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TEMAS LIVRES FREE THEMES


A fragilidade/resistência da vida humana
em comunidades rurais do Pantanal Mato-grossense, MT, Brasil

The fragility/strength of human life in rural communities


of the Pantanal wetlands, Mato Grosso State, Brazil

Marta Gislene Pignatti 1


Sueli Pereira Castro 1

Abstract From an ambiguous/complex stand- Resumo A fragilidade/resistência da vida hu-


point, the fragility/strength of human life suggests mana tomada no sentido ambíguo/complexo su-
an approach based on observations of the life- gere o olhar para a dinâmica da vida de grupos
style dynamics of specific population groups. Con- populacionais específicos. O estudo de uma co-
ducted between 2003 and 2005, this study of a munidade no entorno da Reserva Particular do
community living alongside the Pantanal Wet- Patrimônio Natural do Serviço Social do Comér-
lands Private Natural Heritage Reserve established cio - RPPN SESC Pantanal, Distrito Rural de Jo-
by the Social Enterprise Support Centre (RPPN/ selândia, município de Barão de Melgaço (MT),
SESC) in the Joselândia Rural District, Barão de no período de 2003-2005, buscou aprender o modo
Melgaço Municipality, Mato Grosso State, Brazil, de vida dessa população, articulando a explicação
explores its life-style, linking explanations of the do processo saúde-doença com os aspectos histó-
health/disease process to historical, economic and ricos, econômicos e sociais da comunidade em
social aspects of this community and the singu- questão e a singularidade das práticas de cura
larity of local healing practices, using historical ocorridas no local. Utilizou-se de registros docu-
documentary records, statements from local resi- mentais históricos, depoimentos de moradores,
dents, a population poll, interviews and observa- inquérito populacional, entrevistas e observações.
tions. Changes were noted in the links of solidar- Verificou-se que houve mudanças nos laços de
ity among community members at work and for solidariedade entre os moradores no trabalho e
growing food. Healing practices based on folk- na produção de alimentos. As práticas de cura
medicine are alternatives used to relieve symp- populares são alternativas utilizadas para abran-
toms and diseases. The fragility/strength of this dar os sintomas e doenças. A fragilidade/resistên-
specific community is established through strength cia deste grupo específico se configura enquanto
based on solidarity and family ties, while its fra- resistência baseada nas relações de solidariedade
gility is due to difficulties in accessing work, e familiares e a fragilidade na dificuldade do aces-
healthcare services and public facilities. so ao trabalho, serviços de saúde e equipamentos
1
Instituto de Saúde
Key words Group health, Rural environment, públicos.
Coletiva, Universidade Life-style Palavras-chave Saúde de grupos, Ambiente ru-
Federal de Mato Grosso. Av. ral, Modo de vida
Fernando Correa da Costa
s/n, Campus Universitário.
78900-000 Cuiabá MT.
martagp@terra.com.br
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Pignatti, M. G. & Castro, S. P.

Introdução mesma coletividade em diversos períodos de tem-


po3. No entanto, é necessário agregar outros
A fragilidade/resistência da vida humana toma- determinantes tais como: as necessidades, estru-
da no sentido ambíguo sugere o olhar para a turas, capacidades e envolvimento da comuni-
dinâmica da vida de grupos populacionais espe- dade; o ambiente físico e socioeconômico; a dis-
cíficos. A princípio incerto, duvidoso, parece pou- ponibilidade de serviços de saúde, ambientais e
co rigoroso, do ponto de vista teórico. A ambi- sociais e a política sanitária de governo.
güidade costuma ser substituída por complexi- As condições de saúde de uma determinada
dade, para sugerir paciência e agudeza no exame população são reflexos de sua condição de vida.
dos fatos e recusa de simplificações. Como diz As condições de saúde fazem parte do indicador
Chauí 1, ambigüidade é a forma de existência dos de qualidade de vida4,5, 6 e também são influencia-
objetos da percepção e da cultura, sendo elas mes- das por diversos fatores estruturais e simbólicos
mas ambíguas, constituídas não de elementos ou que perfazem a compreensão social do processo
partes separáveis, mas de dimensões simultâneas saúde-doença7 .
que somente serão alcançadas por uma racionali- Os níveis de saúde encontrados em uma co-
dade alargada, para além do intelectualismo e do letividade tomados como conseqüência desse
empirismo. jogo complexo das interações que se desenvol-
O desafio que se propôs no estudo de uma vem no interior de formações sociais definidas,
comunidade específica, moradores da área de en- em termos ambientais e sociais, distribuem pos-
torno da Reserva Particular do Patrimônio Na- sibilidades diferenciadas de exposição a agentes,
tural do Serviço Social do Comércio - RPPN SESC cargas e riscos, fases anteriores aos processos
- Pantanal, Distrito de Joselândia, município de mórbidos8.
Barão de Melgaço (MT), foi compreender o pro- Diante da complexidade dos olhares sobre o
cesso saúde-doença buscando os elementos rela- processo saúde-doença em grupos populacionais
cionados com o modo de vida e as práticas de específicos, propôs-se utilizar o modo de vida
saúde delas decorrentes, em um ambiente cuja ligado à noção de experiência como habitus9, uma
dinâmica do ritmo das águas está integrado nas vez que este se constitui de princípio gerador de
experiências deste viver. A localização geográfica, escolhas e de condutas que antecede as práticas
o Pantanal norte mato-grossense, considerada postulando a interação dialética entre experiên-
patrimônio da humanidade, a ser preservado cia e consciência social.
como reserva de biodiversidade, implica altera- Os estudos sobre qualidade de vida e saúde,
ções nas condições de vida para as populações terra e trabalho, representações sociais, das po-
que tradicionalmente habitam esse ambiente. pulações camponesa e ribeirinha na região estão
Partindo-se da interdependência entre saúde sendo desenvolvidos pelas autoras inseridos no
e ambiente, traduzida na perspectiva da promo- Programa de Estudo Pantanal Norte: Estudos
ção da saúde como um ambiente não restrito Integrados sobre os Processos Ecológicos e So-
apenas à sua dimensão física ou natural, mas ciais com vistas à Conservação, convênio –
também à sua dimensão social, econômica, polí- UFMT/CNPQ – MCT/SESC Pantanal, desde
tica e cultural, referindo-se aos espaços em que 200210,11. Desvendar algumas dessas mediações
as pessoas vivem: a comunidade, suas casas, seu no processo saúde-doença na realidade local fez
trabalho e os espaços de lazer, como também as parte desse trabalho.
estruturas que determinam o acesso aos recur-
sos para viver e as oportunidades para ter maior
poder de decisão, toma-se como princípio que a Sobre o caminho
busca de ambientes favoráveis à saúde e aos
ambientes saudáveis é fundamental para a ma- Para a construção de uma reflexão sobre as po-
nutenção da vida humana2 . pulações da comunidade pantaneira de Joselân-
Os indicadores de saúde são parâmetros uti- dia, referente ao processo saúde-doença, pauta-
lizados internacionalmente com o objetivo de ava- das por uma transversalidade ambiental, a no-
liar, sob o ponto de vista sanitário, a higidez de ção de habitus, ligada à noção de experiência,
agregados humanos, bem como fornecer subsí- constitui-se o eixo norteador da pesquisa.
dios aos planejamentos de saúde, permitindo o O habitus, em Bourdieu12, se constitui de um
acompanhamento das flutuações e tendências sistema de disposições duráveis e transferíveis que
históricas do padrão sanitário de diferentes cole- integram todas as experiências passadas e funci-
tividades consideradas à mesma época ou da onam a todo o momento como matriz de preo-
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cupações, apreciações e ações. O habitus torna Foram priorizadas para o estudo no ano de
possível o cumprimento de tarefas infinitamente 2003-2004 as observações sobre: a memória do
diferenciais, graças às transferências analógicas e grupo e a definição de sua territorialidade; a reli-
esquemas que permitem resolver os problemas, giosidade; o trabalho; formas de uso e manejo
da mesma forma, graças às correções incessan- dos recursos naturais; a dinâmica das cheias e
tes dos resultados obtidos e dialeticamente pro- sua relação com a vida da comunidade; levanta-
duzidos por estes resultados. mento de dados sobre as condições socioeconô-
O habitus enquanto “uma disposição incor- micas e sanitárias; as principais doenças e sinto-
porada, quase postural”13 difere de “hábito”, que mas referidos; o atendimento à saúde e práticas
se associa a algo cristalizado, pois envolve uma alternativas de cura. Isso foi concretizado através
capacidade criadora, ativa e inventiva na medida de estimativa rápida sobre a situação de vida e
em que o sujeito recebe e reinventa a “herança” saúde (foram apontados dados de 352 morado-
na sua formulação, pois sem ser o produto da obe- res em 85 unidades familiares), observação, en-
diência a regras, objetivamente adaptadas a seu trevista com agente de saúde, benzedeiras e/ou
fim sem supor a intenção consciente dos fins e o lideranças comunitárias, história de vida com
domínio expresso das operações necessárias para informantes selecionados e análise dos documen-
atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o tos de registro de nascimentos e mortes no car-
produto da ação organizadora de um regente 14. tório de registro civil local. A ligação entre com-
Neste sentido, o conceito corrobora para o preensão e interpretação do processo saúde-do-
entendimento de uma dinamicidade da relação ença em grupos sociais específicos e a necessida-
objetivo/subjetivo: o homem faz e interpreta a de das atividades de atenção à saúde, do alívio ao
realidade mediante conhecimentos herdados com sofrimento das pessoas não pôde ser ignorada.
a sua disposição social.
Além disso, o habitus, ao apresentar as pes-
soas em sua condição social, permite qualificar Sobre o lugar
seus atributos e os do grupo a que ele pertence.
Considerando que as pessoas são sujeitos dos Entre dois dos maiores rios formadores do Pan-
problemas, é importante qualificar sua posição tanal de Barão de Melgaço, o Cuiabá e o São
social, na estrutura social, e sua condição social, Lourenço, situa-se o distrito de Joselândia, per-
no plano da cultura. tencente ao município de Barão de Melgaço, e, de
Nesta perspectiva esboçada, a observação do acordo com Censo de 2.000 do IBGE, têm 2.483
modus vivendi dos indivíduos pertencentes a de- habitantes, residentes em 592 domicílios15, e con-
terminado grupo social envolve grande comple- ta com as seguintes comunidades: a sede São Pe-
xidade, implicando neste processo uma investi- dro, Mocambo, Pimenteira, Retiro São Bento,
gação de cunho qualitativo-subjetivo por parte Colônia Santa Isabel, Capoeirinha e Lagoa do
do pesquisador para estar presente e conviver Algodão. Estas comunidades – uma auto-identi-
com o grupo – objeto de estudo – por determi- ficação – estão interligadas por uma rede de pa-
nado período de tempo. rentesco – consangüíneo, afinidade e compadrio
Esta opção metodológica permitiu articular -, que lhes permitem identificar o conjunto dos
o processo saúde-doença e suas práticas com grupos por povo de Joselândia.
modo de vida, resgatando-se a ação dos sujeitos, O município de Barão de Melgaço, com uma
como determinado/determinante, não restrito ao área de 11.662 Km²,tem uma topografia plana
universo de classe, mas à esfera da cultura, à cons- de 97,5 % de sua área, que é inundável nas épocas
ciência social do agente, incluindo aí suas repre- de cheias do Pantanal; seu clima tropical úmido
sentações, experiências socialmente demarcadas, de Pantanal, com temperatura média anual de
passadas e presentes, confrontadas, em conflito 24º, com máxima de 42º e mínima de 0º; seu
e tensão com seus limites. regime pluviométrico é marcado pelos seguintes
As determinações do processo saúde-doença períodos de precipitações: o da cheia, de novem-
tomadas como particularidade e singularidade bro a abril, com 80% das precipitações de janeiro
dos processos locais relacionadas com a história a março, o período da vazante, de maio a julho,
e o espaço território dos seus moradores, a in- e o período de seca, de julho a outubro16 .
corporação de significados e sentidos das doen- Esta polaridade de seca e cheia, entremeadas
ças, mediante seu conceito particular de práticas por estações de transição – a vazante que leva à
de saúde foram sendo investigadas no Distrito seca e a enchente que leva a cheia – imprime um
de Joselândia. ritmo no movimento das pessoas na reprodu-
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ção de seu modo de vida, que tem na atividade mentos de cheia e de seca deste ecossistema e per-
agropastoril, preponderantemente, sua forma de mitiu seu avanço e transformação da região
organização social. numa das maiores áreas produtoras e fornece-
Historicamente, o município de Barão de doras de gado de Mato Grosso.
Melgaço constituiu-se em território dos índios A decadência da navegação fluvial, nos anos
Bororo, (que atualmente estão confinados em de 1930, pela crise da economia exportadora, e a
reservas na foz do rio Piquiri, denominadas Tere- chegada da ferrovia (Noroeste do Brasil) que
za Cristina, e Santa Isabel nos rios da Prata e São vinculou a economia sul mato-grossense ao oeste
Lourenço), quando o processo de conquista dos paulista, diretamente ligada aos frigoríficos es-
portugueses, na região do atual Mato Grosso, se trangeiros que se instalaram em São Paulo, leva-
expandiu sobre os territórios ameríndios da re- ram a uma reorganização econômica mato-gros-
gião pantaneira17. Esta expansão está atrelada à sense21, 22.
intensificação da exploração do comércio fluvial Para as populações ribeirinhas, atreladas
na Bacia do Prata e a conseqüente expansão das àquele complexo fluvial, esta reorganização sig-
fazendas e das usinas de produção de açúcar, a nificou reconstruir seu modo de vida adentran-
partir de 1870, com o fim da guerra do Paraguai18 do nas regiões entre os rios Cuiabá e São Lou-
,19
, baseadas no trabalho compulsório. renço, fundando comunidades, vivendo, sobre-
A abertura da navegação pelo rio Paraguai tudo, da lavoura, da pequena criação de gado e
possibilitou a inserção de Mato Grosso no con- trabalhos temporários nas fazendas. As relações
texto do capitalismo internacional, colocando a com os grandes fazendeiros locais estavam atre-
economia regional mato-grossense em contato ladas às relações de compadrio e de “favor”. É
com os mercados platino e europeu. Corumbá dentro deste contexto histórico que se situa a
(hoje pertencente a Mato Grosso do Sul) tor- população aqui estudada.
nou-se o pólo de crescimento regional, centrali- O processo de estímulo à modernização da
zando e exportando a produção mato-grossen- pecuária, do pasto ao rebanho, a construção de
se, vigorando um “complexo naval fluvial”20 . estradas, a expansão dos sistemas de pesca para
O início do século XX provocou modifica- turistas, a partir dos anos de 1970, que veio in-
ções na estrutura das fazendas de gado. Com o troduzindo formas competitivas, acabaram le-
começo da Primeira Guerra, a demanda de carne vando à desativação das grandes fazendas tradi-
bovina aumentou consideravelmente e a cons- cionais de gado. Além disso, aumentou a exclu-
trução da ferrovia Itapura-Corumbá melhora- são das populações tradicionais, pois o processo
ria ainda mais os preços da carne bovina. Foi um implicou fundamentalmente uma maior concen-
período, sobretudo para o atual Mato-Grosso tração fundiária, monopolizando a natureza nas
do Sul, de inclusão em um mercado de carne bem mãos de poucos e impedindo o acesso e uso da
mais amplo. terra e de seus recursos naturais para a produ-
As indústrias de carne bovina, conhecidas ção da vida destas populações.
como saladeiros, estabelecimento onde se salga a Este processo, que podemos chamar de mo-
carne em mantas e se expõe ao sol para a prepa- dernização conservadora, que impôs modifica-
ração do charque, localizavam-se, principalmen- ções no ritmo das águas e das comunidades lo-
te, às margens do Rio Paraguai na região de Cá- cais, mostra-se perverso, uma vez que não se tra-
ceres. A produção desses saladeiros, gerida por duziu em um processo maior de inclusão das
capital estrangeiro, era escoada diretamente para populações camponesas e ribeirinhas locais,
os portos argentinos e uruguaios, onde o impe- como se pode verificar pelos índices de IDH dos
rialismo inglês mostrou-se eficiente coalização municípios do Pantanal Norte, de 2000. Confor-
econômica em torno da atividade pecuária e sua me Castro23 aponta, utilizando-se aquele índice,
industrialização20 . no ranking dos municípios do estado de Mato
Para grande parte da população ribeirinha, a Grosso, os municípios pantaneiros ocupam as
atividade pecuária, sempre associada à lavoura, últimas posições de num total de 122 municípi-
na realidade, constituiu-se também como uma os. Embora os indicadores tenham melhorado
principal atividade econômica e como geradora de 1991 a 2000, a exceção de Poconé que reduziu
de grande força de penetração pelos sertões bra- o IDH Renda, eles não foram suficientes para
sileiros. O Pantanal colocava à disposição gran- tirar os municípios do Pantanal Norte da condi-
de áreas de pastagem natural, com disponibili- ção de área de grande pobreza, apesar das signi-
dade de água e de sal para o gado. A atividade de ficativas melhoras do IDH Educação.
criação extensiva do gado adaptou-se aos mo- As desigualdades sociais encontradas na re-
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gião vão refletir diretamente nos indicadores clás- ribeirinhos do rio Cuiabá, a doze quilômetros de
sicos de morbi-mortalidade dos municípios do São Pedro, e de outras comunidades que se des-
Pantanal mato-grossense. Observou-se que, no locam para São Pedro, mudando temporaria-
período de 1991 a 2000, nos municípios de Barão mente de moradia para casa de parentes ou mo-
de Melgaço e Poconé, as causas de morte foram radias próprias e transitórias, retornando já na
doenças do aparelho circulatório, seguidas pelas fase de vazante.
causas externas e doenças do aparelho respira- Neste ambiente, esta população sertaneja tem
tório. Chama a atenção, contudo, que no muni- reproduzido um modo de vida em que o acesso
cípio de Barão de Melgaço, em 1991, os óbitos aos recursos naturais se dá pela forma coletiva,
por causas mal definidas foram 80%, chegando tanto no que se refere às necessidades do gado e
a 21,7% do total das mortes em 2000. No muni- do suprimento de alimentos. Nessa mesopotâ-
cípio de Poconé, este indicador parte de 40,2% mia, pantanal, terras firmes, largo, rios, riacho,
em 1991 e chega a 12,8% em 2000, mostrando corixo, mais que acidentes geográficos identifi-
uma grande ausência de atendimento médico à cam um modo de vida, pois definem manejos
saúde destas populações pantaneiras24. diferenciados dos recursos disponíveis.
O distrito de Joselândia, área de estudo, é o O calendário agrícola é definido pelo regime
único do município de Barão de Melgaço, e sua de chuvas e pela dinâmica de inundação, respei-
sede, São Pedro, foi legalmente constituída em tando-se o tempo de recuperação das áreas utiliza-
1955, com o ato de registro da área em cartório, das. O manejo do gado é realizado utilizando-se
na forma de “patrimônio”. a partir da sesmaria as áreas de campo, com pastos naturais, chama-
Santo Antônio da Barra, e dedicado ao santo dos por eles de “Pantanal”, que são áreas de uso
padroeiro do seu povo. Em pouco mais de 100 comum, com o gado criado solto. À medida que
hectares, foram se instalando pessoas e famílias sobe o nível de inundação, o gado é levado para
em busca de terras altas para a produção de ali- as partes mais altas. Assim é o ritmo das águas
mentos de sua subsistência e de trabalho nas gran- que permite ampliar ou retrair as pastagens.
des fazendas de gado da região. Muitos foram A comercialização dos bezerros é uma das
expulsos de localidades ribeirinhas pela própria principais fontes de renda dos pantaneiros. O
dinâmica de inundação do Pantanal, em épocas fogo ainda é sua principal tecnologia de abertu-
de grande cheia25. São “lavradores” de pequenas ra de novas áreas para plantio e manejo do pas-
extensões de terras, como se autodefinem, e a to. Coletam nas matas da redondeza madeira
organização social é marcada pela agricultura para suas construções e é fonte de energia; ex-
familiar, com regras de acesso à terra ligado às traem mel e plantas medicinais. Os moradores
relações de parentesco. A luta com a lavoura e a ribeirinhos têm na pesca uma fonte básica de
criação de gado, neste ambiente específico, pan- proteínas para consumo próprio e principal
taneiro, marca a identidade. fonte de renda familiar, comercializada em Por-
to Cercado, ou levada para a feira de peixe da
cidade de Poconé.
Sobre as pessoas e seu cotidiano As atividades econômicas desenvolvidas for-
necem à família seu “costumeiro estoque de bens,
O cotidiano dos moradores de Joselândia não tem seus limites na produção, e não possui pro-
pode ser dissociado do pulsar das águas, que ao pensão inerente para o trabalho continuado” 26.
definir a vegetação, o movimento de peixes, etc., Nesta forma de organização, é impossível sepa-
também define os movimentos das pessoas. Che- rar a prática econômica da familiar e os usos dos
ga-se a São Pedro, sede do distrito de Joselândia, recursos naturais estão relacionados a uma ter-
durante a seca pela estrada de terra MT 156, em ritorialidade, esta definida pelos laços de paren-
condições precárias a maior parte do ano em tesco. Assim, as categorias, patrimônios, sesma-
decorrência da ação das águas nos períodos chu- rias, campos abertos e condomínios presentes
vosos. No período de inundação, o acesso ao nos relatos orais referenciam um universo em
distrito é feito por barco através do Rio Cuiabá, que, até período recente, as formas de usufruto
do Porto Cercado até as localidades de Porto Li- da terra e de outros recursos naturais eram co-
moeiro e Porto Biguazal, e depois por terra inun- muns e o acesso a eles era dado pelas relações de
dada até São Pedro, por barco, cavalo ou carro parentesco27. Como diz um morador, “aqui an-
de boi, conforme for o nível da água. tes cada um tirava um pedacinho para plantar”,
Há com freqüência uma constante mobilida- para “abrir um espaço de terra do tamanho das
de da população, em épocas de inundação, de suas necessidades”, nos diz outro morador, con-
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Pignatti, M. G. & Castro, S. P.

figurando uma organização social estruturada Seus principais produtos são os de aprovisi-
por laços de parentesco e vizinhança. onamento como: arroz, feijão, milho, banana,
O muxirom constitui-se a forma de viabiliza- mandioca, batata em áreas que, de modo geral,
ção dos trabalhos que demandam muita mão- não ultrapassam cinco hectares; o gado é criado
de-obra em determinadas épocas como plantar, solto no Pantanal, em áreas de uso comum, que
colher, construir casas, na esfera do universo de na época da cheia é levado para áreas mais altas
trabalho masculino; na esfera do trabalho femi- e os bezerros são vendidos, às vezes às pressas e
nino, o trabalho em mutirão se faz presente quan- magros, em certos momentos, a baixo preço, a
do da produção de alimentos que envolvem gran- compradores do próprio local, que os comerci-
de quantidade como para a conserva (principal- alizam em Capoeirinha, distante cerca de trinta
mente de banha, embutidos, etc.) ou quando da quilômetros de Joselândia, a compradores de
demanda de uma grande quantidade de alimen- Rondonópolis e Cuiabá. A criação e venda de
tos em ocasiões tanto festivas (casamento, ani- bezerros constituem juntamente com a aposen-
versários, oferta de alimento para os trabalha- tadoria formas importantes de acesso ao dinhei-
dores no muxirom) como em ocasiões de luto. ro e sustentação econômica da família na aquisi-
Também na esfera do trabalho feminino, a pro- ção de bens não produzidos no local.
dução de artesanato, como por exemplo, a rede, Até os anos de 1960, a produção excedente de
é realizada em trabalho comum. O muxirom, alimentos era comercializada com as embarca-
portanto, constitui-se uma categoria central no ções de mercadorias. Na beira do rio, produzi-
universo das práticas e das representações soci- am rapadura, peixe seco, pele de jacaré, pele de
ais dos grupos sociais, estabelecendo os laços de jaguatirica, pele de onça, trocando esses produ-
reciprocidade presentes neste universo, definido- tos por mercadorias na beira do rio. Era um tem-
res de identidades/pertencimentos. A represen- po de muitas trocas nessa região, de produzir
tação coletiva desta categoria a transforma em óleo de peixe, de aproveitar a “lufada”, termo uti-
um marcador de tempo: tempo dos antigos – lizado para designar a piracema.
muxirom era muito mais forte, tinha muito mais O cercamento das terras comunais, que se
muxirom; tempo de hoje - tempo da esperteza, da intensificou de forma drástica, mesmo entre
ambição, portanto, os vínculos solidários são médios e pequenos produtores, convertendo-se
mais frágeis. o Pantanal em propriedade privada de uso parti-
Hoje está mais difícil essa forma de acesso à cular, vem enfraquecendo de forma decisiva a
terra, por causa do seu preço, do cercamento das organização familiar para o trabalho, inviabili-
terras de uso comum, da expansão das grandes zando muitas das práticas costumeiramente de-
fazendas e das subdivisões da terra por herança. senvolvidas. Como exemplo, as práticas costu-
Encontram-se prensados entre grandes fazendas, meiras como o longo “pousio” para a recupera-
localizadas nas terras altas e as áreas mais baixas ção do solo, passaram a ficar cada vez mais limi-
do Pantanal, áreas de inundação e de uso co- tadas. A lógica se inverteu; mais importante que
mum, onde fica o gado dos moradores de Jose- apenas possuir o gado agora era indispensável
lândia em época de seca. Na cheia, a roça é inun- possuir a terra como bem privado.
dada, com prejuízo da colheita caso a chuva che- Essa situação difícil de reprodução social,
gue mais cedo, e o gado perde espaço de prote- somada às difíceis condições de vida no campo,
ção nas terras altas, agora impossibilitadas de o acesso precário ao ensino e as oportunidades
uso, pela desativação de antigas fazendas e pelo que muitos acreditavam que poderiam ter na ci-
alto preço do arrendamento de terras para as dade, provocou a migração, principalmente a
condições do pequeno produtor. Em termos tec- partir dos anos de 1980.
nológicos, o sistema de produção é o de “coiva- Novamente, com a decadência das grandes
ra”, roça de toco, utilizando-se basicamente dos fazendas, com as cercas que passaram a limitar o
seguintes meios de trabalho: machado, facão, acesso aos recursos naturais para o manejo de
foice, enxada e o fogo para abrir novas áreas. gado na forma extensiva, realizado dentro de uma
Percebeu-se a extrema preocupação dos entre- lógica de uso comum dos recursos naturais, a
vistados no controle do fogo, quando da abertu- população tem encontrado dificuldade em reorga-
ra de novas áreas com o uso do fogo, já que não nizar-se dentro de sua “economia moral”
dispõem de condições de acesso a tecnologias de costumeira.
menor impacto ambiental.
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Do perfil socioeconômico: Com o estabelecimento da Unidade de Con-
renda e infra-estrutura domiciliar servação que englobou quatro grandes fazendas
da região, muitos perderam a possibilidade de
No quadro apontado, a identificação das condi- aumentar a renda trabalhando temporariamen-
ções de vida dos determinantes da saúde-doença te nestas e o local para o gado em épocas de cheia.
está relacionada à dimensão espacial de ocupa- Verifica-se uma contínua saída de moradores
ção do espaço, à morbidade, à densidade popu- para “tentar a vida na cidade” e, após alguns anos,
lacional, às condições de alimentação, habitação, e dado ao aumento do desemprego urbano, re-
saneamento, transporte e meio ambiente, como tornam ao local. A RPPN-SESC Pantanal con-
também as relações entre saúde e trabalho28, 29. trata temporariamente cerca de quinze morado-
A renda das famílias é garantida principal- res por ano para a Brigada de Incêndio, por seis
mente pelas aposentadorias, que são pagas no meses (de junho a dezembro), com um salário
próprio distrito, o que movimenta o comércio de cerca de R$350,00. Tem contrato fixo com os
local e a produção caseira. A criação de gado guardas parque (cerca de dez moradores).
mostra-se cada vez mais difícil e poucas são as Verificou-se que, em relação às condições de
famílias que conseguem criar mais de uma dúzia moradia e equipamentos individuais, 92,2% dos
de cabeças, classificadas como fortes e se opon- moradores têm casa própria geralmente feita de
do aos fracos que têm sua atividade econômica barrote ( 51,95%). A maioria das casas tem três
mais voltada para uma agricultura de a subsis- cômodos, sendo uma sala (que vira dormitório
tência e a criações de galinhas, porcos e, geral- também à noite) e um quarto. Em outra peça,
mente, algumas poucas vacas. As famílias entre- em separado, encontra-se a cozinha. O piso em
vistadas se classificam como de baixa renda fa- 46,75% delas é de terra batida, 100% não possu-
miliar, pois 77% destas recebem até dois salários em forros e 40,26% têm cobertura de palha. Even-
mínimos. tualmente, observa-se no quintal um cercado de
Em relação à condição de atividade e ocupa- palha para o banho.
ção, 27% são autônomos (lavoura, gado) e 15,6% A comunidade não tinha energia elétrica até
são donas-de-casa. Nas questões sobre lavoura 2006; só alguns possuíam motor a diesel. A água
e criação de gado, 52,3% e 32,1%, respectivamen- para consumo é de poços, com freqüência salo-
te, disseram que se envolvem nestes afazeres, bra e com sedimentos, que em épocas de cheia
embora não considerados como atividade de tra- podem sofrer desmoronamento. Não há sanea-
balho, uma vez que mulheres e crianças partici- mento e os dejetos humanos são depositados nos
pam para “ajudar” no trabalho da lavoura. A fundos dos quintais dos moradores ou em fos-
pesca foi relatada como sendo praticada em sas negras, que em época de inundação sofrem
30,1% dos casos. A população é predominante- infiltração. Aqui se coloca um problema de saú-
mente masculina (56,25%). de ambiental coletiva para estas comunidades,
As mulheres, não tendo perspectivas de de- passível de ser enfrentado somente com o envol-
senvolver seus estudos no local, migram ainda vimento da população, e sua conscientização, a
muito jovens para estudar e, também, contri- reivindicar dos órgãos de governo soluções.
buir para o orçamento familiar. Para isto, geral- A comunidade serve-se de poços rasos (100%),
mente vão trabalhar em casas de família, como descobertos e com uma pequena proteção contra
empregadas domésticas. E tanto, residem com o desmoronamento por uma manilha de concre-
familiares, trabalham em casas de família ou con- to, geralmente construídos próximos das casas e,
seguem um emprego que possibilite o pagamen- destes, 44,2% não possuem encanamento inter-
to de seus estudos. Algumas conseguem ingres- no, sendo a água armazenada em tambores. Para
sar em universidades, sobretudo particulares. A a ingestão, em 79,2% das unidades familiares, os
diferença entre o percentual de homens e mulhe- moradores filtram a água. Geralmente quando
res reflete a crise na reprodução da população de as cheias são muito intensas e invadem as casas,
Joselândia. os moradores passam um período na casa dos
O fato de haver uma escola estadual na loca- parentes em Poconé ou Cuiabá ou possuem casa
lidade até o segundo grau e a maioria dos profes- em outra localidade.
sores morar no local pode explicar o alto índice A situação de saneamento básico no local não
de alfabetização, pois se observou que 78,4% dos difere da situação geral da zona rural do Estado
entrevistados afirmavam que sabiam ler e, des- de Mato Grosso30 e, mesmo na zona urbana, a
tes, 37% freqüentam a escola e 49,4% apresenta- ausência de sistema de coleta e tratamento do es-
vam primeiro grau incompleto. goto tem trazido graves conseqüências para a
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poluição das águas dos rios que formam o Pan- com os conhecimentos da natureza para dar le-
tanal. gitimidade às práticas cotidianas. Em defesa das
A dinâmica de inundação do Pantanal, um pragas que destroem as lavouras, muitos agri-
momento de exuberância da natureza, quando cultores benzem suas plantações e plantam na
se dá a explosão da vida, com grande oferta de “lua certa” para plantio, e também têm os cuida-
nutrientes para plantas e animais pelo aumento dos na colheita. A religião também se misturava
e o espargimento da água, implica para estas ao universo mítico das lendas e mistérios dos
populações a escassez de água saudável para o rios e das matas.
consumo humano, constitui um veículo trans- Neste universo, este “mundo” e o “outro”, o
missor de doenças que interliga sistemas de abas- sobrenatural, não possuem uma separação rígi-
tecimento e armazenagem de água com pocilgas, da, pois se intercambiam. No modelo geral de
dejetos de animais e de aves criados soltos pelas percepção desses sertanejos, o modelo de expli-
redondezas das residências, inclusive cemitérios cação do mundo é altamente complexo e refina-
e currais, entre outros. do. Nele, o homem não é pensado dissociado da
natureza e isolado do resto da criação e, muito
menos, de sua existência espiritual.
Do processo saúde e doença: Através da religião, o ser humano é levado a
sobre a religiosidade e as práticas de cura aceitar o sofrimento e até a morte, na medida em
que isso tem um significado convincente para os
Podemos afirmar que uma das marcas mais ex- momentos cruciais de sua vida31. Na comunida-
pressivas na cultura local é a religiosidade, cuja de de Joselândia, observou-se que a religiosidade
tradição está ancorada no catolicismo popular marca tanto as manifestações coletivas quanto
que, mais que oposição ao saber religioso cleri- os processos de cura individual das doenças e
cal, com ele dialoga e o transforma, mantendo outras manifestações de sintomas mal definidos,
em seu interior entrecruzamento de múltiplas sendo que a fé é um elemento primordial para o
experiências religiosas, principalmente de relei- processo de cura.
turas do cristianismo. Esta religiosidade se ma- A prática de cura das doenças, neste univer-
nifesta de várias maneiras, tanto cotidianamen- so, se dá através das benzeções, e o seu ritual –
te, e os altares caseiros são testemunhas, como que envolve benzedor/benzido, gestos, espaços e
nos festejos em homenagem aos santos familia- objetos sacralizados - está imerso nesta religiosi-
res e comunitários. A construção da Igreja de São dade popular. Para as pessoas inseridas nesse
Pedro, em 1932, constitui-se em um importante modelo, o mundo e o sujeito são concebidos
marco da memória local e expressa um senti- como totalidades. A ruptura dessa totalidade ins-
mento de pertencimento à comunidade. taura a desordem contra a qual é preciso reagir
Os festejos em homenagens aos santos se pelo auxilio das forças sobrenaturais (no caso,
constituem na demonstração da forma de viver principalmente os santos e anjos). Benzer é ga-
o religioso, onde o que é sagrado e profano para rantir o funcionamento da normalidade deseja-
a religião oficial converte-se na totalidade do sen- da e conter o mal. A perspectiva de estar doente
timento dos devotos, na reza, nos cultos, nos ri- representa apenas uma forma específica de ad-
tos, nas bebidas, nas danças, nos namoros, etc. versidades e é parte integrante das dimensões
Em São Pedro, a festa em homenagem ao seu psicológicas, moral e social de uma cultura parti-
padroeiro é o momento mais aguardado do ano, cular que está ligada ao estado de desordem ou
quando se atualizam os laços de solidariedade e de quebra da harmonia nas relações do indiví-
a relação entre a comunidade e sua fé em São duo com o mundo, consigo mesmo e com seus
Pedro: ela une as comunidades Mocambo, Pi- semelhantes32, 33.
menteira, Retiro São Bento, Colônia Santa Isa- Em entrevistas realizadas com quatro benze-
bel, Capoeirinha e Lagoa do Algodão, reafirman- deiras da comunidade, a relação de cura tanto se
do a territorialidade do povo de Joselândia e relaciona com a fé de quem benze quanto de
mantendo em sua teia “os filhos da terra”, isto é, quem é benzido: A benzeção, o que manda é a fé,
permitindo que os que não mais moram no lu- né, a senhora benze sem fé num adianta, tanto da
gar continuem a pertencer ao local. pessoa, como minha, né, se a senhora benze uma
Esta religiosidade não se restringia às missas, coisa e a senhora não tem a fé, num vale nada. (D)
as rezas e as festas, mas a todo universo de rela- Alguns sinais, tais como a “arca caída” (aber-
ções sociais, no trabalho agrícola, com os ani- tura no externo e arcos costais) e “mau olhado”
mais, na caça e na pesca. A religião mistura-se (fraqueza, sonolência) acreditam-se que somen-
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te são curados pela benzeção, pois são atribuí- diagnosticadas ou referidas. Apresentam também
dos a intenções maléficas de terceiros. Benze-se sintomas relacionados a doenças agudas infec-
para picada de cobra, “cobreiro” (erupções na ciosas e/ou contagiosas e/ou parasitárias (gripe;
pele provocadas por uma diversidade de agentes infecções urinárias; hanseníase; pneumonia; par-
biológicos), “arca caída”, “mau-olhado”, “zipela” asitoses intestinais; etc.) sem tratamento médico
(processo inflamatório com rubor em membros supervisionado. Em relação aos sintomas mais
inferiores), dor de dente e para cada uma destas referidos, abre-se destaque para as “diarréias in-
faz-se uma reza diferente, geralmente transmiti- específicas” e com “cãibras de sangue” e queixas
da a cada geração. referidas por eles como “doença respiratória”,
Sobre a representação do processo saúde- “dores nas costas”, “dores de cabeça”, “fraqueza”
doença, verificou-se que esta mantém uma rela- e “problema nos rins”, entre outras. Em relação à
ção direta e interdependente com as questões mortalidade, a ausência de causa básica nos ates-
sociais e ambientais da comunidade. Devido à tados de óbito não nos permite relacioná-la com
prática da lavoura, o trabalho braçal é de extre- fatores locais e sim constatar o total abandono
ma importância, e ficar doente na concepção da destas populações em relação à assistência médi-
comunidade está relacionado à impossibilidade ca oficial.
de não poder executar o trabalho. Desta forma, Neste universo, em que predomina uma reli-
as respostas quanto ao significado do que é ter giosidade marcada fortemente na comunidade,
saúde associaram-se, com muita freqüência, ao a procura de tratamento para sinais e sintomas
fator trabalho, bem-estar, ter serviços médicos, de doenças cotidianamente se faz através das ben-
ter uma boa alimentação, estudo e conforto. Ao zedeiras/ rezadeiras e as ervas/plantas medicinais
indagarmos sobre qual o fator mais importante e 71,73% usam concomitante com o remédio alo-
para ter uma vida boa, obtivemos as seguintes pático (comprado em farmácia).
respostas: ter tranqüilidade, união, saúde, esco- O uso de ervas e plantas medicinais é incor-
la, dinheiro e trabalho. porado nas práticas cotidianas de tratamento e
Observa-se que, nesta lógica, a saúde pode o seu uso é recomendado tanto pelas benzedei-
ser definida como um estado de equilíbrio entre ras como pelo agente comunitário de saúde e
os diversos elementos contraditórios e antagô- pelos moradores mais velhos em geral, uma vez
nicos do homem com seu meio natural, com o que o conhecimento sobre seus efeitos e identifi-
seu meio social, com agentes sobrenaturais e com cação na flora natural é passado oralmente de
ele mesmo e a doença um processo de desequilí- geração a geração.
brio entre eles. No entanto, a demanda mais visível da co-
Em relação à representação das doenças, ob- munidade é o atendimento médico oficial e os
servou-se que esta se dá através de um conjunto remédios alopáticos, considerados mais “fortes”
de sensações desagradáveis e sintomas (cansaço, para o tratamento das doenças. Não há uma hi-
fraqueza, dor, mal-estar, febre), sendo o corpo erarquia entre os procedimentos e conhecimen-
(signo) veiculador de mensagens que, ao serem tos oriundos da medicina popular e da medicina
apropriadas pelos indivíduos ou médicos, con- científica. As necessidades para a resolução da
duzem ao significado da doença34. dor ou das doenças são procuradas nas diversas
Esta apropriação condiz com as observações formas disponíveis na comunidade e dependen-
de Helman32, segundo a qual os indivíduos e gru- do da gravidade, não resolvidas pela benzeção e
pos sociais se referem à doença (illness) como os pelo uso de plantas medicinais, vão procurar os
sinais e sintomas que sentem enquanto se diri- hospitais/pronto-socorro da região. No caso de
gem ao consultório médico e enfermidade (dis- acidentes, a prontidão se dá através do aluguel
ease) quando retornam da consulta e reelabo- de um avião, cotizado entre os moradores e ou
ram o diagnóstico. A doença é, pois, a resposta através da ajuda do SESC, que eventualmente
subjetiva do paciente e de todos que o cercam ao atende a esta demanda.
seu mal-estar. A interpretação da origem e im- A localidade dispõe de um posto médico (uma
portância da doença inclui a experiência pessoal sala) e um agente comunitário de saúde, mora-
com o problema e o significado que o indivíduo dor do local e que há dezesseis anos exerce a fun-
confere ao mesmo. O inquérito apontou que ção. O atendimento médico na localidade é feito
38,77% das residências possuem um ou mais geralmente duas vezes ao ano (mutirão), quan-
membros da família portador (es) de sintomas do uma equipe se desloca para o local (médico,
referentes a doenças classificadas como crônicas, enfermeira e dentista). A medicação distribuída
diagnosticadas, em tratamento, ou apenas pré- geralmente é insuficiente, como também o resul-
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tado dos exames não é informado à população tes” da comunidade e os políticos da região, com
(segundo os moradores). O único medicamento medidas pontuais e descontínuas. A experiência
que ainda não foi interrompido foi para os casos local com promessas e não efetivação das medi-
de hanseníase (fornecidos por Poconé). Obser- das de caráter coletivo tem gerado uma descren-
vou-se que a maioria dos moradores entrevista- ça em relação aos serviços públicos e as saídas
da (55,65 %) procura hospitais e ou pronto-so- encontradas para tal são demandadas aos co-
corro quando estão doentes. A localização destes merciantes (fortes) com pagamento de transpor-
serviços também se concentra nos municípios de te particular (tanto em veículos automotores e
Cuiabá e Várzea Grande. A dificuldade de acesso aviões, como de barcos) ou ao SESC – proprie-
a estes centros, tanto financeira quanto de deslo- tário da Unidade de Conservação. O acesso a ali-
camento, torna-se pior em época de cheia. mentos processados e não produzidos no local
Neste grupo populacional específico, obser- se dá através da disposição em pequenas vendas,
vou-se a introjeção dos valores e conceitos e das onde praticamente são gastas as aposentadorias.
práticas que acompanham o aporte de novas tec- Acresce o gasto referido com assistência médica,
nologias. Ter saúde é também poder consumir como um dos itens de maior aplicação da renda
tais serviços, verificados pela demanda local com local. Nestes casos, a solidariedade familiar é acio-
abaixo-assinados da comunidade para atendi- nada – principalmente no caso de emergência,
mento médico local através de mutirões, da dis- acidentes e ou doenças agudas.
ponibilidade de medicamentos no posto e da pro- O estabelecimento da Unidade de Conserva-
cura por atendimento em hospitais e pronto-so- ção no local proporcionou a visibilidade desse
corros. Os mutirões de assistência à saúde reali- grupo populacional específico que, apesar de não
zados por uma equipe médica são pontuais e não estar incluso nas políticas públicas, resiste como
resolvem as demandas cotidianas da população, pode às inúmeras dificuldades encontradas e
que conta com o auxílio das benzedeiras e remé- potencializadas pelo ciclo das águas do Pantanal.
dios caseiros como a diversidade de chás. Nas O agravante nesta questão é a restrição no
doenças agudas e ou emergências (acidentes), não consumo de “bens naturais” tais como a caça,
há uma estruturação de um serviço de referência pesca e retirada de madeiras para a confecção de
e nem sequer um sistema público de transporte, casas e barcos, além de diminuir o emprego tem-
deixando a comunidade à mercê para desloca- porário e restringir o espaço necessário para o
mento e pagamento particular de consultas e aten- gado. A estratégia para a conservação da biodi-
dimento médico. versidade tem trazido intensos debates sobre os
modelos adotados em relação às populações
moradoras nas áreas, geralmente expulsas para
Considerações finais o entorno da reserva e a riqueza natural e estética
sendo apenas apreciada pelo visitante.
Os laços de solidariedade entre os moradores no Mais do que um retorno simplista das práti-
trabalho através do muxirom têm mantido o cas de antigamente, as novas práticas científicas e
modo de vida deste grupo, sendo considerado o sociais devem fortalecer a aparição de novos pó-
elemento principal de resistência à pressão do los de valorização - como resistência ao sistema
poder e dinheiro ou através de atos difusos como de valorização capitalista e a reinvenção em nível
as festas aos santos e as práticas populares de local de mecanismos que tratem a saúde de for-
cura. A fragilidade, dada pelas doenças, falta de ma ampliada e no plano individual - a busca da
infra-estrutura sanitária e acesso aos serviços, integralidade e da humanização do cuidado à
aparece como demandas a serem equacionadas saúde podem e devem constituir-se em novas
pelo poder público, que, no caso em questão, práticas de saúde tanto para os profissionais de
não se traduz em lutas organizadas da comuni- saúde como para os moradores do Distrito de
dade, mas como “troca de favores” entre os “for- Joselândia.
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