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DOI

CLERICALISMO E ABUSO SEXUAL


Por que tamanha inércia?*
CLERICALISM AND SEXUAL ABUSE
Why such inertia?

Hervé Legrand**

Síntese: A ação dos meios de comunicação revelou as graves falhas das


autoridades católicas no tratamento dos abusos sexuais, que não po-
demos reduzir a erros pessoais, segundo o Papa Francisco. Impõe-se
remediar a atual eclesiologia clerical e autoritária para que advenha a
sinodalidade no seio do Povo de Deus. Para se superar a dicotomia entre
clero e laicato, que se tornou uma cisão, é preciso revalorizar notada-
mente o batismo, a teologia da vocação e da ordenação, assim como as
concepções da autoridade e do Direito Canônico.
Palavras-chave: Abusos; Clericalismo; Igreja católica.
Abstract: The media action exposed the serious shortcomings of the
Catholic authorities in dealing with sexual abuse, which cannot be re-
duced to personal failings, according to Pope Francis. It is necessary
to remedy the current clerical and authoritarian ecclesiology in order
to uphold synodality among the people of God. Going beyond the
dichotomy between clergy and laity, which has become a scission, calls

* Este artigo foi publicado originalmente na edição de abril de 2019 da revista Études. O presente
texto foi revisado pelo Autor, que acrescentou alguns parágrafos, notas e subtítulos ao texto publicado
pela mencionada revista. Agradecemos à revista Études, que gentilmente deu-nos permissão para esta
publicação. Referência do artigo original: LEGRAND, H. Abus sexuels et cléricalisme. Études, Revue
de Culture Contemporaine, Paris, n. 4259, p. 81-92, 2019. Tradução do original francês por André
Luís Tavares, O.P., professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte. [No
Brasil, on-line, primeira versão do texto em língua portuguesa, disponível em: <http://www.ihu.uni-
sinos.br/78-noticias/600353-clericalismo-e-abuso-sexual-por-que-tamanha-inercia-artigo-de-herve-
legrand>. Acesso em: 21 jul. 2020.
** O Autor, frade dominicano e especialista em eclesiologia e ecumenismo, é professor emérito do
Institut Catholique de Paris e vice-presidente da Academia Internacional de Ciências da Religião. Autor
dos livros “Les Évêques d’Europe et la nouvelle évangélisation”, em co-autoria com Carlo Maria Martini
(1991); “Le Ministère des évêques au concile Vatican II et depuis” em co-autoria com Christoph Theobald
(2001); “L’Œuvre d’Orient – solidarités anciennes et nouveaux défis”, em co-autoria com Giuseppe Maria
Croce (2010); Penser avec le genre. Sociétés, corps, christianisme (2016), trad. Italiana: Pensare attraverso il
genere (2019), dentre outros. E-mail: <hervelegrandop@yahoo.fr>.
REB, Petrópolis, volume 80, número 317, p. 546-563, Set./Dez. 2020 547

for notably revaluing baptism, the theology of vocation and ordination,


and also the conceptions of authority and canon law.
Keywords: Abuse; Clericalism; Catholic Church.

Introdução
Os anos 2018 e 2019 ficarão historicamente marcados pelas reve-
lações, em cascata, da dimensão universal e até então inimaginável dos
abusos sexuais cometidos pelos membros do clero católico e, sobretu-
do, por seu encobrimento sistemático por parte da hierarquia. A Igreja
Católica encontrou-se, desse modo, sob uma constante pressão de seus
próprios fiéis e da opinião pública. Depois do choque provocado pelas
revelações na Irlanda e nos Estados Unidos, pelas mesmas razões, uma
Conferência Episcopal inteira, a do Chile, foi levada a demitir-se e, em
outros lugares, vários Cardeais também. Finalmente, o Papa Francisco
convocou, para Roma, um encontro com os presidentes das conferên-
cias episcopais do mundo inteiro. Não podemos mais negar a natureza
institucional da crise.

Os diagnósticos e as resoluções do Papa Francisco


Em meio a tais fatos, o Papa Francisco tomou duas decisões impor-
tantes: cessar imediatamente o “encobrimento dos abusos”1 e tratar suas
causas institucionais, notadamente o clericalismo.2 Estas resoluções,
contudo, incomodaram parte da opinião católica, pois qualificar o pro-
blema como estrutural, é algo ou que não se compreende bem ou que
é difícil de se reconhecer. Seria mais fácil jogar toda a responsabilidade
nas costas dos indivíduos, destes 3% de padres desviados, doentes e pe-
cadores, que sujam a imagem de todo o clero. Além disso, defendendo
a transparência, não se corre o risco de entrar no jogo da mídia, vista
como hostil à Igreja?

Mídia e transparência na vida da Igreja


De fato, a relação entre a Igreja e a mídia não é simples. Algumas
maneiras de noticiar os abusos podem exprimir certa hostilidade. A in-

1. “A cultura do abuso e a dissimulação é incompatível com a lógica do Evangelho” (FRANCIS-


CO, Carta del Santo Padre Francisco al Pueblo de Dios que peregrina en Chile, n. 5.
2. “Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo” (FRANCIS-
CO, Carta ao Povo de Deus, n. 2).
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sistência sobre tal assunto pode, contudo, ser a tradução de uma expec-
tativa (decepcionada) para com a Igreja, o que não é de tudo negativo.
A mídia também pode ser instrumentalizada: Dom Viganò encontrou
nela espaço para sua campanha pela destituição do Papa, por motivos
bem diferentes. Enfim, os jornalistas fazem, necessariamente, recortes
seletivos na realidade: se os padres católicos parecem constituir um alvo
privilegiado, isto se deve, por um lado, à impossibilidade de se com-
parar o clero católico com o de outras Igrejas, pois somente a Igreja
Católica dispõe de estatísticas exaustivas há mais de meio século. Apesar
de possíveis distorções, de modo especial a confusão entre o tempo mi-
diático e o tempo judiciário, a mídia se comportou, de um modo geral,
como aliada objetiva do Papa Francisco, com o fim de erradicar um mal
intolerável,3 sobre o qual as autoridades, quando deixadas a si mesmas,
guardavam silêncio.

Delitos sexuais e falhas institucionais?


Para certo prelado, o escândalo parece resumir-se à presença de ho-
mossexuais no clero, e para outro, “a pedofilia não diz respeito à Igreja
como instituição, mas sim, às pessoas que, através dela, cometeram estes
atos”,4 enquanto, para o Papa Francisco, o cerne da questão reside na
falha das autoridades em proteger os menores e as pessoas vulneráveis.
Outros criminalizam a influência da liberação dos costumes, advinda
do Maio de 1968, que teria proposto uma atitude de gozo desenfreado.
Pensando deste modo, esquece-se que, desde então, tem-se tomado cada
vez mais consciência do elo potencial entre sexualidade, poder e violên-
cia, como o movimento Me-too o tem amplamente demonstrado.
O diagnóstico do Papa Francisco fundamenta-se sobre esta correla-
ção que, em todos os espaços de vivência e de trabalho, conduz o desejo

3. Por ocasião da apresentação de votos natalícios à Cúria Romana (21 dez. 2018), o Santo Padre
Francisco saúda-os nos seguintes termos: “Alguns opõem-se com vigor a certos profissionais da comu-
nicação... eu gostaria, antes, de agradecer vivamente os profissionais da mídia, que foram honestos e
objetivos e que buscaram desmascarar os lobos e dar voz às vítimas” (FRANCISCO, Discurso do Papa
Francisco à Cúria Romana na apresentação dos votos natalícios).
4. BLOG DE LA CROIX. Para o Cardeal Filoni, os abusos “não concernem a Igreja enquanto
instituição”. Mas estaria o cardeal, possivelmente, pensando na Igreja fundada por Cristo com sua estru-
tura tal como a conhecemos? Para o Cardeal Müller, Ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
“As raízes do mal situam-se no abandono da verdade e em uma moral sem freios, e não no clericalismo,
não se importando o que se entenda por este termo”. Disponível em: <kath.net>, 17 set. 2019. Acesso
em: 03 ago. 2020.
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sexual dos mais fortes a querer impor-se aos fracos. Os abusos sexuais
têm sempre esta dimensão, como o demonstram as estatísticas do Mi-
nistério da Justiça da França: 77 mil mulheres são violentadas a cada
ano, 215 por dia, uma a cada 6 minutos; a população encarcerada com-
porta um quarto de delinquentes sexuais, sendo 90% do sexo masculi-
no. Os autores de abusos contra menores possuem um perfil idêntico:
pais incestuosos (80% dos casos julgados), professores, treinadores de
esportes, diretores de corais, dirigentes de movimentos de jovens. Es-
tes são figuras de autoridade, em contato com pessoas vulneráveis, dois
traços que também caracterizam o clero. Tais abusos são, infelizmente,
tanto previsíveis quanto verificáveis na Igreja.5
O Papa Francisco estima que ao escândalo dos desvios sexuais, hor-
ríveis para as vítimas, junta-se o escândalo mais incompreensível ainda,
proveniente dos superiores religiosos, dos bispos e dos líderes carismáti-
cos que ocultaram sistematicamente os delitos; pois, assim procedendo,
protegeram os predadores, ignoraram as vítimas e traíram a confiança
dos jovens e de seus pais. Isto tudo, sem mensurar claramente a extre-
ma gravidade de sua conduta. Responsáveis por suas instituições, sua
primeira atitude foi a de guardar sua reputação. E a segunda, de querer
mostrar compreensão para com os contraventores: eles sofrem de pro-
blemas psicológicos (bastaria fazer terapia...), ou são pecadores (eles se
arrependeriam; por misericórdia, demos a eles uma nova chance de
se recuperar...). Contudo, diante do mal, não se deve procurar expli-
cações (que, inclusive, escapam aos próprios delinquentes), mas sim,
combatê-lo e impedi-lo de prosperar. No atual estado das coisas, não
podemos simplesmente invocar a misericórdia.
Quando o Papa Francisco repete que “dizer não ao abuso, é dizer
energicamente não a qualquer forma de clericalismo”,6 ele está cons-
ciente, de modo claro, de que o tipo de autoridade e de poder dado aos
clérigos na Igreja Católica deve ser reformado. Pois, nas atuais condi-
ções, é fácil a passagem ao ato de potenciais delinquentes, com cobertu-
ra assegurada aos mesmos, o que leva à gestão desastrosa destes abusos.
Convém, assim, analisarmos rigorosamente o fenômeno do clericalismo.

5. Podemos lembrar aqui as palavras de Newman: “Sabendo como o Homem é, seria milagre que
não haja destes escândalos na Igreja”. NEWMAN, Sermons preached on various occasions, p. 145.
6. FRANCISCO, Carta ao Povo de Deus, n. 2.
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1. Em seu Direito, a Igreja Católica apresenta-se como uma Igreja


do Clero, dividida entre clérigos e leigos
Para que evitemos falar do clericalismo em termos vagos e mal de-
finidos, é melhor nos referirmos ao antigo Código de Direito Canôni-
co, em vigor até 1983.7 De modo claro, ele faz da Igreja uma Igreja do
clero, dedicando apenas um [1] cânon, geral e positivo aos leigos: “os
leigos têm o direito de receber do clero, conforme as regras da discipli-
na eclesiástica, os bens espirituais e especialmente os bens necessários
à salvação” (cân. 682). Na Igreja, os leigos não parecem gozar a não
ser de direitos próprios de cidadãos estrangeiros, residentes e protegi-
dos; somente os clérigos nela gozam de cidadania plena. Este Código
ignora o Povo de Deus em sua unidade, pois não reconhece os leigos
a não ser enquanto subordinados em tudo aos clérigos, que lhes são
superiores até na morte.8 Este Código é o fiel reflexo da eclesiologia
da sua época, tal como São Pio X o expõe numa encíclica endereçada
à Igreja da França:
A Igreja é essencialmente uma sociedade desigual, ou seja, compreende
duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho [...], e estas catego-
rias são de tal modo distintas entre si que somente no corpo pastoral
residem o direito e também a autoridade necessários para dirigir todos
os membros da sociedade; quanto à multidão, ela não possui outro di-
reito senão o de se deixar conduzir, como um dócil rebanho, seguindo
a seus pastores.9
Tal distinção entre governantes e governados verifica-se também,
de modo bastante rígido, entre celebrantes e assistentes, entre aqueles
que ensinam e aqueles que aprendem. Ela foi grandemente aceita até o
momento da convocação do Vaticano II, como testemunha este edito-
rial da revista oficial da “Ação Católica Operária Francesa”: “No plano
da fé, o Bispo é doutor. O diálogo entre o Bispo e os leigos cristãos
é certamente possível, mas o leigo só pode ser ensinado, receber. Ele é
amparado pela hierarquia. É sinal de um comportamento adulto aceitar
sua condição”.10
7. Ver análise deste Código em: LEGRAND, Les enjeux ecclésiologiques de la codification du
droit canonique, p. 405-421. Ver também a pesquisa paralela de DIANICH, Diritto e teologia.
8. O cân. 1209, § 2 prescrevia enterrar os clérigos, mesmo aqueles que só haviam recebido as
ordens menores, “à parte dos leigos, em um lugar mais honroso”.
9. PIO X, Encíclica Vehementer, Acta Apostolicae Sedis (AAS), Città del Vaticano, v. 3, n. 454, 1907.
10. MASSES OUVRIÈRES. Éditorial, p. 7.
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Para o que pretendemos estudar neste texto, é pouco importante


considerarmos como chegamos a uma concepção de Igreja tão distante
do Novo Testamento, pois o Vaticano II claramente deslegitimou-a, res-
tabelecendo a teologia do Povo de Deus, e pela afirmação da igual dig-
nidade de todos os cristãos e de sua comum responsabilidade em uma
Igreja de comunhão. Doutrinalmente, o Concílio Vaticano II repudia
de modo muito claro tal binômio, por exemplo, na Lumen Gentium 37:
[Os pastores], por sua vez, ajudados pela experiência dos leigos, tanto nas coisas espi-
rituais como nas temporais, mais facilmente julgarão com acerto, a fim de que a Igreja
inteira, com a energia de todos os seus membros, cumpra mais eficazmente a sua
missão para a vida do mundo.
De acordo com este texto, que infelizmente é pouco comentado, o
Concílio faz depender a correção do discernimento espiritual dos pasto-
res de sua proximidade com os leigos; lamenta-se, ao mesmo tempo, a
cisão entre clérigos e leigos, herdada da Reforma Gregoriana, que confi-
nava os leigos ao temporal, e reservava o espiritual aos clérigos.11
O Vaticano II acompanhou esta reforma doutrinal pela criação de
estruturas institucionais que permitam aos batizados serem sujeitos de
direitos na Igreja, através dos sínodos diocesanos e dos concílios pro-
vinciais, e de toda uma série de conselhos, pastorais, econômicos e do
laicato. O novo Código, previsto por São João XXIII, deveria redigir
os decretos de aplicação. Na prática, este Código, promulgado por São
João Paulo II, em 1983, reduziu ao mínimo este direito de comunhão.
Nenhum sínodo ou conselho comportando leigos não é declarado obri-
gatório, tendo somente um estatuto consultivo. Por outro lado, João
Paulo II e Bento XVI encorajaram fortemente o direito de associação
dos leigos, previsto neste mesmo Código. Assim, multiplicaram-se os
novos movimentos, carismáticos ou não. Devedores de sua existência
à Santa Sé, tornar-se-ão seus intermediários, em uma configuração da
“comunhão hierárquica”, onde o adjetivo prevalece sobre o substantivo.
Por este fato, o governo da Igreja permanecerá estritamente nas mãos
dos clérigos. Assim, o Cardeal Schotte, Secretário do Sínodo dos Bispos,
exprime o direito em vigor no Código revisado, e não sua opinião pes-
soal, quando declara: “Não se enganem, na Igreja Católica, um pároco
não tem que prestar contas a ninguém, senão ao seu bispo; um bispo

11. HUMBERT DE MOYENMOUTIER, Libelli de lite..., p. 208.


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não tem que prestar contas a ninguém, senão ao papa. E o papa não
tem que prestar contas a ninguém, senão a Deus”.12 Tudo o que precede
justifica a opinião do Papa Francisco, segundo a qual “o clericalismo
engendra uma cisão no corpo eclesial”. É preciso agora considerar com
atenção os fundamentos ideológicos do clericalismo.

2. Ao inculcar nos(as) leigos(as) o não-poder e o não-saber dos


mesmos(as), os clérigos insistem em sua superioridade, atribuída à
sua eleição por Deus e aos efeitos de sua ordenação
Escreve o Papa Francisco:
O clericalismo (é) favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos (...);
isto se manifesta claramente num modo anômalo de entender a autoridade na Igreja
(...), tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito Santo
pôs no coração de nosso povo.13
Notando o consentimento dos leigos a este regime de autoridade,
favorecido pelos padres, o Papa Francisco não incrimina nem todos os
leigos nem todos os padres, mas chama atenção para o mecanismo de
suas relações. Em termos sociológicos, este mecanismo é implementado
quando os clérigos inculcam nos leigos o não-poder e o não-saber des-
tes, afirmando, ao mesmo tempo, sua própria eleição e superioridade,
pela graça de sua vocação e ordenação.

O não-poder dos leigos


Há séculos, os catecismos mais autorizados definem os padres por
seus poderes, em oposição aos leigos, que são deles desprovidos. É o caso
do Catecismo do Concílio de Trento,14 do Catecismo Católico, do Cardeal
Gasparri,15 do Catecismo Nacional da França, que define o sacerdote pelo

12. SCHOTTE, The Church in the World. The Tablet, p. 163. São estas palavras que encon-
tramos literalmente no Carnet de préparation d’un catéchisme à destination des prêtres et des laïcs. Notes
pédagogiques (sic) do Padre Quinet, inspetor geral do ensino religioso da Diocese de Paris, 1932, p. 272.
13. FRANCISCO, Carta ao Povo de Deus, n. 2.
14. Cf. CATECISMO DO CONCÍLIO DE TRENTO, c. 26, § 1: “Os poderes que os sacerdotes
possuem de consagrar e de oferece o Corpo do Senhor, e o de perdoar os pecados, vão além de todas
as nossas concepções humanas. Não podemos encontrar nada comparável sobre a terra”; ibidem, “A
Escritura dá aos sacerdotes, a justo título, os nomes de anjos ou mesmo de deuses, porque eles exercem,
de algum modo, entre nós, o próprio Poder do Deus imortal”.
15. GASPARRI, Catéchisme catholique, questão 146. Na questão 482, precisa-se que se trata de
“um poder sobre o corpo do Cristo tanto real quanto místico”.
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“poder de exercer as funções sagradas”,16 o poder de consagrar e de absol-


ver, que os leigos não possuem. O Catecismo da Igreja Católica, de 1982,
conserva traços destas afirmações: ele cita uma encíclica de Pio XII, para
o qual “por causa da consagração sacerdotal que recebeu, [o sacerdote]
goza do poder de agir pela força do próprio Cristo que representa”.17
Evidentemente, tal ensino dá forma às relações entre os leigos e o clero.

O não-saber dos leigos


Até o Vaticano II, toda liturgia e todos os sacramentos eram cele-
brados numa única língua, compreendida apenas pelos clérigos. Uma
prática tão importante no plano simbólico situava os leigos no não-sa-
ber que se lhes era inculcado no final do século XIX, como testemunha
a encíclica já citada de São Pio X, e seus numerosos paralelos, ou ainda
o editorial, mais recente, de Masses ouvrières, como vimos. A preocupa-
ção do Papa Francisco em valorizar a contribuição positiva dos fiéis no
exercício do magistério não é evidente, pois o papel ativo, que lhes dá a
Lumen Gentinum 37, não se encontra na Dei Verbum. Na análise muito
precisa que faz em termos sociológicos, Gérard Defois nota que a palavra
do magistério é de “mão única”; esta não recebe nada nem do ambiente
vital, nem da memória do grupo, nem da experiência que o grupo faz
de tal palavra. “Trata-se de um circuito sem feed-back, ou seja, fechado
em seu próprio funcionamento (...), sem alguma possível correção, ao
longo do exercício, para melhorar a difusão e transformar a mensagem”
(...); os fiéis nela se configuram como “filhos da Igreja, objetos da ação
da hierarquia ou sujeitos de deveres”; eles são “alimentados, instruídos,
informados, exortados; ser-lhes-ão comunicadas as imensas riquezas da
palavra divina; ser-lhes-á traduzido o texto, dado o seu acesso” etc.18
O Papa Francisco, nós o sabemos, afastou-se de uma concepção
exclusivamente auto-referencial do magistério. Em fidelidade à Lumen
Gentium, que compreende a Igreja como Povo de Deus, Corpo de Cris-
to e Templo do Espírito Santo, ele concebe o acesso do Povo de Deus à
verdade de modo muito mais sinodal, numa escuta mútua entre os três
polos da vida da Igreja, que são a hierarquia, a teologia e os fiéis. Como

16. Cf. Quenette, Catéchisme national de France, n. 572.


17. Cf. Idem, n. 1548; ver também no n. 1551: “O sacramento da Ordem comunica ‘um poder
sagrado’ que é o próprio poder de Cristo”.
18. Cf. DEFOIS, Révélation et société, p. 478ss.
554 H. Legrand. Clericalismo e abuso sexual

notava Newman,19 cada um destes pólos deve levar em conta os outros


dois, do contrário, de acordo com cada caso, o povo cairia na supersti-
ção, os teólogos no racionalismo e a hierarquia no arbitrário.20
Poderíamos, e com razão, argumentar que citamos os textos relati-
vos ao não-poder e ao não-saber dos leigos sem tê-los situado em seus
contextos históricos, textos que teriam um interesse apenas arqueoló-
gico, após o Vaticano II. Mas, assim procedendo, conformamo-nos à
prática do próprio magistério, que não contextualiza historicamente
seus documentos.21 Além disso, a associação entre leigos e o não-poder
e o não-saber ainda persiste: o “poder sagrado” continua sendo uma das
categorias fundamentais do Código de Direito Canônico, revisado em
1983, com as consequências que podemos esperar.

Seriam os clérigos eleitos preferidos de Deus, por sua vocação?


Segundo o Papa Francisco, “o clericalismo nasce de uma visão elitis-
ta e exclusivista da vocação, que interpreta o ministério recebido como
poder a ser exercido”.22 De fato, a vocação é comumente compreendida
como um chamado, interior e misterioso, que provém diretamente do
próprio Jesus, uma escolha de Deus anterior àquela da Igreja.23 Esta
vocação força ainda mais o respeito da parte dos fiéis enquanto implica
renúncias (a constituir uma família) e a promessa de um devotamento
total. Não é sem razão que qualificamos uma vida de doação aos outros
como um “verdadeiro sacerdócio!”24

19. Newman considerou longamente este equilíbrio necessário em Via Media, preface to the third edition.
20. O Beato Pio IX não evitou este perigo, declarando “Eu sou a Tradição; eu sou a Igreja”,
cf. CROCE, Una fonte importante per la storia del pontificato di Pio IX, p. 275-276.
21. Ainda que a Santa Sé aceite o estudo histórico-crítico dos Evangelhos, seus próprios documen-
tos se referem a fontes produzidas ao longo de vinte séculos, sem nunca colocá-las em seu contexto his-
tórico! O Denzinger, coleção não oficial destes textos, contenta-se em apresentá-los segundo a sucessão
cronológica dos papas.
22. FRANCISCO, Discurso do Papa Francisco na abertura do sínodo.
23. A instrução da Congregação para o Clero relativa à formação dos sacerdotes, de dezembro de
2016, com o título “O dom da vocação presbiteral” começa assim: “O dom da vocação ao presbiterado,
conferido por Deus no coração de alguns homens, exige da Igreja propor-lhes um sério caminho de
formação”. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. O dom da vocação Presbiteral.
24. Esta ideia de eleição é tão familiar que alguns fieis acostumados à concelebração, raros, espe-
ramos, creem que os padres agradecem a Deus pela própria eleição quando os escutam dizer na Oração
Eucarística n. 2: “E nós vos oferecemos, ó Pai, o pão da vida e o cálice da salvação, e vos agradecemos
porque nos tornastes dignos de estar aqui na vossa presença e vos servir”. A versão italiana introduz nesta
passagem o conceito de sacerdócio, e a versão inglesa a de ministério, que não se encontram no original
em latim, o que favorece tal erro.
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Tal concepção da vocação, inscrita na linguagem usual (“tornar-se


padre”) é contrária à tradição recordada por São Pio X, ainda em 1912:
“A vocação não consiste, de modo algum, num convite do Espírito San-
to para abraçar o sacerdócio”, mas em um apelo que a Igreja faz a um
cristão, no qual ela discerne as aptidões necessárias.25 Contudo, vinte
anos mais tarde, Pio XI, exigindo que os ordenandos jurassem sobre os
santos evangelhos: “Experimento e sinto que Deus me chama realmen-
te”,26 consagrou este subjetivismo moderno ruinoso, contra um equilí-
brio entre a eleição pela Igreja e a eleição por Deus, autonomizando27 o
clero em relação aos fiéis.28 As conclusões do Sínodo da Juventude terão
sucesso em encontrar uma concepção mais adequada do chamado aos
ministérios ordenados?

A superestimação dos efeitos da ordenação


É difícil negar que ao longo da história superestimaram-se teologi-
camente os efeitos da ordenação, e não só no Ocidente.29 No Ocidente,
o padre vê-se descrito como “outro Cristo”, “mediador entre Deus e
os homens”, “sacerdote para sempre”, “mil vezes superior aos anjos”.
Jean-Jacques Olier, que dará forma aos seminários sulpicianos, chega a
ensinar que os sacerdotes são “as fontes fecundas e inesgotáveis de todas
as graças; tudo o que acontece de santo, de grande, de divino na Igreja
emana deles e se opera pelo seu santo ministério”.30 Ele escreve ainda
que “o sacerdote participa com o Pai e o Filho do poder de enviar o Es-
25. AAS, Città del Vaticano, v. 4, p. 485, 1912.
26. AAS, Città del Vaticano, v. 23, p. 126, 1931.
27. O Código de Direito Canônico de 1983 inscreveu esta dissociação no cânon 377 § 3 que
proíbe o núncio de consultar pessoalmente “os membros do cabido catedralício ou do colégio de con-
sultores”; ao invés disso, ouvirá alguns e “se o julgar conveniente, solicite em separado e secretamente
o parecer de outros membros de ambos os cleros (colégio dos consultores e cabido catedralício) e bem
assim de alguns leigos notáveis pela sua sabedoria”. Esta disposição consagra o apagamento das dioceses
como sujeitos de direito, em contraste (ou contradição?) com a primeira frase pronunciada em todas as
celebrações de ordenação, quando se dirige ao bispo nos seguintes termos: “Reverendíssimo Pai, a Santa
Mãe Igreja pede que ordenes para a função de diácono, padre ou bispo...”, e também com o direito
escrito anterior ao Código de 1917.
28. O que se verifica costumeiramente no fato que apenas os padres decidem quem poderá ser
ordenado padre. Para uma análise de conjunto desta questão: LEGRAND, La théologie de la vocation
aux ministères ordonnés: vocation ou appel?
29. Testemunho de São João Crisóstomo, envolvido por sua retórica, escreveu: “Do mesmo modo
que há diferenças entre os animais selvagens e os homens razoáveis, tão grande é, e eu não exagero, a
distância entre o pastor e as ovelhas” (JEAN CHRYSOSTOME. Dialogue sur le sacerdoce, l.II, 2,
p. 105-106.
30. OLIER, Traité des saints ordres, p. 204.
556 H. Legrand. Clericalismo e abuso sexual

pírito Santo ao mundo”.31 O Concílio Vaticano II certamente reequili-


brou esta “espiritualidade sacerdotal”, mas retomou, sem as explicações
necessárias, algumas expressões técnicas suscetíveis de ambiguidade: os
sacerdotes “agem na pessoa de Cristo”, “em nome do Cristo-Cabeça”
(Lumen Gentium 28 e Presbyterorum Ordinis 2, 6, 12); a ordenação mar-
ca-os com um caráter indelével, criando para alguns uma diferença on-
tológica entre sacerdotes e fiéis,32 fundada, erroneamente, na diferença
“essencial, e não apenas de grau” entre o sacerdócio dos ministros orde-
nados e aquele dos leigos (Lumen Gentium 10).33 Na prática, a concep-
ção cristã de santidade, cuja fonte é o batismo, foi absorvida, neste caso
precisamente, pela categoria de sagrado.
Este breve resumo é suficiente para demonstrar porque o Papa Fran-
cisco se inquieta em ver “o clericalismo subavaliar a graça batismal”.34
Ela não está sendo desvalorizada quando se deixa entender que toda a
vida cristã depende dos padres, como o afirmou o Cura d’Ars dizendo:
“Deixe uma paróquia sem padre durante vinte anos e lá passarão a ado-
rar as bestas”? A graça do batismo é igualmente menosprezada pelos mi-
nistros ordenados influenciados por esta pseudo-espiritualidade sacer-
dotal, pois o batismo é o único fundamento da santidade deles também.

Consequências diretas de uma estrutura clerical da Igreja em relação ao


tratamento dado aos abusos
Como não ver que o clericalismo, ou seja, a estruturação binária da
Igreja e a pseudo-espiritualidade que o justifica, conduz diretamente ao
silêncio dos fiéis, ou mesmo à sua cooperação na dissimulação dos abu-
sos? Esta estrutura concebe como impensável a figura de um sacerdote
perverso. Daí, pensa-se, então, que o(s) menor(es) que são suas vítimas
não podem estar senão fantasiando e, se os fatos são confirmados, mui-
tos não desejarão, por meio de uma denúncia, atentar contra a repu-

31. Ibidem. Maritain criticou com vigor esta construção ideológica do clericalismo. Cf. MARI-
TAIN, À propos de l’École française.
32. O que não é, entretanto, um ensinamento dogmático, cf. LEGRAND, Caráter indelével e
teologia do ministério.
33. A maioria destes temas é retomada pelo Diretório para a vida e o ministério dos presbíteros, da
Congregação para o Clero (2013), que sublinha a diferença ontológica (2 vezes na apresentação e nos
n. 2, 6, 7. É ainda mais incômodo que, distanciando-se do título do documento, que traz um plural, o
texto fala do presbítero sempre no singular.
34. Cf. nota 13.
REB, Petrópolis, volume 80, número 317, p. 546-563, Set./Dez. 2020 557

tação do clero como um todo. Tais representações também agravam a


dor das pessoas abusadas: foi-lhes inculcada uma confiança absoluta em
seu agressor; o fato de se verem traídas destrói-as interiormente, agrava
seus sentimentos de culpabilidade e as lança no silêncio, guardado pelas
vítimas durante longos anos.

3. Os efeitos de um clericalismo autoritário


É evidente que os bispos e seus colaboradores, os superiores reli-
giosos ou os responsáveis pelos novos movimentos, ou os altos dirigen-
tes da Cúria Romana, que deram cobertura aos delinquentes, não são
monstros, tendo feito tais males deliberadamente. Eles não têm nada a
ver com um Eichmann. Contudo, encontramos aqui aquela banalidade
do mal, da qual nos fala Hannah Arendt. Sem que se queira vestir uma
toga de procurador, é preciso identificar alguns fatores que conduziram
estes responsáveis a ignorar as vítimas e a não romper o silêncio guar-
dado por tanto tempo, a não ser quando foram obrigados a isso pelas
autoridades seculares. Tal identificação se acrescenta à oração, à peni-
tência e aos pedidos de perdão, pois se os fatores não são identificados,
as mesmas causas não poderiam produzir os mesmos efeitos?
Quando o Papa Francisco vê no clericalismo a fonte dos abusos se-
xuais e de seu encobrimento, ele tem em mente condutas instituciona-
lizadas no mundo clerical. Analisaremos aqui quatro destes parâmetros,
ainda que seguramente haja outros.
Um primeiro parâmetro encontra-se na extensão insensata, a todos
os abusadores, do sigilo que é especificamente requerido apenas no caso
em que um delinquente confessa ter comedido abuso sexual enquan-
to ouvia uma confissão (sollicitatio ad turpia). Este pecado, que atenta
contra a santidade da confissão, é tão grave que desde Bento XIV sua
absolvição é reservada exclusivamente ao papa, através do Santo Ofício.
Toda e qualquer outra absolvição é considerada nula e punida com ex-
comunhão. Para proteger ao mesmo tempo, e rigorosamente, o sigilo
da confissão, o Direito eclesial impõe, por juramento, a mais estrita
confidencialidade a todos que estejam envolvidos no tratamento do
caso, os notários, os advogados ou as simples testemunhas, além de,
primeiramente, o bispo. As vítimas não são mencionadas a não ser para
serem castigadas com a excomunhão, caso não denunciem seu agressor
558 H. Legrand. Clericalismo e abuso sexual

ao bispo dentro de um mês (cf. can. 2368, § 2).35 O Código Canônico


de 1983 continua a ignorar as vítimas (cf. can. 1387).
A proteção do sigilo de confissão leva assim à impossibilidade de
denunciar os culpáveis às autoridades judiciárias. Mas, por rotina e, se-
guramente, para proteger a reputação do clero, os outros delitos sexuais
cometidos fora da confissão foram igualmente ocultados pelo sigilo,
com os efeitos que atualmente vêm a público.
Um segundo parâmetro esclarecedor reside nas reminiscências do
privilégio de foro, que desde Constantino permite à hierarquia subtrair
seus membros delinquentes dos tribunais civis, para poder ela mesma
julgá-los. Tal mentalidade permaneceu muito viva durante o pontifi-
cado de São João Paulo II: foi assim que seu Secretário de Estado36 e
seu Prefeito da Congregação do Clero37 intervieram oficialmente a fim
de subtrair à justiça civil sacerdotes que cometeram faltas: eles agiam,
assim, conforme o ponto de vista da Santa Sé. O privilégio de foro foi,
aliás, reclamado nas concordatas da primeira metade do século XX38 e,
sem uma concordata, o costume levava a polícia de certos países cató-
licos a fazer vista grossa aos delitos do clero.39 Mas é erroneamente que
se critica o Papa Francisco de ter a mesma mentalidade quando evocou
a imunidade diplomática do Estado do Vaticano, evitando que o Pre-
feito da Congregação para a Doutrina da Fé fosse chamado como tes-
temunha perante um tribunal francês.40 Ele recorreu a este direito para
salvaguardar o sigilo de confissão, pois a função do Prefeito em questão

35. Ver PELLÉ, Le droit pénal de l’Église, p. 387-408.


36. A Presidente da Irlanda, Mary McAleese, relatou que, durante sua visita oficial a Roma, o
Cardeal Sodano pediu-lhe que favorecesse uma lei que protegia os arquivos diocesanos das investigações
policiais, cf. News Briefing. The Tablet, 11 de agosto de 2018, p. 29.
37. O Cardeal Castrillon Hoyos enviou a todos os presidentes das Conferências Episcopais do
mundo uma cópia de sua carta de felicitação a Dom Pierre Pican, Bispo de Bayeux (França), por este
não ter denunciado à justiça um padre que havia violentado menores.
38. As diretivas da Conferência Episcopal Italiana de 2014 afirmam que seja um dever moral, e
não legal, dos bispos informar à justiça os delitos cometidos pelos padres. Eis uma provável persistência
do espírito concordatário, que tende a retirar os clérigos da jurisdição dos tribunais civis e a manter o
casamento dos católicos sob a exclusiva jurisdição da Igreja, cf. MERCATI, G. Raccolta di concordati,
t. II, para a Itália (1923), para Portugal (1940), para a Espanha (1953).
39. O “Relatório Ryan” criticou severamente a inércia da polícia irlandesa na Diocese de Dublin.
Mesmo na França laica de 60 anos atrás, acontecia de a polícia e o bispo, de comum acordo, enviarem
o delinquente a um mosteiro bastante austero.
40. O jornal cotidiano La Croix (de Paris), na edição do dia 27 de novembro de 2018 (p. 5)
publicou duas cartas de leitores seus que estavam indignados com o recurso à imunidade diplomática
evocado naquela ocasião pela Santa Sé, sem perceberem todos os ângulos da problemática.
REB, Petrópolis, volume 80, número 317, p. 546-563, Set./Dez. 2020 559

comporta tratar de casos pessoais que se situam no registro sacramental.


Ora, vários governos, como, por exemplo, o da Austrália, queriam que
este sigilo, como o sigilo médico, fosse retirado em casos de pedofilia.
Mas este sigilo de confissão é inegociável.
O fato de que, na Igreja Católica, o poder hierárquico seja exercido
classicamente sem que seus detentores tenham que prestar contas, cons-
titui um terceiro parâmetro. A Reforma colocou-se contra este modo de
governo, que Melanchton chamava de “um poder anypeuthynon, isto é,
no qual ninguém tem direito de discutir nem de julgar”,41 poder que o
Direito em vigor manteve após o Vaticano II, como notava o Cardeal
Schotte, já citado. Tal estrutura é duplamente propícia aos abusos se-
xuais, no sentido que são sempre perpetrados por aqueles que ocupam
posições de poder, de prestígio ou que são detentores de um carisma
pessoal; e porque os culpáveis são mais facilmente encobertos, pois seus
responsáveis institucionais não têm que prestar contas a ninguém, nem
mesmo à justiça civil.
Enfim, um quarto parâmetro explicativo reside em um magistério
hierárquico que dá pouca atenção ao sensus fidelium e que é reticen-
te em promover a reflexão permanente na Igreja. Bem consciente dos
limites de um magistério autoreferencial, o Papa Francisco, apoiado
no Vaticano II (Lumen Gentium 12) recorda, de tempos em tempos,
a infalibilidade do Povo de Deus como um todo. Concretamente, na
ocasião dos dois sínodos sobre a família, ele quis articular, de modo
mais estreito, os procedimentos colegiais e sinodais, enviando questio-
nários a todos os bispos, para que fossem trabalhados em suas dioceses.
Sua síntese deveria permitir que os 200 padres sinodais, todos do sexo
masculino e celibatários, tratassem mais adequadamente de questões
ligadas ao corpo, à sexualidade, aos equilíbrios afetivos em um contex-
to mais eclesial que aquele da promulgação da Humanae Vitae.42 Neste
domínio, a correlação entre o magistério, o senso da fé dos fiéis e o tra-
balho teológico parece vital, tal como Newman o propusera.43 De fato,

41. MELANCHTON, Apologia da Confissão de Augsburgo, n. 188. Ainda hoje, a teologia luterana
recusa a Nichthinterfragbarkeit das decisões da hierarquia.
42. Qualificar como pecado toda relação sexual não aberta à um novo nascimento se apresenta,
aos olhos dos esposos cristãos, como uma restrição indevida da sexualidade humana à sua função re-
produtora.
43. Cf. nota 19.
560 H. Legrand. Clericalismo e abuso sexual

por seu lado, os teólogos haviam renovado várias questões a propósito


da sexualidade, mas em vão, pois o silêncio lhes fora imposto autori-
tariamente nos debates consecutivos à Humanae Vitae, um silêncio do
mesmo gênero que aquele imposto à discussão relativa à ordenação
de cristãs, silêncio cuja ruptura é punida com sanções canônicas. Este
silêncio imposto à reflexão não se relaciona com outro silêncio, aquele
pelo qual os superiores religiosos, bispos e mesmo cardeais pagam tão
caro hoje, e toda a Igreja com eles?
De seu lado, os leigos são reduzidos a falar ou a se recusarem a
sustentar financeiramente a Igreja.44 Para conter, de modo duradouro,
um mal que poderá ressurgir, a participação de leigos, pais e mães de
família nas responsabilidades, em todos os níveis da vida da Igreja,
mudaria a situação. O Papa Francisco resume esta participação nas
responsabilidades na efetivação de uma sinodalidade fiel às orienta-
ções do Vaticano II, deixadas de lado, até agora, e que não devem ser,
evidentemente, confundidas com a democratização da Igreja. Estas re-
formas deverão ser acompanhadas de aprofundamentos teológicos ne-
cessários, de modo particular no campo da sexualidade,45 na teologia
dos ministérios,46 na espiritualidade sacerdotal47 e, mais globalmente,
na eclesiologia.
As reformas que mencionamos não são necessárias somente para en-
frentar a crise atual, mas elas condicionam também tanto a renovação
pastoral exigida pelas novas condições culturais quanto nosso compro-
misso ecumênico, que todos os últimos papas declararam irreversível.

44. Grandes doadores americanos, efetivamente, deixaram de fazer doações para suas dioceses.
45. Há provavelmente um limite no fato de que os autores dos manuais de teologia moral em uso
nos seminários sejam todos celibatários. Persiste um tabu em relação à sexualidade em certos ambientes
católicos. Assim, Dom Emmanuel Gobilliard, Bispo Auxiliar de Lyon (França), e Thérèse Harlot, sexó-
loga, afirmaram terem sido oficiosamente dissuadidos de publicar seu livro “Ama, e faze o que quiseres”
(Aime et ce que tu veux fais-le).
46. A maioria dos padres, em nossos dias, felizmente, beneficiaram-se de uma renovação teológica
neste domínio, e se distanciaram do conteúdo dos textos que aqui citamos.
47. Será mais difícil retificar uma espiritualidade sacerdotal que centra os sacerdotes em si mesmos
e na sua ontologia, e não nos outros e em sua missão. As traduções católicas de Ef 4, 11 (nas Bíblias de
Crampon, de Liénart, d’Osty, de Maredsous e de Jerusalém) distorcem o sentido óbvio do texto, fazen-
do dos ministros os beneficiários do dom de Cristo (“Ele lhes deu a ser”) enquanto num grego nítido
para Paulo, são eles quem são dados aos outros para a construção do Corpo de Cristo. Esta unanimidade
no erro não vem da ignorância do grego, mas é o reflexo de uma mentalidade católica oficialmente
apoiada (como vemos nos textos) e extremamente comum. Testemunha isso um exemplo de 2020, em
um site (Ma vocation) do serviço das vocações de uma diocese francesa, no qual um sacerdote agradece
aos benfeitores, graças aos quais “se tornou sacerdote”.
REB, Petrópolis, volume 80, número 317, p. 546-563, Set./Dez. 2020 561

Este objetivo de longo prazo exigirá uma reflexão permanente48, cuja


ausência também explica o entorpecimento espiritual e as ignorân-
cias mais ou menos culpáveis49 que conduziram à crise atual e a suas
consequências.
Faltou-nos vigilância frente ao mal, enquanto poderíamos e deve-
ríamos agir. Não somos impotentes perante o mal. Ele não nos dá outra
alternativa senão a de nos refugiarmos junto de Deus, com as últimas pa-
lavras da oração que o próprio Senhor nos deixou: “Livrai-nos do mal”.

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48. Ad tuendam fidem não encorajou muito a reflexão, tendo em vista sua frase introdutória: “Para
defender a fé da Igreja Católica contra os erros que se levantam da parte de alguns fiéis, sobretudo da-
queles que se dedicam propositadamente às disciplinas da sagrada Teologia, a Nós, cuja tarefa principal
é confirmar os irmãos na fé (cf. Lc 22,32), pareceu-nos absolutamente necessário que, nos textos vigen-
tes do Código de Direito Canónico e do Código dos Cânones das Igrejas Orientais, sejam acrescentadas nor-
mas, pelas quais expressamente se imponha o dever de observar as verdades propostas de modo defini-
tivo pelo Magistério da Igreja, referindo também as sanções canónicas concernentes à mesma matéria”.
49. O Papa Francisco sublinhou a “irreflexão, incredulidade, falta de preparação, inexperiência (...)
superficialidade espiritual e humana” de alguns responsáveis (Discurso à Cúria Romana na apresentação
de votos natalícios – 28 dez. 2018).
562 H. Legrand. Clericalismo e abuso sexual

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Artigo recebido em: 17 jul. 2020
Aprovado em: 27 ago. 2020

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