424.221 hectares, dos títulos adquiridos pela Cosmos Agrope- ambiental e apropriação verde na estação Ecológica
Uruçuí-Una. Dissertação de Mestrado apresentada
aprovado com a expedição da Resolução nº cuária Ltda, como veremos melhor adiante. ao Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e
Desenvolvimento Rural da Faculdade UnB Planaltina.
36/1975⁴⁴. No entanto, havia algumas con- Brasília (DF), 2020.
dições, dentre elas que fosse regularizada Nesta gleba se localiza ainda a fazenda Cer-
ro Azul, da Insolo Galileia Agroindustrial/
a “situação do posseiros (sic) nos terrenos
Insolo/HMC/Harvard. Este imóvel foi ca- 3.5 Data Murici ⁴⁸ Conforme consta em certidão do Cartório do 1º Ofício de
Gilbués e declaração do Interpi em ações judiciais acessa-
ocupados localizados nas áreas em questão, das.
permitindo-se a sua aquisição pelos legíti- dastrado no SNCI/Incra com uma área total
de 16.441 hectares, sendo que 2.048 hecta-
(sem demarcação)
mos ocupantes” (art. 2º, II). ​
res estão sobrepostas à Estação Ecológica
Neste caso, como a Comdepi simplesmente Uruçuí-Una.⁴⁷ No entanto, estas fazendas
não possuem origem relacionada com a de- Embora seja chamada de “data” nas ações
ignorou a ocupação tradicional e legítima judiciais e documentos analisados, ela não
dos posseiros do território de Melancias, cuja marcação da gleba, e tendo sido concedidos
contratos de concessão de uso das mesmas foi demarcada judicialmente, a exemplo da
posse de mais de cem anos foi comprovada “São Felix” e “Riachão”, e também não consta
pelo Diagnóstico Técnico do Interpi (2018), terras em 2005 a outros “colonos” escolhidos
pelo Interpi, criou-se uma situação de confli- que tenha sido objeto de demarcação pelo
é possível afirmar, portanto, que não houve Interpi ou Comdepi⁴⁸. Sua origem é indica-
efetivo destaque do patrimônio público to entre o referido grupo e os novos conces-
sionários, além do próprio órgão fundiário. da nos imóveis Faz. Murici I e II e Faz. Vale
neste e em casos semelhantes. Esse é tam- das Veredas. Supostamente localiza-se nas
bém o entendimento do primeiro magistra- É uma trama jurídica que perdura há mais
de uma década, sendo que a Insolo Agroin- proximidades do encontro do rio do Morro
do da Vara Agrária de Bom Jesus, Heliomar D’Água com o Rio Uruçuí-Preto, mas se tra-
Rios Ferreira, quando em decisão relacio- dustrial S/A, apesar de não ter alcançado a
manutenção de posse das terras, concedida ta de uma ficção, não corresponde a origem
nada a estas terras vendidas pela Comdepi válida com cadeia sucessória regular e/ou
registrou que “não havendo o cumprimento ao Interpi, segue normalmente em operação
no local. destaque do patrimônio público.
104

ESTADO

O ESTADO COMO AUTOR DA GRILAGEM


GRILAGEM:
ISSO É POSSÍVEL?
SÍNTESE
No Piauí, em 1971 foi criada a
A identificação, delimitação, arrecadação e destinação Companhia de Desenvolvimento
de terras públicas devolutas pelos estados é uma do Estado do Piauí (Comdepi). 1973, esta empresa que foi
Em 1973
política pública fundamental para garantir os antecessora do atual órgão de
objetivos da política agrícola, agrária e ambiental, terras (Interpi), demarcou e
previstas a nível constitucional (União e estados). arrecadou a impressionante
A transferência destas terras
para particulares, no entanto, dimensão de 2.424.221 hectares
dependia da autorização do de terras devolutas. A gleba Serra
Congresso Nacional, o que foi Grande, com 756.000 hectares no
entorno do território de Melancias,
ONDE “ERROU” O ESTADO DO PIAUÍ? solicitado pelo governo do
foi parte deste montante.
estado à época, tendo sido
aprovado com a expedição da
A distorção ou mau uso dos instrumentos legais da Resolução do Senado Federal nº
política fundiária para beneficiar seletos grupos 36/1975.
privados têm sido comuns desde o período colonial
no Brasil. Neste caso, o estado acerta ao tomar
iniciativa de identificar e arrecadar as terras que são, a rigor, patrimônio público; mas sua ação se equipara à dos grileiros de terras
quando seus gestores e técnicos deixam de realizar a legitimação de posse devida a povos e comunidades tradicionais nas áreas
identificadas e demarcadas.
105

A Serra das Guaribas, por exemplo, chapada localizada na margem esquerda do rio Uruçuí-Preto, que sempre foi território
tradicional das comunidades do território de Melancias, como atesta estudo recente do próprio órgão de terras (Interpi),
teve suas terras arrecadadas pelo estado, que vendeu 32.667 hectares delas as empresas Aletron Produtos Químicos
Ltda. e da Toamina Agro�lorestal Ltda., que venderam posteriormente para a Varig Agropecuária S/A, que transferiu para a
Agropecuária Cosmos Ltda., que atualmente se reivindica proprietária.

EMPRESA
TERRITÓRIO TRADICIONAL ESTADO EMPRESA
(INTERPI)

ESSES TÍTULOS DA COMDEPI SÃO LEGÍTIMOS?


Para Heliomar Rios, primeiro juiz a atuar na Vara Agrária da 1998, essas e outras concessões da Comdepi foram
Em 1998
Comarca de Bom Jesus, que ordenou o cancelamento e/ou objeto de investigação na Assembleia Legislativa
bloqueio de cerca de 500.000 hectares de terras griladas, através da Comissão Parlamentar de Inquérito dos
a resposta é NÃO
NÃO! conflitos agrários e da análise jurídica das alienações
das terras públicas patrimoniais, indicando inúmeras
Isto porque na autorização dada pelo Senado Federal para irregularidades e indícios de favorecimentos ilegais
venda destas terras, na resolução 36/1975, consta no art. 2º que nessas transferências. Embora sejam frequentemente
o estado deverá efetuar “regularização de situação do objeto de questionamento judicial, permanecem
posseiros nos terrenos ocupados localizados nas áreas em sendo comercializados no mercado de terras e, não
questão, permitindo-se a sua aquisição pelos legítimos raro, são propostas alterações e medidas legislativas
ocupantes”. Nas palavras do magistrado, quando em decisão para convalidação deles.
relacionada a estas terras, “(...) não havendo o cumprimento
das cláusulas dispostas na referida Resolução, não há como
reconhecer valor jurídico à escritura pública de compra e
venda” com origem nestes títulos.
106

1971
CRONOLOGIA
Criação da Companhia de
Entre os séculos XVI e XVII Desenvolvimento do Piauí (COMDEPI);
Disputas do Estado e avanço da colonização
sobre os territórios tradicionais com exploração 1973
do trabalho escravo na região conhecida como
sertão piauiense, que promovia os �luxos de Lei Estadual nº3.271/73 incorporou as terras devolutas ao
deslocamentos com a região amazônica. patrimônio da COMDEPI autorizando a alienação de
Em 1758 foi criada a Capitania do Piauí. terras públicas a empresários interessados em investir no
Estado, mediante a apresentação de projetos produtivos
1907
Lei nº450 que dispunha sobre o processo de EMPRESA
divisão e demarcação de terras devolutas e PROJETO ÀÀ ÉPOCA
ÉPOCA
o Regimento nº346 para a sua execução; 25 MIL HECTARES
COMDEPI
1914 ACESSO ATÉ
03 MIL HECTARES
Lei nº 817 onde o governo autorizava a
contratação de empréstimos no valor APÓS 5 ANOS
de até Rs. 7.500:000$000, para ser
aplicado na demarcação das terras
devolutas, dentre outras disposições;
SE CONTINUAÇÃO DO PROJETO
1932
POSSIBILIDADE DE ADQUIRIR A TERRA
Decreto nº 21.082 onde o governo
provisório da República transferiu terras SE POJETO NÃO CONCLUÍDO
devolutas e de ausentes para o estado do TERRA RETORNA PARA O ESTADO
ESTADO Piauí, parte expropriados dos jesuítas; NEGÓCIO SUSPENSO
107

1974
3 O Projeto visava a implementação de várias ações, como
Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas construção de estradas, postos de saúde e escolas, e priorizou a
delimitação do perímetro e a identificação de áreas apossadas.
do Nordeste (POLONORDESTE)³ A despeito de ser sucedido pelo Projeto de Desenvolvimento
Integrado do Vale do Parnaíba, a regularização da ocupação de
toda a área foi concluída no início de 1980, através da concessão
do título de propriedade aos ocupantes (p. 26). Avaliação da
governança fundiária no Piauí, 2013. Disponível em:
1989 https://thedocs.worldbank.org/en/doc/a91b90185037e5f11e9f99
a989ac11dd-0050062013/related/Executive-Summary-Piaui.pdf

A constituição estadual previu a concessão de uso


de terras públicas ou adquiridas para
assentamentos - no art. 198 - a partir das seguintes
CONDICIONANTES:
residência permanente do beneficiário
indivisibilidade e intransferibilidade das terras
manutenção das reservas florestais obrigatórias
observância das restrições do uso do imóvel

1980

Criado o INTERPI, o qual substituiu a COMDEPI,


como instrumento de uma nova política agrária,
em razão do Projeto de Desenvolvimento Integrado
do Vale do Parnaíba, que obteve o financiamento do
Banco Mundial.
108

3.6 Gleba Fronteira pliaram os títulos adquiridos do Interpi, de


cerca de 8 mil para 14 mil hectares, quando
e Caatingueiro as matrículas registradas no CRI de Gilbués
foram transferidas para o CRI de Bom Jesus.
De fato, no Sigef/Incra atualmente o con-
junto de 7 imóveis totaliza 14.263 ha⁴⁹. Os
Localizadas na Serra do Quilombo, a Gle-
citados herdeiros ingressaram com ações
ba Fronteira foi demarcada com 13.309 ha
judiciais contra a empresa, que por sua vez
e a Caatingueiro com 47.695 ha. Estas duas
também demandou judicialmente outro
glebas foram demarcadas em 1989, por
grupo oriundo do Mato Grosso, integrado
meio de arrecadação sumária pelo Interpi.
por Marcelo Lamm e familiares, que alegam
Logo depois, parte das terras teriam sido
ser detentores dos títulos das supostas fa-
desmembradas em cinco títulos adquiridos
zendas Vale das Veredas I e II, também em
por pessoas físicas que, logo após, em 1990,
sobreposição com as terras ocupadas pelo
transferiram para a Cooperativa Agrícola
conjunto Bom Jardim.
dos Irrigantes de São Gonçalo - COASMIG,
formada por “colonos” vindos do Sul do país.
Esses títulos foram posteriormente adquiri-
dos por José Lourenço Golin e grupo associa-
do.

Embora as fazendas deste conjunto não es-


tejam na área atualmente reivindicada pelas
comunidades do território de Melancias, a
fazenda Bom Jardim do Riachão está consig-
nada como Reserva Legal destas fazendas, e
é a maior sobreposição de grilagem verde ao
território reivindicado de Melancias. O gru-
po Bom Jardim Agropecuária, é integrado
pela família “Golin” - José Lourenço Golin, Ju-
diliane Schmittz Golin e Ana Paula Schmittz
Golin.
⁴⁸ Conforme consta em certidão do Cartório do 1º Ofício de
Gilbués e declaração do Interpi em ações judiciais acessadas.
Nestas glebas, observamos ainda uma so-
⁴⁹ Correspondente aos registros das matrículas nº 5018, 5019,
breposição de grilagens - os herdeiros de 5020, 5021, 5022, 5023, 5024 do Cartório de Registro de Imó-
Francisco Leopoldo Lustosa afirmam que a veis de Bom Jesus, para onde foram transferidas. Na ação
judicial contra Marcelo Lamm e outros, José Lourenço Golin
Bom Jardim (e empresas associadas) am- alega ter adquirido 13.488 ha da Coasmig em 2009 e 2010. Área de manejo de animais. Créditos: Debora Assumpção
109

4. Desmatamento acelerado consolida grilagem nas chapadas do alto Uruçuí-Preto

O Mapa 03 sobre a evolução do desmata-


mento no entorno do Território Tradicional
de Melancias impressiona pelo que revela
no primeiro olhar: uma devastação colossal
do Cerrado em curtíssimo espaço de tempo.
Embora as principais fraudes em inventá-
rios, “datas” e aquisição de títulos (suspei-
tos) da Comdepi por empresas, cooperativas
e pessoas físicas do agronegócio tenham
ocorrido entre 1951 e 1992, foi apenas a partir
dos anos 90 e 2000 que foram instaladas as
primeiras fazendas nas chapadas, em torno
das quais foram realizados também os pri-
meiros desmatamentos.

Segundo os dados do PRODES Cerrado


(Programa de Monitoramento do Desmata-
mento do Cerrado por Satélite) do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), na
fazenda Cosmos, a área desmatada total
chega a 36.562 hectares; no Condomínio Al-
vorada, este valor é de 16.602 hectares e nas
fazendas Passaginha/Katarina/AgroSagin,
o desmatamento total chega a 857 hectares.

Antigo cemitério da Passaginha. Créditos: Debora Assumpção


MAPA 03 110
PIAUI | 111
No ano 2000, os focos de desmatamento es- de derrubada e plantio de soja. ⁵¹ menores adquiridas junto ao Comdepi -
tão situados dentro e nas proximidades da com seus títulos sob suspeita. Não realiza-
Gleba Pública “Serra das Guaribas e Ouro”, Entre 2010 e 2020, o desmatamento já alcan- mos um levantamento exaustivo, mas nos
de propriedade do Interpi, mais ao sul da ça as bordas das chapadas, tornando raras as documentos e imóveis analisados prevale-
⁵⁰
serra de mesmo nome, na Fazenda Agro- áreas nos platôs atualmente com vegetação ceu o desmatamento ilegal, embora tenham Este desmatamento pode ser constatado no Parecer SEI
nº 10/2020-CR-5/ICMBio, manifestação do Instituto Chico
pecuária Cosmos Ltda., na parte central nativa de Cerrado. O desmatamento avassa- havido casos em que o órgão ambiental es- Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) na ação
discriminatória administrativa do território de Melancias
da Serra e na Fazenda Cerro Azul (Galileia/ lador destas chapadas seguiu seu curso com tadual concedeu licenciamento ambiental (Processo SEI n° 00071.026126/2019-99 - Lado Esquerdo),
Insolo/HMC Harvard), acima das nascentes os danos já mencionados às comunidades e e autorização de supressão de vegetação⁵³ . datado de 20/04/2020. Segundo Patrícia da Silva (2020), em
levantamento com dados do Inpe, foram mais de 5.000 ha
do Riacho Morro D’água, divisa com a Serra mesmo havendo dezenas ações judiciais e Em 2017, quando pouco resta de Cerrado nas desmatados dentro da Unidade de Conservação, e 50.000
Grande, território indígena Akroá-Gamela e administrativas que colocavam em dúvida chapadas, o governador do Estado assinou o ha no entorno próximo (raio de 10km), entre os anos de
2000 e 2018.
também dentro da Estação Ecológica Uru- o efetivo domínio e posse sobre as terras Decreto Estadual nº 17.431, que cria a Área de
çuí-Una. ⁵⁰ pelas empresas que o protagonizaram. ​ Proteção Ambiental das nascentes do Uru- ⁵¹
Auto de Infração nº 341993-D, de 17/08/2008, relativo ao
çuí-Preto, com cerca de 60.000 hectares.⁵⁴ desmatamento, a corte raso, de uma área de 11.673 hectares
de floresta nativa, fora da reserva legal, sem autorização
Na Chapada do Riachão, à margem direita Enquanto tramitam esses procedimentos, da autoridade competente. Conforme relatório técnico do
Ibama, datado de 02/05/2018, pode-se concluir que houve
do rio, havia focos de desmatamento nas a realização do desmatamento torna fato o descumprimento do embargo em 7.731,34 hectares por
fazendas Alvorada e Riachão, sob controle consumado a apropriação das terras públi- meio da instalação e operação de lavouras de grãos. Em
11/02/2020, o Ministério Público Estadual (MPE) ingressou
dos Irmãos Fritzen. Na Serra do Quilombo, cas e/ou território tradicional, seguido pela com representação criminal, propondo uma transação pe-
um primeiro foco ao centro e mais ao norte, implantação de lavouras de soja, seja por via nal com valores absolutamente irrisórios e incompatíveis
com os danos causados - R$ 10.000,00 para a Bom Jardim
onde atualmente está em operação a Fazen- direta ou por arrendamento a outros grupos. Empreendimentos Rurais e de prestação de serviços e pa-
da Paineira, do grupo SLC Agrícola. Com vultuosos investimentos iniciais para gamento de R$ 2.000,00 pelos sócios Ana Paula Schimitz
Golim, João Antônio Franciosi e Judiliane Golin Ribeiro.
instalação das novas fazendas, frequente-
Uma década depois, em 2010, o cenário é mente viabilizada por empréstimos com as ⁵²
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2018 e 2020.
completamente diferente: a Fazenda Agro- próprias terras griladas dadas em garantia,
pecuária Cosmos Ltda. desmata toda a par- por fundos públicos (ver quadro) ou capta- ⁵³
De acordo com a Portaria Conjunta SEMAR Nº 3 de
te central da Serra das Guaribas; ao sul, na dos no mercado financeiro, após a colheita 30/08/2015, que regulamenta os procedimentos de
gleba pública do Interpi, e ao norte, na Fa- das primeiras safras a posse ilegal destas integração da execução das políticas de regularização
fundiária, de licenciamento ambiental, de autorização
zenda Cerro Azul, há significativo avanço da empresas se consolida via de regra de forma de supressão de vegetação e de recursos hídricos, em
seu art. 7º: “Na análise de solicitações de licenciamen-
lavoura sobre a vegetação nativa de Cerrado. irreversível.⁵² to ambiental em propriedades situadas na região dos
Os empresários do conjunto Riachão e Alvo- cerrados e nas fronteiras estaduais a SEMAR consultará
o INTERPI acerca da regularidade da cadeia dominial
rada ampliam a leste e oeste a devastação. Em alguns desses processos, que são públi- sucessória do imóvel, nos termos do Decreto nº 11.110,
Na Serra do Quilombo, o grupo Bom Jardim cos, constam indícios ou provas documen- de 25/08/2003, o qual deverá se manifestar conclusiva-
mente, no prazo de até 30 (trinta) dias sobre a situação
Empreendimentos Rurais desmata e abre tais suficientes para concluir que todas as de regularidade dominial do mesmo.” (grifo nosso)
as fazendas do conjunto e, embora tenha matrículas de imóveis pretensamente par-
⁵⁴
sido alvo de embargo do Instituto Brasileiro ticulares sobrepostas às chapadas e bai- Mais informações em Bruno Spadotto e Jaqueline Cogue-
to. Avanço do agronegócio nos cerrados do Piauí: horizon-
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais xões no alto Uruçuí-Preto ou são resultado talidades e verticalidades na relação entre o ambientalis-
Renováveis (IBAMA) em 2008, continuaram de registros fraudulentos na sua origem, mo dos pobres e o controle de terras pelo capital financeiro.
Revista NERA, v. 22, n. 47, p. 202-229, dossiê MATOPIBA,
avançando com a abertura de novas frentes ou resultam da ampliação ilegal de áreas 2019.
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5. Uma nova etapa: “grilagem verde” nos baixões

O desmatamento e a apropriação das cha- na margem esquerda, em 2014 cadastrou no ou seja, são áreas onde a regra é não haver
padas, entretanto, não tem sido o único pro- CAR e Sigef 2.859 hectares de reserva legal qualquer atividade econômica permitida.
blema enfrentado pelas comunidades tradi- sobreposta ao território tradicional. Elas somam 17.989 hectares e correspon-
cionais no Cerrado piauiense. O fenômeno dem a 80% do território reivindicado.
da grilagem verde dos baixões está intima- Em novembro de 2019, segundo nota da Co-
mente relacionado com o desmatamento missão Pastoral da Terra (CPT) do Piauí, os A maior parte das reservas estão na con-
nas chapadas – como também ocorre no irmãos Fritzen expulsaram as famílias de dição de “averbadas”, ou seja, aquelas cujo
Oeste baiano. O Cadastro Ambiental Rural Melancias da área coletiva de solta do gado cadastro foi anotado também na matrícula
(CAR) e seu caráter auto declaratório, em- e das roças, e com apoio da polícia militar do imóvel no cartório. As demais, em menor
bora a lei proíba expressamente⁵⁵, efetiva- e jagunços da fazenda, “chegaram à comu- medida, estão na condição de reserva pro-
mente tem sido utilizado para comprovação nidade ribeirinha do território Melancias e posta, mas ainda não aprovada e averbada.
de posse ou, no mínimo, para dificultar a ar- colocaram uma parte do gado das famílias
recadação administrativa de terras públicas para o outro lado do rio. (...) Vale ressaltar
devolutas onde antes não havia qualquer que não foi apresentado nenhum documen-
dúvida a respeito da posse ou titularidade.​ to oficial que justificasse a ação, sendo ela
assim, arbitrária, autoritária e violenta”.​
Conforme pode ser observado no mapa abai-
xo, as empresas do agronegócio se apressa- O maior cadastro sobreposto, porém, é o do
ram em realizar seus próprios cadastros, que imóvel Bom Jardim do Riachão, com 3.982
dependem de um serviço técnico especiali- hectares, de pretensa propriedade da Bom
zado e caro – ou seja, na maioria das vezes Jardim Empreendimentos Rurais – se trata
inacessível para agricultores familiares, po- da reserva legal dos sete pretensos imóveis
vos indígenas e comunidades tradicionais. do conjunto Bom Jardim. Ainda na margem
direita do Uruçuí-Preto, destaca-se pela di-
No território de Melancias, a área sobrepos- mensão o pretenso imóvel “Serra Alta XII”, ⁵⁵ O desmatamento e a apropriação das chapadas, en-
ta ao CAR alcança 19.029 hectares, corres- cadastrado por Osmar Conrad com 1.902 tretanto, não tem sido o único problema enfrentado
pondendo a 84 % da área reivindicada. Até hectares, e a fazenda Riacho dos Cavalos, pelas comunidades tradicionais no Cerrado piauiense.
O fenômeno da grilagem verde dos baixões está intima-
mesmo as residências e quintais das comu- cadastrada pelos Irmãos Fritzen com 1.826 mente relacionado com o desmatamento nas chapadas
– como também ocorre no Oeste baiano. O Cadastro
nidades estão cadastradas como proprieda- hectares.​ Ambiental Rural (CAR) e seu caráter auto declaratório,
de privada por terceiros. embora a lei proíba expressamente⁵⁵, efetivamente tem
sido utilizado para comprovação de posse ou, no míni-
No mapa abaixo, observamos os cadastros mo, para dificultar a arrecadação administrativa de ter-
A Agropecuária Cosmos Ltda., localizada e indicação de Reserva Legal no território, ras públicas devolutas onde antes não havia qualquer
dúvida a respeito da posse ou titularidade.
MAPA 04 113
MAPA 05 114
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6. Ausência de origem e alteração na dimensão: o caso das fazendas


Cosmos, Riacho dos Cavalos e Riachão

Em breve síntese, neste tópico demonstrare-


mos como se deu efetivamente a grilagem
de terras em três casos típicos de imóveis
sobrepostos ao Território Tradicional de Me-
lancias.

Roda D’água na comunidade de Melancias. Créditos: Debora Assumpção


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6.1 Fazenda Cosmos Agropecuária Ltda.

A fazenda Cosmos está localizada na Serra A intensa exploração e o uso do trabalho os relatos das lideranças comunitárias do
das Guaribas, município de Baixa Grande do análogo à escravidão, muito utilizada após a território de Melancias e a certidão e nota
Ribeiro (PI). Controlada por Ricardo Tombi- passagem do “correntão” para efetuar a cha- devolutiva do Cartório do Ofício Único da
ni, residente em Blumenau (SC), Eduardo mada “destoca” e retirada de raízes, foi parte Comarca de Ribeiro Gonçalves analisadas
Dall’Magro, residente em Passo Fundo (RS), também deste processo. Em 2004, Eduardo dão pistas sobre a motivação e a forma como
e Lucina Tombini Dorneles, residente em Dall’Magro foi condenado a três anos e qua- a Cosmos Agropecuária Ltda. incorporou
Chapecó (SC) foi supostamente adquirida tro meses de reclusão pela Justiça Federal do esse “remanescente” equivalente a cinco mil
com área total de 37.000 hectares. Há muita Piauí, em denúncia criminal oferecida pelo campos de futebol ao seu latifúndio.​
nebulosidade em torno deste imóvel, como Ministério Público Federal no Piauí (MPF/PI)
é comum em casos de grilagem deste porte. por manter em sua fazenda 21 empregados Em diálogo com as pessoas mais velhas de ⁵⁶ Embora a área tenha sido desmembrada em 03 ma-
Como vimos, é o maior dentre os imóveis rurais trabalhando em condições degradan- Melancias, eles informam que a área do Es- trículas, no cadastro Sigef e CAR foi inserido o perímetro
total do imóvel, ao contrário dos outros grupos que op-
que se apropriaram das chapadas do alto tes, análogas à escravidão⁵⁹. ​ tado do Piauí adquirida pela antiga “Varig e taram pela gestão fragmentada do conjunto de fazen-
Parnaíba, o único que não realizou sucessi- Taomina”, estava localizada acima, na Serra das, tendendo a formação de condomínios com diversos
proprietários e/ou arrendatários.
vos desmembramentos⁵⁶. ​ Originalmente as terras teriam sido adqui- das Guaribas, onde instalaram suas sedes e ​
ridas da Comdepi, resultado do processo jamais reivindicaram as áreas dos baixões
⁵⁷ Com exceção da Reserva Legal e áreas de preservação
A dimensão do desmatamento promovido de demarcação e arrecadação da Gleba Ser- da margem direita do rio Uruçuí-Preto. Afir- permanente (APP), declarada sobre o território reivin-
por este trio de empresários alcançou a qua- ra Grande (ver tópico 3.3). Demandada em mam que a Cosmos alterou os limites para dicado de Melancias.

se totalidade da área do pretenso imóvel⁵⁷ ações judiciais, a empresa e seus controla- chegar até o leito do rio e em 2014 promo-
⁵⁸ Pelas buscas realizadas, não é possível afirmar com
em apenas duas décadas. Embora tenham dores não costumam apresentar os títulos veu um novo georreferenciamento com essa certeza se existiu ou não licenciamentos ambientais
feito constar em averbação na matrícula originários. Segundo informações presta- incorporação das áreas de posse tradicional vinculados aos sucessivos desmatamentos.
que “quando promoveram o desmatamento das por ela própria, o imóvel foi adquirido das famílias ribeirinhas e brejeiras. Incon- ⁵⁹ Mais informações em: https://mpf.jusbrasil.com.br/
destes imóveis e passaram a explorá-los eco- em três partes e todas pertenceriam à Varig formados, um grupo de representantes das noticias/2009924/mpf-pi-empresario-e-condenado-
-por-trabalho-escravo
nomicamente observaram todas as normas Agropecuária S/A⁶⁰, medindo respectiva- comunidades ingressou com ação de inter-
pertinentes à conservação e preservação mente 14.087, 18.580 e 5.000 hectares. As dito proibitório⁶¹ neste mesmo ano, tendo ⁶⁰ O grupo Varig entrou em processo de falência nos
anos 2000. Segundo matéria do Valor Econômico de
do meio ambiente, mormente no que diz duas primeiras tiveram a origem indicada alcançado medida liminar de proteção da 20/12/2005, “auditorias indicam que, em apenas quatro
respeito à elaboração e aprovação do EIA/ na compra pela Varig Agropecuária S/A da posse nesta área.​ anos, do fim dos anos 90 até meados de 2003, a Varig
assumiu perdas de R$ 160 milhões decorrentes de negó-
RIMA, obtenção dos licenciamentos am- Aletron Produtos Químicos Ltda. e da To- Esse novo georreferenciamento, contudo, cios danosos realizados por cinco de suas controladas:
Varig Travel, hoje em liquidação, Varig Agropecuária
bientais e consequentes autorizações para amina Agroflorestal Ltda. que por sua vez foi realizado para concretizar uma grilagem (Vagro), atualmente esvaziada, VarigLog, Rotatur e Tro-
proceder aos desmatamentos”, em busca teriam adquirido da Comdepi uma área de que já havia sido feita no papel (e registro no pical de Hotéis.” Mais informações em: “‘Sangrias’ em
coligadas minaram a Varig” - https://www2.senado.leg.
no Diário Oficial do Estado do Piauí foram 32.667 hectares. CRI) muito antes. A tática utilizada foi típi- br/bdsf/bitstream/handle/id/456675/noticia.htm?se-
encontrados apenas dois requerimentos⁵⁸ ca, embora sofisticada. Este ato começa em quence=1. Acesso em 14/10/2021.

para instalação e outorga de um poço tubu- E os 5.000 hectares restantes? Os supostos 2001, quando a matrícula original do imó- ⁶¹ Ação tramita na Vara Agrária de Bom Jesus sob o nº
lar no imóvel. proprietários silenciam sobre a origem, mas vel, sob o nº 2214, foi unificada com as trans- 0000021-81.2014.8.18.0042
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crições de número de ordem 1.752, 0.599 e 2214, 2215 e 2217”, no Incra ainda consta o
0.600, resultando numa área total de 37.700 status “Certificada - Sem Confirmação de 6.2 Fazenda Riacho dos Cavalos (mat. 3437)
hectares, ou seja, aproximadamente 5.000 Registro em Cartório”. Este bloqueio foi de-
hectares a mais que os 32.667 hectares cujos terminado nesta ação de interdito proibitó-
Este pretenso imóvel está localizado no vale sória com destaque do patrimônio público.
títulos têm origem comprovada na aquisi- rio em 05/10/2018, tendo sido suspenso em
do riacho de mesmo nome, seguindo pelas A tabeliã substituta indicou a impossibilida-
ção junto à Comdepi. Em seguida,⁶² houve 01/04/2019, apenas seis meses depois. ​
duas margens desde as proximidades da de de expedição de cadeia dominial “tendo
um novo desmembramento em três áreas
nascente, na Chapada do Riachão, até a re- em vista que a referida matrícula menciona
diferentes, sob as matrículas sequências nº Em 17/07/2019, logo após o desbloqueio,
gião de encontro dele com o rio Uruçuí-Preto. como transcrição anterior a matrícula 1168,
2215, 2216 e 2217. Esta última, foi registrada os controladores deram o imóvel em pe-
As comunidades próximas são Sumidouro e Livro 2-A-2, datada de 03/04/1986, em nome
com uma área de 17.700 hectares, agora nhor agrícola por oito vezes, com valores
Brejo dos Cavalos. Registrada no CRI de Gil- de Osvaldo Cardoso de Lara e Maria Apare-
constando que confronta “a Leste, com o Rio expressos em sacas de soja, de milho e ar-
bués-PI, com 1.888 hectares, reivindicadas cida Gama de Lara” e que “o livro indicado
Uruçuí-Preto acima”. ​ robas de algodão. O último penhor, datado
por Leivandro, Janailton e Fernando Fritzen, encontra-se transcrito alguns registros sem
de 23/03/2021 (safras 2020/2021), está em
os irmãos Fritzen. Sua origem é indicada por
No entanto, segundo consta em nota devo- nome da Bunge Alimentos S/A, com o va-
eles como parte da data “Riachão” (ver tópi-
lutiva acompanhada da certidão, na qual lor correspondente à 35.600 toneladas de
cos 3.2). Mas, veremos, se trata de uma grila-
informou a impossibilidade de expedição soja. Após sucessivos arrendamentos e em-
gem verde onde houve conversão ilegal de
de cadeia sucessória, a auxiliar de cartório préstimos milionários⁶⁴ junto ao Banco do
suposta área de posse em propriedade, em
informa que as transcrições com nº 0.599 e Nordeste, atualmente as terras estão arren-
nada se relacionando com a demarcação da
0.600 têm como registro anterior o núme- dadas para a Pineso Agroindustrial LTDA.,
referida data.​
ro de ordem 0.903, e não consta qualquer controlada por Eugênio José Antônio Pineso, ⁶² A sequência numérica das matrículas sugere que uni-
informação do destaque que originou as de 2010 a 2025⁶⁵. O pagamento é feito anu- ficação e desmembramento foram feitos no mesmo dia.
Em 14/06/2010, os irmãos Fritzen incorpora-
transcrições de nº 0.599 e 0.600, não existin- almente aos três arrendatários também em
ram nesta matrícula um termo de respon- ⁶​ ³ Nesta mesma planta, indica uma área de reserva legal
do relação entre o imóvel e os registros 0.599 sacas de soja, havendo previsão de entrega de 9.155ha e 841 de área de proteção permanente.
sabilidade de averbação de reserva legal re-
e 0.600 e o de transcrição 0.903. Ou seja, a de 112.805 sacas para os arrendatários so-
ferente às fazendas Alvorada XI, XII e XIII, ⁶⁴ Os Srs. Ricardo Tombini e Eduardo Dall’Magro, con-
unificação e o posterior desmembramen- mente neste ano de 2021, correspondendo a troladores da Cosmos Agropecuária Ltda., conseguiram
localizadas na chapada, informando que junto ao Banco do Nordeste empréstimos totalizan-
to tornaram a soma das partes maior que o aproximadamente R$ 18.000.000⁶⁶ (dezoi- do R$ 17.460.250,50 com parte do imóvel em garantia
elas constituem o “Condomínio Alvorada”.
todo, acrescendo 5.000 hectares sem origem to milhões de reais). (gleba 03). Isso no ano de 2004, mesmo ano em que
Para viabilizar o desmatamento total dos Eduardo Dall’Magro foi condenado por trabalho escra-
a títulos adquiridos da Comdepi. vo. Dois anos antes, uma sócia vendeu 25% desta área
imóveis localizados na chapada, que somam para R. Tombini pelo valor de R$ 531.000,00. Ou seja,
4.228 hectares, este pretenso imóvel “Ria- o valor total do imóvel em 2002 seria de “apenas” R$
Atualmente a área declarada pela empre- 2.124.000,00 – o banco emprestou 8 vezes o valor decla-
cho dos Cavalos” foi consignado (quase)⁶⁷ rado na transação entre sócios.
sa é de 30.497 hectares⁶³, mesma área ca-
integralmente como Reserva Legal daque-
dastrada no Sigef em 07/11/2014, após o ⁶⁵ Mais informações: Interdito Proibitório 0000021-
les, com área de 1.800 hectares.​ 81.2014.8.18.0042 (Vara Agrária da Comarca de Bom
mencionado georreferenciamento. Embora Jesus-PI).
haja pedido de cancelamento do cadastro
Em nenhum destes imóveis, cuja origem ⁶⁶ Com a cotação média da saca de soja a R$ 160,00, em
“por determinação do Juiz da Vara Agrária, 14/10/2021.
indicada pelos irmãos Fritzen abrange tam-
no processo n° 0000153-27.2003.8.18.0042,
bém a data “São Felix”, consta cadeia suces- ⁶⁷ 87,52 hectares foram indicados para reserva no imó-
onde determina o bloqueio das matrículas: vel de matrícula 3436 (Alvorada).
118
a devida indicação das matrículas”. Em sín-
tese, este imóvel sequer deveria ter sido 6.3 Fazenda Riachão
registrado no sistema de matrículas, tendo
em vista o princípio da continuidade dos re- (mat. 579)
gistros públicos.​

O imóvel foi adquirido do casal mencionado Este suposto imóvel está localizado na mar-
acima em 29/12/2009, seis meses antes da gem direita do rio Uruçuí-Preto, próximo ao
sua indicação como reserva legal, pelo valor desaguamento do Rio Riachão, conforme
de R$ 226.600,00. É um caso exemplar so- consta nos cadastros do Incra. Aqui temos
bre como a demarcação arbitrária das datas mais um exemplo de grilagem envolvendo
“São Félix” e “Riachão” possibilitaram a mul- a multiplicação de imóveis e hectares em in-
tiplicação da grilagem por meio da transfor- ventários e formais de partilha.​
mação de posse em propriedade, fundada
na simples alegação de que fazem parte das Um fato que chama atenção neste caso é
referidas datas. A ilegalidade do registro, en- que a área foi apropriada por meio de ação
tretanto, não foi obstáculo para que o Banco de inventário de sobrepartilha, ou seja, os
do Nordeste aceitasse o imóvel como garan- herdeiros simplesmente alegaram, anos de-
tia de empréstimo para os irmãos Fritzen pois após a morte de quem teria deixado a
(hipoteca de 11/10/2011). O imóvel continua herança, que haveriam outros bens a serem
registrado no Sigef e no CAR. partilhados e ingressaram com ação para
partilha dos supostos bens remanescentes.
Isso se deu no ano de 1990 por iniciativa de
cinco herdeiros de Francisco Leopoldo Lusto-
sa - requerente da demarcação da “Data Ria-
chão”. Ao final da ação, sem que fosse apu-
rada a origem do suposto imóvel de 20.000
hectares arrolado, que corresponde a quase
metade da área total em tese demarcada
(43.000 hectares), ele foi dividido em cinco
partes de 4.160 hectares. Uma destas partes
(mat. 579) foi adquirida em 1997 de uma das
herdeiras pela Agropecuária Ferreira Ltda.,
de propriedade de Edson de Castro Ferreira,
e atualmente está sobreposta ao território
reivindicado de Melancias.
Erosão nas chapadas decorrentes do desmatamento. Créditos: Debora Assumpção
PIAUI | 119

7. Desdobramentos da ação discriminatória de terras no Território de Melancias

Desde 1992 a gente tem procurado o Interpi territoriais de povos indígenas e comunida- las e cadastros sobrepostos ao território tra- ocupações conhecidas, fundamentais para o
para procurar o título. (...) O Interpi disse que a des tradicionais. Mesmo insuficientes, além dicionalmente ocupado.​ bom andamento do procedimento. ​
gente aguardasse as vistorias. Em 2006, quan- de falhas e equívocos, houve uma resposta
do nós fomos lá, abriram um novo processo. institucional conjunta envolvendo o poder Embora a abertura das discriminatórias re- Até a inesperada conversão da ação dis-
Eu já fui lá com o presidente da associação. executivo, legislativo e judiciário, reconhe- presente um avanço após os 30 anos de es- criminatória administrativa em ação judi-
(Juarez Celestino, morador de Melancias). cendo que a complexidade do tema deve pera, falhas de procedimento podem abrir cial por decisão do diretor do Interpi, em
envolver a atuação coordenada dos poderes. margem para futuros questionamentos, 16/06/2020, consta no procedimento basi-
Como visto, diante de graves violações de di- assim como dificulta a atuação da procura- camente a mera emissão de ofícios para di-
reitos decorrentes da chegada dos fazendei- Contudo, a atuação errática do Interpi na doria jurídica do Estado quando for neces- versos órgãos dando ciência da abertura da
ros, há pelo menos 30 anos os moradores de condução da ação discriminatória admi- sária a atuação judicial, como neste caso. O ação discriminatória. A ausência do rol de
Melancias procuram o Estado (por meio da nistrativa com a finalidade de demarcação processo foi instaurado, por exemplo, com ocupações conhecidas fragiliza o resultado
Interpi) para a titulação de seu território tra- e titulação de parte do território tradicio- base em um memorial descritivo que se- das buscas realizadas no cartório. No me-
dicional. Esta omissão no passado dificultou nalmente ocupado de Melancias, pode re- quer menciona que o mesmo é oriundo de morial descritivo anexado, a única referência
no presente uma resolução mais célere do sultar em um prejuízo ainda maior do que estudo antropológico, que deveria, desde o que se tem para realizar a busca cartorial é a
conflito fundiário que impõe graves prejuí- até agora vivenciado pelas comunidades. O princípio, ser anexado junto com as demais denominação da Gleba “Melancias”. ​
zos e danos para as 53 famílias que vivem e procedimento foi instaurado pela Portaria peças técnicas iniciais. Não há razão lógica
trabalham no território. Apenas em janeiro Discriminatória nº 05/2019, de 07/01/2020, para exclusão da peça antropológica, cuja A judicialização é a última medida a ser
de 2020 foi aberto o procedimento para de- criando a Comissão Especial para conduzir relevância jurídica é capital na delimitação adotada para solução de conflitos em ações
marcação e titulação do território, que teve os trabalhos.​ dos territórios tradicionalmente ocupados discriminatórias, sendo possível recorrer à
sua fase administrativa abruptamente in- por povos indígenas e comunidades tradi- via judicial apenas em face da área cujo tí-
terrompida, e foi encaminhada ao judiciário O objetivo da ação é a regularização fundi- cionais. Trata-se da peça que motivou a ins- tulo ou registro deixar dúvida quanto à legi-
sem que tenha havido o levantamento de ária do território tradicional da comunida- tauração do procedimento administrativo timidade ou em face daquele que atentar
informações básicas, a exemplo da lista das de ribeirinha Melancias, no município de de regularização fundiária.​ contra o procedimento.
ocupações conhecidas. Gilbués-PI, cuja delimitação foi realizada
em concomitância com o “Diagnóstico Téc- O Diagnóstico técnico antropológico e fun-
No Piauí, foi criado o Núcleo de Regulariza- nico do Território das Melancias – Gilbués – diário concluiu pela necessidade da regu-
ção Fundiária do Tribunal de Justiça (2016)⁶⁸, Piauí”, do próprio Interpi, em dezembro de larização fundiária respeitando as práticas,
tendo havido ainda o reconhecimento pú- 2018. Para regularização das terras, foram os modos de viver, fazer e criar das comu-
blico dos problemas decorrentes da grila- delimitadas 02 (duas) glebas distintas, con- nidades. Portanto, existem elementos fun- ⁶⁸ Provimento 17 do TJ-PI de 28/10/2016.
gem pelas autoridades do executivo⁶⁹, re- siderando o Rio Uruçuí-Preto e sua margem damentais no referido Diagnóstico a serem ​
⁶⁹ Como consta em nota da Comissão Pastoral da Terra
sultando na alteração das leis de terras do esquerda e direita. Para tal objetivo, se faz considerados na ação discriminatória, desde - Piauí:
Estado, em 2019, com a inclusão de direitos necessária a anulação de todas as matrícu- a identificação de sobreposições ao rol de https://www.cptpiaui.org.br/0000/00/00/w-dias-afir-
ma-que-cerrados-tem-pistoleiros-e-parece-velho-oes/
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As informações desencontradas, a ausência As comunidades que integram o território
de peças estruturantes e invisibilização das de Melancias estão cientes que a Lei Estadu-
comunidades que ocupam as áreas, que fo- al de Terras (nº 7.292/2019) determina que
ram de fato a razão pela qual foi instaurada em caso de conflito nas regularizações de
a discriminatória, fragilizam o procedimen- ocupações incidentes em terras devolutas
to e abre oportunidade para alegação de fu- ou públicas estaduais, deverá ser priorizada
turas nulidades. a regularização em benefício das comunida-
des locais, e não podem esperar outra coisa
O encerramento da ação administrativa, na do próprio estado que o cumprimento de
totalidade da área delimitada, em razão da suas próprias leis e com a urgência necessá-
notificação de desmatamento em uma pe- ria.
quena parte da área é absolutamente con-
traproducente, pois como vimos, submete
ao crivo judicial a totalidade da gleba, sem
qualificar as demais áreas, inclusive sem so-
breposição alguma, ou seja, que podem ser
arrecadadas de forma célere (administrati-
vamente).

O resultado dessa má instrução administra-


tiva é que a Procuradoria Geral do Estado
(PGE) do Piauí ingressou com a ação judicial
sem contar com as informações mínimas
que apontem os indícios de fraude na cons-
tituição das matrículas sobrepostas ao terri-
tório, como fizemos aqui brevemente. Para
complicar ainda mais o desfecho deste grave
conflito, a PGE ingressou com as ações (mar-
gem direita e esquerda) em agosto de 2020
na vara comum, ao invés da Vara agrária de ⁷⁰ O processo judicial sob nº 0800455-27.2020.8.18.0042
Bom Jesus (PI). A ação permanece paralisa- referente à discriminatória da margem esquerda do
rio Uruçuí-Preto foi redistribuído e enviado para o
da por 12 meses aguardando ser remetida juízo competente, Vara Agrária de Bom Jesus, no dia
para o lugar correto para sua tramitação⁷⁰. 08/07/2021, sem haver novas movimentações. Quanto
ao processo judicial sob nº 0800459-64.2020.8.18.0042
A priorização da demarcação e titulação das referente à discriminatória da margem direita do Rio
Uruçuí a última movimentação é de 24/06/2021, um
áreas em conflito é elemento crucial de uma despacho do juiz para que fosse feita a redistribuição,
política fundiária que busque a pacificação o que não ocorreu até esta consulta realizada no dia
19/10/2021.
social. ​
121

ba
Desmatamento, especulação e
“grilagem verde” nas áreas de
manejo comunitário dos Fechos
de Pasto na Bacia do Corrente
Mauricio Correia Silva, Adriane Santos Ribeiro, Emilia Joana
Viana de Oliveira, Diana Aguiar e Eduardo Barcelos Fazenda Celeiro - canal de retirada de água do Rio Formoso. Crédito: Thomas Bauer (CPT)

A ocupação tradicional das terras do Cer- Tais esquemas foram viabilizados pelo Es- instrumento para que a grilagem se torne Felicidade. Sobre estes, empresários, imo-
rado baiano foi sendo fragmentada com a tado da Bahia, especialmente por meio da um fato consumado. biliárias e banqueiros arquitetaram a in-
chegada dos invasores, sobretudo a partir omissão no dever de fiscalização dos Car- venção de “fazendas fantasmas”, por meio
das décadas de 1960 e 70. Os esquemas de tórios de Registro de Imóveis, da ausência As comunidades tradicionais desenvolve- da corrupção de servidores e delegatários
grilagem seguiram um padrão usual de “in- deliberada de uma política de identificação, ram estratégias de defesa, constituindo os públicos, da violência contra posseiros e do
ventar nos inventários”, realizando a conver- delimitação e destinação constitucional das fechos de pasto sobre as áreas de uso e ma- acesso privilegiado a autoridades, visando,
são de supostas posses de terras em registro terras públicas devolutas e da concessão in- nejo comunitário que seguiam sob sua pos- em um primeiro momento, a especulação
de propriedade particular por meio da aqui- discriminada de autorização de supressão se. O presente estudo aprofunda a análise fundiária, o acesso a crédito subsidiado pelo
sição de direitos possessórios com pretensa vegetal e outorgas hídricas. Como consequ- das dinâmicas de desmatamento e grilagem Estado brasileiro e empréstimos bancários.
origem em ações de inventário e formais de ência, diversos rios estão morrendo e o des- em 4 fechos de pasto: Porcos-Guará-Pom-
partilha (herança). matamento tem se configurado como um bas, Capão do Modesto, Cupim e Vereda da Mesmo com todas as dificuldades enfren-
BAHIA | 122
tadas, em razão da luta das comunidades, é
justamente nos fechos que o Cerrado segue
1. Territórios tradicionais no Cerrado baiano:
em pé. E é por isso que, após vários anos de as áreas de uso e manejo comunitário das comunidades de fundo e fecho de pasto na Bacia do Corrente
abandono dos esquemas de grilagem sobre
estas áreas, elas passaram a ser novamente
cobiçadas diante de uma nova possibili- Os territórios tradicionais de fundo e fecho matando as terras de uso comum dos gerais tras práticas compatíveis com a conservação
dade de lucro: a grilagem verde, ou seja, a de pasto são resultado de um longo proces- (denominação tradicional, na região, dos da biodiversidade e das águas do Cerrado.
apropriação ilegal de terras com vegetação so histórico, travado pelos antepassados das chapadões livres das cercas). Por outro lado, Não havendo títulos de domínio privado
nativa com objetivo específico de averbá- comunidades que atualmente fazem uso e implicou na necessidade de se organizar sobre a área, a disputa se deu basicamente
-las como reserva legal de outros imóveis ou protegem as áreas de cerrado na Bahia. para proteger as áreas de posse tradicional entre a posse tradicional dos fechos e os tí-
mesmo recebimento de valores de créditos ainda não invadidas e desmatadas, onde tulos de propriedade forjados nos processos
de carbono, possibilidades abertas pelo Có- Esta luta de resistência envolveu, por um grupos com relação de parentesco e perten- de grilagem de terras, ocorridos em grande
digo Florestal de 2012. Ao mesmo tempo, o lado, o enfrentamento com o agronegócio e cimento seguiram fazendo uso e manejo escala na região Oeste da Bahia.
processo de demarcação e titulação dos fe- especuladores, que, por meio de processos para o pastoreio do gado em determinadas
chos caminha a passos lentos, e com isso os de grilagem, foram se apropriando e des- épocas do ano, além do extrativismo e ou-
invasores ganham tempo para consolidar a
grilagem.

Agricultura familiar dentro da vereda do Rio Arrojado. Crédito: Thomas Bauer (CPT).
BAHIA | 123
A massiva conversão ilegal de terras pú- ra o projeto de apropriação pelo agronegó- Com o uso ancestral ameaçado e o avanço
blicas e territórios de uso comum em do- cio dos vales e chapadas esteja intimamente do desmatamento nas chapadas, cresceu
mínio privado na região Oeste da Bahia relacionado a uma configuração espacial entre as comunidades tradicionais a res-
que apaga, sistematicamente, a presença de ponsabilidade de cuidado, tanto com a ma-
Estudos apontam que até metade do terri- comunidades tradicionais, a posse comuni- nutenção do Cerrado em pé, quanto com o
tório do Estado da Bahia pode estar na con- tária com base em parentesco e costumes foi cuidado com as nascentes. Embora já cons-
dição de terras devolutas¹. É uma estimativa, o que prevaleceu e se manteve nestas terras
tituíssem associações de fato, foi a partir dos
pois historicamente o Estado, em sucessivos até a chegada dos primeiros grileiros de ou-
anos 1990 e 2000 que, gradualmente, foram
governos, tem se recusado a iniciar uma polí- tras regiões e países, sobretudo a partir das
tica efetiva para identificá-las. Esta omissão, décadas de 1960 e 70. formalizadas as associações comunitárias,
comum em todo o estado, se agrava com as especialmente pela necessidade de se de-
particularidades da região Oeste. Do ponto de vista jurídico formal, no entan- fender judicialmente em demandas posses- ¹ Ariovaldo Umbelino de Oliveira. A política da reforma
to, estas terras não perderam a condição de sórias e para reivindicar a demarcação e titu- agrária no Brasil. In: Evanize Sydow e Maria Luisa Men-
donça (Orgs.). Direitos Humanos no Brasil 2009. Rela-
Historicamente, ela esteve inserida nas capi- públicas devolutas, já que as famílias herdei- lação dos territórios, prevista no art. 178 da tório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São
tanias de Pernambuco e de Minas Gerais, an- ras e detentoras de terras mantinham seus Constituição Estadual da Bahia. Atualmente Paulo: Rede Social, 2009. Disponível em: https://www.
social.org.br/dh%20no%20brasil%202009.pdf
tes de ser incorporada à província da Bahia, domínios mais pela força do que pela exis- existem 66 delas na Bacia do Corrente⁵, se-
em 1827. Como o instituto das sesmarias foi tência de títulos³. Desse modo, foi comum gundo levantamento do grupo de pesquisa ²​ Ainda durante o século XVIII, mais precisamente em
1783, o próprio Conselho Ultramarino, por reclamações
abolido em 1821, estas terras não foram ob- a associação destas famílias com grileiros Geografia dos Assentamentos na Área Ru- diversas de posseiros do Piauí, sertões da Bahia e Per-
jeto de concessões de sesmarias pela Bahia. vindos de fora, com a promessa de compra ral – GeografAR da Universidade Federal da nambuco, decidiu anular as imensas sesmarias conce-
Apesar de medidas em léguas e alcançarem das terras, onde uns se responsabilizam pela didas a Francisco Dias D’Ávila, Francisco Barbosa Leão,
Bahia (UFBA). Bernardo Pereira Gago, Domingos Affonso Sertão, Fran-
grandes dimensões, as sesmarias conce- operação da fraude cartorial a partir de títu- cisco de Souza Fagundes, Antonio Guedes de Brito e
didas às famílias Guedes de Brito e Garcia los reais ou fictícios de posse, e outros pela Bernardo Vieira Ravasco, decisão confirmada por Carta
Régia de 20 de outubro do mesmo ano. Mais informa-
D’Ávila, principais latifúndios do Nordeste, expulsão violenta dos posseiros que insistis- ções em: Felisbelo Freite. História Territorial do Brazil.
estiveram concentradas nas margens do São sem em permanecer na área. Fac-simile de: Rio de Janeiro, 1906. Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia, 1998.
Francisco, distante dos vastos chapadões,
que permaneceram no uso comum². No governo de Antônio Carlos Magalhães, ³ A historiografia registra intensas disputas armadas
com as fronteiras agrícolas em plena expan- Na Bacia do Rio Corrente, são quarenta áre- entre coronéis no médio São Francisco desde meados
do século XIX, especialmente pelo controle da terra e
No pós-abolição, fruto da continuidade são no Oeste e Extremo Sul da Bahia, foram as de uso e manejo comunitário identifica- do poder político. Este ambiente é retratado ainda na
da concentração de terra organizada pela alteradas as leis de terras do estado em 1972 dos, autodenominados fechos de pasto, to- obra Grande Sertão: Veredas, clássico de Guimarães
Rosa, ou Porto Calendário, do correntinense Osório Al-
Lei de Terras de 1850 e da impossibilidade e 1975. Ambas visavam facilitar a legalização talizando cerca de 369 mil hectares (ha) nos ves de Castro.
de acesso à terra por meio da compra aos de títulos e registros irregulares em Cartório municípios de Correntina, Jaborandi, Coribe, 4 Joice Bonfim, Débora Assumpção, Juliana Borges,
trabalhadores ex-escravizados que perma- de Registro de Imóveis (CRI), feitos até o ano Santa Maria da Vitória e Canápolis. Os fe- Mauricio Correia e Silvia Helena Coelho. Legalizando o
neceram na região, a posse seguiu sendo a de 1960. Essas alterações, inconstitucionais, chos aqui delimitados não representam a in-
ilegal: legislação fundiária e ambiental e a expansão da
fronteira agrícola no Matopiba. Salvador: AATR, 2020.
principal forma possível de acesso à terra, contribuíram para uma nova onda de grila- tegralidade dos territórios tradicionalmente Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/matopi-
com os vínculos e convivência com o Cerrado gem, tendo por base principalmente a ma- ba-estudo-sobre-institucionaliza%C3%A7%C3%A3o-
ocupados da região, mas sim algumas das -da-grilagem-%C3%A9-lan%C3%A7ado
de modo tradicional se estabelecendo sem a nipulação de ações judiciais de inventários
áreas atualmente reivindicadas por serem
mediação de título formal das terras. Embo- e antigos formais de partilha para garantir 5 O mapeamento realizado em 2015 e atualizado em
o registro anterior a esta data⁴ (ver Quadro de uso comum remanescentes sob sua posse 2018 sobre as comunidades de Fundo e Fecho de Pas-
após as décadas de avanço do desmatamen- to, em sua justificação, indica que não se trata de um
“Inventando nos inventários”). levantamento exaustivo, e que se refere ao número de
to e cercamento dos gerais. associações.
MAPA 01 124
125
No Mapa 01 “Áreas de uso e manejo comu-
nitário”, observamos a localização e delimi-
tação dos territórios na bacia. As áreas fo-
ram delimitadas a partir de levantamento
preliminar realizado pelo órgão de terras da
Bahia, a Coordenação de Desenvolvimento
Agrário (CDA), no ano de 2018. Representam
a área de “labutar”, ou seja, terra de trabalho,
do extrativismo e solta do gado. As áreas
de moradia e de vivência estão na circunvi-
zinhança, com as roças ao lado das casas, e
pastos onde o gado fica parte do tempo. Es-
tão próximas às beiras dos rios que formam
a bacia: Guará, Rio do Meio, Santo Antônio,
Correntina, Arrojado e Formoso. Os fechos
estão no médio curso destes rios. São territó-
rios abundantes em água e neles estão cen-
tenas de nascentes, brejos e veredas.

Em razão dessa riqueza hídrica, os conflitos


por terra nessa região são também conflitos
por água. No município de Correntina, a Co-
missão Pastoral da Terra (CPT) registrou 41
conflitos por terra no período de 31 anos⁶,
sendo o mais conflitivo do estado. Ao lado
de São Desidério, Jaborandi e Formosa do
Rio Preto, figura entre os dez municípios
com maior área desmatada em toda a série
histórica do Cerrado⁷. Desmatamento, gri-
lagem de terras e apropriação privada das
águas são algumas das múltiplas dimen- ⁶ Carlos Walter Porto-Gonçalves; Samuel Britto das
Chagas. Os Pivôs da Discórdia e a “digna raiva”: uma
sões dessa história de conflitos na esteira da análise dos conflitos por terra, água e território no mu-
expansão da fronteira agrícola no Cerrado nicípio de Correntina - BA. Salvador: CESE, 2019.

baiano, como veremos a seguir.


⁷ Segundo dados do Projeto de Desenvolvimento de
Sistemas de Prevenção de Incêndios Florestais e Moni-
toramento da Cobertura Vegetal no Cerrado Brasileiro Parte da área irrigada da fazenda Santa Colomba ao longo do rio.
do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Mais informações em: http://cerrado.obt.inpe.br/ Crédito: Thomas Bauer (CPT)
BAHIA | 126

2. Padrão de desmatamento e apropriação das águas na Bacia do Corrente

As chapadas são as áreas mais cobiçadas territórios de fechos de pasto mais atingidos tamentos entre 2017 e 2020, especialmente
pelo agronegócio, em contraponto às regi- pelo desmatamento, especialmente a partir nas nascentes do Rio Guará, do Rio do Meio
ões de vales e baixadas, menos valorizadas. de 2001, são o fecho de Malhada (35)⁸ do Fir- e do Rio Arrojado¹³.
Isso decorre de múltiplos fatores, mas espe- mo (10), com um grande desmatamento re-
cialmente pelo tipo de solo das chapadas, alizado a partir de 2017; e os fechos do Quin-
por serem áreas planas que permitem a me- cão (1), Gado Bravo e Lodo (5/28).
canização em grandes extensões, com alto
nível de pluviosidade (anualmente chove Neste mesmo período, na região entre as A análise do Mapa 03 “Padrão de desmata-
em média 1.600 mm nas chapadas do Ex- nascentes do Rio Formoso e seus afluentes mento” indica pelo menos três padrões de
tremo Oeste, em contraposição à média de (Riacho dos Três Galhos e Riacho do Vau), o desmatamento: 1) Alto Rio Corrente: desma-
300 mm, no Semiárido baiano) e localizada desmatamento ocorreu para instalação de tamento de grandes extensões nas chapa-
sobre um dos maiores aquíferos do país, o cerca de 80 pivôs centrais, somando-se aos das, onde estão as cabeceiras dos rios, asso-
Urucuia. 32 já existentes por desmatamentos acu- ciadas aos monocultivos do agronegócio; 2)
mulados entre 2001 e 2010⁹. Nas cabeceiras Médio Corrente: Cerrado nativo conservado
As primeiras áreas griladas na região, nos do Rio Santo Antônio, está a empresa Sudo- pelo manejo comunitário nas áreas de fecho
anos 1960, foram no Extremo Oeste, na di- tex¹⁰, que instalou e pretende expandir os de pasto; 3) Baixo Corrente: desmatamento
visa com Goiás e Tocantins. No ano 2000, chamados “piscinões” abastecidos por poços “pulverizado” típico de áreas de povoamen- ⁸ Alguns grupos atualmente não têm acesso a grande
parte da área após a tomada de posse pelas empresas,
como é possível observar no Mapa 02 “Evo- profundos para armazenamento de água to, nas beiras de rios, vilas – onde estão as por meio do desmatamento, cercamentos e vigilância
lução multitemporal do desmatamento” a para irrigação¹¹. sedes dos municípios e principais povoados. por seguranças armados.
seguir, já havia grandes áreas desmatadas. ⁹​ Conforme calculado a partir do Mapa “Padrão de Des-
Um padrão típico da região é a grande di- Na mesma região, entre as nascentes do Rio O padrão de ocupação pelo agronegócio, matamento”.
mensão dos imóveis e do desmatamento Arrojado e Veredãozinho, a SLC Agrícola afir- concentrada no gerais, quebrou a integra- ¹⁰ Informações obtidas junto à Ação Civil Pública
correspondente. Ao centro do mapa estão os ma ser proprietária da Fazenda Piratini (25 lidade das duas unidades da paisagem 0000619-43.2016.805.0069 (Associação Ambientalista
Corrente Verde X Inema).
territórios de fechos. mil ha), onde realizou grande desmatamen- (chapadas e vales) para as comunidades
to (2012-2017) e em seguida, no ano de 2016, geraizeiras, que faziam uso dos gerais nos ¹¹ CESE. Audiência Pública debate conflito da água na
região Oeste da Bahia. 31/05/2019. Disponível em: ht-
Observando a sequência temporal do desma- arrendou as terras para a Agri Brasil Holding períodos mais secos do ano e, na época das tps://www.cese.org.br/audiencia-publica-debate-con-
flito-da-agua-em-correntina-ba/
tamento, nota-se que é um processo que está S/A, que por sua vez requereu ao Instituto do “águas”, traziam de volta o gado para as áre-
ainda em curso. A área desmatada na Ba- Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), as próximas da moradia, ou seja, nas terras ¹² Informações constam no processo de Licença Prévia
cia do Corrente entre 2001 e 2020 (880.721 autorização para perfuração de 32 poços baixas. Elas foram gradualmente perdendo junto ao Inema - Portaria nº 1.652/2018, Processo nº
2016.001.003880/INEMA/LIC-03880.
ha) é maior que toda a vegetação derruba- profundos para irrigação por meio de pivôs o acesso aos gerais e ficando restritas aos va-
da até antes do ano 2000 (639.520 ha). Os centrais¹². Foram realizados grandes desma- les e veredas. ¹³ Ver Mapas “Padrão de desmatamento”.
MAPA 02 127
MAPA 03 128
BAHIA | 129
As áreas “quebra gaúcho” nas encostas e Como podemos notar no Painel de mapas
vales 04 “Desmatamento e apropriação privada
das águas” a seguir, as principais áreas de re-
Os moradores locais costumam se referir às carga do aquífero Urucuia coincidem com as
terras baixas do médio curso dos rios que áreas das chapadas desmatadas pelo agro-
formam a Bacia do Corrente como áreas negócio e pela intensa captação de água por
“quebra gaúcho”, em alusão às tentativas
meio de pivôs centrais. Como consequência,
frustradas de plantio de monoculturas. Isso
as comunidades rurais da bacia do Corrente
porque muitos dos grileiros sendo de ori-
gem no Sul do Brasil (e genericamente iden- há décadas vêm registrando o desapareci-
tificados como “gaúchos”), com frequência, mento de nascentes¹⁴. A “migração de nas-
adquiriam títulos fraudados e nem sequer centes” tem se tornado também um fenô-
sabiam onde se localizava a suposta proprie- meno comum. O Rio Santo Antônio teve um
dade comprada. recuo de 37,7 km da sua nascente original.
No fecho de pasto de Vereda da Felicidade,
E foi assim que muitas áreas de encosta ou houve recuo das nascentes de pelo menos
fundo de vale, impróprias para a mecani- cinco riachos¹⁵.
zação necessária para viabilizar os mono-
cultivos, foram griladas no papel sem con-
sequência prática no chão em um primeiro
momento. Os projetos de monocultura não
eram implementados em razão do solo aci-
dentado e da baixa pluviosidade, em relação
às áreas das chapadas, onde se localizam as
nascentes dos rios. Ou simplesmente por-
que eram apenas fachada para apropriação
de recursos públicos, por meio de projetos
agropecuários alvo de incentivos governa-
mentais no período da Ditadura Empresa-
rial-Militar (1964-85), como veremos nos
esquemas de grilagem analisados nesse es-
tudo. Mais recentemente, a “grilagem verde”
tem promovido uma nova investida sobre
essas áreas.

¹⁴ Mais informações: TV Globo - Programa Globo Rural:


“Especial Correntina-BA” (23 maio 1999). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WJu2LzawI_I Nascente do rio Arrojado. Crédito: Thomas Bauer (CPT)
¹⁵ Porto-Gonçalves e Chagas, 2019, p. 63. Comunidade rural na bacia do rio Arrojado. Crédito: Thomas Bauer (CPT).
MAPA 04 130
131
BAHIA | 132
O grau de descolamento da realidade da Apenas na região da Bacia do Rio Corrente, O que é a “Operação Faroeste”?
gestão ambiental na Bahia se expressa um dos principais afluentes do São Francis-
numa política indiscriminada de concessões co, foram devastados 1.520.000 ha de Cerra- O Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceitou
de autorizações de supressão de vegetação do nativo, principalmente pelo agronegócio, em 2020 denúncia do Ministério Público Fe-
(ASV) e outorgas para captação de água, segundo levantamento realizado neste es- deral (MPF) contra membros da cúpula do
sejam superficiais ou subterrâneas, mesmo tudo. Poder Judiciário da Bahia, além de servido-
res, advogados e empresários do agronegó-
diante da exaustão hídrica. As maiores ou-
cio, supostamente envolvidos em esquemas
torgas de captação de água (acima de 274 A dimensão e a velocidade deste desmata-
de compra e venda de decisões judiciais em
m³/h) encontram-se justamente no entorno mento de proporções superlativas estão di- processos relacionados à grilagem de terras
das nascentes dos principais rios (Formoso, retamente associadas à invenção dos gran- de 800 mil ha no município de Formosa do
Arrojado, Correntina, Santo Antônio e Gua- des latifúndios nas chapadas do “além São Rio Preto, na região conhecida como Coace-
rá). Francisco”¹⁸, por meio da grilagem de terras ral e no Condomínio Cachoeira do Estrondo,
em dimensão de área até então desconhe- em conflito com as comunidades geraizeras
Esses desmatamentos e outorgas de água, cida na região Nordeste¹⁹. Esta invenção se do Rio Preto. A ex-presidente do Tribunal
em grande parte, foram autorizados pelo deu a partir de esquemas ao mesmo tempo de Justiça da Bahia, Maria do Socorro Bar-
órgão ambiental (Inema), embora sem cri- engenhosos e grosseiros, mas não teriam reto Santiago, foi presa temporariamente e
térios transparentes e consulta prévia, livre sido possíveis sem a ação ou omissão do Es- afastada da função de desembargadora. O
e informada aos povos e comunidades tra- tado, especialmente no dever de fiscalização juiz da comarca, Sergio Humberto Quadros
dicionais atingidos – ilegais portanto. Ilegais dos Cartórios de Registro de Imóveis, uma Sampaio, também afastado, permanece em
prisão preventiva.
também porque estão sendo concedidas, delegação pública, e da ausência deliberada
em grande medida, a empreendimentos do de uma política de identificação, delimita-
agronegócio estabelecidos por meio da in- ção e destinação constitucional das terras
vasão de terras públicas e fraudes cartoriais. públicas devolutas, sejam elas tradicional-
Segundo dados oficiais levantados no Diário mente ocupadas ou não.
Oficial do Estado da Bahia, somente entre
2011 e 2021¹⁶, foram concedidas 761 Auto- A combinação destes fatores tornou o Oeste
rizações de Supressão de Vegetação para da Bahia uma bomba-relógio do ponto de
atividades agropastoris na região Oeste, vista fundiário e ambiental, resultando em ¹⁶ Levantamento realizado até 09/09/2021.
numa área total de 774.127 ha. Em 2011, fo- conflitos não apenas entre posseiros e grilei- ¹​ ⁷ Técnica rudimentar que consiste na instalação de
ram 30 autorizações que alcançaram 23.884 ros, mas também entre os próprios grileiros. uma grande corrente entre dois tratores paralelos, que
seguindo adiante derrubam toda a vegetação em corte
ha. Em 2021, apenas até setembro, foram 137 O estouro da Operação Faroeste e seus múl- raso.
autorizações que já alcançam 130.702 ha, tiplos desdobramentos são parte de uma
¹⁸ Designação comum para a região antes da chegada
um recorde da década. trama há muito conhecida pelos movimen- do agronegócio.
tos sociais, organizações e, principalmente,
¹⁹ Desde o século XIX, pelo menos, os latifúndios do li-
O famigerado “correntão”¹⁷ tem sido o modo pelas comunidades atingidas. toral e do sertão não alcançavam dimensões tão esten-
didas. Apenas uma fazenda, como a Estrondo, em For-
principal de realizar o desmatamento para mosa do Rio Preto, tem dimensão maior que diversos
abertura de novas áreas para monocultivos. ​ municípios do Recôncavo, incluindo a capital Salvador.
133

3. Os esquemas de grilagem nos Fechos de Capão do Modesto, Porcos-Guará-Pombas,


Cupim e Vereda da Felicidade
Mesmo tento devastado e grilado grande
parte das chapadas da Bacia do Corrente, os
grileiros não se dão por satisfeitos. As áre-
as que permanecem, em grande medida,
sob a posse, uso e manejo comunitário – os
territórios de fundo e fecho de pasto – são
palco de uma renovada ofensiva, construída
a partir de grilagens antigas, até pouco tem-
po parcialmente abandonadas. Uma ponta
desse esquema encontra expressão nos ca-
dastros que grileiros e empresas do agro-
negócio têm realizado no Sistema de Ges-
tão Fundiária (Sigef) e Sistema Nacional de
Certificação de Imóveis (SNCI) do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) sobrepondo um total de 258.762 ha
nas áreas de manejo comunitário dos fechos
da bacia (ver Mapa 05 “Registros do Sigef e
SNCI” a seguir).

Comunidade rural na bacia do rio Arrojado Crédito: Thomas Bauer (CPT)


MAPA 05 134
BAHIA | 135
Alguns desses cadastros são fundados em
grilagens históricas, especialmente nos car-
tórios de Santa Maria da Vitória e Correnti-
na, que seguem, em grande medida, um pa-
drão usual de grilagem na região.

Inventando nos inventários: o padrão uma “sorte de terras na região tal”. O juiz en- Públicos (Lei Federal nº 6.015/1973). Neste Um exemplo típico na Bacia do Corrente foi a
usual da grilagem no Oeste da Bahia tão, por sentença, declara que cada um dos momento, não necessariamente o grileiro abertura ilegal, a partir de 1980, de matrícu-
cinco filhos terá direito a uma “parte ideal” cerca a terra – é uma providência que pode las dos imóveis rurais que se originaram das
A técnica mais comum da grilagem de terras nesta “sorte de terras”. vir no momento do georreferenciamento ou supostas fazendas “Capão do Modesto”²º,
no Oeste da Bahia é a conversão de supostas quando se consegue um empréstimo bancá- “Capão de Cima” e “Santo Antônio”, totali-
posses de terras em registro de propriedade Em 1980, um dos cinco filhos, então, rece- rio tendo o próprio registro ilegal do imóvel zando 82.000 ha, atualmente sobrepostas
particular por meio da aquisição de direitos be uma proposta financeira de um grileiro como garantia, por exemplo. aos fechos do Cupim (7); Vereda da Felicida-
possessórios com pretensa origem em ações de terras de outra região, para aquisição da de (31); e a suposta fazenda “Riacho ou Sítio
de inventário e formais de partilha (heran- “parte ideal” destes direitos possessórios, Pode haver variações. Por exemplo, os cinco do Capão”, totalizando 16.383 ha, com imó-
ça). por meio de uma escritura de promessa de filhos do Sr. João vendem suas “partes ide- veis sobrepostos aos fechos de Capão do Mo-
compra e venda, registrada em Tabelionato ais”, que serão arbitrariamente delimitadas desto (14) e Porcos-Guará-Pombas (25). Os
Como funciona? de Notas em um município ou estado mui- cada uma com 10 mil ha, e logo após, uni-
esquemas de grilagem derivados dessas 04
Vamos imaginar a seguinte situação hipo- to distante de Correntina. Quem assina são ficadas em matrícula de um único imóvel
“fazendas fantasmas” sobre esses 04 fe-
tética. O Sr. João, morador da zona rural de procuradores nomeados, e não as partes di- com 50 mil ha. Eventualmente, os grileiros
Correntina, criava animais junto com outros retamente. Após a aquisição da “parte ideal”, se dirigem ao próprio magistrado local e, chos de pasto são o foco da presente análise.
irmãos numa determinada área de terras no o grileiro então contrata um técnico ou en- em petição simples, requerem a retificação
chapadão, exercendo, portanto, direitos re- genheiro agrimensor e promove a delimi- ou delimitação da área, e com uma simples
lacionados à posse, nos anos 60. O Sr. João e tação do suposto imóvel, abarcando toda a anotação de caneta e assinatura na própria
seus irmãos usavam estas terras desde que área que era então de uso comum entre os petição, o juiz registra sua “sentença” com
nasceram, e seus pais também nasceram e herdeiros e mesmo de outras famílias locais um simples “defiro o pedido”. Esta petição,
morreram ali, mas nunca tiveram em mãos que não tinham nada a ver com o acordo en- então, é levada ao CRI e é averbada agora
documentos de propriedade. tre a família do Sr. João e os grileiros. com a delimitação da área na matrícula.
Uma outra variação comum, é quando os
Em 1964, o Sr. João faleceu, deixando para os Com a Escritura de Promessa de Compra e tais “herdeiros” jamais exerceram a posse
seus cinco filhos os direitos possessórios que Venda e a planta e memorial descritivo, o naquele local, havendo casos inclusive de
exercia naquelas terras. Os filhos fizeram grileiro então se dirige ao Cartório de Re- falsificação de processos inteiros de inventá-
então o levantamento dos bens, e ingressam gistro de Imóveis (CRI) de Correntina e abre rios, em nome de laranjas, com a finalidade
com ação de inventário para divisão entre uma nova matrícula para o imóvel, agora única de forjar direitos possessórios e/ou de
²º É importante notar que os registros das grilagens
eles. A posse de terras, então, é arrolada no com um nome e uma delimitação (ex. Faz. propriedade. usavam nomes tradicionais das áreas para as supostas
formal de partilha, via de regra, sem deli- Panambi, com 10 mil ha). Como não havia fazendas, mas Capão do Modesto – comunidade/fecho
não é a mesma coisa que “Capão do Modesto” – preten-
mitação (princípio da especialidade) e sem registro ou delimitação anterior, o oficial do Esta é a forma típica da grilagem no Oeste sa propriedade particular, que foi utilizada na realidade
registro anterior (princípio da continuida- CRI deveria ter recusado o registro, pois não da Bahia. para grilagem nos territórios de fecho de pasto vizinhos
de), como um imóvel rural correspondente a se adequava às regras da Lei de Registros (Vereda da Felicidade e Cupim).
MAPA 06 136
BAHIA | 137
Identificamos, portanto, um total aproxi- conduzir os trabalhos de demarcação, le-
mado de 98.383 ha de grilagem cartorial, “Uma parte de terra de água de vantamento das posses e pesquisa cartorial,
ou seja, terras griladas no papel, tendo em rega e de seco em comum com os após algumas reuniões nas comunidades,
vista que apenas parte delas foi convertida mais herdeiros na fazenda dos não retornaram para conclusão dos traba-
em posse efetiva, como veremos. Contudo, Capões do Mudesto deste Têrmo, lhos desde o mês de junho de 2021, assim
há indícios de que a soma total dos títulos sendo que a parte do regadio é ex- como não responderam às tentativas de con-
e registros que indicam a origem nestas fa- tremada pelo lado de cima até a tato e pedidos de acesso aos procedimentos
zendas possa ultrapassar a dimensão de lagoa e pelo de baixo com Manoel feitos pelas associações comunitárias.
200.000 ha, utilizando-se de artifícios se- Ignácio Gonçalves e pelo nascente
melhantes ao indicado no Quadro “Inven- em comum com os mais herdeiros
tando nos Inventários”. até o desaguamento dos veados.”
Enquanto isso, no gabinete do governador
O que seria uma “parte de terra de água de do Estado da Bahia
Após rigorosa análise das certidões carto-
riais acessadas²¹, nenhum destes supostos rega e seco”? Qual a dimensão? A qual “la-
Neste mesmo mês, em 11/06/2021, o gover- estava as “discriminatórias no município de
imóveis rurais possuem referência à delimi- goa” se refere? E ao leste, consta um limite
nador do Estado da Bahia, Rui Costa, rece- Correntina”. Como veremos adiante, se trata
tação, dimensão, tampouco registro anterior “em comum com os mais herdeiros”, ou seja,
beu em seu gabinete Luiz Carlos Bergamas- de um dos principais beneficiários de grila-
válido, ou seja, não se tratava de proprieda- ainda que houvesse posse não havia delimi- chi, então presidente da Associação Baiana gem de terras em Correntina, sendo dire-
des particulares devidamente registradas, tação entre os posseiros. de Produtores de Algodão (Abapa), que tamente interessado, pois a consequência
conforme a legislação anterior (Decreto reivindica propriedade do imóvel grilado da ação discriminatória deve ser o requeri-
Federal n° 4.857/39) e atual (Lei Federal nº Os fechos de Capão do Modesto, Vereda da “Vale do Correntina”, de 1.140 ha, para fins de mento da nulidade do registro do suposto
6.015/1973). O princípio da especialidade Felicidade e Porcos-Guará-Pombas estão reserva legal, sobreposta ao fecho de pasto imóvel, sem previsão de indenizações e com
(correta descrição do imóvel e confronta- em processo de demarcação e titulação por de Capão do Modesto. Dentre os temas tra- possibilidade de responder também no âm-
meio de ação discriminatória administra- tados na reunião, segundo site da Abapa²³, bito criminal.
ções), e da continuidade (necessidade de
registro anterior do imóvel), já estavam pre- tiva pelo órgão de terras estadual (CDA)²²,
sentes na legislação anterior e seguem sen- iniciado em 18 fevereiro de 2021. Esta ação é
do fator determinante para a segurança jurí- reivindicada há pelo menos uma década pe-
dica dos registros públicos de imóveis rurais. las comunidades e o longo tempo de espera
imposto pelo órgão fundiário foi uma opor-
Dentre as quatro “fazendas fantasmas” indi- tunidade para que os grupos de grileiros
cadas acima, apenas a pretensa propriedade buscassem formas de consolidar a grilagem,
²¹ Certidões de Inteiro Teor e Cadeia Sucessória nos
denominada “Capão do Modesto” possuía inclusive com novos georreferenciamen- Cartórios de Registros de Imóveis e Correntina e Santa
uma vaga indicação de limites em seu pri- tos para realização dos cadastros do Incra e Maria da Vitória.

meiro registro, no ano de 1954, no Cartório Cadastro Ambiental Rural (CAR) /Cadastro
²² Portarias CDA nº 12, 13 e 14/2021.
de Santa Maria da Vitória, muito típica e Estadual Florestal de Imóveis Rurais (CEFIR)
conveniente para o uso indiscriminado de (ver Mapa 07 Registros do CAR). ²³ Aiba e Abapa se reúnem com governo do Estado
para tratar de demandas do setor produtivo. Abapa,
Nota-se que são referências absolutamente 17/06/2021. Disponível em: https://abapa.com.br/noti-

imprecisas. Contudo, a Comissão Especial formada para cias/aiba-e-abapa-se-reunem-com-governo-do-esta-


do-para-tratar-de-demandas-do-setor-produtivo/
138

QUATRO
QUATRO“FAZENDAS FANTASMAS”
“FAZENDAS FANTASMAS”
GRILANDO
QUATRO TERRITÓRIOS TRADICIONAIS

É importante notar que os registros das


grilagens usavam nomes tradicionais das áreas

Um exemplo típico na Bacia do


para as supostas fazendas, mas Capão do
Modesto – comunidade/fecho não é a mesma
coisa que “Capão do Modesto” – pretensa
Corrente foi a abertura ilegal, a propriedade particular, que foi utilizada na
realidade para grilagem nos territórios vizinhos

partir de 1980, de matrículas dos [1] de Vereda da Felicidade e Cupins.

imóveis rurais que se originaram “Capão do Modesto”


das supostas fazendas “Capão de Cima”
totalizando 82.000 ha, atualmente sobrepostas
“Santo Antônio” aos fechos do
e a suposta fazenda
totalizando 16.383 ha Cupim (7)
"Riacho ou
Sítio do Capão" Vereda da Felicidade (31)

Os esquemas de grilagem com imóveis sobrepostos


aos fechos de Capão do Modesto (14)
derivados dessas
Porcos-Guará-Pombas (25)
04 “fazendas fantasmas”
sobre esses
04 fechos de pasto
são o foco da presente análise.
139

FAZENDAS FANTASMAS
25
FECHOS DE PASTO GRILADOS
14
Capão do Modesto
82.000 ha Cupim
7
Capão de Cima Vereda da Felicidade
31 Santo Antônio

16.383 ha Capão do Modesto


Riacho ou Sítio do Capão Porcos-Guará-Pombas
Fechos de Pasto da Bacia do Rio Corrente

os imóveis com indicação de origem nas supostas fazendas


"Capão do Modesto", "Capão de Cima" e "Santo Antônio"
(Vereda da Felicidade, Cupim e Capão do Modesto)

os imóveis originados da suposta fazenda "Sítio do


Capão" (Capão do Modesto e Porcos-Guará-Pombas).

Um total aproximado de 98.383 hectares


de grilagem cartorial, ou seja,
terras griladas no papel,
tendo em vista que apenas parte delas foi
convertida em posse efetiva, como veremos

Contudo, há indícios de que a soma total dos títulos


e registros que indicam a origem nestas fazendas
possa ultrapassar a dimensão de 200.000 ha,
utilizando-se de artifícios semelhantes ao indicado
no Quadro "Inventando nos Inventários".
MAPA 07 140
141

REVELANDO AS PRIORIDADES DO ESTADO DA BAHIA:

AÇÃO DISCRIMINATÓRIA ENQUANTO


DOS FECHOS PARADA O GOVERNADOR SE
REÚNE COM O GRILEIRO

Os fechos de Capão do Modesto, Vereda da


Felicidade e Porcos-Guará-Pombas estão
em processo de demarcação e titulação por
meio de ação discriminatória administrativa
pelo órgão de terras estadual (CDA)²,
Esta ação é reivindicada há pelo
iniciado em 18 fevereiro de 2021. menos uma década pelas
[2]
comunidades...
Portarias CDA nº 12, 13 e 14/2021
e o longo tempo de espera imposto pelo
órgão fundiário foi uma oportunidade
para que os grupos de grileiros buscassem
formas de consolidar a grilagem,
inclusive com novos georreferenciamentos para realização
dos cadastros do Incra e Cadastro Ambiental Rural (CAR) /
Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (CEFIR).

Contudo, a Comissão Especial formada para conduzir os


trabalhos de demarcação, levantamento das posses e
pesquisa cartorial, após algumas reuniões nas comunidades,
não retornaram para conclusão dos trabalhos
desde o mês de junho de 2021, assim como
não responderam às tentativas de contato e pedidos de
acesso aos procedimentos feitos pelas associações
comunitárias.
Enquanto isso... 142

Neste mesmo mês, em 11/06/2021, o governador do estado da Bahia,


Rui Costa, recebeu em seu gabinete Luiz Carlos Bergamaschi, então
presidente da Associação Baiana de Produtores de Algodão (Abapa),
que reivindica propriedade do imóvel grilado
"Vale do Correntina", de 1.140 hectares, para fins de reserva legal,
sobreposta ao fecho de pasto de Capão do Modesto.

Dentre os temas tratados na reunião, segundo site da


Abapa, estava as “discriminatórias no município de
Correntina”. Como veremos adiante, se trata de
um dos principais beneficiários de
grilagem de terras em Correntina,
sendo diretamente interessado, pois:

a consequência da
ação discriminatória deve requerimento da nulidade do
ser o
registro do suposto imóvel

sem previsão de indenizações


e com possibilidade de
responder no âmbito criminal
BAHIA | 143
Embora os registros ilegais das “fazendas Mas no início da década passada, o cenário gistros do antigo cadastro do Incra (o SNCI)
fantasmas” tenham sido realizados nos anos mudou. entre o Rio Santo Antônio e o Rio Correntina,
de 1980, 1994 e 2005, com objetivo aparente onde estão localizadas as áreas de manejo
de especulação fundiária, acesso a emprésti- Na Bahia, a mudança começa ainda no ano dos quatro fechos de pasto em análise. O
mos bancários e recursos públicos de incenti- de 2011, com a aprovação da Lei Estadual n° Sigef, por sua vez, é um cadastro lançado
vo à expansão das monoculturas, após vários 12.377/2011, de iniciativa do poder executivo, pelo Incra no ano de 2014, para substituir
anos de abandono do esquema da grilagem, que inseriu a possibilidade de que imóveis o anterior. Com a possibilidade aberta pela
estas áreas passaram a ser novamente cobi- rurais pudessem fazer compensação de re- legislação de compensação de reservas, cujo
çadas diante de uma nova possibilidade de serva legal fora do perímetro do imóvel (art. período coincide com a abertura do Sigef,
lucro: a grilagem verde, ou seja, a apropria- 109-A). Logo depois, no cenário nacional, constatamos visualmente o aumento do in-
ção ilegal de terras com objetivo específico sob protestos da sociedade civil organizada, teresse nestas áreas, com registros no novo
de averbá-las como reserva legal de outros é aprovado o novo Código Florestal, em 2012 cadastro passando a se sobrepor à quase to-
imóveis, ou mesmo para aferição de lucro (Lei Federal 12.651/2012), que dentre outras talidade dos fechos desde então.
por meio de arrendamento ou recebimento reivindicações do setor do agronegócio, in-
de valores de créditos de carbono²⁴ , possibi- cluiu também a possibilidade de compen- Vamos demonstrar, em síntese, como essa
lidades estas abertas pelo Código Florestal sação de RL fora do imóvel rural (art. 66, IV). situação afeta as comunidades, quem vem
de 2012. se beneficiando dela e como foi, na prática,
É possível constatar essa inflexão a partir do operada a grilagem de terras em cada terri-
Em números totais, foram cadastrados no ritmo de avanço dos cadastros de imóveis do tório.
CEFIR 1.262 imóveis pretensamente par- Incra. O SNCI (Sistema Nacional de Certifica- ​
ticulares sobrepostos às áreas de manejo ção de Imóveis) foi criado em 2004, sendo a
comunitário dos fechos de pasto como um primeira base de dados geoespaciais imple-
todo²⁵. Analisando o Mapa 08 “Grilagem mentada pelo Incra para a certificação de
verde” a seguir, notamos que já são 82.300 imóveis rurais. Como o georreferenciamen-
ha cadastrados como reserva legal sobre- to e cadastro são serviços com alto custo,
posta ao conjunto das áreas de fechos da raramente serão realizados pelos pequenos
Bacia do Corrente. produtores e comunidades que estão em
regime de posse. Mas para as empresas do
Note-se que os fechos mais afetados pela agronegócio, fazer este cadastro era peça
grilagem verde, em termos proporcionais, fundamental para a consolidação da grila-
são justamente Capão do Modesto, Porcos- gem cartorial operada nas terras altas das ²⁴ Tramitam no Congresso Nacional propostas de re-
gulamentação deste mercado. Mais informações em:
-Guará-Pombas, Cupim e Vereda da Felicida- chapadas. Comissão aprova proposta que regulamenta mercado
de. Como dito anteriormente, as áreas mais de negociação de créditos de carbono. Agência Câmara
de Notícias, 21/06/2021. Disponível em: https://www.
baixas, caso destes territórios, não eram Um indício de que o interesse nas áreas dos camara.leg.br/noticias/775240-comissao-aprova-pro-
prioritárias tendo em vista suas característi- fechos aumentou recentemente está evi- posta-que-regulamenta-mercado-de-negociacao-de-
-creditos-de-carbono/
cas de solo e topografia, além do volume de dente no Mapa 09, com o recorte do municí-
²⁵ Boa parte destes números referem-se a cadastros
chuvas menor que nas áreas de chapadas. pio de Correntina. Nota-se que não havia re- menores no território de Salobro e Jacurutu (26).
MAPA 08 144
MAPA 09 145
146

ESTRATÉGIAS RENOVADAS DE GRILAGEM:

DA ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA E À COMPENSAÇÃO AMBIENTAL


ACESSO A CRÉDITO SUBSIDIADO

Embora os registros ilegais das “fazendas fantasmas” tenham sido


realizados nos anos de 1980, 1994 e 2005, com objetivo aparente de
especulação imobiliária, acesso a empréstimos bancários e recursos
públicos de incentivo à expansão das monoculturas,

após vários anos de abandono do esquema da grilagem


estas áreas passaram a ser novamente
cobiçadas diante de uma nova possibilidade de lucro:

A GRILAGEM VERDE
ou seja, a apropriação ilegal de terras
com objetivo específico de averbá-las como:
reserva legal de outros imóveis
ou mesmo para aferição de lucro por
meio de arrendamento
ou recebimento de valores de créditos de carbono³
[3]
possibilidades estas abertas pelo Código Florestal de 2012. 3. Tramitam no Congresso Nacional propostas de regulamentação deste mercado. Mais
informações em: Comissão aprova proposta que regulamenta mercado de negociação
de créditos de carbono. Agência Câmara de Notícias, 21/06/2021. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/noticias/775240-comissao-aprova-proposta-que-regulament
a-mercado-de-negociacao-de-creditos-de-carbono/
147

Em números totais, foram cadastrados no CEFIR


1.262 imóveis pretensamente particulares sobrepostos [4]
Boa parte destes números referem-se a cadastros
menores no território de Salobro e Jacurutu (26)

às áreas de manejo comunitário dos fechos de pasto como


um todo⁴. Analisando o Mapa “Grilagem verde” a seguir, notamos que

já são 82.300 hectares


cadastrados como reserva legal
sobreposta ao
conjunto das áreas de
Os fechos mais afetados pela fechos da Bacia do Corrente
grilagem verde, em termos
proporcionais, são justamente:

Capão do Modesto, Porcos-Guará-Pombas, Cupins e Vereda da Felicidade.

Como dito anteriormente, as áreas mais baixas, caso destes territórios, não
eram prioritárias tendo em vista suas características de solo e topografia,
além do volume de chuvas menor que nas áreas de chapadas.
Mas no início da década passada, o cenário mudou...

chuvas chapadões
148
Na Bahia, a mudança começa ainda no ano de 2011, com a aprovação Logo depois, no cenário nacional, sob protestos da sociedade civil organizada, é
da Lei Estadual n° 12.377/2011, de iniciativa do poder executivo, que aprovado o novo Código Florestal, em 2012 (Lei Federal 12.651/2012), que
inseriu a possibilidade de que imóveis rurais pudessem fazer dentre outras reivindicações do setor do agronegócio, incluiu também a
compensação de reserva legal fora do perímetro do imóvel possibilidade de compensação de RL fora do imóvel rural (art. 66, IV).
(art. 109-A).

É possível constatar essa inflexão a partir Como o georreferenciamento e cadastro são


do ritmo de avanço dos cadastros de serviços com alto custo, raramente serão
imóveis do Incra. realizados pelos pequenos produtores e
comunidades que estão em regime de posse.
O SNCI (Sistema Nacional de
Mas para as empresas do agronegócio,
Certificação de Imóveis) é o primeiro
fazer este cadastro era
cadastro em plataforma eletrônica
do órgão fundiário federal e foi criado no
peça fundamental para a
ano de 2001. consolidação da grilagem cartorial
operada nas terras altas das chapadas.

No mapa abaixo, com o recorte do município


de Correntina, nota-se que o SNCI foi
concentrado justamente nessas áreas.

O Sigef, por sua vez, é um cadastro lançado pelo


Incra no ano de 2014, para substituir o anterior.

Nas áreas dos vales e baixadas, foram poucos os cadastros no SNCI.


Mas com a possibilidade aberta pela legislação de compensação de reservas,
cujo período coincide com a abertura do Sigef, constatamos visualmente o
aumento do interesse nestas áreas (localizadas na parte leste do município).
149

3.1 Grilagem e especulação fundiária sobre os fechos de


Vereda da Felicidade e Cupim
A memória dos mais velhos não falha quan-
do recordam da repentina chegada na região
de um grupo que ficou conhecido como os
“grileiros da Prestec”, que afirmavam serem
os donos das áreas de manejo comunitários
de Cupim (7), Cabresto, Onça, Baixão do Car-
mo e Vereda da Felicidade (31). Isso se deu
entre os anos de 1979 e 1980, quando estes
grupos especializados na operacionalização
da grilagem de terras conseguiram ilegal-
mente abrir novas matrículas de imóveis
rurais no Cartório de Registro de Imóveis de
Correntina.

²⁶ O instituto foi extinto após uma série de denúncias


de corrupção e favorecimento de militares, especial-
mente no caso que ficou conhecido como “Capemi”.
Mais informações em: MPF/PA investiga prejuízos aos
cofres públicos em obras da hidrelétrica de Tucuruí na
década de 80. Ecodebate, 03/04/2014. Disponível em:
https://www.ecodebate.com.br/2014/04/03/mpfpa-in-
vestiga-prejuizos-aos-cofres-publicos-em-obras-da-hi-
dreletrica-de-tucurui-na-decada-de-80/
150
Neste mesmo período, promoveram alguns Os “grileiros da Prestec” jamais haviam circu- O milagre da multiplicação de hectares
desmatamentos na área, com o objetivo de lado por ali. Nem mesmo outros fazendeiros e valorização da terra pelos “grileiros da
“tomar posse”, mas não apenas: eles haviam da região se reivindicavam donos. Mas quem Prestec”
conseguido vultuosos empréstimos de re- eram eles? Radicados em Pernambuco, Mú-
cursos públicos junto ao Instituto Brasileiro cio Bezerra Bandeira de Mello, Pedro da Silva Controlando as empresas Companhia de logo após a suposta aquisição, que em valo-
de Defesa Florestal (IBDF)²⁶ – antecessor Correa de Oliveira Andrade Neto e Pietro de Participação Universal (CUP), Alhandra Em- res atuais corresponderia a R$ 479.139,53²⁷.
preendimentos Imobiliários Ltda., Estoril Em 1982, apenas dois anos depois, a CUP
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Medeiros Carneiro Júnior, se apresentando
Reflorestadora Ltda., Agrotec Serviços Geo- então vende 4.000 ha (ou seja, menos da
dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) como empresários, adquiriram por meio de
lógicos e Agrotécnicos Ltda., Prestec - Pres- metade da área originalmente “comprada”)
– para implantação de projetos de monocul- contratos de promessa de compra e venda tadora de Serviços Técnicos Ltda., e Santa para a Alhandra Ltda., que no mesmo ano
turas de pinus, caju e eucalipto nestas áreas, supostos direitos possessórios adquiridos Teresa Reflorestamento Ltda., todas sedia- revende a área para a Estoril Reflorestadora
tendo apresentado os títulos registrados de por herança de dois casais de moradores da das em Pernambuco, foi arquitetado um Ltda. pelo valor atualizado de R$ 912.476,36.
modo fraudulento como garantia. região – um casal de prenomes Alipio e Ma- esquema de inúmeras operações de compra Ou seja, parte de um imóvel sem delimita-
ria, e outro casal de prenomes Tertulino e e venda entre elas, de “partes ideais” de di- ção e registro anterior válido, se valorizou
À época, a situação causou estranheza e in- Umbelina – relacionados às “partes ideais” ferentes imóveis supostamente desmem- cerca de 90% em apenas dois anos.
dignação nas famílias das comunidades lo- de 3 das “fazendas fantasmas” – “Capão do brados, sempre com grande valorização de
cais, pois seguindo a tradição dos pais e avós, Modesto”, “Capão de Cima” e “Santo Antônio”. preços e aumento de hectares entre uma e Na certidão cartorial analisada consta ainda
ali desenvolveram desde cedo as atividades outra transação. que, após a venda de 4.000 ha da área total
usuais que caracterizam os modos de fazer, de 10.000 ha, restariam ainda 9.000 ha, ou
viver e criar dos fundos e fechos de pasto. Em 15 de maio de 1980, por exemplo, a CUP seja, mais 3.000 ha surgem sem indicação
registrou matrícula no CRI de Correntina ale- de origem.
Além da criação de gado, que já era a prin-
gando a aquisição de 10.000 ha destes pre-
cipal fonte de renda, sempre fizeram uso
tensos herdeiros. Como não havia indicação
extrativista do araticum (cascudo), buriti, de limites, um georreferenciamento foi feito
coqueiro do cerrado, coco, grão de galo, ca-
gaita, caju, cajueiro do cerrado, puçá, pequi,
e de ervas (plantas medicinais) que servem
como remédios naturais para os criadores e
suas famílias.

Existem nestas terras diversas fruteiras an-


²⁶ O instituto foi extinto após uma série de denúncias
tigas, plantadas pelos posseiros criadores de corrupção e favorecimento de militares, especial-
associados. Dentro das áreas de manejo co- mente no caso que ficou conhecido como “Capemi”.
Mais informações em: MPF/PA investiga prejuízos aos
munitário brotam importantes nascentes, cofres públicos em obras da hidrelétrica de Tucuruí na
como as do Riacho do Cupim e Sumidouro, década de 80. Ecodebate, 03/04/2014. Disponível em:
https://www.ecodebate.com.br/2014/04/03/mpfpa-in-
que desaguam no Rio Correntina. Nestes vestiga-prejuizos-aos-cofres-publicos-em-obras-da-hi-
fechos de pasto existem ranchos antigos, dreletrica-de-tucurui-na-decada-de-80/
currais, casa de farinha e casas de moradia –
algumas delas centenárias. ²⁷ Os valores foram atualizados pelo índice IGP-DI/FGV.
BAHIA | 151
Todo esse esquema foi feito tendo em men- ta fazenda como bem de capital da empresa, Patrimonial Ltda., controlada por Ricardo Em 2016, diante do pedido de informações
te não prioritariamente tomar posse da terra que tinha como sócios ainda Gianpaolo Ste- Rodrigues e Gisele Cristina Silveira Moreira e da existência de procedimento na Correge-
em si, mas forjar títulos de propriedade, am- fani, sobrinho do ex-ministro Delfim Neto; e Rodrigues e Mary Elisabeth Bonatelli Ro- doria do Tribunal de Justiça, a oficial substi-
pliar o tamanho das pretensas fazendas e o Albert e Gabriel Safdie, herdeiros de Edmun- drigues. O valor da segunda venda foi de R$ tuta do CRI de Correntina recusou o registro
preço da terra para obter crédito subsidiado. do Safdie, dono do Banco Cidade (adquirido 7.500.000,00, e sua concretização deu causa e averbação da compra do imóvel grilado, o
Foram, portanto, estes registros ilegais no em 2002 pelo Bradesco). A partir de 2008, a uma série de disputas judiciais entre su- que impossibilitaria mudar a titularidade
esse grupo de sócios vai se envolver em dis- postos compradores e vendedores. do fraudulento domínio em nome da com-
CRI que viabilizaram o acesso, pelo grupo
putas intestinas quando decidem colocar o pradora Light of Stars. Em maio de 2017, a
de grileiros, ao financiamento público do
imóvel grilado à venda, com acusações mú- No ano de 2015, com o imóvel ainda em magistrada Marlise Freire Alvarenga, após
IBDF, para implantação de monocultu- tuas de fraude e deslealdade na condução nome da Bandeirantes Ltda., a Light pa- ouvir o oficial do CRI e o Ministério Públi-
ra de pinus e eucalipto vinculados às su- das tenebrosas transações desta empresa. trocina um novo georreferenciamento, e co, nega o registro e a averbação da venda,
postas fazendas. São expressões de uma agora indica que o imóvel grilado totaliza “uma vez que as informações oriundas do
dinâmica sistemática, pois foram diversos Usaram de sua influência para conseguir 21.697 ha, ou seja, 1.697 hectares a mais do Incra apontam tratar-se de imóvel rural com
contratos realizados com esse mesmo mo- um financiamento de aproximadamente 20 que constava na escritura de promessa de comprovação de domínio irregular situado
dus operandi. Outro caso similar sobre os milhões de reais (em valores atuais) no IBDF compra e venda. Neste mesmo ano, a Ban- em terras de presunção estadual.”
fechos Vereda da Felicidade e Cupim é o do para implantação de monocultura de pinus deirantes Ltda., sem maiores dificuldades,
banqueiro Khafif (e seu grupo) na grilagem e eucalipto na área. Entretanto, apesar de consegue realizar a averbação de novo ge- No entanto, o grupo de compradores e ven-
da “Fazenda” Bandeirantes.​ ter havido desmatamento em uma pequena orreferenciamento no CRI de Correntina, dedores, além do oficial do Cartório, utiliza-
parte da área com essa finalidade, e efeti- tendo a delegatária substituta Doris Araújo ram-se ilegalmente a decisão administrativa
vamente o plantio também em parte dela, Castro Laranjeira promovido a abertura de de encerramento do processo na Corregedo-
logo os cultivos foram abandonados. Os do- uma nova matrícula, nº 9802, encerrando a ria do TJ-BA, em 08/08/2017, proferida pelo
O banqueiro Khafif (e seu grupo) na grila- nos da empresa não pagaram o empréstimo matrícula original da grilagem, nº 758. magistrado Márcio Reinado Miranda Braga
gem da “Fazenda” Bandeirantes e abandonaram o projeto. e acatado pela Des. Cyntia Maria Pina Resen-
O fato chamou a atenção do Incra, quando de, para burlar a decisão judicial proferida
A área esteve completamente relegada pe- houve a tentativa de fazer o registro no Cer- em sentença pela magistrada de Correntina.
Com 21 mil hectares sobrepostos ao fecho los grileiros até o ano de 2008, período em tificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR). Vale ressaltar que Marcio Braga foi afastado
de Vereda da Felicidade e, especialmente, que permaneceu sob a posse e uso tradi- Após consulta à Procuradoria Jurídica Espe- do cargo de juiz pelo STJ no ano de 2020, no
ao fecho do Cupim (ver Mapa “Fazendas fan- cional pelos fechos de pasto de Vereda da cializada, o Incra concluiu que a área não âmbito da Operação Faroeste, por envolvi-
tasmas”), esta suposta fazenda tem origem Felicidade e Cupim. A partir do ano de 2004, era de domínio particular, recusando inicial- mento no esquema de venda de decisões ju-
na mesma linha da grilagem da “Prestec”. os supostos proprietários passaram a pro- mente o registro no cadastro do órgão, em diciais relacionadas à grilagem de terras no
Teria sido adquirida dos herdeiros de Tertu- curar compradores para o imóvel grilado. razão das ilegalidades no registro e ausência município de Formosa do Rio Preto.
lino e Umbelina Moreira pelo banqueiro de Em 2008, é firmado um contrato de com- de comprovação do destaque do patrimônio
origem sírio-libanesa Edgar Khafif, em 1979, pra e venda com a Cometa Agroindustrial público. A superintendência do Incra/BA en- O oficial do CRI de Correntina, mesmo sem
tendo sido registrada ilegalmente um ano S/A, sediada em Recife (PE), de propriedade tão oficiou à Corregedoria das Comarcas do autorização da magistrada, procedeu o re-
depois, no CRI de Correntina em 1980, com de Jarbas Guimarães Júnior, no valor de R$ Interior, do Tribunal de Justiça da Bahia, que gistro da venda em 03/11/2017, em benefício
matrícula nº 758. 6.000.000,00. abriu procedimento investigatório sobre a da Light of Stars e da Bandeirantes Reflores-
matrícula. A CDA, agindo de forma lesiva ao tadora Ltda., realizado mesmo sem que a
O banqueiro, radicado em São Paulo, fundou Em 2014, Edgar Khafif e Gianpaolo Stefani patrimônio público e às comunidades atin- Bandeirantes Ltda. pudesse comprovar que
naquele mesmo ano a Bandeirantes Reflo- vendem novamente o mesmo imóvel gri- gidas, naquela oportunidade sequer respon- não possui dívidas ativas com a União. Com
restadora Ltda. Em 1981, incorporou a supos- lado, desta vez para a Light of Stars Gestão deu ao ofício que lhe foi direcionado. dívidas decorrentes do calote no IBDF e um
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imóvel inteiramente ocupado por terceiros, No final da década de 1980, inicia-se uma tal, no entorno de uma sede construída no licidade como “reserva legal” e construiu
ainda assim alcançaram o objetivo de lucrar derivação desse esquema que tem fortes ano de 2004, na chamada fazenda “Santa uma nova cerca acima da localidade Mor-
com a venda dos papéis podres adquiridos impactos até hoje sobre os fechos: em 1989, Tereza”. Apesar disso, busca avançar seu rinhos (na beira do rio). Um curral também
nos anos 80. os “grileiros da Prestec” venderam parte dos controle sobre mais terras da área de ma- é construído na área, levantado no meio da
supostos imóveis, agora matriculados no nejo comunitário a partir de 2010, consti- estrada, uma servidão usada há mais de cem
A Light deu seguimento ao que, tudo indi- CRI de Correntina, para José Francisco do tuindo um processo de assédio e violência anos pelos posseiros criadores.
ca, era seu objetivo inicial: desmembrar o
Amaral, gaúcho radicado em Panambi- contra as comunidades de fecho de pasto,
imóvel grilado em sete partes, cada uma
-RS. Nesse ano, ele adquiriu no papel 16.090 ao mesmo tempo que o poder executivo mu- Em 2014, a Associação Comunitária de Ve-
com uma nova matrícula. E assim o fez, em
21/10/2019, quando foi encerrada a matrícu- ha por meio de seis contratos de promessa nicipal e estadual, bem como o judiciário, reda da Felicidade ingressou com ação de
la 9802, e abertas sete novas matrículas. Em de compra e venda, fatiando e juntando par- são coniventes com seus desmandos, como manutenção de posse contra José F. Amaral,
09/03/2020, foi averbada ainda, nas matrí- tes de imóveis, de forma a criar um emara- relatado a seguir. mas o magistrado Aderaldo de Moraes Lei-
culas, o Cadastro Ambiental Rural / CEFIR, nhado de burocracia para ocultar a origem e te Junior nega a liminar, apesar do robusto
junto ao Sistema Estadual de Informações embaralhar as confrontações, com aumento Em 2012, foi queimado o antigo rancho per- conjunto de provas apresentado para com-
Ambientais e de Recursos Hídricos (SEIA) do da dimensão dos falsos imóveis rurais des- tencente aos posseiros, na localidade Pas- provação da posse, afirmando que se tratava
Inema. Em abril de 2021, já com ação discri- membrados. Desde então, ele tem sido sagem da Onça, dentro do fecho. O novo de “posse velha”, ou seja, a tomada da terra
minatória em curso pela CDA, foi realizado o protagonista de novas grilagens e de rancho construído logo após, foi derrubado já havia se dado a mais de um ano e um dia.
o cadastro das sete partes do imóvel grilado ações de turbação e esbulho contra as as- com motosserra. No ataque, deixaram um
no Sigef/Incra, avançando no longo ciclo de sociações de fecho de pasto, especialmen- recado: tiros nas panelas e utensílios dos Após um tempo de relativa calmaria, no-
legalização da grilagem - pelo menos até te Vereda da Felicidade. criadores. vos ataques são realizados em janeiro de
aqui.
2021²⁸. Como vimos, diante da pressão dos
Em 2003, ele adquire mais papéis em um Ainda neste ano, mesmo com todas as evi- movimentos e comunidades da região, a
outro ramo da grilagem dos herdeiros de dências de irregularidades, José Amaral con- CDA finalmente instaurou procedimento
Este caso expressa com objetividade as di- Tertulino e Umbelina Moreira, desta vez segue autorização de supressão de vegeta- administrativo discriminatório de terras
ficuldades estruturais no enfrentamento à envolvendo terras supostamente herdadas ção e de queimada controlada numa área de públicas para demarcação e titulação do
grilagem na Bahia. Mesmo com ações ju- pelo próprio Oficial do Cartório de Registro 564,90 ha na Fazenda Santa Tereza I, junto à fecho de pasto, em 18 de fevereiro de 2021.
diciais, denúncias de fraudes nos títulos e de Imóveis de Correntina à época, Evandro Secretaria Municipal de Meio Ambiente de A área reivindicada é de 28.118 ha, entre
documentos das terras sendo formalizadas Filardi Alves, somando mais 9.998 ha, em Correntina, assinada pela secretária Márcia o Rio Correntina e o Rio Santo Antônio. A
à Corregedoria do TJ-BA, ao órgão fundiário parte registrada em nome dos seus dois fi- Silva de Queiroz. Em 2013, ocorreram novas ação discriminatória, por omissão da Co-
federal (Incra) e estadual (CDA), e da aber- lhos. A área total grilada no marco das investidas. Em vistoria realizada pelas famí- missão Especial, também não foi capaz
tura da ação discriminatória de terras em aquisições realizadas por José Francisco lias da associação, verificaram os novos des- de impedir que o rancho da comunidade
curso, o registro ilegal da nova matrícula, o do Amaral apurada nessa pesquisa cor- matamentos na área, além da abertura de fosse derrubado e queimado mais uma
novo georreferenciamento, da segunda ven- responde a 30.088 ha. cercas novas por prepostos de José F. Amaral. vez, após ser reconstruído em regime de
da e do desmembramento em sete partes
Com a denúncia no escritório regional do mutirão no mês de junho²⁹, novamente a
foram realizados sem obstáculos pelo CRI
No entanto, no período compreendido en- Inema pelas comunidades, o desmatamento mando dos grileiros. Apesar das diversas
de Correntina.
tre 1989 e 2010, ele desenvolveu apenas al- foi interrompido após notificação do órgão. denúncias formalizadas junto ao órgão
gumas atividades na área, especialmente Mas, neste mesmo ano, o grileiro cadastrou fundiário e outros órgãos do governo, o
pecuária, em uma parte ínfima deste to- parte do fecho de pasto de Vereda da Fe- procedimento continua paralisado.
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3.2 A grilagem verde nos fechos de Capão do Modesto e Porcos-Guará-Pombas

Nestas comunidades vizinhas, os mais ve- no ano de 2009, segundo relatos, após um teria sido transmitido em 1960 ao casal José por novo georreferenciamento para 16.383
lhos relatam que seus pais, avós e bisavós desmatamento feito em área próxima. Nas Pereira de Souza e Zulmira Pereira de Souza, ha³⁰. Embora inválidos registro e título, pois
já moravam e faziam uso desses territórios, áreas de manejo destes dois fechos, en- através de herança do espólio de Maria Rosa apresentam insanáveis vícios de origem e
da mesma forma que tentam fazer hoje. tretanto, o grupo de grileiros associados de Oliveira. No entanto, não há nas certidões na delimitação, o registro foi realizado sem
As pessoas falam que soltar o gado é uma não teve por objetivo o desmatamento de qualquer referência a número de processo questionamentos pelo oficial do CRI Evan-
tradição antiga e por isso gera uma relação áreas para produção, mas a compensação judicial ou administrativo de inventário, não dro Filardi Alves.
de pertencimento com o território. As duas de áreas de reserva legal de fazendas que sendo possível indicar como a suposta he-
áreas estão em processo discriminatório estão nas áreas de chapadas, onde fazem rança do espólio de Maria Rosa chegou até
de terras pela CDA, para fins de demar- cultivo de grãos, processo conhecido como o casal José e Zulmira, numa clara omissão
cação e titulação. Capão do Modesto rei- “grilagem verde”, como fica evidente na a dados obrigatórios referentes aos registros
vindica 11.264 ha, e Porcos-Guará-Pombas sobreposição de áreas indicadas para reser- públicos.
8.744 ha. As duas áreas somam, portanto, va legal sobre esses dois fechos no Mapa 10
cerca de 20.000 ha. “Grilagem verde sobre quatro territórios” a Em 1993, o casal nomeia procurador e ende-
seguir. reça petição ao então magistrado de Santa
Embora tenham sido impactados e se refi- Maria da Vitória, Argemiro de Azevedo Du-
ram à grilagem da “Prestec” como uma das tra, requerendo a averbação de “medição”
primeiras desta região, sobre estes dois terri- realizada, que teria convertido, então, “du-
tórios a chegada de grileiros é mais recente. zentos e dezesseis réis” em inacreditáveis
Se inicia com o registro ilegal de uma matrí- Analisando as certidões de inteiro teor des- 16.400 ha. A certidão de inteiro teor aces-
cula no CRI de Correntina, no ano de 2006, tes imóveis sobrepostos aos fechos, todos sada indica que o pedido foi deferido por
e a partir de 2010, empresas, grileiros, pisto- eles têm a mesma origem, que é a transcri- meio de “despacho” do juiz, datado de
leiros e empresas de segurança começam a ção nº 6423, do CRI de Santa Maria da Vitó- ²⁸ Correntina (BA): Fecho de Pasto de Vereda da Feli-
19/01/1993. Em um passe de mágica, surge cidade sofre mais um ataque de grileiros. AATR-BA,
agir na área. ria. Neste registro consta uma simplória (e então um latifúndio de milhares de hec- 25/01/2021. Disponível em:https://www.aatr.org.br/
post/o-fecho-de-pasto-de-vereda-da-felicidade-em-
confusa) descrição do suposto imóvel: “no tares, com 273 módulos fiscais, que sequer -correntina-ba-sofre-mais-um-ataque-de-grileiros
“Na beira do Rio da Cabeceira do Cupim fica
Sítio do Capão, termo de Correntina, avalia- estava registrado no cartório do próprio
a Reserva Legal da fazenda Talismã”, desta- ²⁹ Fecho de Pasto realiza mutirão para reconstrução
do por quatrocentos mil reis, a quantia du- município. de rancho e curral destruídos por grileiros. AATR-BA,
cou um morador da comunidade de Capão 13/07/2021. Disponível em:https://www.aatr.org.br/
zentos e dezesseis reis”.
do Modesto em reunião da associação, refe- post/fecho-de-pasto-realiza-mutir%C3%A3o-para-re-
Em 08 de agosto de 2006, a matrícula é constru%C3%A7%C3%A3o-de-rancho-e-curral-des-
rindo-se à Agropecuária Sementes Talismã, tru%C3%ADdos-por-grileiros
Sem delimitação válida e em descumpri- encerrada no CRI de Santa Maria da Vitó-
uma das empresas que se beneficiaram com
mento evidente ao princípio da especiali- ria, e “reaberta” no CRI de Correntina, ago-
30
Após esse georreferenciamento, a área foi cadastrada
a grilagem no território. A cabeceira do Ria- no SNCI em nome de José Pereira de Souza. Consta ain-
dade, o suposto imóvel desta transcrição ra sob o nº 5336, com a dimensão ajustada da neste cadastro que ele seria “dono” de mais quatro
cho do Capão, onde colocavam o gado, secou fazendas, totalizando 21.343,5.
MAPA 10 154
BAHIA | 155
A partir de 2007, inicia-se então uma sé- consolidação da reserva legal consistiram na O preço dos imóveis e as garantias do sis- Um exemplo é o suposto imóvel “Faz. Vale
rie de desmembramentos desta nova colocação de placas, aberturas de picadas e tema bancário do Correntina IV”, com 90,73 ha, cujos papéis
matrícula (5336), que vão dar origem aos cercas e, principalmente, na contratação de foram adquiridos em 26/01/2007, do casal
imóveis agora rebatizados como: Tâmara empresa de segurança privada para abordar Outro aspecto que chama atenção nas tran- José e Zulmira - origem na matrícula 5336
II, III e IV, com 2.499 ha (Agropecuária Se- e ameaçar as famílias que continuaram fa- sações realizadas por este grupo, é a grande (Sítio do Capão). O valor da aquisição foi de
mentes Talismã Ltda./Eco Securitizadora); zendo o uso tradicional da área. diferença entre os valores da aquisição e a irrisórios R$ 3.500. Em 14/02/2011, quatro
Prata Nova I e II, com 950 ha (Almor Paulo quantia disponibilizada pelos bancos em anos após, em hipoteca ao Banco Bradesco
Antoniolli e Claudia Briani Antoniolli Lenzi); A rigor, esse grupo se adiantou à própria le- operações de crédito com o imóvel dado em S.A, foi dada em garantia de dívidas no va-
Dorado, Dorado I, II e São José III e IV, com gislação estadual e federal, constando já em garantia. Em sendo a grilagem de terras um lor de R$ 600.000,00. Este padrão se repete
3.541 ha (Dino Rômulo Faccioni); Vale do 2007 nas escrituras de compra e venda dos fenômeno de persistência histórica e prática com todas as fazendas nominadas “Vale do
Correntina I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, títulos que o objetivo seria a utilização dos generalizada no país, é necessário reconhe- Correntina”, de I a XIII, que estão em nome
XII, XIII, com 1.140 ha (Luiz Carlos Bergamas- imóveis para finalidade exclusiva da com- cer o papel do sistema financeiro e seu falho de Luiz Carlos Bergamaschi, atual presiden-
chi), totalizando 8.130 ha para este grupo pensação de reserva legal. O processo de sistema de garantias como um dos fatores te da Abapa. Em 17/08/2020, ele promoveu a
de grileiros, sobrepostos aos fechos de “aprovação de localização de reserva legal que fomentam a grilagem. unificação destas 136 matrículas, formando
Capão do Modesto (40%) e Porcos-Guará- mediante compensação de área e vínculo agora um único registro com total de 1.140
-Pombas (60%). entre imóveis”, no caso dos imóveis “Vale Não é nova a relação entre o volume de cré- ha, tendo agora um novo número de matrí-
do Correntina”, foi realizado pela Secretaria dito público ou privado disponível para ativi- cula (13.184).
Estes supostos imóveis, embora tenham Municipal de Meio Ambiente e Recursos Hí- dades agropecuárias e o preço da terra, que
seus registros migrado de cartório e com dricos de Correntina, no ano de 2009, sem também influencia o interesse na grilagem.
É comum, portanto, que títulos e registros
matrículas individualizadas, não perdem indicação da fundamentação legal utilizada.
ilegais de terras sejam realizados com obje-
seu vínculo com a matrícula 6423, que con- A propriedade destas áreas é reivindicada Um dos grileiros desse grupo está conectado
tivo específico de acesso a crédito sistema de
sistia, como vimos, em “duzentos e dezesseis por Luiz Carlos Bergamaschi, ex-presidente a um dos mais conhecidos casos de grilagem
financiamento público e privado, como no
réis” de terras, outra forma muito comum de e membro atuante da Associação Baiana de do Oeste da Bahia e mostra como a grilagem
caso da Bandeirantes S/A [Leia mais no Qua-
registros frequentemente aceitos para re- Produtores de Algodão (Abapa) (ver Quadro verde amplia as possibilidades de desmata-
dro “O banqueiro Khafif (e seu grupo)].
gistro em cartório, embora não cumpra o re- “Enquanto isso”). mento e apropriação ilegal de terras devolu-
quisito de caracterização do imóvel imposto tas. Como dito anteriormente, a lei estadual
Observando os registros e títulos analisados
pela Lei de Registros Públicos (Lei Federal de 2011 e o Código Florestal de 2012 abriram
neste caso, fica evidente que falhas grossei-
6.015/1973). a possibilidade de que a reserva legal de um
ras na origem e na dimensão são absolu-
imóvel estivesse em área não contígua a
tamente ignoradas pelo setor jurídico das
Na área, jamais houve posse do casal José este. Disso implica que antigas reservas le-
instituições financeiras públicas e privadas,
Pereira e Zulmira, não tendo havido, portan- gais de imóveis grilados e ocupados há mais
que admitem sem maiores dificuldades que
to, transmissão de posse. A área, como visto, tempo – em especial nos gerais – possam
tais registros ilegais de domínio sejam da-
está bem preservada e seu uso é para extra- ser desmatadas, transferindo a nova reser-
dos em garantia da dívida, com valores fre-
tivismo e criação de animais em determina- va legal para grilagens mais recentes, em
quentemente maiores que o valor declarado
das épocas do ano. As tentativas de tomada especial sobre os fechos de pasto. Foi assim
do imóvel.
de posse pelas empresas e grileiros para que a Agropecuária Talismã Sementes, que
BAHIA | 156
pertencia a Marcos Alexandre Brosson e ou- V e IX, como sugere a própria denominação, Diante do aquecimento dos preços das terras com 60% do seu território com grilagens
tros (em processo de liquidação), ao tentar foram desmembradas de um imóvel maior nas regiões de vales e baixadas, fica evidente sobrepostas e sem fazer parte do processo, a
cercar a reserva legal e adquirir os títulos com origem na matrícula 2280, a fazenda que essas alterações legislativas tornaram Associação Comunitária de Preservação Am-
fraudulentos referentes às supostas fazen- Tamarana, registrada no SNCI com 7.652 ha. viáveis e lucrativas grilagens de terras que biental dos Pequenos Criadores do Fecho de
das Tâmara (II, III e IV) sobre os fechos, com Ela foi desmembrada em várias matrículas, haviam sido operadas nas terras de “quebra Pasto da Cabeceira de Porcos, Guará e Pom-
efeito, reincidiu na prática de grilagem em mas o registro no Incra permanece com a gaúcho”, como demonstra este caso. bas ingressou com uma ação de embargo de
Correntina. Isso porque os imóveis que indi- área integral. O desmatamento na porção terceiro, buscando também a suspensão da
cou para que fossem compensadas as reser- leste deste imóvel maior ocorreu antes do Em 2017, após fracassadas tentativas de ex- referida liminar.
vas legais também foram resultado de frau- ano 2000. O desmatamento na porção leste pulsão das famílias da área de manejo nos
de: as Fazendas Tâmara V, com 800 ha (mat. ocorreu no mesmo período da aquisição das anos anteriores, este grupo se articula e in- Os fatos e dados relatados são em grande
6059) e Tâmara IX, com 499 ha (mat. 6063), Reservas Legais, sobrepostas aos fechos de gressa com ação de manutenção de posse parte conhecidos pelo órgão fundiário e
localizadas nas chapadas. Elas são vizinhas e Capão do Modesto e Porcos-Guará-Pombas na comarca de Correntina contra algumas ambiental da Bahia. O desfecho das ações
têm a mesma origem das fazendas Curitiba (entre 2001 e 2010). famílias de Capão do Modesto. Inicialmente, judiciais e administrativas, assim como o fu-
e Rio Claro, do grupo Igarashi, alvo da “digna a liminar para desocupação do imóvel não turo destas comunidades com seus modos
raiva”³¹ dos ribeirinhos nos conhecidos pro- Com o processo de liquidação da Talismã, foi deferida. Após audiência, a magistrada de fazer, viver e criar, permanece incerto. A
testos de Correntina em 02 de novembro de todos os imóveis reivindicados por ela (de mudou de posição e concedeu a liminar, que conclusão das três ações discriminatórias
2017. produção e reserva legal) foram transferidos foi posteriormente suspensa em recurso di- instauradas em fevereiro, e a abertura de
para a empresa Eco Securitizadora de Direi- rigido ao Tribunal de Justiça. novos procedimentos, continuam sendo as
Não se trata de uma grilagem qualquer: são tos Creditórios do Agronegócio – credora da reivindicações principais dos grupos comu-
imóveis resultantes da famigerada matrícu- Talismã – em fevereiro de 2018. Em 2019, após um período de relativa tran- nitários e que podem, se levadas a sério pelo
la 2280, cuja origem fraudulenta indicamos
quilidade, a desembargadora Telma Britto órgão fundiário, frear os esquemas de grila-
na publicação nº 1 da revista “No Rastro da Os cadastros auto declaratórios criados pela mudou de posição e decidiu pela validade gem verde sobre os territórios tradicionais e
Grilagem”. Embora na certidão de inteiro legislação estadual e federal, como visto, têm da liminar, alegando que o uso comunitá- garantir a continuidade e reprodução social
teor desta matrícula conste que a área gri- sido utilizados para consolidar grilagens car- rio representaria “risco ambiental” na área, das comunidades de fecho de pasto.
lada, por meio de sucessivas e escandalo- toriais e permitir o avanço sobre as áreas de mencionando a aprovação da reserva legal
sas retificações, seja de aproximadamente manejo comunitário. Como é possível notar pelo Inema como fator preponderante da
600 mil ha, projeções de magistrados que no Mapa 11 “Distribuição das categorias de sua decisão, embora a legislação informe
passaram pela região (e que promoveram o reserva legal”, 6.302 registros do CAR/CEFIR expressamente que o CAR/CEFIR não pode
bloqueio da matrícula, decisão logo cassa- foram realizados no município de Corren- ser utilizado como meio de prova da posse e
da pelo Tribunal de Justiça da Bahia - TJ-BA) tina, totalizando uma área de 921.778 ha.
informam que ela pode ter se desdobrado propriedade.
Porém, apenas os 236 imóveis acima de 15 3¹ Porto-Gonçalves e Chagas, 2019.
da apropriação ilegal de cerca de 1.200.000 módulos fiscais (900 ha), ocupam uma área Com a abertura da ação discriminatória de 32 Existe Inquérito Civil Público tramitando no Ministé-
ha³².
de 654.691 ha. Ou seja, apenas 3,75% dos terras públicas, pela CDA, foram realizados
rio Público Federal de Bom Jesus da Lapa a respeito da
denúncia formulada por magistrados que realizaram
registros no CAR/CEFIR correspondem a sucessivos pedidos de revogação ou suspen- o bloqueio da matrícula, logo desbloqueada por pres-
Está demonstrada aqui a relação direta entre são do lobby do agronegócio, especialmente da AIBA.
71% da área total registrada. são da medida liminar, porém, sem manifes- Mais informações: Infomaiba, Ano 19 Nº 192 Ago/11.
o desmatamento e a grilagem verde, com- Disponível em: https://aiba.org.br/wp-content/uplo-
provando a tese deste estudo. As fazendas tação do Poder Judiciário local. Prejudicada ads/2013/12/informaiba_agosto_2011.pdf
MAPA 11 157
158

Achados da pesquisa Dentro da Amazônia Legal

e recomendações
tros totalizando 511.366 ha) do que os Grilagem verde (CAR):
realmente existentes no próprio Sobrepostos à Gleba Tauá existem 93
perímetro do parque. Além disso, cerca registros de CAR, ocupando uma área
de 35% da área atual do parque (176.611 total de 13.498 hectares, o que corres-
ha) está registrada como Reserva Legal. ponde a 65% da Gleba. A área registrada
como sendo de reserva legal é de apenas
Territorialidade legítima: 1.883 hectares. É importante lembrar
Território tradicional Travessia do Mira- que a Gleba Tauá é área de Cerrado
A situação fundiária de uma área em dor
Travessia do Mirador (MA): inserida na Amazônia Legal, o que exige
determinado momento não pode ser
35% de reserva legal. No caso da Gleba
tomada como representativa das territo- Realidade da ocupação:
Situação fundiária: Tauá, de todos os registros de CAR,
rialidades legítimas e da realidade segue, de certa forma, sob posse das 78
500 mil hectares de terras devolutas apenas 14% está reservado como área
vivida no chão dessa mesma área. comunidades da Travessia, ainda que
estaduais atualmente destinados como protegida.
Enquanto a situação fundiária formal muitas famílias tenham ido embora em
pode estar fundada em decretos e atos parque estadual
razão das ameaças e con�litos com o Territorialidade legítima:
arbitrários dos poderes executivo, legis- órgão ambiental estadual (SEMA), que
Grilagem para especulação imobiliá- Território tradicional Gleba Tauá
lativo e judiciário - potencialmente faz a gestão do Parque Estadual do
eivados de interesses econômicos -, as ria e verde (cartórios e Sigef):
Mirador. Realidade da ocupação:
territorialidades e realidades estão Registros do Sigef sobrepostos à área
atual do parque somam 312.772,5175 mais de 11 mil hectares já estão sob
fundadas em uma história socioterrito-
hectares (vários dos quais coincidem controle dos grileiros (família Binotto) e,
rial dinâmica, forjada nos enfrentamen- Gleba Tauá (TO):
com nomes dos maiores desmatadores em razão disso, até 2020 a Gleba Tauá
tos contra os invasores e no exercício dos
no entorno do parque) tinha 12.334 hectares de cerrado desma-
modos de vida dos povos e comunida-
Registros do Sigef sobrepostos à área do Situação fundiária: tados.
des. A defesa dos direitos territoriais
desses povos e comunidades se assenta parque desafetada em 2009 somam 20 mil hectares registrados como terra
na necessidade de que a situação fundi- 50.665,1422 hectares pública da União
ária respeite, reconheça e reitere as
territorialidades legítimas, mesmo em Grilagem verde (CAR): Grilagem para especulação imobiliá-
face de uma realidade de expulsões e Se tomarmos como referência os limites ria e verde (cartórios e Sigef):
fragmentação territorial. atuais do parque (decreto de 2009) com mais de 11 mil hectares diretamente ou
500 mil hectares, vemos que há mais indiretamente sob controle da família
hectares em registros no Sicar (190 regis- Binotto
159

Fora da Amazônia Legal


Grilagem verde (CAR): Grilagem verde (CAR):
Melancias (PI): As áreas sobrepostas ao território reivin- Fechos de Pasto da Bacia do Sobrepostos às 40 áreas tradicionais de
dicado de Melancias são em sua maioria Rio Corrente (BA): fecho de pasto, foram encontrados 1262
Situação fundiária: tentativas de grilagem verde, especial- registros de Car/Cefir totalizando
Território atualmente reivindicado com mente pelo grupo Bom Jardim (família 390.404 hectares. Destes 82.300 ha
Golin), Cosmos Agropecuária (Ricardo Situação fundiária:
22.583 hectares de terras devolutas estão cadastrados como reserva legal.
Tombini e Eduardo Dall'Magro) e Terras devolutas estaduais não arrecada- Os territórios mais afetados são Capão
estaduais não arrecadadas e não desti- das e não destinadas, ocupadas tradicio-
nadas conjunto Riachão (irmãos Fritzen). As do Modesto e Porcos-Guará-Pombas.
áreas de Reserva legal sobrepostas nalmente como áreas de fechos de pasto.
(CAR) alcançam 17.989 hectares e Territorialidade legítima:
Grilagem (cartórios e Sigef): correspondem a 80% do território 40 fechos de pasto na Bacia do Rio
reivindicado. Grilagem para especulação imobiliá-
Embora tenham sido encontrados regis- Corrente
ria e verde (cartórios e Sigef):
tros de propriedade em cartórios nas As 40 áreas de uso e manejo comunitário
áreas de vales (“baixões”) e chapadas, Realidade da ocupação:
Territorialidade legítima: identificados totalizam cerca de 369.731 Seguem em grande medida sob posse
eles não possuem regular cadeia suces- hectares nos municípios de Correntina,
sória e destaque do patrimônio público, Território Tradicional de Melancias das comunidades de fecho de pasto, em
(comunidades de Melancias I e II, Brejo Jaborandi, Coribe, Santa Maria da Vitória que pese o permanente assédio e
ou seja, não são particulares. Nas chapa- e Canápolis. Destas, um total de 258.762
das, no entorno do território atualmente das Éguas, Riacho dos Cavalos, Passa- invasões dos grileiros.
gem da Nega e Sumidouro) hectares estão sobrepostos com preten-
reivindicado, foram concedidos títulos sos imóveis particulares nos cadastros do
para empresas de forma irregular pelo Incra (Snci e Sigef). Nos 04 fechos estu-
órgão estadual de terras. Há sobreposi- dados, com mais de 50.000 hectares de
Realidade da ocupação:
ção ao território reivindicado de 11 ocupação tradicional, foram encontra-
imóveis cadastrados no SNCI, entre 2009 Nas terras planas das chapadas, as
comunidades foram perdendo o acesso dos registros ilegais que somam 98.383
e 2013, totalizando 9.978 ha; e 23 sobre- hectares (sobrepostos), todos com
posições de imóveis cadastrados no ao longo dos últimos vinte anos; nas
áreas dos “baixões”, a partir das nascen- origem em 04 “fazendas fantasmas”. No
sistema Sigef entre 2014 e 2020, totali- município de Correntina, apenas os 236
zando uma área de 9.945 ha. Conside- tes do Rio Uruçuí-Preto, as comunidades
mantêm a posse da maior parte do terri- imóveis acima de 15 módulos fiscais (900
rando os dois cadastros, são 19.923 ha), com registros no CAR/CEFIR,
hectares sobrepostos, correspondendo a tório, especialmente àquelas que estão
cadastradas como reserva legal de ocupam uma área de 654.691 ha. Ou seja,
87% do território reivindicado. apenas 3,75% dos cadastros correspon-
imóveis localizados nas chapadas.
dem a 71% da área total cadastrada.
160

A situação sistematizada nos


quatro casos representa: 4. Total de registros
ambientais para

3. grilagem verde sobre

2.
Total de hectares os territórios

1. Total de áreas de
cerrado atualmente
Total de hectares
grilados sobre os
diretamente
desmatados sobre os
territórios tradicionais
tradicionais
analisados:

934.267
territórios tradicionais
protegidas pelas nos 4 casos analisados:
comunidades analisados
hectares com
tradicionais e áreas
ao menos
públicas destinadas
492.820 sobreposição
66.334
(nos 4 casos)
ao CAR
Cerca de hectares
hectares 278.783ha
1.027.314 registrados como
hectares Reserva Legal
161

RECOMENDAÇÕES: 6. A ‘varredura’ das malhas


fundiárias estaduais, com
8. A não concessão e/ou
suspensão de autorizações de

1. 4.
busca ativa de terras presumi- supressão de vegetação e/ou
velmente devolutas e a instau- licenciamento ambiental em
Participação popular Integração dos bancos ração de mecanismos apro- terras presumivelmente devo-
efetiva na formulação e execu- de dados dos órgãos fundiá- priados a cada situação e con- lutas, ainda que o imóvel rural
ção das políticas fundiárias e rios, ambientais, e cartórios de texto, a exemplo da arrecada- possua registro no CRI ou
ambientais, assim como a registro de imóveis, de modo a ção sumária, ações discrimi- esteja inscrito em plataformas
garantia da consulta prévia, permitir a análise da situação natórias administrativas ou de cadastro dos órgãos am-
livre e informada para povos fundiária para fins de regula- judiciais, conforme o caso; bientais e fundiários;
indígenas e comunidades tra- ridade ambiental dos imóveis
dicionais sobre todos os em- rurais, e vice versa;
preendimentos e atos norma-
tivos que impactem seus 7. 9.
5.
A análise minuciosa de Aprimoramento, pelas
modos de fazer, viver e criar; todos os títulos de domínio corregedorias dos tribunais de
A revogação ou ingresso registrados no Cartório de justiça estaduais, do Conselho
de ações de inconstitucionali-
2.
Registro de Imóveis, especial- Nacional de Justiça e do
dade dos dispositivos legais mente aqueles acima de 2.500 Ministério Público (estadual e
Prioridade na identifica- que favorecem a grilagem de hectares, de modo a identifi- federal) dos mecanismos de
ção, demarcação e titulação terras e a formação de novos car indícios de grilagem, fiscalização e controle dos
de terras devolutas sobrepos- latifúndios, a exemplo dos tendo em vista a limitação na Cartórios de Registro de Imó-
tas aos territórios de povos e marcos temporais relaciona- dimensão de terras a serem veis e da atividade judiciária
comunidades tradicionais; dos às cadeias sucessórias e ao destinadas a particulares sem nas comarcas dos municípios
título de “reconhecimento de autorização legislativa, pre- inseridos na região da frontei-
domínio particular” sobre
3.
sente nas constituições fede- ra agrícola do Matopiba.
terras públicas; rais desde o ano de 1946;
Identificação e proteção
ambiental especial das regi-
ões e microrregiões de Cerra-
do que se destacam como pro-
dutoras de água;
162

bio das autoras


e dos autores
Adriane Santos Ribeiro é mulher Eduardo Barcelos é professor do Ins- Juliana Oliveira Borges é advoga- Pedro Antônio Ribeiro é agente
negra, coordenadora administrativa-finan- tituto Federal (IF) Baiano, Campus Valença da popular, Muzenza do Nzo Caxuté, integra da Comissão Pastoral da Terra Regional Ara-
ceira da Associação dos Advogados/as de - Bahia e Doutor em Geografia pela Universi- a equipe da Associação dos Advogados/as guaia-Tocantins.
Trabalhadores/as Rurais da Bahia – AATR, ad- dade Federal Fluminense (UFF). É membro do de Trabalhadores/as Rurais da Bahia – AATR,
vogada popular e graduada em Direito pela Observatório Socioterritorial do Baixo Sul da graduada em Direito pela Universidade do Roberta Maria Batista de Fi-
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bahia (OBSUL / IF Baiano). Estado da Bahia (UNEB) - Campus XV. gueiredo Lima é professora do De-
partamento de Geociências - DEGEO da
Antonio Gomes de Morais (Criolo) Emilia Joana Viana de Oliveira Lorrany Lourenço Neves é assesso- Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
é agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) é advogada popular, coordenadora de pro- ra jurídica da Comissão Pastoral da Terra Ara- e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pes-
e coordenador da equipe em Balsas, no Ma- gramas na Associação dos Advogados/as de guaia-Tocantins. É graduada em Direito pela quisas em Questões Agrárias - NERA.
ranhão. Trabalhadores/as Rurais da Bahia – AATR, Fundação Universidade de Gurupi (UNIRG) e
pesquisadora, extensionista e doutoranda pós-graduada em Educação e Direitos Huma- Valéria Pereira Santos é articula-
Diana Aguiar é pesquisadora de Pós- em Direito, Estado e Constituição na Univer- nos pela Pontifícia Universidade Católica de dora da Comissão Pastoral da Terra no Cerra-
-Doutorado em Ciências Sociais em Desen- sidade de Brasília (UnB). Goiás (PUC-GO). do e mestra em Demandas Populares e Dinâ-
volvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) micas Regionais pela Universidade Federal do
da Universidade Federal Rural do Rio de Ja- Joice Bonfim é secretária executiva da Mauricio Correia Silva é advogado Tocantins (UFT).
neiro (UFRRJ) e assessora da Campanha Na- Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, popular, especialista em Direitos Sociais do
cional em Defesa do Cerrado. advogada popular e mestra em Ciências So- Campo pela UFG, membro e atual coordena-
ciais em Desenvolvimento, Agricultura e So- dor geral da Associação dos Advogados/as de
ciedade da Universidade Federal Rural do Rio Trabalhadores/as Rurais da Bahia – AATR.
de Janeiro (UFRRJ).
163

O Cerrado do Matopiba perdeu mais vegetação nativa nos últimos


20 anos do que nos 500 anos anteriores, tendo como principal vetor
a expansão da fronteira agrícola. Essa publicação reúne análises
que demonstram a imbricação entre desmatamento e grilagem
na região: o avanço brutal do desmatamento sobre o Cerrado serve
como instrumento central na consolidação dos processos de invasão
de terras públicas e tradicionalmente ocupadas, bem como novas
formas de grilagem viabilizam a expansão do desmatamento.

Enquanto isso, o tratamento institucional da questão fundiária no


Matopiba tem se colocado mais a serviço da garantia de segurança
jurídica para investidores, especuladores e grileiros, do que da
titulação dos territórios indígenas, quilombolas e tradicionais e
da reforma agrária. É um cenário desafiador e desfavorável para
os povos do campo, mas ao mesmo tempo revela comunidades
obstinadas a lutar pelo que lhes é de direito.

www.matopiba grilagem.org

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