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Hervé Legrand**
* Este artigo foi publicado originalmente na edição de abril de 2019 da revista Études. O presente
texto foi revisado pelo Autor, que acrescentou alguns parágrafos, notas e subtítulos ao texto publicado
pela mencionada revista. Agradecemos à revista Études, que gentilmente deu-nos permissão para esta
publicação. Referência do artigo original: LEGRAND, H. Abus sexuels et cléricalisme. Études, Revue
de Culture Contemporaine, Paris, n. 4259, p. 81-92, 2019. Tradução do original francês por André
Luís Tavares, O.P., professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte. [No
Brasil, on-line, primeira versão do texto em língua portuguesa, disponível em: <http://www.ihu.uni-
sinos.br/78-noticias/600353-clericalismo-e-abuso-sexual-por-que-tamanha-inercia-artigo-de-herve-
legrand>. Acesso em: 21 jul. 2020.
** O Autor, frade dominicano e especialista em eclesiologia e ecumenismo, é professor emérito do
Institut Catholique de Paris e vice-presidente da Academia Internacional de Ciências da Religião. Autor
dos livros “Les Évêques d’Europe et la nouvelle évangélisation”, em co-autoria com Carlo Maria Martini
(1991); “Le Ministère des évêques au concile Vatican II et depuis” em co-autoria com Christoph Theobald
(2001); “L’Œuvre d’Orient – solidarités anciennes et nouveaux défis”, em co-autoria com Giuseppe Maria
Croce (2010); Penser avec le genre. Sociétés, corps, christianisme (2016), trad. Italiana: Pensare attraverso il
genere (2019), dentre outros. E-mail: <hervelegrandop@yahoo.fr>.
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Introdução
Os anos 2018 e 2019 ficarão historicamente marcados pelas reve-
lações, em cascata, da dimensão universal e até então inimaginável dos
abusos sexuais cometidos pelos membros do clero católico e, sobretu-
do, por seu encobrimento sistemático por parte da hierarquia. A Igreja
Católica encontrou-se, desse modo, sob uma constante pressão de seus
próprios fiéis e da opinião pública. Depois do choque provocado pelas
revelações na Irlanda e nos Estados Unidos, pelas mesmas razões, uma
Conferência Episcopal inteira, a do Chile, foi levada a demitir-se e, em
outros lugares, vários Cardeais também. Finalmente, o Papa Francisco
convocou, para Roma, um encontro com os presidentes das conferên-
cias episcopais do mundo inteiro. Não podemos mais negar a natureza
institucional da crise.
sistência sobre tal assunto pode, contudo, ser a tradução de uma expec-
tativa (decepcionada) para com a Igreja, o que não é de tudo negativo.
A mídia também pode ser instrumentalizada: Dom Viganò encontrou
nela espaço para sua campanha pela destituição do Papa, por motivos
bem diferentes. Enfim, os jornalistas fazem, necessariamente, recortes
seletivos na realidade: se os padres católicos parecem constituir um alvo
privilegiado, isto se deve, por um lado, à impossibilidade de se com-
parar o clero católico com o de outras Igrejas, pois somente a Igreja
Católica dispõe de estatísticas exaustivas há mais de meio século. Apesar
de possíveis distorções, de modo especial a confusão entre o tempo mi-
diático e o tempo judiciário, a mídia se comportou, de um modo geral,
como aliada objetiva do Papa Francisco, com o fim de erradicar um mal
intolerável,3 sobre o qual as autoridades, quando deixadas a si mesmas,
guardavam silêncio.
3. Por ocasião da apresentação de votos natalícios à Cúria Romana (21 dez. 2018), o Santo Padre
Francisco saúda-os nos seguintes termos: “Alguns opõem-se com vigor a certos profissionais da comu-
nicação... eu gostaria, antes, de agradecer vivamente os profissionais da mídia, que foram honestos e
objetivos e que buscaram desmascarar os lobos e dar voz às vítimas” (FRANCISCO, Discurso do Papa
Francisco à Cúria Romana na apresentação dos votos natalícios).
4. BLOG DE LA CROIX. Para o Cardeal Filoni, os abusos “não concernem a Igreja enquanto
instituição”. Mas estaria o cardeal, possivelmente, pensando na Igreja fundada por Cristo com sua estru-
tura tal como a conhecemos? Para o Cardeal Müller, Ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
“As raízes do mal situam-se no abandono da verdade e em uma moral sem freios, e não no clericalismo,
não se importando o que se entenda por este termo”. Disponível em: <kath.net>, 17 set. 2019. Acesso
em: 03 ago. 2020.
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sexual dos mais fortes a querer impor-se aos fracos. Os abusos sexuais
têm sempre esta dimensão, como o demonstram as estatísticas do Mi-
nistério da Justiça da França: 77 mil mulheres são violentadas a cada
ano, 215 por dia, uma a cada 6 minutos; a população encarcerada com-
porta um quarto de delinquentes sexuais, sendo 90% do sexo masculi-
no. Os autores de abusos contra menores possuem um perfil idêntico:
pais incestuosos (80% dos casos julgados), professores, treinadores de
esportes, diretores de corais, dirigentes de movimentos de jovens. Es-
tes são figuras de autoridade, em contato com pessoas vulneráveis, dois
traços que também caracterizam o clero. Tais abusos são, infelizmente,
tanto previsíveis quanto verificáveis na Igreja.5
O Papa Francisco estima que ao escândalo dos desvios sexuais, hor-
ríveis para as vítimas, junta-se o escândalo mais incompreensível ainda,
proveniente dos superiores religiosos, dos bispos e dos líderes carismáti-
cos que ocultaram sistematicamente os delitos; pois, assim procedendo,
protegeram os predadores, ignoraram as vítimas e traíram a confiança
dos jovens e de seus pais. Isto tudo, sem mensurar claramente a extre-
ma gravidade de sua conduta. Responsáveis por suas instituições, sua
primeira atitude foi a de guardar sua reputação. E a segunda, de querer
mostrar compreensão para com os contraventores: eles sofrem de pro-
blemas psicológicos (bastaria fazer terapia...), ou são pecadores (eles se
arrependeriam; por misericórdia, demos a eles uma nova chance de
se recuperar...). Contudo, diante do mal, não se deve procurar expli-
cações (que, inclusive, escapam aos próprios delinquentes), mas sim,
combatê-lo e impedi-lo de prosperar. No atual estado das coisas, não
podemos simplesmente invocar a misericórdia.
Quando o Papa Francisco repete que “dizer não ao abuso, é dizer
energicamente não a qualquer forma de clericalismo”,6 ele está cons-
ciente, de modo claro, de que o tipo de autoridade e de poder dado aos
clérigos na Igreja Católica deve ser reformado. Pois, nas atuais condi-
ções, é fácil a passagem ao ato de potenciais delinquentes, com cobertu-
ra assegurada aos mesmos, o que leva à gestão desastrosa destes abusos.
Convém, assim, analisarmos rigorosamente o fenômeno do clericalismo.
5. Podemos lembrar aqui as palavras de Newman: “Sabendo como o Homem é, seria milagre que
não haja destes escândalos na Igreja”. NEWMAN, Sermons preached on various occasions, p. 145.
6. FRANCISCO, Carta ao Povo de Deus, n. 2.
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não tem que prestar contas a ninguém, senão ao papa. E o papa não
tem que prestar contas a ninguém, senão a Deus”.12 Tudo o que precede
justifica a opinião do Papa Francisco, segundo a qual “o clericalismo
engendra uma cisão no corpo eclesial”. É preciso agora considerar com
atenção os fundamentos ideológicos do clericalismo.
12. SCHOTTE, The Church in the World. The Tablet, p. 163. São estas palavras que encon-
tramos literalmente no Carnet de préparation d’un catéchisme à destination des prêtres et des laïcs. Notes
pédagogiques (sic) do Padre Quinet, inspetor geral do ensino religioso da Diocese de Paris, 1932, p. 272.
13. FRANCISCO, Carta ao Povo de Deus, n. 2.
14. Cf. CATECISMO DO CONCÍLIO DE TRENTO, c. 26, § 1: “Os poderes que os sacerdotes
possuem de consagrar e de oferece o Corpo do Senhor, e o de perdoar os pecados, vão além de todas
as nossas concepções humanas. Não podemos encontrar nada comparável sobre a terra”; ibidem, “A
Escritura dá aos sacerdotes, a justo título, os nomes de anjos ou mesmo de deuses, porque eles exercem,
de algum modo, entre nós, o próprio Poder do Deus imortal”.
15. GASPARRI, Catéchisme catholique, questão 146. Na questão 482, precisa-se que se trata de
“um poder sobre o corpo do Cristo tanto real quanto místico”.
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19. Newman considerou longamente este equilíbrio necessário em Via Media, preface to the third edition.
20. O Beato Pio IX não evitou este perigo, declarando “Eu sou a Tradição; eu sou a Igreja”,
cf. CROCE, Una fonte importante per la storia del pontificato di Pio IX, p. 275-276.
21. Ainda que a Santa Sé aceite o estudo histórico-crítico dos Evangelhos, seus próprios documen-
tos se referem a fontes produzidas ao longo de vinte séculos, sem nunca colocá-las em seu contexto his-
tórico! O Denzinger, coleção não oficial destes textos, contenta-se em apresentá-los segundo a sucessão
cronológica dos papas.
22. FRANCISCO, Discurso do Papa Francisco na abertura do sínodo.
23. A instrução da Congregação para o Clero relativa à formação dos sacerdotes, de dezembro de
2016, com o título “O dom da vocação presbiteral” começa assim: “O dom da vocação ao presbiterado,
conferido por Deus no coração de alguns homens, exige da Igreja propor-lhes um sério caminho de
formação”. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. O dom da vocação Presbiteral.
24. Esta ideia de eleição é tão familiar que alguns fieis acostumados à concelebração, raros, espe-
ramos, creem que os padres agradecem a Deus pela própria eleição quando os escutam dizer na Oração
Eucarística n. 2: “E nós vos oferecemos, ó Pai, o pão da vida e o cálice da salvação, e vos agradecemos
porque nos tornastes dignos de estar aqui na vossa presença e vos servir”. A versão italiana introduz nesta
passagem o conceito de sacerdócio, e a versão inglesa a de ministério, que não se encontram no original
em latim, o que favorece tal erro.
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31. Ibidem. Maritain criticou com vigor esta construção ideológica do clericalismo. Cf. MARI-
TAIN, À propos de l’École française.
32. O que não é, entretanto, um ensinamento dogmático, cf. LEGRAND, Caráter indelével e
teologia do ministério.
33. A maioria destes temas é retomada pelo Diretório para a vida e o ministério dos presbíteros, da
Congregação para o Clero (2013), que sublinha a diferença ontológica (2 vezes na apresentação e nos
n. 2, 6, 7. É ainda mais incômodo que, distanciando-se do título do documento, que traz um plural, o
texto fala do presbítero sempre no singular.
34. Cf. nota 13.
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41. MELANCHTON, Apologia da Confissão de Augsburgo, n. 188. Ainda hoje, a teologia luterana
recusa a Nichthinterfragbarkeit das decisões da hierarquia.
42. Qualificar como pecado toda relação sexual não aberta à um novo nascimento se apresenta,
aos olhos dos esposos cristãos, como uma restrição indevida da sexualidade humana à sua função re-
produtora.
43. Cf. nota 19.
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44. Grandes doadores americanos, efetivamente, deixaram de fazer doações para suas dioceses.
45. Há provavelmente um limite no fato de que os autores dos manuais de teologia moral em uso
nos seminários sejam todos celibatários. Persiste um tabu em relação à sexualidade em certos ambientes
católicos. Assim, Dom Emmanuel Gobilliard, Bispo Auxiliar de Lyon (França), e Thérèse Harlot, sexó-
loga, afirmaram terem sido oficiosamente dissuadidos de publicar seu livro “Ama, e faze o que quiseres”
(Aime et ce que tu veux fais-le).
46. A maioria dos padres, em nossos dias, felizmente, beneficiaram-se de uma renovação teológica
neste domínio, e se distanciaram do conteúdo dos textos que aqui citamos.
47. Será mais difícil retificar uma espiritualidade sacerdotal que centra os sacerdotes em si mesmos
e na sua ontologia, e não nos outros e em sua missão. As traduções católicas de Ef 4, 11 (nas Bíblias de
Crampon, de Liénart, d’Osty, de Maredsous e de Jerusalém) distorcem o sentido óbvio do texto, fazen-
do dos ministros os beneficiários do dom de Cristo (“Ele lhes deu a ser”) enquanto num grego nítido
para Paulo, são eles quem são dados aos outros para a construção do Corpo de Cristo. Esta unanimidade
no erro não vem da ignorância do grego, mas é o reflexo de uma mentalidade católica oficialmente
apoiada (como vemos nos textos) e extremamente comum. Testemunha isso um exemplo de 2020, em
um site (Ma vocation) do serviço das vocações de uma diocese francesa, no qual um sacerdote agradece
aos benfeitores, graças aos quais “se tornou sacerdote”.
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Referências
BLOG DE LA CROIX. Pour le cardinal Filoni, les abus “ne concernent
pas l’Église comme institution” (30 nov. 2018). Disponível em: <https://
www.la-croix.com/Religion/Catholicisme/Pape/cardinal-Filoni-abus-
concernent-pas-lEglise-comme-institution-2018-11-30-1200986642>.
Acesso em: 03 ago. 2020.
CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório para a vida e o mi-
nistério dos presbíteros (2013). Disponível em: <http://www.vatican.
va/roman_curia/congregations/cclergy/documents/rc_con_cclergy_
doc_20130211_direttorio-presbiteri_po.html>. Acesso em: 03 ago.
2020.
CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. O dom da vocação Presbiteral.
Disponível em: <http://www.clerus.va/content/clerus/pt/notizie/new2.
html>. Acesso em: 03 ago. 2020.
CHRYSOSTOME, J. Sur le Sacerdoce (Dialogue et Homélie). Paris,
Cerf, 1980 (Sources chrétiennes, 272).
DEFOIS, G. Révélation et société. Recherches de Science Religieuse, Pa-
ris, v. 63, p. 457-504, 1975.
48. Ad tuendam fidem não encorajou muito a reflexão, tendo em vista sua frase introdutória: “Para
defender a fé da Igreja Católica contra os erros que se levantam da parte de alguns fiéis, sobretudo da-
queles que se dedicam propositadamente às disciplinas da sagrada Teologia, a Nós, cuja tarefa principal
é confirmar os irmãos na fé (cf. Lc 22,32), pareceu-nos absolutamente necessário que, nos textos vigen-
tes do Código de Direito Canónico e do Código dos Cânones das Igrejas Orientais, sejam acrescentadas nor-
mas, pelas quais expressamente se imponha o dever de observar as verdades propostas de modo defini-
tivo pelo Magistério da Igreja, referindo também as sanções canónicas concernentes à mesma matéria”.
49. O Papa Francisco sublinhou a “irreflexão, incredulidade, falta de preparação, inexperiência (...)
superficialidade espiritual e humana” de alguns responsáveis (Discurso à Cúria Romana na apresentação
de votos natalícios – 28 dez. 2018).
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