Você está na página 1de 11

O TRABALHO COM CORDÉIS EM SALA DE AULA: PENDURANDO

PRECONCEITOS E COLHENDO FRUTOS

Andréa Betânia da Silva


Professora Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia
Aluna do Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística da Universidade
Federal da Bahia

Resumo: Este trabalho pretende socializar uma experiência com o gênero cordel em
sala de aula com duas turmas do 6º semestre de Letras. Imerso em preconceitos
que envolvem os textos denominados como populares, o cordel tem o seu espaço
negado no trabalho com gêneros textuais, apesar de constar inclusive nos PCN. O
curso de Letras propõe-se a capacitar profissionais para atuar em sala de aula de
modo a apresentar possibilidades viáveis para o trabalho com leitura e escrita a
partir do enfoque de gêneros textuais diversos, buscando a formação de leitores
eficientes. De posse das informações acima, busca-se a inserção do cordel no
trabalho com gêneros textuais, o que pode ser feito em diversos contextos, mas que
ganha um gostinho especial por abordar uma produção tipicamente nordestina, onde
os sujeitos podem reconhecer elementos que caracterizam seu contexto sócio-
cultural.

Palavras-chave: Gêneros textuais. Diversidade. Cordel. Leitura.

INTRODUÇÃO

Representante da cultura brasileira, continuamente a literatura de cordel tem o


seu espaço negado e/ou negligenciado como gênero literário produzido no Brasil.
Apesar disso, mantém-se atuante e atual através do empenho de escritores que
vêem nela o lugar para expor sua poesia e assim retratar a realidade que os cerca.
Apesar de ter o seu fim anunciado desde 1880 (SANTOS, 2006, p. 108), o
cordel tem desenvolvido estratégias para lidar com as novas demandas da
sociedade ao incorporar elementos provenientes da atualidade, mas mantém
características que o distinguem das demais produções literárias brasileiras. Sua
forma destaca-se atualmente pela predominância de sextilhas1, embora tenha sido
elaborada inicialmente a partir de quadras2. Seus versos são denominados linhas ou
pés3 e, em conjunto, são denominados versos, ao contrário da poesia convencional,
visto que nesta a unidade é denominada verso enquanto a reunião é chamada de
estrofe.
1
As sextilhas são versos formados por seis pés heptassílabos.
2
As quadras são versos formados por quatro pés heptassílabos.
3
A expressão pé quebrado é utilizada quando o pé apresenta problemas métricos.
O termo literatura de cordel foi utilizado originalmente por Sílvio Romero
(SANTOS, 2006, p. 60), pautado no uso do já difundido cordel, em virtude do cordão
que costumava amarrar os folhetos quando estes estavam expostos à venda.
Embora o título de primeiro cordelista brasileiro ainda seja disputado, todos os
estudiosos da área concordam quanto ao fato de Leandro Gomes de Barros ter sido
o pioneiro na publicação sistemática desta produção.
Embora as primeiras criações tenham sido produzidas na Europa e, sem
dúvida, influenciado a produção brasileira, autores como Abreu (1999, p. 105)
defendem que o cordel brasileiro desenvolveu características próprias, como o texto
em verso, além de regras próprias quanto à rima, à métrica e à estruturação do
texto4.
Funcionando no século XIX como o meio de comunicação mais eficiente para
os que viviam longe dos grandes centros, sendo capaz de levar notícias aos lugares
mais remotos, a literatura de cordel sempre foi vista como incapaz de sobreviver aos
adventos da tecnologia, mas eis que, em pleno século XXI, pode ser encontrada em
sites voltados apenas para este tipo de produção havendo, inclusive, cordelistas que
existem apenas no mundo virtual, sem jamais ter imprimido sequer um folheto.

1 O LUGAR DOS GÊNEROS TEXTUAIS

Ao longo do tempo alguns conceitos ganham força, a ponto de


apresentarem resistência quando do surgimento de novas concepções entre aqueles
que estão habituados a uma denominação já conhecida. Este é o caso dos gêneros
textuais. A partir dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), lançados em 1998
pelo MEC (Ministério de Educação e Cultura), passaram a ser acessíveis de fato aos
professores da educação básica. Desde então, surgiram inúmeros trabalhos
(MARCUSCHI, 2002; 2006; MEURER, 2002 entre outros), que se propõem a
distinguir tipos textuais e gêneros textuais visando a colaborar para o esclarecimento
do uso destes conceitos, mas, ainda assim, percebe-se que, na prática, essas
denominações ainda são utilizadas como sinônimas. Marcuschi (2002, p. 22-23)
define tipo textual como “[...] uma espécie de seqüência teoricamente definida pela
natureza lingüística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos
verbais, relações lógicas)[...]”, enquanto gênero textual seria “[...] uma noção
propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em
nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas
por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica”, o que
evidencia que a classificação tipológica está mais voltada para a elaboração do texto
e que o gênero relaciona-se aos propósitos da interação.

4
O escritor Rodolfo Coelho Cavalcante, alagoano radicado em Salvador, escreveu o cordel Origem da literatura
de cordel e a sua expressão de cultura nas letras do país, em 1980, propondo-se a estabelecer as diferenças entre
o cordel europeu e os folhetos nordestinos.
Sempre fomos como ilhas cercadas de gêneros por todos os lados, já que
a interação humana se estabelece a partir do uso dos gêneros disponíveis em cada
contexto. Presentes desde as sociedades mais primitivas, a partir do advento da
escrita e, principalmente da imprensa, tiveram um crescimento surpreendente, já
que as possibilidades interativas criadas por meio tecnológicos extrapolaram os
limites estabelecidos até então e atribuíram novos contornos e formas aos já
existentes, além de criarem outras possibilidades.

Esses três aspectos básicos — sobre o que se fala, quem fala e como se fala
— são definidores do contexto, ao mesmo tempo que dependem do contexto
em que uma determinada atividade humana se desenvolve mediada pela
linguagem. A consciência desses três aspectos nos possibilita ser mais ou
menos articulados no uso da linguagem para alcançar determinados
objetivos e nos apropriarmos e expandirmos o repertório de gêneros
discursivos disponíveis em nossa cultura.
(MEURER; MOTTA-ROTH, 2002, p. 11)

Ao tratar do surgimento de novos gêneros, Marcuschi (2002, p. 20)


esclarece, baseado em idéias já desenvolvidas por Bakhtin (apud Marcuschi 2002,
p. 20), que a criação destes se dá a partir de elementos presentes em outros já
difundido e diversas características são agregadas como parte do processo de
adaptação às novas demandas do mundo tecnológico e digital, o que inviabiliza o
uso de uns e exige o despontar de outros. Em meio a isso, percebe-se a propagação
de textos portadores do que alguns autores denominam como intertextualidade
genérica, visto que, embora haja a predominância de um gênero quanto aos
objetivos da produção em questão, esta apresenta elementos presentes em mais de
um gênero agindo em conjunto para que a produção possa alcançar as metas a que
se destina. Assim, faz-se necessário refletir sobre as classificações genéricas
empreendidas até então, o que não será feito aqui por fugir à proposta inicial,
embora possa servir como mote para futuras discussões.

1.1 O CURSO DE LETRAS E A DIVERSIDADE TEXTUAL

A famigerada falta de interesse dos alunos por leitura já ganhou


proporções que beiram o lendário, visto que, mesmo onde se faz presente a procura
por livros, ainda assim atesta-se sua insuficiência. Oriundos de escolas que
geralmente não promovem projetos que visam ao desenvolvimento do prazer pela
leitura, além de estarem imersos numa sociedade que não tem como prioridade o
desenvolvimento de políticas públicas preocupadas com o fomento da leitura, é
preciso que os alunos sejam estimulados a flertar com os livros, como um romance
(PENNAC, 1993), envolvendo o estabelecimento de uma conquista que se dá
mediante a percepção dos pontos estimulantes em cada obra e da diversidade de
gêneros, autores e estilos que atendem aos mais diversos quereres.
O trabalho com linguagem requer um tratamento diferenciado, um olhar
que se posicione diante da construção do conhecimento:

Nesse contexto de trocas materiais e culturais, de busca pela informação e


posterior utilização desta para construção do conhecimento, a linguagem se
inscreve como sistema mediador de todos os discursos. Em função dessa
potencialidade de mediar nossa ação sobre o mundo (declarando e
negociando), de levar outros a agir (persuadindo), de construir mundos
possíveis (representando e avaliando), aumenta a necessidade e a
relevância de novas práticas educacionais relativas ao uso de diferentes
gêneros textuais e aos requisitos de um letramento adequado ao contexto
atual.
(MEURER; MOTTA-ROTH, 2002, p. 10)

Funcionando como funil, o acesso ao ensino superior apresenta-se na


sociedade brasileira como proveniente de uma disputa que coloca lado a lado
sujeitos que percorreram estradas diferentes, mas precisam chegar ao mesmo
destino: a obtenção de um diploma. Conforme a configuração social onde estão
inseridos, dispõem de poucas opções e vêem na universidade a possibilidade de
lidar com as adversidades oriundas de uma ideologia perversa que os faz acreditar
que todos dispõem das mesmas oportunidades, defendendo a existência de uma
suposta divisão eqüitativa de saberes e bens e que, por isso, se todos não
apresentam os mesmos resultados, isso nada mais é do que a constatação de que
“quem quer consegue”, embora a vida apresente provas atestando que nem só de
vontade se faz um caminhar.
Anualmente as universidades têm recebidos um público que se mostra
cada vez menos preparado para lidar com exigências intrínsecas ao fazer
universitário, às demandas que o ensino superior requer. Assim,

Na nossa sociedade, as preocupações com o ensino da leitura e da escrita


parecem estar atreladas apenas aos anos iniciais de escolaridade, uma vez
que supõe que ler e escrever, como mera decodificação dos códigos escritos,
é algo que se “ensina” de uma vez, no início da escolaridade regular, não se
exigindo que os graus níveis subseqüentes de ensino se preocupem com
esse trabalho.
(GANDRA, 2006, p. 112)

Nesse contexto podem ser encontrados cursos que priorizam a leitura e a


escrita ao lado de outros que vêem nelas apenas instrumentos a serem
manipulados. O trabalho com leitura e escrita pressupõe o domínio de alguns
procedimentos e solicita o desenvolvimento de habilidades imprescindíveis que se
imagina já estarem desenvolvidas quando da entrada no ensino superior. Entretanto,
depara-se, cada vez com maior freqüência, com um quadro que assusta e desafia.
Assusta porque evidencia a realidade falaciosa em que se encontra o trabalho com
leitura nos ensinos fundamental e médio, e desafia porque se coloca como um fazer
necessário, a menos que se queira prolongar o discurso de que universidade não é
lugar para aprender/ensinar a ler e escrever, habilidades essas que supostamente
deveriam ser desenvolvidas anteriormente, o que resulta num círculo que não gera
resultados.
Voltado para a formação de futuros professores, o curso de Letras
funciona como capaz de contribuir para uma mudança gradativa, porém eficaz, no
tratamento dispensado aos gêneros textuais, visto que um dos seus objetivos é
capacitar profissionais que possam de fato intervir para a promoção da leitura. Uma
das deficiências mais claras nos estudantes é a dificuldade de interpretar e
compreender os textos aos quais têm acesso na universidade, dificultando a prática
da escrita, assim como da oralidade:

Interpretar é atribuir, explicar sentido, ao passo que compreender é saber


como produzir sentido, é perceber as intenções. Ao considerarmos o sujeito
inserido em formações discursivas que são determinadas sócio-
historicamente, entendemos que sujeito e sentido se constituem
reciprocamente. Assim, para interpretar e compreender, acionamos outros
discursos, buscamos outras vozes, contamos com outros textos, mobilizamos
diferentes posições ideológicas, conhecemos diferentes gêneros textuais. O
que estamos defendendo é que ler não se resume a decodificar e buscar
informações.
(CRISTÓVÃO; NASCIMENTO, 2006, p. 45)

Entretanto, a prática educativa tem mostrado, e as pesquisas também,


que o trabalho com a linguagem precisa ser exercitado em todas as áreas do
conhecimento, o que pode contribuir para dividir todo a responsabilidade que
sempre pesou apenas sobre os ombros dos professores de língua portuguesa:

O professor que lida com textos e depende dos textos para ensinar os
conteúdos das respectivas disciplinas precisa conscientizar-se de que,
também ele, ensina o aluno a ler e a escrever. Compete-lhe, portanto,
independentemente da área de conhecimento em que atue, alertar e orientar
seus alunos para a adequação e a justeza da expressão verbal, pelo menos
no que se refere à consistência do raciocínio e à propriedade de sua
formulação no texto. Esta propriedade envolve os recursos de incorporação /
apropriação da fala alheia (citações, referencias, retextualizações), o
vocabulário, a pontuação, os meios de conexão e de encadeamento das
orações, períodos e parágrafos, entre outras coisas.

(AZEREDO, 2005, p. 41)

O acesso limitado a gêneros acadêmicos fora do âmbito escolar colabora


para acentuar a dificuldade de tomada de posicionamento crítico, pois, os sujeitos
contam com suas vivencias mas não dispõem de embasamento teórico para
solidificar seus conceitos, propor-se a comparar diversas abordagens sobre o
mesmo assunto ou expor seu ponto de vista sobre os textos trabalhados.

2 O TRABALHO COM CORDEL E O MOTE DA INCLUSÃO

Inseridos numa sociedade que vê na escrita sua tecnologia mais valiosa,


alunos e professores estão cada dia mais emaranhados nas tramas do
grafocentrismo, marginalizando a oralidade e, consequentemente, todas as
produções que remetam ao universo de uma cultura oral. Ao analisar o impacto da
escrita nas sociedades orais, Zumthor (1997, p. 37) percebe que as sociedades
apresentam segmentos diferentes: a) as que apresentam oralidade primária não
mantêm nenhum contato com a escrita, de modo que a oralidade ocupa lugar de
destaque e é responsável pela perpetuação do saber através de práticas que
estimulam a construção de gêneros basicamente orais; b) as que têm oralidade
mista mantém contato com a escrita, mas esta ainda não ofusca o lugar do oral,
ainda negociando espaços; c) as que apresentam oralidade secundária dão à escrita
um lugar preponderante, colocando a oralidade em segundo plano. Uma vez que a
partir da imprensa a escrita ganha dimensões indescritíveis, algumas sociedades
orais passam a conviver com a escrita, reconhecendo ainda o valor da oralidade,
mas adaptando-se às novas necessidades apresentadas pelo desenvolvimento de
habilidades relacionadas à produção e à leitura de gêneros escritos.
De acordo com Lemaire ([s.d], p. 32), o contato com a escrita gera
conseqüências irreversíveis para o papel ocupado pela oralidade. Uma vez que,
geralmente, as sociedades de oralidade mista transformam-se em espaços de
oralidade secundária, é preciso perceber que essa transição não acontece de
maneira pacífica. Os falantes que têm acesso à produção da escrita e que
normalmente introduzem o seu uso numa dada sociedade costumeiramente
pertencem a camadas sociais que dispõem de recursos que lhes permitem usufruir
de bens culturais a princípio inacessíveis para uma grande parte da população e é
esta parcela, extremamente representativa, que mais sofre com as mudanças
ocasionadas a partir da necessidade do registro escrito, pois, a estratégia utilizada
para o fortalecimento do grafocentrismo é o depreciamento da oralidade e,
consequentemente, dos seus usuários, conferindo-lhes um lugar menor no contexto
social e exigindo-lhes o pleno domínio do que até então lhes era desconhecido.
É nesse contexto de transição que se encontra o cordel, gênero
desenvolvido na escrita a partir de pressupostos da oralidade, visto que sua
construção visa à oralização, o que lhe confere um ritmo próprio da fala,
incorporando elementos presentes nas cantorias. Gêneros desenvolvidos
prioritariamente no nordeste, o cordel e o repente normalmente são ignorados e/ou
desconhecidos por parte do povo nordestino. Funcionando a princípio como o porta-
voz das notícias do sertão, o cordel, ou folheto, foi paulatinamente perdendo espaço
conforme a imprensa estendia seus tentáculos pelo país afora. Responsável pela
formação de leitores numa época e em lugares onde a curiosidade superava o
acesso, era pela competência em declamar os cordéis que eram escolhidos os
leitores autorizados em cada comunidade, mas o interesse sempre esteve mais
voltada para o texto do que para os leitores em si, pois era a repetição de cada
história, cadenciada por sua estrutura versificada, que contribuía para a
memorização dos textos ouvidos.

2.1 E O CORDEL SE APRESENTA EM SALA DE AULA

O currículo do curso de Letras da Universidade do Estado da Bahia tem


entre os seus componentes adicionais Estudos de textos populares, cuja ementa
refere-se ao trabalho com cordéis, além de textos afins. A partir disso, o plano de
trabalho desenvolveu-se voltado para cordéis e repentes. Uma vez que o
componente ainda encontra-se em desenvolvimento, este trabalho refere-se apenas
à proposta desenvolvida a partir dos cordéis.
A atividade aqui abordada foi desenvolvida em duas turmas do sexto
semestre: uma com 35 e outra com 40 alunos. A turma foi dividida em grupos5 e os
alunos, a partir de um trabalho prévio envolvendo os elementos do cordel,
escolheram, dispondo de um acervo de 50 cordéis, os textos com os quais queriam
trabalhar. O objetivo geral era que os alunos criassem alternativas para socializar o
conteúdo de cada texto de modo a torná-lo acessível, além de perceberem que o
cordel só atinge seu objetivo enquanto gênero textual socialmente situado quando é
oralizado. A princípio essa atividade culminaria com uma apresentação no IV É
Vento de cultura, promovido pelos estudantes do campus XXIV, mas uma série de
imprevistos contribuiu para que a atividade não fosse elaborada em tempo hábil. Em
face de outro contexto, optou-se por apresentações em sala, colocando-se à
disposição equipamentos como retroprojetor, microsystem, caixas amplificadas e
datashow, dando a cada grupo liberdade para escolher a abordagem que julgasse
mais adequada, além de oferecer condições básicas para o desenvolvimento da
atividade proposta.
Os cordéis escolhidos foram: A chegada de Lampião no céu, de Guaipuan
Vieira; O sertão é meu lugar, de Antônio Carlos de Oliveira Barreto; O homem que
engoliu as letras do alfabeto, de Jotacê Freitas; A chegada de Lampião no inferno,
de José Pacheco; O pai que forçou a filha na sexta-feira da paixão, de João
Severiano de Lima; Justiça macabra, de Carlos Joel; Cuíca de Santo Amaro, o tal
poeta desbocado, de Jotacê Freitas; As artimanhas de Pedro Malazartes e o urubu
adivinhão, de Antônio Klévisson Viana; e A história de um tabaréu buscando a vida
na capital, de Antônio Silva Vilas Boas. Os nove textos escolhidos apresentam uma
diversidade de situações embora A chegada de Lampião no céu e A chegada de
Lampião no inferno apresentem elementos que ora se aproximam e ora se repetem

5
Cada grupo tinha entre 07 e 10 componentes para viabilizar a proposta anterior de fazer apresentações em praça
pública.
por se tratar de um mesmo personagem. Enquanto O sertão é o meu lugar
apresenta o contexto sertanejo e a valorização da identidade nordestina, A história
de um tabaréu buscando a vida na capital mostra as peripécias de alguém que vem
do interior e tenta se adaptar à vida numa metrópole. Em O pai que forçou a filha na
sexta-feira da paixão o autor apresenta a história de um incesto praticado por um
homem que violenta sua enteada, tema que aborda um comportamento que fere os
conceitos morais supostamente constituintes de qualquer sociedade, além do apelo
aos valores cristãos, dada a importância da data do ocorrido para o contexto
religioso católico. Justiça macabra discute o fato ocorrido há alguns anos em
Eldorado de Carajá e que resultou no assassinato de militantes do MST (Movimento
dos Sem Terra), enquanto Cuíca de Santo Amaro, o tal poeta desbocado aproveita a
comemoração do centenário deste poeta baiano para reverenciar sua figura
polêmica, assim como sua importância na configuração do cordel brasileiro. Pedro
Malasarte, figura do imaginário brasileiro, aparece em mais um de suas tão
divulgadas artimanhas para tirar vantagem de todas as situações, correspondendo à
imagem estereotipada do malandro. O texto O homem que engoliu as letras do
alfabeto situa o lugar da leitura e da escrita na sociedade brasileira, destacando a
importância do desenvolvimento destas no universo do cordel.
Cada grupo buscou apresentar o cordel escolhido de modo a retratar a
narrativa de cada texto. Para isto, alguns optaram por sua encenação, numa
tentativa de reconstituir as situações descritas, enquanto outros tentaram apenas
fazer a leitura do cordel. Uma vez que a declamação deste gênero e a configuração
de sua estrutura estão pautadas no desenvolvimento da memorização, observou-se
que, incapazes de decorar o texto, por diversos fatores, entre eles a falta de tempo,
os alunos recorreram à escrita como suporte, o que fez com que projetassem no
retroprojetor ou no datashow o próprio texto, muitas vezes atrelando-o a imagens
que compõem a paisagem nordestina. A análise das imagens escolhidas permite
perceber a reprodução do discurso do outro sobre o nordeste, mais precisamente
sobre o sertão, e um apagamento ou neutralização do seu olhar como nordestino e
sertanejo. Esta atividade foi desenvolvida em Xiquexique, cidade do sertão baiano,
mas em nenhum momento as apresentações utilizaram imagens da região. Ao
retratarem o sertão, procuraram mostrá-lo com ares de alteridade, como se não
estivessem inseridos no contexto descrito, numa demonstração de distanciamento
que indica a negação de uma filiação que os representa. Ao compor o figurino dos
personagens optaram por uma caracterização estereotipada, utilizando elementos
que por vezes sequer correspondiam ao imaginário popular. Vale ressaltar que,
quando do trabalho teórico, muitas vozes referiam-se ao sertão como o lugar do
outro. Entretanto, o desenvolvimento deste trabalho trouxe à tona a relação estreita
que alguns alunos têm o cordel, a ponto de descobrir-se que dentre os alunos há
quem escreva, quem tenha neste gênero um referencial familiar e até quem já
esteve no posição de leitor autorizado na sua comunidade.
Acostumados ao olhar da literatura tida como erudita, que coloca as
produções tidas como populares numa posição marginal, os sujeitos envolvidos no
desenvolvimento deste trabalho não demonstraram dificuldade para reconhecer no
cordel elementos que permitem a sua classificação como representante da literatura
e da poesia brasileiras, sempre citando os canônicos como poetas e os demais
como apenas cordelistas, o que evidencia o preconceitos criado em torno de um
gênero que alguns sequer conheciam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento da atividade aqui apresentada evidenciou a


necessidade de um trabalho contínuo e sistemático sobre o universo classificado
como popular, o que, infelizmente, não pode ser contemplado com o tempo
disponível num componente de apenas 30 horas. Além disso, permitiu perceber que
o trabalho com gêneros textuais está atrelado também à construção da identidade
dos sujeitos envolvidos. A eleição de uns textos e a exclusão de outros em sala de
aula pode contribuir para a manutenção de uma prática que normalmente não
desperta o interesse pela leitura porque o público-alvo não consegue se identificar
com a realidade representada pelas obras, além de não reconhecer na atividade de
leitura um objetivo que esteja atrelado às suas reais necessidades, não
desenvolvendo então a significação necessária para a construção de um saber.
É evidente que apenas o meio acadêmico não pode responsabilizar-se
pela sensibilização do alunado, mesmo nos cursos de licenciatura, para a urgência
de (re)construir um olhar que reconheça a importância do trabalho com a
diversidade textual na construção de um posicionamento crítico acerca da formação
de leitores. É preciso trabalhar conjuntamente com o poder público para
desenvolver estratégias que possam de fato assegurar o acesso à leitura como um
direito básico, além de promover políticas públicas que divulguem e tornem
acessíveis produções que não encontram espaço entre os canônicos.
Enquanto não se dispõe do ideal, que seja possível, pelo menos,
ressignificar a prática vigente desenvolvendo atividades que visem à inclusão de
gêneros muitas vezes margilizados por desconhecimento do seu valor literário, o
que permite que o moinho do preconceito continue funcionando conforme o vento de
um discurso segregador.

REFERÊNCIAS

AZEREDO, José Carlos. A quem cabe ensinar a leitura e a escrita? In:


PAULIKONIS, Maria Aparecida Lino; GAVAZZI, Sigrid. (Org.). Da língua ao
discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

BARRETO, Antônio Carlos de Oliveira. O sertão é meu lugar. EGBA: Salvador,


2007.
BOAS, Antônio Silva Vilas. A história de um tabaréu buscando a vida na capital. 2.
ed. Conceição do Coité, BA: Clip: 2005.

FREITAS, Jotacê. Cuíca de Santo amaro, o tal poeta desbocado. Salvador: Tapera:
2007.

______. O homem que engoliu as letras do alfabeto. 2. ed. Salvador: Tapera, 2006.

JOEL, Carlos. Justiça macabra. s.d.

LIMA, João Severiano. O pai que forçou a filha na sexta-feira da paixão. s.d.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e


circulação. In: KARWOSKI, Acir Mário; GAYDECZKA, Beatriz; BRITO, Karim
Siebeneicher. Gêneros textuais: reflexões e ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
2006.

______. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva;


MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora. (Org.). Gêneros textuais e
ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

MEURER, José Luiz. Uma dimensão crítica do estudo de gêneros textuais.


In:______; MOTTA-ROTH, Désirée. (Org.). Gêneros textuais. Bauru, SP: EDUSC,
2002.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução
Enid Abreu Dobranszky. Campinas, SP: Papirus, 1998.

PACHECO, José. Chegada de Lampião no inferno. Mossoró, RN: Queima-bucha,


2005.

SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos.. Memória das vozes: cantoria, romanceiro e
cordel. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Fundação Cultural do Estado da
Bahia, 2006.

VIANA, Antônio Klévisson. Artimanhas de Pedro Malazartes e o urubu adivinhão.


Fortaleza, CE: Tupynanquim, 2002.

VIEIRA, Guaipuan. A chegada de Lampião no céu. FUNCET: Fortaleza, CE: 1997.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.

Você também pode gostar