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O
por Jairo César
Deviam ser 8 horas da manhã. Nesse dia estava de um humor agradável, apesar das muitas
noites mal e não dormidas, por isso não me deixei levar pela ignorância que, não raras vezes,
acomete aos que acolhem o mundo nas costas. Já estava acordado há um bom tempo, portanto
não foi o sono que me causou a estupefação que logo mais me alcançaria.
A voz partia de uma senhora que, mesmo cedo, já se mostrava impaciente e ligeiramente
nervosa. Desconheço se este é seu humor cotidiano, mas me pareceu um tanto perturbada nessa
manhã tão suave. Ela se inclinava e se movia tentando lançar seus olhos a uma movimentação
que, um pouco abaixo, se percebia. Por essa movimentação havia passado há pouco, mas nem a
notara, ou, antes, a enxergara, mas não lhe dera importância, como a muitos e mais relevantes
detalhes. Até que aquela voz me trouxe.
“Não sei...” Tive receio ao responder. O que se confirmou com a resposta da curiosa senhora.
Além de querer saber de tudo o que se passa fora, por que insistir em que o que vemos é aquilo
que, de fato, aconteceu? Não nos basta os nossos monstros, temos também que adotar os dos
outros? Isso é esdrúxulo; isso é caracteristicamente humano.
“Mas você estava lá, ajudando!?”. “Não, não estava...”. “Estava sim!”. “Não...”. Ela,
definitivamente, não gostou da minha resposta.
Fico pensando se poderia haver dado outra resposta à preocupada senhora: “Sim, estava, mas
não conheço aquele pessoal, só quis ser solidário”. Ou, então, “Não, mas, se a senhora quiser,
posso me oferecer para ajudá-los e, assim, posso saber o que estão fazendo.” Não tive tempo
para arquitetar uma resposta consoante ao momento. Meu simples e puro “Não”, achei, devia ser
suficiente. Afinal, nunca imaginaria que seria questionado por alguma ação que não pratiquei.
De fato, a senhora não se deu por satisfeita. Deixei-a em sua contemplação incansável e
insaciável. Mas aquela boca torcida e aquele olhar acusador que a distinta vizinha me lançou foi
um troféu. Continuei minha jornada com um meio sorriso na boca. Não sei se de susto, talvez de
incompreensão, mas sei que havia algo de irônico. Disso, sim, eu me lembro. De imediato julguei
intrometida a atitude da vizinha. Pouco depois, pus-me a pensar: por que tanta curiosidade? Seria
um alívio essa mudança? Talvez uma afronta. Enfim, algo havia que perturbou fortemente aquela
senhora.
Dessas indagações, comecei a especular motivos vários para que o vizinho desconhecido
estivesse de mudança. Quem sabe ele não o estivesse fazendo por algum outro vizinho que já
não suportava? Ou simplesmente mais uma daquelas mudanças necessárias. Mas algo havia ali.
Eu podia sentir. Não era algo comum, nem mesmo corriqueiro.
Com a distância, meu pensamento foi ficando rarefeito. A preocupação alheia foi esvaindo-se das
minhas preocupações. Afinal, por que mesmo me importava a mudança daquele que nem era
meu vizinho? Aliás, ele ao menos estava de mudança? Já nem me lembrava do que havia visto,
ou apenas percebido, naquele breve instante em que passei em frente aquela casa e nem mesmo
notei aquela movimentação toda.
Tudo era um pensamento ofuscado. E aquela senhora, vizinha. Continua lá. Não lá onde deveria,
mas lá, onde o alheio parece tão nosso quanto do outro. Lá, onde nossos olhos veem o que não
se vê. Lá, que é ali, aqui. Aquele outro que, por ser outro, nos incomoda tanto; que, sendo
distante, precisa estar mais perto; que, estando alheio, parecendo tão desamparado, precisamos
aproximá-lo. E é tudo natural.
O vizinho, quem sabe, se mudou, de fato. A vizinha, com seu ar de conhecedora do mundo,
continua lá, conhecendo tudo, o ali, o aqui. E eu sigo meu caminho, alheio a mim mesmo, já que,
assim, ele também será meu.