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Quinze anos depois

de Bráulio Tavares

Melodrama-radiofônico para teatro (1 ato)


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PERSONAGENS

Amália – quarentona, celibatária, vestida ao estilo dos anos 50


Godofredo – quarentão, celibatário, vestido ao estilo dos anos 50

SINOPSE

Brasil, época vagamente contemporânea. Amália aguarda o


regresso de seu noivo Godofredo, que volta ao país depois de
quinze anos no exílio. Surge Godofredo: lamúrias e romantismo.
Mas logo recomeçam as brigas entre os dois, com Amália sempre
se queixando de algo, e Godofredo sempre tentando ajeitar tudo.
Ao saber que Godofredo teve uma amante (misteriosa criatura)
durante o tempo em que serviu à Legião Estrangeira, Amália o
repudia, desesperada. Godofredo, em último recurso, ameaça ir
embora para o estrangeiro por mais quinze anos. Amália cede e,
finalmente, entrega-se a ele. Os dois rasgam as roupas e rolam
pelo chão, tentando ser felizes.
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ATO ÚNICO
Sete horas da noite. AMÁLIA está sentada num sofá, ouvindo rádio;
folheia fotonovelas. De vez em quando atira a revista para um lado, num
gesto impaciente, ergue-se, vai à janela, afasta a cortina e espreita ansiosa
para o lado de fora. Caminha pela sala. Volta a sentar-se. Pega outra
revista, começa tudo de novo. Vai ao rádio, muda de estação. Depois de
algum tempo, aborrece-se com o rádio, desliga. Silêncio sepulcral. A
campainha toca!

Amália ergue-se, vai até a porta com passo incerto, abre. Recua dois ou três
passos, leva a mão ao peito, arquejante, incrédula. Entra GODOFREDO,
com um buquê de flores na mão. Os dois se fitam em silêncio por alguns
instantes.

GODOFREDO (tomando a iniciativa) – Sim, Amália... sou eu.

AMÁLIA (sabendo muitíssimo bem quem é ele, mas aproveitando para


fazer sua cenazinha) – Não... não... é possível.... Não és tu!

GODOFREDO (dando mais um passo adiante, fechando a porta com o


calcanhar) – Sim, Amália. Sou eu... eu, que estou de volta.

AMÁLIA (voz débil, estendendo as mãos) – Não, não, és apenas mais uma
das visões que não me deixam em paz... Sei que no instante em que tocar
tuas mãos, desaparecerás como que por encanto... Por que não te vais logo,
então? Vai! Esfuma-te no ar, fantasma! Não me atormentes mais...

GODOFREDO (persuasivo) – Não, Amália... Sou eu, sim, teu Godofredo,


em carne e osso. Não é um fantasma. Por acaso não recebeste meu
telegrama?...

AMÁLIA (sobressalto) – O telegrama? Sim, sim, como não? Já o reli


milhares de vezes...

GODOFREDO (mais um passo à frente) – E então? Aqui estou.

AMÁLIA (ousando pela primeira vez pronunciar o nome dele; saboreia


cada sílaba) – Oh, Go-do-fre-do...
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GODOFREDO (mais um passo à frente, agora está a um passo de


distância dela; a timidez o domina; ele se limita a estender o buquê de
flores) – E então, meu amor? Estou de volta.. mas eu mesmo devo
confessar que mal consigo crer que voltei – que estou realmente aqui – e
que és tu, aqui, diante de mim...

AMÁLIA (com um gesto cauteloso recebe o buquê, sem tocar na mão dele,
como se ele fosse feito de bolha-de-sabão) – Oh, Godofredo... Recebi teu
telegrama hoje mesmo, mas recusava-me a crer... (enfia o nariz nas flores,
aspira fundo) Devo estar louca, ou talvez sonhando... sim, porque o sonho
é uma das formas mais doces de loucura...

GODOFREDO (pegando a deixa, canastrão) – Não, Amália, não é sonho,


ou melhor: é o nosso sonho que se realiza... E se for loucura, meu amor,
então enlouqueçamos juntos, arrojemo-nos até as fronteiras deste delírio,
desta paixão... (faz menção de tomá-la nos braços, mas Amália se esquiva
antes que ele a toque, deixa-se cair no sofá, apertando o buquê ao peito
para se proteger).

AMÁLIA – Sim, Godofredo, é um sonho real, e é a tua voz que volto a


escutar, tão cálida, junto de mim – eu, que me julgava sozinha por toda a
dolorosa eternidade... Imaginando-te sempre distante, em terras exóticas,
correndo riscos de vida entre povos bárbaros... E os anos se passando...
Dois, cinco, oito, dez... quinze longos anos de solidão.

GODOFREDO (ajoelha-se junto do sofá) – Sim, Amália... Como foram


longos estes anos – e como agora me parecem curtos, agora que te vejo
outra vez ao meu lado, e sinto como se estivesse sido ainda ontem que te
beijei, junto a esta mesma porta, e parti para o exílio, julgando que nunca
mais te veria...

AMÁLIA (aconchega-se toda no sofá, toda ternura, abraçando o buquê) –


E olhei nos teus olhos, Godofredo, com os meus olhos cheios de um pranto
silencioso – e lembro-me bem que não disse nada, porque compreendi que
devias partir... Mas intimamente uma secreta voz, a voz que nos revela os
segredos do coração, me dizia que haverias de voltar... Por isso
simplesmente tomei tuas mãos nas minhas mãos e te beijei, e tu olhaste tão
fundo nos meus olhos, e juraste que mesmo distante me escreverias
sempre... (interrompe-se bruscamente, abre os olhos, pula de pé
bruscamente, acordada, os olhos fuzilando; põe as mãos nos quadris e
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vitupera aos berros o perplexo de Godofredo) Sim, senhor! Foi bom eu me


lembrar! Faz quinze anos, mas eu não sou besta nem doida, não senhor! O
senhor prometeu que me escrevia, e cadê? Cadê suas cartas? Não me
mandou nem UMA sequer! Não mandou nem um cartão-postal!!! E ainda
tem a coragem, tem o cinismo, tem o descaramento de vir aqui me trazer
umas porcarias dumas flores vagabundas compradas na primeira esquina
(joga as flores no chão, sapateia em cima) e achar que a otária está aqui
como sempre, esperando, feito um babaca, não é? Pois está muito
enganado!

GODOFREDO (pondo-se de pé, completamente desconcertado, tentando


consertar a situação) – Mas Amália, meu bem, o que é isso? Meu bem
fique calma, como é que pode – uma coisa assim, tão de repente? (tenta
aproximar-se dela, ela bate em retirada para o lado oposto do sofá)
Amália, querida... Eu passo quinze anos no estrangeiro, nós nos
reencontramos, e com menos de cinco minutos você já começa tudo de
novo? (conciliador) Venha, meu bem, sente-se aqui, ao meu lado. (senta no
sofá, dá umas pancadinhas para atraí-la, mas ela ergue o queixo, amuada)
Eu compreendo – você está nervosa, tensa... Claro, claro. A solidão, a
separação, o choque súbito da minha vinda inesperada... Venha, Amália,
sente-se aqui.

AMÁLIA (ainda enfezada) – Não me venha com sua conversinha fiada,


que eu não sou idiota. Pensa que me engana? Cadê as cartas que você disse
que ia escrever toda semana? (imita a voz dele) “Minha querida, estaremos
distante, mas nunca separados... eu te escreverei todos os dias...” – e não
me mandou nada! Nem um bilhete! Nem um cartão-postal dizendo:
“Cheguei!”. Nem um rol-de-roupa! Nem me escreveu uma linha! E agora
com essa fidalguia toda, pensando que fica tudo por isso mesmo? A coisa
mudou, meu filho!

GODOFREDO (quando vê que ela não vai sentar, levanta-se) – Vamos,


Amália... Compreendo tua sensibilidade ferida. Penso no que devem ter
sido teus dias, tuas noites solitárias. Penso em tudo isso, meu amor, e sinto
um aperto no coração. Mas o importante é que aqui estamos, novamente
juntos... (vai se aproximando dela e ela fugindo por entre os móveis, toda
não-me-toques) O passado foi triste, Amália, mas tudo foi apenas uma
noite sombria, uma noite em que as estrelas se recusaram a brilhar, e onde
tivemos que nos acostumar às soturnas leis da escuridão... Mas eis que o
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amanhecer chega, Amália! (vibrante) Vê! Vê o sol, que doura a fímbria dos
montes! Recusaremos nós o apelo de vida que sua luz nos transmite? É
compreensível que estejamos ainda um pouco ofuscados – talvez as trevas
da noite ainda não tenham se dissipado por completo de nosso coração...
Mas, Amália, olha ao teu redor! (faz um gesto largo, abarcando a sala) Vê,
Amália, como os regatos murmurejam, os colibris esvoaçam entre os
miosótis (aponta o rádio), as flores entreabrem suas corolas, onde pousam
as diligentes abelhas... (aponta a lâmpada) as borboletas esvoaçam, tontas
de luz, embriagadas de vida... (novo gesto largo, abarcando tudo) É a
aurora da liberdade, é um novo sol em nosso horizonte, é um dia radioso
que se inicia após o império madrasto da noite... E nós, Amália, haveremos
de nos quedar alheios a essa exuberante floração de vida que freme ao
nosso redor? (rodeia o último móvel, e posta-se diante dela, que está
indecisa, retorcendo os dedos) Recusaremos a luz cálida desse dia radioso
que nasce – esse dia, que se chama Futuro, e que se chama Amor?

(num gesto impulsivo, estende as mãos para a frente; Amália, num reflexo
automático, também estende as mãos – e pela primeira vez os dois se
tocam)

AMÁLIA (tendo um sobressalto como se levasse um choque elétrico e


acordasse de repente) – Godofredo! É... é você!

GODOFREDO (apertando-lhe as mãos nas suas) – Sim, Amália, sou eu!

AMÁLIA (aperta as mãos dele, cobre-as de beijos, atira-se em seus


braços) – Godofredo, perdoa-me, perdoa-me... Sou uma tonta, não sei o
que estou dizendo... (beija-o rapidamente no rosto, enquanto ele tenta, sem
resultado, beijá-la na boca) Ama-me, Godofredo! Ama-me, querido! Se eu
acreditar no teu amor, serei tua!

GODOFREDO (meio descontrolado) – Amo-te, Amália, quero que sejas


minha! Sê minha, sê minha! Vinte-e-dois anos de noivado – não vês que já
perdemos tanto tempo?!

AMÁLIA (aconchegando-se a ele) – Perdoa-me, Godofredo, mas será que


não entendes? Procura compreender o quanto senti tua falta, o quanto
esperei tuas cartas... e os anos se passando e minha alma cheia de dúvidas...

GODOFREDO (paternal, acariciando-lhe os cabelos) – Mas querida, tens


que compreender também... A Legião Estrangeira não é um lugar qualquer.
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Lá eu era obrigado a me submeter a uma rígida disciplina. Um homem que


se incorpora àquelas fileiras, praticamente morre para o mundo exterior. E
há uma palavra – a palavra Dever – cujo sentido talvez não alcances, mas
que nós aprendemos a ver como sublime.

AMÁLIA (lamentosa) – Sim; podes exigir que minha razão o entenda; mas
é demais pedir que meu coração o aceite... Porque não eras tu que estavas
aqui, Godofredo; não eras tu que diariamente escutavas as chacotas dos
vizinhos, as indiretas das companheiras de escritório, as censuras veladas
mas amargas de minha mãe, as ironias de meu pranteado pai...

GODOFREDO (surpreso) – “Pranteado”? O teu pai... terá morrido?

AMÁLIA (fungando) – Morreu há oito anos. Foi saltar de um ônibus em


movimento e quebrou a cabeça num poste.

GODOFREDO (em voz alta, sem perceber) – Mas que maravilha.

AMÁLIA (como quem não ouviu) – Não eras tu, Godofredo, que vias os
anos de tua mocidade murchando como flores outonais, e sem um coração
amigo a quem confiar tuas tristezas e – não, não rias – tuas frágeis
esperanças...

GODOFREDO (penalizado) – Minha pobre querida, como deves ter


sofrido!

AMÁLIA (pega a deixa e se derrama) – Sofri, sim, sofri muito... Nem sei
se me encontraste mais envelhecida, com o rosto vincado de rugas, talvez
até... feia...

GODOFREDO (sem muita convicção) – Estás linda como sempre.

AMÁLIA – ... mas se me encontraste assim foi porque o mundo me


obrigou a tornar-me insensível, para me defender de uma realidade brutal
que não fez outra coisa senão ferir minha pobre alma que toda se expunha à
vida... E assim fiquei indiferente, amarga...

GODOFREDO (atraindo-a para o sofá) – Mas aqui estou. Amália...

AMÁLIA (senta junto dele, aconchega-se) – Sim, aqui estás...

GODOFREDO (acariciando-lhe os cabelos) – Tudo passou...


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AMÁLIA – Sim, tudo passou...

GODOFREDO (a mão desce; acaricia o rosto dela) – Passou como um


sonho mau...

AMÁLIA – Um sonho mau que vem – e que se vai...

GODOFREDO (a mão desce; acaricia o pescoço) – Que se vai para nunca


mais voltar...

AMÁLIA – E nos deixa juntos, um para o outro...

GODOFREDO (a mão desce; ronda o decote dela) – Para amar...

AMÁLIA (suspirando de êxtase) – A felicidade voltou a ser minha


companheira...

GODOFREDO (já sem muito entusiasmo) – Pois é...

AMÁLIA – Pensaste muito em mim, Godofredo?

GODOFREDO (distraído) – Noite e dia.

AMÁLIA (insistente, meio sádica) – Choravas?

GODOFREDO (claramente mentindo) – De vez em quando.

AMÁLIA – Quando choravas, o que fazias?

GODOFREDO (voltando a si) – Eu? Não fazia nada. Me assoava.

AMÁLIA (amuando-se um pouco) – Não sejas prosaico. Será que não tens
nem um pouco de romantismo? Pergunto se escrevias poemas, se fazias
confidências a um diário...

GODOFREDO – Amália, sabes que não sou poeta, sou um homem de


ação. Se chorei por ti alguma vez, meus soluços o áspero travesseiro de
campanha os abafou; minhas lágrimas, a areia ardente do deserto as
recolheu.

AMÁLIA (batendo palminhas, maravilhada) – Godofredo, Godofredo!


Estás vendo? És um poeta!

GODOFREDO (lisonjeado, porém modesto) – Que nada, minha querida. É


apenas quando estou perto de ti que essas coisas me ocorrem...
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AMÁLIA (intensa) – Cada vez que dizes palavras tão belas, meu amor,
percorre-me um arrepio, um frêmito, que não sei se é a paixão de seres meu
– ou o orgulho de ser tua... Ser tua escrava e tua senhora... Perder-me no
teu coração como uma criança descuidada se perde numa floresta, mas
percorrê-lo com o olhar iluminado, sabendo que esse coração misterioso,
que é o teu, pertence a mim somente... (fica em silêncio, enlevada, mas daí
a pouco algo parece acontecer em sua mente – Ela muda de posição no
sofá, mais arrumada, e pergunta com uma voz ameaçadoramente doce)
Godofredo... será que não amaste mais ninguém durante tanto tempo?...

GODOFREDO (pegando de surpresa, gagueja, contrafeito) – Querida, o


que queres dizer com isso?

AMÁLIA (implacável) – Quero dizer que quero saber se não amaste mais
ninguém durante tanto tempo.

GODOFREDO – Não é assunto para agora, Amália, num momento em que


estamos tão felizes.

AMÁLIA – Como não-é-assunto-para-agora, se é justamente sobre a nossa


felicidade que estamos conversando? Responde! Amaste alguém?

GODOFREDO (demonstrando que é incapaz de mentir) – Amália, eu te


peço vamos deixar esse assunto para depois.

AMÁLIA (erguendo-se terrível como uma valquíria com dor-de-dente) –


Para depois, miserável?! Para daqui a mais quinze anos?! Para que possas
escapulir novamente, e me deixar trancafiada nesta masmorra doméstica?!
(joga objetos nas paredes)

GODOFREDO (apavorado) – Amália, pelo amor de Deus.

AMÁLIA (atira alguma coisa nele) – Amor-de-Deus coisa nenhuma, seu


demagogo. Saia de perto de mim!

GODOFREDO – Amália, por favor, fala baixo.

AMÁLIA – O que é que você está me escondendo, seu mentiroso, seu


Judas?!

GODOFREDO (de mãos postas) – Amália, Amália, fica quieta. Queres


uma confissão? Eu a farei.
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AMÁLIA (sentando-se, já que a curiosidade é mais forte do que a raiva) –


Muito bem. Sou toda ouvidos.

GODOFREDO (olhos baixos, retorcendo os dedos, voz monocórdia) –


Amália, jurei a mim mesmo que não te ocultaria nada. Minha vida é um
livro aberto.

AMÁLIA (sarcástica) – É, mas parece que arrancaste algumas páginas e as


escondeste no bolso.

GODOFREDO (compungido) – Minha querida, sabes, ou pelo menos


deves imaginar, o que são os desertos d’África. És capaz de fazer uma ideia
do que terá sido a minha existência no exílio – sob o sol causticante do
Saara, com a face abrusada pela soalheira ardente, enfrentando à lâmina
nua as ferozes tribos de tuaregues e os salteadores de caravanas...
Atendendo ao chamado imperioso do clarim que nos arrastava ao campo de
batalha... Submetidos a uma férrea disciplina, isolados do mundo, erguendo
paliçadas, abatendo troncos, cavando poços, preparando forragem para os
animas, brunindo armas, lavando uniformes... Dormindo sobre enx~ergas
incômodas, e tendo como refeição frugal apenas meio cantil de água e
algumas tâmaras secas... E à noite o uivo dos chacais penetrando em nossas
tendas, e a lua cheia escancarando-se enorme e prateada, como o símbolo
gélido da própria solidão... Quem há de estranhar que qualquer um de nós
procurasse uma companhia para abrandar esse sofrimento?... (pausa
psicológica) Foi aí que conheci Zenóbia.

AMÁLIA (que durante a fala de Godofredo permaneceu imóvel; ao ouvir


o nome da outra, tem um leve estremecimento. Fala com voz inexpressiva)
– Pelo nome, devia ser turca...

GODOFREDO – Não, não creio que ela tenha vindo de Marrocos. Mas
conhecia-a e... (faz um gesto de desânimo) ... repugna-me entrar em
detalhes. Sei que compreenderás tudo.

AMÁLIA (voz apagada) – Compreendo, creio que compreendo. Imagino


que estavas só, necessitado de carinho, precisando de companhia... Mas por
que não voltavas para mim?

GODOFREDO – Amália, esqueces que saí daqui exilado?

AMÁLIA (cabisbaixa) – Tu ainda a amas, não é verdade?


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GODOFREDO (torturado de dúvidas) – Não sei, não sei... Creio que já


amei, mas sei que te amo agora – não é bastante para ti?

AMÁLIA – Responde. Gostavas mais dela do que de mim?

GODOFREDO – Amália, era um situação completamente diferente. Havia


afeto, havia companheirismo, mas era sobretudo algo sem a transcendência
que tem nossa relação. Era algo – como direi? – algo mais material, sem
por isso deixar de ser belo, isso eu faço questão de frisar. Mas algo mais
ligado a uma felicidade momentânea.

AMÁLIA (gélida; jogando a pá-de-cal) – Sexo.

GODOFREDO – Sim. Sexo. Mas não o sexo mercantilizado dos bordéis de


Addis-Abbeda ou de Dakar. Algo oferecido e aceito espontaneamente.
Garanto-te que durante os cinco anos que passamos juntos, nenhum outro
homem do batalhão tocou em Zenóbia.

AMÁLIA (arrasada, mas encontrando forças para uma débil ironia) –


Não sei em que isso pode me servir de consolo.

GODOFREDO (encolhendo os ombros) – Nem eu. Mas talvez possa te


mostrar que não sou um frívolo nem um sátiro. Que coisas desse tipo, para
mim, tem que ser permeadas de sentimento, e não visando o prazer-pelo-
prazer.

AMÁLIA (sarcástica) – Prazer não deve ter te faltado.

GODOFREDO (aflito) – Mas, o que querias? Que eu me queimasse nas


minhas próprias fogueiras interiores? Que perdesse minhas noites em
miragens ainda mais enlouquecedoras do que as que povoavam meus dias?
Quer retornasse aos rituais solitários que marcavam minha torturada
adolescência? Por que recusar aquela migalha de amor que me era
oferecida?

AMÁLIA (prorrompendo em lágrimas) – Meu Deus, meu Deus, como eu


poderia supor que esta noite seria assim? Que ela seria ainda mais amarga
do que estes quinze anos de solidão?

GODOFREDO (lavando as mãos) – Foi você quem forçou. Eu só ia tocar


no assunto mais tarde.
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AMÁLIA (em prantos) – Amaste outra, amaste outra... O que me resta


agora, senão os despojos do meu Godofredo?

GODOFREDO (ilogicamente lógico) – Mas Amália, eu estou inteiro, não


me falta nenhum pedaço. Sou o mesmo Godofredo de antes. O que houve
foi apenas uma fraqueza passageira.

AMÁLIA – Sim, sim, tu mesmo admites que foi fraqueza; admites então
que estavas errado, e que me traíste.

GODOFREDO – Alto lá, eu não traí ninguém.

AMÁLIA – Traíste sim, Judas, Calabar, Silvério dos Reis.

GODOFREDO – Amália, modera essa linguagem.

AMÁLIA – Acabas de confessar que foi uma fraqueza. Por que nã foste
capaz de resistir?

GODOFREDO – Não, não, falei que foi fraqueza para te fazer entender
que nesses momentos não é a voz da razão que predomina.

AMÁLIA (esmurrando os joelhos) – Sim, a razão jamais predomina. Quem


predomina é o instinto, a besta insaciável que todo homem tem entre as
pernas.

GODOFREDO (escandalizado) – Amália!!! Quem te ensinou a falar


assim?

AMÁLIA – Pensas que sou o quê? Idiota? Posso ser donzela, mas sei de
que jeito é o mundo. Sei que os homens são todos uns devassos, e a maior
prova é esta tua confissão.

GODOFREDO – Não sou um devasso, Amália. A carne é fraca.

AMÁLIA (pegando a deixa) – É fraca? Ou deveríamos dizer que é forte


Fraco é o espírito que se deixa arrastar pela compulsão mórbida do sexo.
Fraca, a carne? Como, se ela domina a vontade de qualquer homem, e o
leva a espojar-se no lençol comum da luxúria? A carne é fraca, Godofredo?
Ou é mais forte do que tu, do que teu amor por mim?

GODOFREDO – Nada supera meu amor por ti.


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AMÁLIA – Além de depravado, não sejas hipócrita! Por que não tens a
hombridade de assumir teus atos?

GODOFREDO – Fala baixo. Tua mãe pode ouvir.

AMÁLIA (encolhendo os ombros) E daí? Tanto faz. Não pode se mexer.

GODOFREDO – Não pode? Como?

AMÁLIA (agastada, explicando a contragosto) – Mamãe teve um derrame


há quatro anos. Ficou paralítica do nariz pra baixo.

GODOFREDO – Mas isso é incrível... Quer dizer então que agora estás
praticamente só... (olha em redor) Nesta mesma sala, onde namoramos
durante tantos anos, sentados aqui neste sofá, com teu pai de um lado
(indica uma poltrona), tua mãe do outro (indica a outra), a nos
contemplar... E tantas loucuras passavam pela nossa cabeça, e sonhávamos
com o dia em que pudéssemos ficar a sós para praticá-las...

AMÁLIA (seca, cortante) – As loucuras, já as deves ter feito todas com tua
Zenóbia.

GODOFREDO – Amália, não recomeces.

AMÁLIA – Recomeçar? Eu não parei nada ainda. Estou com-ti-nu-na-do.

GODOFREDO – Como poderei te convencer da minha sinceridade?

AMÁLIA – De maneira nenhuma. Quem mente uma vez, mente sempre.

GODOFREDO – E eu te menti? Não acabo de te contar toda a verdade?

AMÁLIA (com lógica feminina) – Contar uma verdade dessas é pior do


que qualquer mentira.

GODOFREDO (abrindo os braços, tipo quê-que-eu-posso-fazer?) – Mas


Amália... como posso entender o que se passa na tua cabeça?

AMÁLIA (amarga) – Exatamente isso, Godofredo. Jamais entenderás.


Somos demasiado diferentes.

GODOFREDO (resolve virar homem, adota a tática do por-bem-ou-por-


mal; agarra-a pelos ombros, forçando-a a encará-lo) – Pois olha bem para
mim, Amália. Não, não te debatas. Olha para mim, e vê se és capaz de
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reconhecer aquele jovem de 25 anos que um dia partiu daqui, desta mesma
sala, acossado pelo medo e perseguido por ameaças... Tu o reconheces? És
capaz de ver em mim o mesmo homem a quem fazias tantas promessas,
tantas juras de amor e de desejo? Porque juravas, não é mesmo, Amália?
Tua boca era avara de beijos, mas pródiga de juras. Ah!... só eu sei o
quanto te implorei em segredo, e o quanto me prometeste, arfante, entre
dois suspiros! Lembras-te disso, Amália? Não, não escondas o rosto!
(segura o queixo dela, fitando-a face a face) Olha para mim! Anda, olha
bem para mim! Os cabelos estão grisalhos, os olhos estão mais cansados
pela vida – mas chegou a hora da cobrança, Amália! Vim cobrar de ti as
promessas loucas que fazias àquele rapaz ingênuo que tantas vezes, neste
mesmíssimo sofá (bate com a mão no sofá, prestes a perder a paciência)
beijou as tuas mãos, cego de desejo, e vigiado por aquele casal de múmias-
de-pijama! Amália, Amália! (sacode-a pelos ombros) Atravessei metade do
mapa-múndi, só para te reencontrar! Dizes que te abandonei. Mas se eu
tivesse te abandonado, por acaso estaria aqui? Não vês que só um amor
maior que tudo me traria novamente ao teu encontro?!...

AMÁLIA (faz dois segundos de suspense, e aí joga-se nos braços dele) –


Oh, Godofredo, perdoa-me, perdoa-me, meu amor... Sou uma louca, sou
uma ingrata, mereço a morte... Sim, querido, sei que me amas, que me
amas tanto quanto eu te amo... (abraçam-se, ele mais uma vez tenta beijá-
la na boca, ela insiste em abaixar a cabeça para beijar as mãos dele) Mas
é que sou fraca, Godofredo, sou fraca e insegura, preciso que me digas
essas coisas assim, com essa emoção... Não entendes que ainda estou
confusa com tua volta?

GODOFREDO (agarrando-a, disposto a entender qualquer coisa) – Sim,


entendo. Sei que me perdoarás.

AMÁLIA (heroica) – Não, Godofredo, tu é que tens que me perdoar. Estou


sendo injusta contigo, com teus sentimentos...

GODOFREDO (beija-lhe as mãos) – Não, não, nem penses nisto.

AMÁLIA – O que quer que tenhas feito, Godofredo, sei que o fizeste de
coração puro.

GODOFREDO – Claro, claro. Puríssimo.

AMÁLIA – Que importa o passado, não é, meu amor?


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GODOFREDO (com entusiasmo) – Sim, claro, era isto mesmo que eu


estava tentando explicar.

AMÁLIA – Agora estamos só nós dois.

GODOFREDO – Isso mesmo. Enfim, sós.

AMÁLIA – Meus pais não voltarão a interferir em nosso relacionamento.

GODOFREDO (bate disfarçadamente na madeira) – Evidente.

AMÁLIA (dengosa) – Ai, Godofredo, quem diria, hem?

GODOFREDO – Pois é... Mas pudera – quinze anos...

AMÁLIA – Psssiu! (põe o dedo nos lábios dele, num gestozinho infantil)
Não fales nisso... O tempo não existe.

GODOFREDO – Claro, claro. O que importa é que seremos felizes.

AMÁLIA (aninhando-se nele) – Já o somos.

GODOFREDO (tentando acariciá-la) – Sim, já o somos – mas há


felicidades maiores à nossa espera...

AMÁLIA (recatada) – Cada coisa a seu tempo... (afasta a mão dele)


Godofredo, tu me amas muito?

GODOFREDO – Fervorosamente.

AMÁLIA – Com loucura?

GODOFREDO – Com loucura.

AMÁLIA – Nunca amaste a ninguém mais do que a mim?

GODOFREDO – Nunca, jamais, em tempo algum.

AMÁLIA (arriscando) – E... Zenóbia?...

GODOFREDO (um gesto de quem manda o passado às favas) – Não há


mais Zenóbia. Era outro mundo, outra vida... Hoje o mundo somos nós, e a
vida começa agora.

AMÁLIA (enlevada) – Ai, Godofredo, estou tão feliz, tanto, tanto, meu
amor... Nem me incomodo mais de falar nesse assunto. Não é curioso?
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GODOFREDO (já cabreiro) – É... curiosíssimo.

AMÁLIA (muda de posição no sofá, senta virada para ele, mãos nas
mãos, ajeita-se toda, como uma criança quando diz “agora vamos fazer
uma brincadeira”) – Godofredo, posso perguntar uma coisa?

GODOFREDO (faz uma cara de “ih, lá vem”) – Claro, meu amor.

AMÁLIA (tímida) – Ela... ela era mais bonita do que eu?

GODOFREDO (visivelmente embaraçado) – Não dá pra comparar.

AMÁLIA – Por quê? Era bonita demais?

GODOFREDO – Não, nunca. Não é questão de beleza. É que não há termo


de comparação possível.

AMÁLIA – Qual era a idade dela?

GODOFREDO – Nunca perguntei. Amália, mudemos de assunto.

AMÁLIA – Era louca? Não, espere – no Oriente, tinha que ser morena.
Morena-clara ou morena-escura?

GODOFREDO (dando mostras de inexplicável inquietação) – Nada disso


importa.

AMÁLIA (angustiada) – Ela era carinhosa, Godofredo?...

GODOFREDO (quase em lágrimas) – Amália, eu te suplico, vamos falar


de outra coisa.

AMÁLIA (feroz) – Quero saber de tudo, detalhe por detalhe.

GODOFREDO – Não me tortures.

AMÁLIA – Isso dói mais em mim do que em ti. Conta-me tudo!

GODOFREDO (nos limites da resistência) – Estou te avisando. Tu te


arrependerás.

AMÁLIA – Só sairás daqui quando eu souber de toda a verdade. E então?


Vais falar ou não vais?

GODOFREDO (reduzido a um trapo) – Está bem. Direi tudo, já que


exiges. (respira fundo) Amália, sabes muito bem que parti daqui para terras
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exóticas, do outro lado do planeta, terras bravias habitadas por tribos


bárbaras. (respira fundo) O deserto do Saara, Amália, é uma das regiões
mais inóspitas do mundo, um lugar marcado pela própria natureza...
(ergue-se, começa a passear meditativo pela sala, enquanto vai falando)
Sabias, Amália, que segundo os geólogos, a África e a América do Sul
formavam uma única massa continental há milhões de anos atrás? Se
observares no mapa, querida, verás como os dois continentes se encaixam
um no outro como peças de um quebra-cabeças, e isso deu origem inclusive
a uma suposição que não me parece totalmente absurda, a de que o deserto
do Saara e o Nordeste brasileiro seriam as duas metades, hoje separadas, de
um a só região, antiquíssima...

AMÁLIA (cruzando os braços) – Afinal de contas, Godofredo, onde é que


você quer chegar?

GODOFREDO (que está a um metro da porta) Hem? (para, faz meia


volta, hesitante. Caminha até o meio da sala. Amália fica na expectativa.
Ele para diante de um quadro pendurado na parede, examina-o com ar de
entendido-em-arte, finalmente ergue o braço, aponta o quadro) Bonito
quadro, hem, Amália? Um bom gosto formidável. Foi você que escolheu?...

AMÁLIA (cruzando os braços, mantendo a calma) – Godofredo, esse


quadro está aí desde que mamãe era noiva. Não se faça de doido. (dá uns
tapinhas ameaçadores no sofá, intimidando-o) Vem, senta aqui e me conta
essa história bem direitinho.

GODOFREDO (arrasta-se de volta ao sofá; mergulha o rosto nas mãos) –


Amália, quero apenas te dizer que... não sei até que ponto nossas
concepções morais, aqui no Ocidente, não padecem de um certo
condicionamento social. Todos nós recebemos um tipo de educação desde
o berço, algo que não renego mas que às vezes é forçoso deixar de lado, em
circunstâncias bem específicas... Então, não é de admirar que num
ambiente estranho, em outra cultura, um homem procure apaziguar seus
impulsos de uma maneira que, aos olhos de uma sociedade civilizada,
poderia talvez parecer pouco ortodoxa...

AMÁLIA – Godofredo, onde-é-que-você-quer-chegar? ...


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GODOFREDO (que na verdade não está querendo chegar a lugar


nenhum) – É que você precisa entender... Zenóbia não era uma criatura
como as outras.

AMÁLIA – Era o quê, então? Era uma cozinheira do quartel?

GODOFREDO (suspirando) – Quem me dera que naquele quartel tivesse


uma cozinheira.

AMÁLIA – Era uma mendiga?

GODOFREDO – Uma mendiga, Amália? Pedindo esmola no deserto do


Saara? Ora faça o favor.

AMÁLIA – Era uma cega, uma aleijada, uma leprosa?

GODOFREDO (pondo as mãos para o céu) – Amália, que é isso. Você


está ficando louca?

AMÁLIA (cruzando os braços ameaçadora) – Então não vá me dizer que


era uma prostituta.

GODOFREDO – Não, não, eu te asseguro que não.

AMÁLIA (de repente tem um susto como quem entendeu; fica de pé; põe
as mãos nos quadris) – Go-do-fre-do! Essa tua Zenóbia era uma... uma...
um... um homossexual?

GODOFREDO (ergue a cabeça, ofendido) – Que é isso, Amália! Está me


chamando de homossexual?

AMÁLIA – Você, não. A tua Zenóbia.

GODOFREDO – E não é a mesma coisa?

AMÁLIA – Não me interessa. Era ou não era?

GODOFREDO (esmurrando os joelhos) – Não, não e não!

AMÁLIA (explodindo) – Mas então o que diabo era essa mulher?

GODOFREDO – Não era mulher Era uma camela.

AMÁLIA – Uma o quê?

GODOFREDO – Uma camela.


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AMÁLIA (sincera, abanando a cabeça) – Não entendi. O que é camela?

GODOFREDO – Uma camela. A fêmea do camelo.

AMÁLIA (recusando-se a compreender) – Mas como? Como?

GODOFREDO (tão infeliz que não resiste ao trocadilho) – Comendo.

AMÁLIA (tão desnorteada que não percebe o trocadilho) – Uma camela.

GODOFREDO – Sim.

AMÁLIA – Chamada Zenóbia.

GODOFREDO – Chamada Zenóbia.

AMÁLIA – Você... e uma camela.

GODOFREDO – Eu... e ela.

AMÁLIA (pula do sofá, subitamente lúcida, e emputecida além de


qualquer possibilidade de descrição) – Go-do-fre-do, vo-cê es-tá di-zen-do
que foi a-man-te de u-ma ca-me-la?!!!!....

GODOFREDO – Digamos que é isso mesmo.

AMÁLIA (histérica) – De uma camela, Godofredo?!

GODOFREDO (orgulho ofendido) – E o que é que tem?...

AMÁLIA (desatrelando onças e panteras) – O que é que tem? O que é que


tem, seu louco, tarado, anormal, psicopata?! Você abandona sua noiva
durante quinze anos, não lhe escreve uma carta sequer, e na hora que volta
tem a cara-de-pau de dizer que foi amante de uma camela??!

GODOFREDO (mais seguro de si, agora que já desabou a parte mais


difícil) – Sim. E o que é que tem, uma camela? Se fosse uma vaca, aí sim,
seria uma coisa vergonhosa.

AMÁLIA (desconcertada, sem entender o argumento) – Uma vaca? Por


quê? O que é que tem uma vaca?

GODOFREDO (triunfante) – Nada! Não tem nada demais! E uma camela


também. É a mesma coisa.
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AMÁLIA (recrudescendo em fúria) – A mesma coisa, é? E eu? Sou a


mesma coisa também? O mundo está cheio de mesmas-coisas, é,
Godofredo? Você vem pra cá depois de todo esse tempo, e quer fazer
comigo o mesmo que fazia com a camela?

GODOFREDO – Amália, por favor. É completamente diferente.

AMÁLIA – Ah, agora é diferente? Numa mente anormal como a sua, tudo
parece ser a-mesma-coisa. (suplicante) Godofredo, sejamos racionais. Você
vem aqui, com a maior calma do mundo, e me conta que foi amante de uma
camela? Tem cabimento uma coisa dessas?

GODOFREDO – Lá é outro mundo, outra realidade social.

AMÁLIA – Tem cabimento uma coisa dessas?

GODOFREDO – O homem é produto do meio.

AMÁLIA – Você, amante de uma camela. Isso tem cabimento?

GODOFREDO – Amália, lá os costumes são outros, tudo é normal.

AMÁLIA (fuzilante) – Tudo é normal, vírgula: tudo é degenerado como


você. Meu Deus do céu, e eu passei vinte e dois anos da minha vida
pensando em passar minha lua-de-mel com um homem... que gosta de
camelas!

GODOFREDO – Alto lá! De camelas, não. A única de que eu gostei foi


Zenóbia.

AMÁLIA (histérica, sapateando) – Não pronuncie esse nome na minha


frente, enquanto eu for viva! (esconde o rosto nas mãos, soluça) E ainda
por cima chama o... o animal por um nome. Ai, que mente doentia.

GODOFREDO – Ela tem nome, todo camelo no Saara tem um nome. Ou


você pensa que nome é privilégio dos seres humanos?

AMÁLIA – Nada do mundo é privilégio. Até o noivo que eu tinha não é


privilégio meu: me abandona durante quinze anos, e vai para a cama com a
primeira camela que aparece.

GODOFREDO – Amália, não diga absurdos. Não “fui para a cama”.


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AMÁLIA – Não me venha com detalhes sórdidos, seu viciado. Não quero
saber que tipo de imundícies vocês praticavam. Já basta ficar sabendo qual
é a sua depravação, a sua perversão, ai que coisa mais repugnante.

GODOFREDO – Não tem nada de perversão nem de maldade. É um


instinto natural, que se satisfaz por vias naturais. Coloque-se no meu lugar!

AMÁLIA (descabelando-se) – Eu, me colocar no seu lugar? Eu e a


camela? Como ousa? (pranto torrencial) Como ousa?...

GODOFREDO – Eu não quis dizer isso, querida. Pedi apenas um pouco de


compreensão.

AMÁLIA – Compreensão? E alguém, por acaso, procura me compreender?


Você, por exemplo? Como reagiria você se voltasse depois de quinze anos
e eu lhe dissesse que tinha sido amante de um camelo?

GODOFREDO (impaciente) – Ora, Amália. Vamos e venhamos. Não é a


mesma coisa.

AMÁLIA – Ah, não? Agora não é mais a mesma coisa, não é? Só porque
sou eu. Você pode fazer tudo, e está certo. Eu não tenho direito a nada. Foi
sempre assim.

GODOFREDO – É que não se aplica ao caso, Amália. Seria... (faz um


gesto vago com as mãos)... seria fisicamente impossível.

AMÁLIA (batendo o pé) – Não, não seria não! Pode acreditar, Godofredo!
Se eu quiser, qualquer coisa nesse mundo acaba sendo possível.

GODOFREDO – Mas você quer provar o quê? Que queria manter relações
com um camelo?

AMÁLIA (horrorizada) – Eu, ter relações com um camelo? (desata no


choro) Como é que você pode pensar uma coisa como essa?

GODOFREDO (encolhendo os ombros) – Foi você quem sugeriu.

AMÁLIA – Eu não tenho a sua mente suja, Godofredo.

GODOFREDO – Desde o começo estou tentando explicar que o que


aconteceu foi algo natural. Eu podia muito bem não ter contado. Confessei
por uma questão de lealdade. E veja no que dá!
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AMÁLIA (chorando) – Isso você não devia ter confessado nunca, nunca.

GODOFREDO – Mas você não pediu que eu confessasse tudo?

AMÁLIA (com lógica feminina) – Pedi porque não sabia que era uma
camela.

GODOFREDO – E como é que eu ia advinhar?

AMÁLIA – Ora tenha paciência, Godofredo. Certas coisas a pessoa deduz


por si mesma. Será que além de tarado, você é idiota?

GODOFREDO – Não sou tarado nem idiota, você é que é exagerada.

AMÁLIA – O que diriam minhas amigas, se viessem a saber disso?

GODOFREDO – Elas não precisam saber. Não vão saber nunca.

AMÁLIA – Como é que você pode ter certeza?

GODOFREDO – Ora! Eu nunca direi nada a ninguém, e imagino que você


deve fazer o mesmo.

AMÁLIA – E daí? Elas acabam sabendo de tudo.

GODOFREDO – Não vão saber, Amália. Que bobagem.

AMÁLIA – Você não conhece minhas amigas, Godofredo. Elas descobrem


qualquer coisa na face da Terra. Pouco importa se você estava em
Marrocos ou no planeta Marte, elas sempre descobrem alguém que
conheceu você, e que está disposto a contar o que você andava fazendo por
lá.

GODOFREDO – Duvido muito.

AMÁLIA – Eu nunca mais vou ter uma noite bem dormida. Só de pensar
na cara que elas fariam... Os cochichos, os bilhetes, os comentários, as
gargalhadas, as ironias... (sapateia) Aaaaaai, Godofredo, como eu te odeio!

GODOFREDO – Mas o que é que eu posso fazer?!

AMÁLIA – Agora não tem mais jeito. Mas podia pelo menos ter deixado
essa desgraça dessa camela em paz.

GODOFREDO – Ela está em paz. Ela gostava muito.


22

AMÁLIA – Não venha se gabar! Não na minha frente!

GODOFREDO – Não estou me gabando. Estou querendo deixar as coisas


bem claras.

AMÁLIA (sarcástica) – Já estão claríssimas, Godofredo, de repente ficou


tudo tão claro que eu acho que vou botar uns óculos escuros pra não
prejudicar a vista.

GODOFREDO – Amália, não recomeces com tuas ironias.

AMÁLIA – Você nunca me enganou, Godofredo.

GODOFREDO – Claro que não. Sempre fui leal com você.

AMÁLIA – Não se faça de besta. Estou dizendo que você nunca me


enganou, eu sempre soube que você não prestava.

GODOFREDO – Meu bem, por favor. (tenta pegar na mão dela)

AMÁLIA (repelindo o gesto dele) – Se você me chamar de meu bem, eu


ateio fogo às vestes. Eu tenho nojo de você, Godofredo.

GODOFREDO (encarando-a) – Ah, é? Tem nojo? E porque me esperou


durante esse tempo todo?

AMÁLIA – Porque sou besta, burra, e idiota. E aliás, pensando bem, acho
melhor confessar logo tudo. Eu também te traí.

GODOFREDO (surpreso) – Heeeein?...

AMÁLIA (exagera tanto que todo mundo vê logo que é mentira para se
vingar) Foi, sim. Eu fui pra cama com o carteiro, com o eletricista, com o
porteiro do prédio, com o rapaz que vende enciclopédia, com todo mundo.

GODOFREDO (relaxa, ao ver que é pirraça) – Ah, foi? Então tudo bem.
Fica uma coisa pela outra, e estamos quites.

AMÁLIA (furiosa ao ver que a tática não dá resultado) – Estamos quites


coisíssima nenhuma, seu... seu gigolô de jardim de zoológico! (prorrompe
em lágrimas) Ai, Godofredo, eu te odeio tanto, tanto, tanto! Eu queria que
você morresse e fosse pro Inferno de cabeça pra baixo, Godofredo, pra eu
passar 10 milhões de anos com uma mangueira de gasolina, ajudando a te
fritar vivo!
23

GODOFREDO (filosófico) – Isso vai passar, Amália. Isso vai passar.

AMÁLIA (mais furiosa ainda) – Ah, é? É o que você pensa. Não vai
passar coisíssima nenhuma. Eu vou estragar tua vida, Godofredo. Eu vou
transformar tua vida num inferno, numa coisa insuportável. Eu vou te
perseguir, vou grudar no teu é, vou me pendurar nas tuas orelhas, vou
montar nos teus ombros, eu vou virar um encosto na tua vida, uma alma
penada, um vampiro, uma coisa ruim sugando cada gota de energia positiva
que tiver na tua alma! Eu vou beber teu sangue toda noite, eu vou enfiar
marimbondos pelo teu nariz, eu vou derramar óleo fervendo no teu ouvido.
Tua vida vai virar um pesadelo, Godofredo, você vai tentar o suicídio de
manhã, de tarde e de noite, e não vai conseguir, vai ficar numa cama de
hospital todo arrebentado, sem poder se mexer e o quarto cheio de moscas,
e a enfermeira quando aparece acaba dando a injeção errada. Vai dar tudo
errado na tua vida de agora em diante, Godofredo, quem está dizendo isso
sou EU, e tudo de ruim que eu te fizer ainda vai ser pouco pra pagar o que
eu sofri! (desata em pranto novamente).

GODOFREDO (ergue-se devagar, mãos nos bolsos, ar meditativo.


Enquanto Amália soluça, ele caminha devagar pelo meio da sala, absorto
em profunda meditação; depois começa a falar, com voz distante) Sim,
sim... Vejo que o tempo é implacável; e que nos tornamos demasiado
diferentes. O que me resta, então? Partir! Sim, Godofredo, é sempre isto
que te resta... partir, ir sempre em frente sem olhar para trás. Não é assim,
Godofredo, que acabam sempre as histórias de amor?...

AMÁLIA (ergue o rosto, pergunta com voz sumida) – Godofredo, o que


vai fazer?

GODOFREDO – Não sei, Amália. (olha em torno, com cara de herói


partindo para a guerra sem saber se volta vivo) Irei por onde me
conduzirem os caminhos do Destino. Viajarei novamente, ao sabor dos
ventos e das tempestades, à cata de aventuras, em busca da glória anônima
que premia os homens-sem-terra... Caminharei ao léu, sem direção certa –
talvez à procura de mim mesmo.

AMÁLIA (num fiozinho de voz) – Vais... partir?

GODOFREDO – Sim, vou partir. O que me resta aqui? (faz um gesto


largo) A incompreensão de todos? Eu a terei em qualquer parte do
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mundo... A solidão? Mas esta sempre foi a minha única companheira! Sim,
Amália. Vou partir.

AMÁLIA (aterrada) – Não! Não vás embora!

GODOFREDO – Mas o que queres tu de mim? Não acabas de constatar


que sou um monstro?

AMÁLIA (atirando-se aos seus pés) – Não, não és monstro coisa


nenhuma! E se és, tanto faz1 Mas não me deixes de novo, não me deixes,
não me deixes!

GODOFREDO – Serias capaz de me perdoar?

AMÁLIA – Já perdoei, e se quiseres perdoo de novo! Contanto que eu não


fique de novo aqui sozinha, olhando pro relógio, olhando pro calendário,
olhando pro espelho, e quando saio na rua as pessoas me perguntando de
dez em dez passos: (arremeda) “E você, não casa não? E você, não vai
casar nunca? O que foi que houve? Ninguém quis? Tá guardando pro gato
comer?” (desata a chorar novamente)

GODOFREDO (vê que está dono da situação e começa a fazer o seu cu


doce) – Não sei, Amália... Disseste coisas que calaram fundo no meu
espírito, e pela primeira vez – sou sincero – pela primeira vez uma sombra
de dúvida começa a empanar o meu sentimento por ti. (dá dois passos na
direção da porta) Talvez precisemos de um tempo – um tempo para pensar
um pouco, colocar as ideias no lugar... Depois disso, quem sabe nós
possamos...

AMÁLIA (na hora do “talvez precisemos de um tempo”, ela já dá um


salto de onça do lugar onde estava, empurra o perplexo Godofredo para o
lado, passa a chave na porta, trancando-a por dentro, joga a chave por
cima do cenário) Um tempo coisa nenhuma, seu Godofredo! Pensa que vai
cair fora da jogada com essa fidalguia? (daí em diante, baixa a pomba-gira
total) O senhor é meu noivo, já se esqueceu? Tá vendo isso aqui? (mostra a
aliança de noivado) Isso aqui é que vai ser seu tempo, tá sabendo? Não me
venha com esse papo de botar ideias no lugar. Você pode botar qualquer
coisa no lugar que bem entender, mas vai ser aqui! (bate com o pé no chão)
Você agora vai passar quinze anos sem passar por essa porta!
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GODOFREDO (mais uma vez perplexo) – Amália! O que que está


acontecendo?...

AMÁLIA – Tá acontecendo, seu Godofredo, que eu cansei! Já aguentei


muita coisa na minha vida, mas hoje foi a gota d’água. Essa sua história da
camela a gente vai resolver no devido tempo, mas por favor não venha
bancar o bonitinho, dar uma de herói e querer sair da porta afora
filosofando, feito cow-boy depois do tiroteio! (mãos nos quadris, imita
Godofredo) “Caminharei ao léu, à procura de mim mesmo...” – o senhor
trate mas é de caminhar à procura de um emprego, meu querido, porque de
agora em diante o senhor é que vai sustentar essa casa!

GODOFREDO – Amália, não estou te reconhecendo.

AMÁLIA – Nem vai reconhecer mais nunca! (caminha até ele: agarra-o
pelo pescoço) Tá querendo ir embora, Godofredo? Tá querendo tirar o
corpo fora? Pois venha cá, meu nego. (puxa Godofredo de encontro a si,
dá-lhe um demorado beijo na boca, enquanto ele agita os braços como
quem está morrendo sufocado).

GODOFREDO (conseguindo soltar-se das mãos de Amália; respira por


um segundo e depois, num gesto repentino, passa a mão na cintura dela
fazendo-a descair para trás e curvando-se sobre ela, feito Rodolfo
Valentino dançando tango; diz com voz alucinada) Amália, será que
compreenderás um dia o quanto me enlouqueces?

AMÁLIA (voz rouca de erotismo) – Pois enlouqueçamos juntos, meu


amor...

GODOFREDO (erguendo-a, mas mantendo-a colada ao seu corpo) – Meu


amor, sonhei tanto com o nosso primeiro beijo, mas jamais poderia supor
que seria assim, tão apaixonado...

AMÁLIA – Ai, Godofredo, eu te amo tanto...

GODOFREDO – Eu também te amo, Amália. Sê minha, sê minha!

AMÁLIA – Toma-me, que serei tua!

GODOFREDO (começa a desabotoar a roupa dela) – Amália, devora-me!

AMÁLIA – Godofredo, mata-me!


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GODOFREDO (continua desabotoando) – Prepara-te... Não podes


imaginar do que sou capaz!

AMÁLIA (impudica) – Faz de mim o que quiseres... O que fizeres comigo


é porque eu mereço!

GODOFREDO (e torna a desabotoar) – Esperei vinte e dois anos por este


momento!

AMÁLIA (começa também a desabotoar, frenética, o paletó dele; os dois


se atrapalham uma ao outro) – Eu também, meu amor, eu só penso nisso,
tem horas que eu acho que estou ficando doida!

GODOFREDO – Ai, Amália, eu te desejo tanto. Vou te mostrar. Te segura,


que eu vou te mostrar!

AMÁLIA (roçando-se) – Não diz isso, que eu me descontrolo.

GODOFREDO – Te amo, Amália. És a única mulher da minha vida, isso


eu posso te jurar.

AMÁLIA (desabafando) – Sempre quis me entregar a ti, mas esperava que


tomasses a iniciativa.

GODOFREDO – Amália, quanto tempo desperdiçamos!

AMÁLIA – Não importa!

GODOFREDO – Eu também esperava que me desses um sinal, Amália, eu


não queria machucar tua sensibilidade.

AMÁLIA (despindo-se) – Pois aproveita e machuca agora, se for homem!

GODOFREDO – Amália, não me provoques, estou te avisando que eu não


presto.

AMÁLIA – Vais ter que provar, Godofredo...

(Os dois já estão parcialmente despidos; agarram-se, beijam-se, vão


intercalando as frases com tentativas de tirar mais peças de roupa;
acabam caindo um sobre o outro no sofá, e prosseguem no agarra-agarra)

GODOFREDO – Por que tantos mal-entendidos?...

AMÁLIA – Não importa. Agora estamos juntos.


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GODOFREDO – Sim, sim. Estamos juntos.

AMÁLIA (complicando-se num fecho-èclair) – Peraí... Parece que


quebrou.

GODOFREDO (ajeitando) – Vem cá... espera... pronto, já saiu.

AMÁLIA (tira mais uma peça) – Godofredo, exijo que me possuas!

GODOFREDO – Sim, serei teu homem, Amália e serás minha mulher!

AMÁLIA – Tua fêmea!

GODOFREDO – Minha fêmea!

AMÁLIA (descabelando-se toda) – Tua puta!

GODOFREDO (perdendo as estribeiras) – Minha puta!

AMÁLIA (voz de Bette Davis no cio) – Ai, Godofredo, me coma, me


coma, me foda!

GODOFREDO (agarrando-a com seis mãos, beijando-a com doze bocas)


– Tanto tempo perdido, tanto tempo perdido!

AMÁLIA – Não importa! Somos jovens.

GODOFREDO – Sim, somos jovens! Temos muito tempo ainda!

AMÁLIA – A culpa é da sociedade. Roubou quinze anos da nossa vida.

GODOFREDO – Culpa dos teus pais também, não te esqueças.

AMÁLIA – Deles também, e eu quero é que se danem!

GODOFREDO – Vamos trepar, e eu quero mais é que tua mãe ouça tudo!

AMÁLIA – Claro que vai ouvir, e vai saber como eu sou boa de cama.

GODOFREDO (provocando-a) – És boa, hem? Quem te disse isso? O


eletricista, ou o rapaz que entrega o leite?

AMÁLIA (exibida, impudente) – Todos os dois, e mais o rapaz da


enciclopédia, e o síndico do prédio, e o tenente do terceiro andar.

GODOFREDO – Pois te prepara, que eles não viram nada!


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(Os dois se engalfinham, acabam caindo para trás do sofá. Ouve-se um


ruído confuso de gemidos misturados com exclamações de “ai, meu
amor”, “sim, assim, assim, mais, mais”, “ai, eu morro” – a luz vai caindo,
e no momento em que Amália começa a gemer bem alto em pleno gozo,
ouve-se a voz e Godofredo)

GODOFREDO – Ai, ai, aaaaaaaaaai.... Zeeenóóóóóóóóbiiiiiaaaaaaaaaa! ...

(Black-out. Cai o pano. Plateia aplaude de pé)

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