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de Bráulio Tavares
PERSONAGENS
SINOPSE
ATO ÚNICO
Sete horas da noite. AMÁLIA está sentada num sofá, ouvindo rádio;
folheia fotonovelas. De vez em quando atira a revista para um lado, num
gesto impaciente, ergue-se, vai à janela, afasta a cortina e espreita ansiosa
para o lado de fora. Caminha pela sala. Volta a sentar-se. Pega outra
revista, começa tudo de novo. Vai ao rádio, muda de estação. Depois de
algum tempo, aborrece-se com o rádio, desliga. Silêncio sepulcral. A
campainha toca!
Amália ergue-se, vai até a porta com passo incerto, abre. Recua dois ou três
passos, leva a mão ao peito, arquejante, incrédula. Entra GODOFREDO,
com um buquê de flores na mão. Os dois se fitam em silêncio por alguns
instantes.
AMÁLIA (voz débil, estendendo as mãos) – Não, não, és apenas mais uma
das visões que não me deixam em paz... Sei que no instante em que tocar
tuas mãos, desaparecerás como que por encanto... Por que não te vais logo,
então? Vai! Esfuma-te no ar, fantasma! Não me atormentes mais...
AMÁLIA (com um gesto cauteloso recebe o buquê, sem tocar na mão dele,
como se ele fosse feito de bolha-de-sabão) – Oh, Godofredo... Recebi teu
telegrama hoje mesmo, mas recusava-me a crer... (enfia o nariz nas flores,
aspira fundo) Devo estar louca, ou talvez sonhando... sim, porque o sonho
é uma das formas mais doces de loucura...
amanhecer chega, Amália! (vibrante) Vê! Vê o sol, que doura a fímbria dos
montes! Recusaremos nós o apelo de vida que sua luz nos transmite? É
compreensível que estejamos ainda um pouco ofuscados – talvez as trevas
da noite ainda não tenham se dissipado por completo de nosso coração...
Mas, Amália, olha ao teu redor! (faz um gesto largo, abarcando a sala) Vê,
Amália, como os regatos murmurejam, os colibris esvoaçam entre os
miosótis (aponta o rádio), as flores entreabrem suas corolas, onde pousam
as diligentes abelhas... (aponta a lâmpada) as borboletas esvoaçam, tontas
de luz, embriagadas de vida... (novo gesto largo, abarcando tudo) É a
aurora da liberdade, é um novo sol em nosso horizonte, é um dia radioso
que se inicia após o império madrasto da noite... E nós, Amália, haveremos
de nos quedar alheios a essa exuberante floração de vida que freme ao
nosso redor? (rodeia o último móvel, e posta-se diante dela, que está
indecisa, retorcendo os dedos) Recusaremos a luz cálida desse dia radioso
que nasce – esse dia, que se chama Futuro, e que se chama Amor?
(num gesto impulsivo, estende as mãos para a frente; Amália, num reflexo
automático, também estende as mãos – e pela primeira vez os dois se
tocam)
AMÁLIA (lamentosa) – Sim; podes exigir que minha razão o entenda; mas
é demais pedir que meu coração o aceite... Porque não eras tu que estavas
aqui, Godofredo; não eras tu que diariamente escutavas as chacotas dos
vizinhos, as indiretas das companheiras de escritório, as censuras veladas
mas amargas de minha mãe, as ironias de meu pranteado pai...
AMÁLIA (como quem não ouviu) – Não eras tu, Godofredo, que vias os
anos de tua mocidade murchando como flores outonais, e sem um coração
amigo a quem confiar tuas tristezas e – não, não rias – tuas frágeis
esperanças...
AMÁLIA (pega a deixa e se derrama) – Sofri, sim, sofri muito... Nem sei
se me encontraste mais envelhecida, com o rosto vincado de rugas, talvez
até... feia...
AMÁLIA (amuando-se um pouco) – Não sejas prosaico. Será que não tens
nem um pouco de romantismo? Pergunto se escrevias poemas, se fazias
confidências a um diário...
AMÁLIA (intensa) – Cada vez que dizes palavras tão belas, meu amor,
percorre-me um arrepio, um frêmito, que não sei se é a paixão de seres meu
– ou o orgulho de ser tua... Ser tua escrava e tua senhora... Perder-me no
teu coração como uma criança descuidada se perde numa floresta, mas
percorrê-lo com o olhar iluminado, sabendo que esse coração misterioso,
que é o teu, pertence a mim somente... (fica em silêncio, enlevada, mas daí
a pouco algo parece acontecer em sua mente – Ela muda de posição no
sofá, mais arrumada, e pergunta com uma voz ameaçadoramente doce)
Godofredo... será que não amaste mais ninguém durante tanto tempo?...
AMÁLIA (implacável) – Quero dizer que quero saber se não amaste mais
ninguém durante tanto tempo.
GODOFREDO – Não, não creio que ela tenha vindo de Marrocos. Mas
conhecia-a e... (faz um gesto de desânimo) ... repugna-me entrar em
detalhes. Sei que compreenderás tudo.
AMÁLIA – Sim, sim, tu mesmo admites que foi fraqueza; admites então
que estavas errado, e que me traíste.
AMÁLIA – Acabas de confessar que foi uma fraqueza. Por que nã foste
capaz de resistir?
GODOFREDO – Não, não, falei que foi fraqueza para te fazer entender
que nesses momentos não é a voz da razão que predomina.
AMÁLIA – Pensas que sou o quê? Idiota? Posso ser donzela, mas sei de
que jeito é o mundo. Sei que os homens são todos uns devassos, e a maior
prova é esta tua confissão.
AMÁLIA – Além de depravado, não sejas hipócrita! Por que não tens a
hombridade de assumir teus atos?
GODOFREDO – Mas isso é incrível... Quer dizer então que agora estás
praticamente só... (olha em redor) Nesta mesma sala, onde namoramos
durante tantos anos, sentados aqui neste sofá, com teu pai de um lado
(indica uma poltrona), tua mãe do outro (indica a outra), a nos
contemplar... E tantas loucuras passavam pela nossa cabeça, e sonhávamos
com o dia em que pudéssemos ficar a sós para praticá-las...
AMÁLIA (seca, cortante) – As loucuras, já as deves ter feito todas com tua
Zenóbia.
reconhecer aquele jovem de 25 anos que um dia partiu daqui, desta mesma
sala, acossado pelo medo e perseguido por ameaças... Tu o reconheces? És
capaz de ver em mim o mesmo homem a quem fazias tantas promessas,
tantas juras de amor e de desejo? Porque juravas, não é mesmo, Amália?
Tua boca era avara de beijos, mas pródiga de juras. Ah!... só eu sei o
quanto te implorei em segredo, e o quanto me prometeste, arfante, entre
dois suspiros! Lembras-te disso, Amália? Não, não escondas o rosto!
(segura o queixo dela, fitando-a face a face) Olha para mim! Anda, olha
bem para mim! Os cabelos estão grisalhos, os olhos estão mais cansados
pela vida – mas chegou a hora da cobrança, Amália! Vim cobrar de ti as
promessas loucas que fazias àquele rapaz ingênuo que tantas vezes, neste
mesmíssimo sofá (bate com a mão no sofá, prestes a perder a paciência)
beijou as tuas mãos, cego de desejo, e vigiado por aquele casal de múmias-
de-pijama! Amália, Amália! (sacode-a pelos ombros) Atravessei metade do
mapa-múndi, só para te reencontrar! Dizes que te abandonei. Mas se eu
tivesse te abandonado, por acaso estaria aqui? Não vês que só um amor
maior que tudo me traria novamente ao teu encontro?!...
AMÁLIA – O que quer que tenhas feito, Godofredo, sei que o fizeste de
coração puro.
AMÁLIA – Psssiu! (põe o dedo nos lábios dele, num gestozinho infantil)
Não fales nisso... O tempo não existe.
GODOFREDO – Fervorosamente.
AMÁLIA (enlevada) – Ai, Godofredo, estou tão feliz, tanto, tanto, meu
amor... Nem me incomodo mais de falar nesse assunto. Não é curioso?
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AMÁLIA (muda de posição no sofá, senta virada para ele, mãos nas
mãos, ajeita-se toda, como uma criança quando diz “agora vamos fazer
uma brincadeira”) – Godofredo, posso perguntar uma coisa?
AMÁLIA – Era louca? Não, espere – no Oriente, tinha que ser morena.
Morena-clara ou morena-escura?
AMÁLIA (de repente tem um susto como quem entendeu; fica de pé; põe
as mãos nos quadris) – Go-do-fre-do! Essa tua Zenóbia era uma... uma...
um... um homossexual?
GODOFREDO – Sim.
AMÁLIA – Ah, agora é diferente? Numa mente anormal como a sua, tudo
parece ser a-mesma-coisa. (suplicante) Godofredo, sejamos racionais. Você
vem aqui, com a maior calma do mundo, e me conta que foi amante de uma
camela? Tem cabimento uma coisa dessas?
AMÁLIA – Não me venha com detalhes sórdidos, seu viciado. Não quero
saber que tipo de imundícies vocês praticavam. Já basta ficar sabendo qual
é a sua depravação, a sua perversão, ai que coisa mais repugnante.
AMÁLIA – Ah, não? Agora não é mais a mesma coisa, não é? Só porque
sou eu. Você pode fazer tudo, e está certo. Eu não tenho direito a nada. Foi
sempre assim.
AMÁLIA (batendo o pé) – Não, não seria não! Pode acreditar, Godofredo!
Se eu quiser, qualquer coisa nesse mundo acaba sendo possível.
GODOFREDO – Mas você quer provar o quê? Que queria manter relações
com um camelo?
AMÁLIA (chorando) – Isso você não devia ter confessado nunca, nunca.
AMÁLIA (com lógica feminina) – Pedi porque não sabia que era uma
camela.
AMÁLIA – Eu nunca mais vou ter uma noite bem dormida. Só de pensar
na cara que elas fariam... Os cochichos, os bilhetes, os comentários, as
gargalhadas, as ironias... (sapateia) Aaaaaai, Godofredo, como eu te odeio!
AMÁLIA – Agora não tem mais jeito. Mas podia pelo menos ter deixado
essa desgraça dessa camela em paz.
AMÁLIA – Porque sou besta, burra, e idiota. E aliás, pensando bem, acho
melhor confessar logo tudo. Eu também te traí.
AMÁLIA (exagera tanto que todo mundo vê logo que é mentira para se
vingar) Foi, sim. Eu fui pra cama com o carteiro, com o eletricista, com o
porteiro do prédio, com o rapaz que vende enciclopédia, com todo mundo.
GODOFREDO (relaxa, ao ver que é pirraça) – Ah, foi? Então tudo bem.
Fica uma coisa pela outra, e estamos quites.
AMÁLIA (mais furiosa ainda) – Ah, é? É o que você pensa. Não vai
passar coisíssima nenhuma. Eu vou estragar tua vida, Godofredo. Eu vou
transformar tua vida num inferno, numa coisa insuportável. Eu vou te
perseguir, vou grudar no teu é, vou me pendurar nas tuas orelhas, vou
montar nos teus ombros, eu vou virar um encosto na tua vida, uma alma
penada, um vampiro, uma coisa ruim sugando cada gota de energia positiva
que tiver na tua alma! Eu vou beber teu sangue toda noite, eu vou enfiar
marimbondos pelo teu nariz, eu vou derramar óleo fervendo no teu ouvido.
Tua vida vai virar um pesadelo, Godofredo, você vai tentar o suicídio de
manhã, de tarde e de noite, e não vai conseguir, vai ficar numa cama de
hospital todo arrebentado, sem poder se mexer e o quarto cheio de moscas,
e a enfermeira quando aparece acaba dando a injeção errada. Vai dar tudo
errado na tua vida de agora em diante, Godofredo, quem está dizendo isso
sou EU, e tudo de ruim que eu te fizer ainda vai ser pouco pra pagar o que
eu sofri! (desata em pranto novamente).
mundo... A solidão? Mas esta sempre foi a minha única companheira! Sim,
Amália. Vou partir.
AMÁLIA – Nem vai reconhecer mais nunca! (caminha até ele: agarra-o
pelo pescoço) Tá querendo ir embora, Godofredo? Tá querendo tirar o
corpo fora? Pois venha cá, meu nego. (puxa Godofredo de encontro a si,
dá-lhe um demorado beijo na boca, enquanto ele agita os braços como
quem está morrendo sufocado).
GODOFREDO – Vamos trepar, e eu quero mais é que tua mãe ouça tudo!
AMÁLIA – Claro que vai ouvir, e vai saber como eu sou boa de cama.