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15 —COLECÇÃO NACIONAL

LIVRARIA BAR ATEIRA — 34, Rua do Duque. 36 — LISBOA


HISTORIA

358
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Grande Roberto

do Diabo

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LIVRARIA BARATEIRA
34, RUA DO DUQUE, 36
LISBOA
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Historia do Grande Roberto do Diabo

Na província de Normandia havia um duque, nobre, entendido


valoroso e mui amado dos seus vassalos, amigo de Deus e da Justiça,
a quem chamavam Auberto, o qual, resolvendo-se com effeito a fazer
côrtes na cidade de Leão, para certos negocios importantes, mandou
chamar todos os senhores e cavaleiros do seu ducado, os quaes, como
leaes vassalos, vieram e, entrando a votar resolveram por ultima con-
clusão, que convinha muito que o duque seu senhor casasse, tanto
pelo proveito que resultava á sua pessoa, como pela grande utilidade
da republica.
Vendo o duque o bom zelo com que os seus vassalos lhe propuze-
ram o dito casamento e sendo também muito amante e afeiçoado do
seu povo, se resolveu a aceitar a proposição e lhes disse que tomas-
sem por sua conta o casamento e fizessem eleição de pessoa que fosse
conveniente ao reino e á sua honra.
Passados poucos dias, resolveram os vassalos entre si que convi-
nha que seu senhor casassse com uma filha do duque de Borgonha,
que era uma senhora dotada de muita virtude e formosura. Com esta
solução foram ter com o duque seu amo e lhe propuzeram o sobre-
dito casamento, que logo de boa vontade, aceitou.
Feita a aceitação, mandou chamar, para mais se justificar, algu-
mas pessoas das doutas e sabias da sua côrte e lhes propoz o caso; e
todas, depois de considerarem como era devido, lhe disseram que
convinha muito o dito casamento. O que tudo vendo o duque, man-
dou logo embaixadores a pedir a dita senhora.
Chegando os embaixadores á côrte de Borgonha, foram recebidos
com aquelas honras que lhes eram devidas. Dando a sua embaixada,
disseram que o Duque Auberto, seu amo, mandava p"edir a sua alteza
se dignasse conceder-lhe sua filha para esposa.
Ouvindo o duque de Borgonha a embaixada, lhe respondeu, com
nm rosto entre magestoso e alegre, que lh'a concedia com muito
grande e boa vontade. Por esse motivo, mandou fazer aos embaixa-
dores as maiores honras.
4 Historia do Grande Roberto do Diabo

Partidos os embaixadores com tão alegre noticia da corte de Bor-


gonha e chegados á corte de Normandia, foram logo dar a resposta
ao soberano, o qual os recebeu com muito contentamento e os hon-
rou e brindou com grandes prémios.
Efectuado o casamento, mandou logo o duque Auberto, embaixa-
dores, acompanhados de muitos cavaleiros, buscar sua esposa, que
foi conduzida á côrte de Normandia, com grande fausto, como era de-
vido a tal ocasião, e, chegados com a duqueza á cidade de Ruão,
côrte de Normandia, foram as festas tão solemnes e alegrias tão gran-
des, que para dizel-as seriam necessários muitos volumes; porém, só
contaremos o que é necessário á nossa historia.
Como o duque Auberto e sua esposa
estiveram desesete anos sem sucessão e da tristeza
que por esta causa tinham
Estando o duque em companhia de sua esposa, vivendo catholica
e christãmente, não foi Deus servido dar-lhes sucessão no decurso de
deze^-ete anos, o que os trazia sempre em continua tristeza, não dei-
xando de fazer incessantemente deprecações a Deus e esmolas aos po-
bres e outras obras pias e devotas orações, mandando fazer muitas
procissões e preces e dizer muitas missas em todo o seu ducado.
Estando um dia o duque e a duqueza no seu jardim, disse o du-
queSenhora, grande pecado fez aquele que nos ajuntou, porque
tenho por certo que, se casasse com outra mulher, havia de ter filhos
e os mesmos teríeis vós, se fosseis casada com outro homem; mas nem
por isso jámais me ajuntarei com outra mulher, ainda que o meu du-
cado haja de ser senhoreado de senhor extranho e os meus vassalos
por essa causa maltratados, de que não tenho grande sentimento.
Foram estas palavras de tanta consequência para a duqueza que
cuidou perder o juizo; desfeita em correntes e rios de lagrimas, lhe
respondeu: — Senhor, bem sabeis que em nada d'isto sou culpada,
pois não fui eu que causei este casamento, nem tão pouco está na mi-
nha mão o conceber, senão na vontade divina e, se Deus não é ser-
vido de nos dar herdeiros não me parece justo que estejamos tristes,
senão dar-lhe infinitas graças e contentar-nos com tudo que Ele fôr
servido mandar.
Vendo o duque a grande ancia e sentimento de sua esposa, não
quiz falar mais no tal caso e tratou de a divertir com caricias e pa-
lavras de contentamento e alegria, consolando-a quanto podia; po-
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rêm, no seu coração ficou sempre permanente a tristeza, porque


amava muito os seus vassalos e sentia deixá-los captivos em poder de
senhor estrangeiro que por sua morte era preciso suceder no seu ducado.
Como Roberto foi concebido e na concepção
o ofereceu sua mãe ao Diabo
Como o duque estava sempre em continua tristeza por não ter su-
cessão, o estavam também os seus vassalos e cavaleiros, osquaessem-
pre cuidaram de o alegrar e livral-o de pensamento tão melancólico.
E assim se resolveram a pedir-lhe com instancia que quizesse ir com
eles um dia á caça; e como o duque não era lerdo, mas até dotado de
grande entendimento, lhes disse que iria com eles de boa vontade.
Escolhido o dia em que haviam de ir caçar, foi o duque com eles
e, entrando no monte com grande multidão de cães, acharam um for-
moso veado. E como este sentiu os caçadores, tomou o caminho das
serras, para se esconder nas grandes matas e d'esta sorte escapar aos
cães e aos caçadores; porem, nada lhe valeu para que uns e outros
deixassem de o seguir.
Indo os caçadores no seguimento do veado, ficou o duque só, sem
se lhe importar d'ele, porque tinha o coração aflicto; e só em imagi-
nar que por falta de herdeiro proprio havia de ficar o ducado em her-
deiro estranho e o seu povo maltratado, era todo o seu maior cuidado
e desígnio.
Estando assim todo contemplativo, começou a queixar-se amarga-
mente a Deus, da sua desgraça e pouca ventura, e assim esteve até
que os caçadores chegaram com o veado morto, sem que isso lhe cau-
sasse algum contentamento; montou logo a cavalo e foram todos para
a cidade, perseverando sempre na sua profunda melancolia, sem que
os caçadores o pudessem alegrar de fórma alguma.
E como o Diabo, inimigo intrínseco do bem e amigo acérrimo do
mal, nunca se descuida de tentar as creaturas humanas, não só tentou
o duque com aquela melancolia profunda, senão também foi tentar a
duqueza com a mesma causa e a poz tão melancólica e a tentou com
grau de tristeza, que não sabia se era louca ou entendida, se es-
ava viva ou morta; e, emfim, estava fora de si e com esta grande
ur açao de sentidos se deitou na cama, sem atenção ao dizerem-lhe
as criadas que vinha o duque seu esposo, que trazia um veado morto,
pois de nada fazia caso.
Chegando o duque ao seu palacio e não vendo a duqueza sua es-
6 Historia do Grande Roberto do Diabo

posa, perguntou por ela; e, dizendo-lhe as criadas que estava deitada


com uma profunda melancolia, se foi logo o duque á sua camara e
tratou de a divertir (ainda que ele estava também do mesmo achaque
enfermo), dizendo-lhe que não estivesse triste por causa de não ter
concebido, que oferecesse a Deus aquele caso, que ele faria o que
fosse servido; que desterrasse de si toda aquela tristeza, pois não
agradava a Deus por ser operação diabólica e que ele queria juntar-
-se com ela. E assim se deitaram juntos e, estando em acto matrimo-
njal, disse o duque: —Se Deus fosse servido que agora gerássemos
um filho para socego do nosso reino e povo ? A estas palavras respon-
deu a duqueza como desesperadaConcebesse eu mais que fosse o
Diabo e ao Diabo ofereço o que agora conceber.
Caso estupendo! Desesperação fatal! Tristeza terrível! Deshumana
oferta! Mas que não fará o Diabo quando acha sujeita a maioria ?
Mas como o Omnipotente Deus acode aos seus filhos nos maiores
apertos, sem reparar nos seus grandes pecados, por esperar o arrepen-
dimento do pecador, pois não deseja a sua morte, senão que viva, foi
servido que a duqueza concebesse um filho, o qual foi em todas as suas
acções maligno e perverso; porém, ao depois teve grande contricçâo
dos seus pecados e fez tão exacta penitencia, que foi segundo Paulo, e
tão querido e amado de Deus, como ao depois diremos.
Trouxe a duqueza nas suas entranhas nove mezes o dito filho e
esteve de parto um mez e com tão grande perigo de vida, que se jul-
gou não escaparia; porém, Deus a favoreceu tanto, que chegou a pa-
rir felizmente e livrou-se do perigo. Todos julgaram ser este parto
maravilhoso e que incluia em si algum grande mysterio, como na ver-
dade assim aconteceu.
Como Roberto foi baptisado e dos signaes
que no seu nascimento apareceram
Na hora em que nasceu este menino, veio de repente uma névoa
tão escura, que cobriu toda a cidade e o céu se cobriu de densas e
negras nuvens, de tal sorte que parecia que era noite (nascendo ele de
dia); e de repente começaram a soar tantos e tão horrendos trovões e
a cair uma multidão de raios, coriscos e scentelhas, de tal sorte que
toda a gente ficou atemorizada e, prostrados por terra, pediam a Deus
misericórdia, pois entendiam que então era o fim de sua vida, imagi-
nando que a cidade s* afundia, a qual tempestade durou por espaço
de quatro horas.
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Depois que começou a socegar esta tenebrosidade, ficou o céu tão


incendido, em chamas tão vivas, que parecia o proprio fogo. Os ventos
eram tão fortíssimos, que tremiam todos os edifícios e foi o palacio
onde pariu a Duqueza tão combatido d'eles, que caiu grande parte
no chão.
Cessou a tempestade pela graça do Omnipotente Deus e intercessão
da Virgem Maria, Senhora nossa, e passados alguns dias, foi o menino
a baptisar. Ficaram todos admirados de ver o menino de tão poucos
dias, que parecia que era de anos, por cuja causa de admiração con-
correu gente para o ver.
Tanto que nasceu foi entregue a suas amas para o criarem; porém,
passados tres dias, foi logo necessário dar-lhe de comer, porque o
leite das amas, ainda que era muito, não bastava para o sustentar.
Quando chegou a um ano, andava e falava tão bem, como se fosse
de seis ou sete e era tão perverso e malicioso que, quanto mais crescia
mais se regalava de fazer mal e sem embargo de ser quem era, nunca
foi possível sujeital-o para que não saísse do palacio e quantos rapa-
zes encontrava, ou matava ou quebrava os braços e pernas, ou feria
o que fazia com pedras ou com paus; finalmente, era tão cruel, que
jámais se fartava de fazer mal.
Como os rapazes lhe puzeram o nome
Roberto do Diabo
Cresceu grandemente este menino em mui pouco tempo e, assim
como crescia no corpo, crescia também nas maldades; e tanto a$sim,
que os homens que tinham filhos, os repreendiam gravemente, pois
não queriam que saissem de casa quando Roberto andasse pela rua,
por temerem que os matasse, aleijasse ou ferisse, porque como era
quem era, não podia tomar d'ele vingança. Porém sem embargo do
cuidado e repreensão dos paes, se ajuntavam muitas vezes os rapazes
em grande numero para pelejarem com Roberto, mas ele era tão ma-
ligno, valoroso e destemido (tendo tão pouca idade), que com todos ou
fossem grandes ou pequenos, muitos ou poucos, pelejava tão calorosa-
mente, que depois de matar, aleijar e ferir muitos, os mais todos fu-
giam, de sorte que sempre ficava só no campo, sem moléstias nem
ofensa alguma. E foi tão grande o medo que os rapazes lhe tomaram,
que não foi mais necessário que seus pais os repreendessem para que
d'ele fugissem, nem lhe aparecessem diante e se acaso algum o via,
botava a fugir, dizendo aos outros: fujamos, fujamos, que lá vem Ro-
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bcrto do Diabo! E desta sorte lhe íicou o tal apelido, pelo qual já era
entre todos e em todo o mundo conhecido.
Como Roberto do Diabo matou o mestre
que o ensinava e o tinha a seu cargo
Tendo já Roberto seis anos e tendo o duque seu pai pezar da sua
má inclinação e perversa vida, intentou com a doutrina emendar a
perversidado da natureza e o mandou vir perante si e lhe disse: Fi-
lho, já é tempo para que aprendas a boa educação e as sciencias, pois
que Deus te dá habilidade para isso e para que te avantages aos teus
vassalos. A isto nada respondeu Roberto; antes baixando a cabeça e
olhando com muita raiva para os lados e para a duqueza sua mãe e
para o duque seu pae, bem parecia Roberto do Diabo.
Mandou logo, o duque seu pae, chamar um mestre de boa vida e
costumes, cortezão, sábio e homem honrado e lhe disse que d ali em
diante tomasse por conta aquele menino e o doutrinasse na politica,
sciencias e bons costumes. E levando o mestre a Roberto comsigo,
tratou de o ir ensinando como era devido a pessoa de tanto procedi-
mento : porém, nem a doutrina, nem o conselho, nem o castigo pode-
ram fazer jámais em Roberto operação alguma boa, mas antes au-
gmentou a malícia e tyrania com que a todos tratava.
Havendo Roberto um dia morto, aleijado e ferido muitos rapa-
zes, foram os paes d'estes queixar-se ao mestre, o qual, querendo-o
castigar, puxou Roberto por um punhal e com ele matou logo o
mestre.
Notavelmente sentiu o duque a morte do mestre e reprehendeu a
Roberto. Este fez muito pouco caso da repreensão: e assim continuou
sempre com as suas diabólicas travessuras com tal soltura, que todos
o temiam de tal sorte que não ousavam repreendel-o e se escondiam
para que ele os não visse. Nunca ia á egreja, senão fazer grandes
arruidos, zombando dos frades e clérigos e de todos que n ela esta-
vam encomendando-se a Deus Nosso Senhor. E assim ficou sem mes-
tre porque não houve outro que o quizesse ensinar. Vendo o duque a
preversidade de seu filho, tendo este já dezesete anos, intentou
armal-o cavaleiro, para ver se d'esta sorte mitigariam o seu preverso
animo.
Historia do Grande Roberto do Diabo 9

Como Roberto do Diabo foi armado cavaleiro


Mandou o duque vir á sua côrte todos os príncipes, senhores do
seu ducado, para armar cavaleiro o seu filho Roberto, em dia de
Paschoa do Espirito Santo ; e, estando todos juntos na praça, onde
era costume fazer-se esta solemnidade, disse o duque a Roberto: —
Meu filho, por conselho de nossos vassalos tenho ordenado armar-
vos cavaleiro, para que aprendais a Ordem da Cavalaria, que é ser
cortez, politico e benigno e para que assim mudeis as vossas prever-
sas ações e maligna condição, tão aborreciveis a todos, assim vos
mando e peço o façais.
Respondeu Roberto e disse: - Não tenho duvida em me armar
cavaleiro; porém, emquanto a mudar de condição, isso nunca eu
tarei, porque tenho feito proposito de seguir em tudo a minha von-
tade e apetite emquanto viver. E d'esta sorte me armae cavaleiro
pois tanto me dá de o ser como não.
Porém, o duque, sem embargo da sua resposta, mandou que se ar-
masse, pois lhe pareceu que sucederia o contrario do que Roberto lhe
tinha dito, porque tudo atribuiu á leviandade de meninice; porém
sucedeu o contrário, como adiante diremos.
Como era costume que os que se haviam de armar cavaleiros esti-
vessem a noite antecedente ao dia da função na igreja e nela fizessem
oraçao a Deus, pedindo-lhe graça para aquele acto, também Roberto
01 á igreja; porém em logar de fazer oração e encomendar-se a Deus
tazia tais travessuras e zombava de todos os que o acompanhavam'
que foi uma pura desinquietaçâo na igreja; e logo no seguinte dia foi
armado cavaleiro com aquela honra e solenidade de tal acto e a tal
pessoa se devia. Passados poucos dias, mandou o duque apregoar jus-
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qiwntos estavam m°S 6 T" 3 Uma parte e a ont»' todos
O povo contra ele ^r3Ç3
el e ele C DeleS taeS
destroços,
contra o povo, matando, quee se
ferindo levantou
atropelando
10 Historia do Grande Roberto do Diabo

a todos dc tal maneira, que foi necessário que o duque saísse a soce-
gal-o; porém, Roberto do Diabo, sem atender nem ter respeito algum
a seu pae, foi continuando na sua diabrura, até que todos fugiram e
ficou ele só Da praça.

Como Roberto do Diabo partiu da cidade de Roma


e foi por todo o ducado de Normandia
matando e desbaratando

Vendo Roberto que todos fugiam e não achando com quem pelejar,
saiu da praça e não tratou de ir para o palacio, pelo pouco respeito
que teve a seu pae e logo buscou alguns homens (que não foram pou-
cos) da sua condição e saiu com eles por todo o ducado de Normandia,
roubando a quantos encontrava, matando e ferindo e o mesmo fazia
nas aldeias e lugares, desonrando donzelas, forçando casadas e viu-
vas, sem atender mais que ao seu depravado gosto, de cuja insolên-
cia concorriam continuadamente muitas pessoas a queixar se a seu
pae; como também do aborrecimento que tinha aos sacerdotes e cou-
sas divinas; e com tão pouco respeito aos lugares sagrados, que (qual
outro Saul) era deles perseguidor temerário.
Quando o duque e a duqueza ouvia taes queixas, os comovia de
tal modo a compaixão do seu povo, que com dadivas procuravam con-
solal-o e pediam continuadamente a Deus quizesse trazer seu filho ao
verdadeiro conhecimento da sua salvação; e para esse efeito faziam
muitas esmolas e outras obras pias, vivendo com desconsolação de ter
um filho não esperado, quasi havido por milagre e ser tão maligno e
preverso.

Como o duque mandou muita gente chamar a seu filho


Roberto do Diabo e ele tirou os olhos a todos

Um cavaleiro tinha grande pena e tristeza dos desgostos do duque,


seu senhor, e cuidando em remediar, foi ao palacio e lhe disse: —
Senhor, parece-me que seria conveniente que v. alteza mandasse cha-
mar Roberto á sua côrte, que diante dos cavaleiros o repreendesse do
seu mau caminho e que o ameaçasse com castigo, que talvez com o
medo dele se emendasse.
Agradou muito ao duque o parecer do cavaleiro e logo ao outro
dia mandou sessenta homens a cavalo com um cavaleiro por cabo ç
Historia do Grande Roberto do Diabo 11

que dissesse a Roberto da sua parte que viesse á côrte; e, quando


não quizesse vir, que lhe jurava pela Ordem da cavalaria de o mandar
prender e castigar cruelmente e aos seus sequazes.
Partiram logo para a diligencia e, passados poucos dias, souberam
que Roberto estava recolhido a um monte com grande quantidade de
ladrões. Foram os cavaleiros ao monte e, antes que achassem Roberto,
foram cercados de trinta homens de pé, muito bem armados, que logo
começaram a combatel-os. Vendo-se os cavaleiros combatidos, sem se
defenderem, disseram que eram mensageiros do duque e que vinham
falar a Roberto. Cessaram logo os do combate e os levaram á presença
de Roberto e lhe disseram o que o duque lhe mandava dizer.
Tanto que Roberto ouviu dizer que o havia de mandar prender,
foi tanta a raiva que tomou, que logo mandou atar, pelos ladrões que
comsigo tinha, a todos os mensageiros e com as suas próprias mãos
lhes tirou cruelmenté os olhos a todos; assim os mandou ir e que dis-
sessem a seu pae que aquela era a paga da embaixada. E começou a
amaldiçoar o pae que o gerara e a mãe que o pariu, dando a todos e
a si mesmo ao Diabo.
Chegados os mensageiros á presença do duque, foi tanto o senti-
mento que teve e juntamente a duqueza, que cuidaram perder o
entendimento; e assim, antepondo a justiça ao amor paternal, mandou
o duque publicar pelo seu ducado que todo que fosse capaz de pele- ,
jar fosse alistado para se preparar um exercito e sair a campo a com-
bater Roberto, para tomar vingança do que fizera aos mensageiros e
dar-lhe castigo a seus companheiros.

Como Roberto do Diabo, sabendo o pregão,


mandou fazer um forte em um monte, para se defender

Quando Roberto soube do pregão que seu pae tinha mandado pu-
blicar, teve tão grande temor de ser preso e assim também seus com-
panheiros, que logo mandou fazer um forte para se defender e dali
saia aos caminhos a quantos encontrava, roubava e fazia em pedaços
e a outros lhes tirava o coração vivo; andava tão perdido, que conti-
nuamente se entregava ao Diabo e o chamava para lhe pedir a sua
ajuda e conselhos. E assim vivia tão absoluto, sem temor do Altíssimo,
que saia com o seu rancho de ladrões por todas as terras e lugares
circumvizinhos, a desonrar donzelas, casadas, viuvas e matar, ferir,
espedaçar e roubar; de sorte que todos desamparavam as suas terras,
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casas c fazendas, indo pelo mundo só afim de conservar a vida e a


honra. E foram taes as noticias que correram pelo mundo, da sua
crueldade que ninguém se atrevia a fazer jornada pela parte onde
esse tirano habitava.
Como Roberto do Diabo matou sete ermitães
que achou em um deserto e daf foi para o castelo Darque,
onde estava sua mãe e das razões que com ela teve
Sem temor de Deus estava Roberto no monte, seguindo todos os
seus desordenados apetites; e, como os seus desejos fossem sempre
inclinados a todo o mal, apartou-se um dia de seus companheiros la-
drões e, andando por aquelas montanhas buscando a quem fazer
mal, encontrou sete ermitães e logo com a espada na mão se foi a
eles com tanta fúria como o cão para o veado e o lobo para a ovelha
e tiranamente lhes cortou a todos a cabeça, sem se compadecer das
suas palavras e misérias.
Voltando para a outra parte, encontrou um pastor, o qual, temen-
do a morte, se prostou a seus pés, pedindo-lhe pelo amor de Deus que
o não matasse (aqui começou Roberto a ser tocado do Divino Espirito
como outro Saul). Roberto lhe não fez mal algum, antes lhe pergun-
tou pelo duque seu pae e pela duqueza sua mãe. 0 pastor lhe respon-
deu que seu pae estava na corte de França e sua mãe estava no cas-
telo de Darque, d'ali distante uma légua.
Deixou Roberto o pastor e se foi logo ao castelo. Logo que a gente
o viu com a espada na mão e toda ensanguentada, conhecendo que
era Roberto, tratou de fugir e uns subiam aos telhados, outros se fe-
chavam e em breve tempo ninguém apareceu; e também sua mãe, a
duqueza, mandou fechar as portas com medo e todos gritavam em altas
vozes, dizendo: — Guardai-vos, guardai-vos, que vem Roberto, — para
que assim todos tivessem tempo de se pôr em seguro.
Chegou Roberto á porta do palacio e, como a achou fechada, come-
çou a bater, prometendo não fazer mal. Debaixo d'esta promessa, veiu
a mesma sua mãe abrir-lhe a porta, a qual, derramando muitas lagri-
mas, se lançou de joelhos aos pés do filho, que comovido de compaixão,
de ver chorar sua mãe, começou a suspirar e com os olhos cheios de
lagrimas a levantou nos braços e prostrado de joelhos lhe beijou a
mão, pedindo-lhe a sua benção. Vendo a duqueza a obediência do filho,
se lhe encheu a alma de alegria e o começou a repreender das suas
insolências.
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Roberto lhe disse: — Senhora, o conhecer a minha malicia foi a


principal causa da minha vinda a buscar a v. alteza, para saber se o
duque meu pae ou v. alteza cooperaram com alguma maldade para eu
ser insolente ,* porque muitas vezes são os paes e as mães causa da
malicia de seus filhos; tenho tanta, que jámais me vein, desde que me
entendo, um só pensamento de fazer bem ; antes sempre estou com o
desejo de fazer mal. E assim tomára saber a causa d'isto, para que a
podesse emendar.
Quando a mãe tal ouviu, começou a dar graças a Deus e a pedir
perdão ao filho de o ter na sua concepção oferecido ao Diabo e lhe
contou o que se tinha sobre isto passado, como acima dissemos.
Ouvindo Roberto tais razões, foi tanto o pezar e dôr de seu coração,
que caiu desfallecido em terra e ficou por um grande espaço de tem-
po sem sentidos. Depois que entrou em si, começou com muitas lagri-
mas a dizer d'esta maneira:
— Oh! Misericordioso e Eterno Deus; como permites que pague a
inocência do filho a malicia da mãe ? Oh! pecador de mim, quanto
tempo tenho servido ao Diabo sem ter conhecimento da minha perdi-
ção ! Oh! maldito Diabo, que com estas cautelas e modos buscas para
me privar da gloria e captivar-me com as tuas sophisticas cautelas; e
sempre me tens guiado pelos caminhos dos teus enganos, desde meni-
no até ao dia de hoje cegando-me os olhos da razão pelo poder que
minha mãe te deu de mim! Oh! astuto enganador, como conheceste a
fragilidade do feminino genero, obraste com ele o que com nenhum
varão podias acabar! Pois, muito piedoso e Soberano Senhor, assim
como perdoaste aos que te sacrificaram, perdoae também á triste da
minha mãe o grande erro e pecado, e a mim, o maior pecador do mun-
do, perdoai também: ponde no meu coração uma inteira confissão das
minhas culpas.
Posto Roberto de joelhos diante a duqueza sua mãe, lhe beijou a
mão e lhe pediu perdão e que dissesse ao duque, seu pae, que lhe per-
doasse a desobediência que teve e lhe lançasse a benção, que ele par-
tia logo para Roma a pedir absolvição dos seus grandes pecados ao
sumo pontífice e a fazer penitencia d'eles. E assim se despediu com
muitas lagrimas.
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Como Roberto de Deus


chegou ao forte, onde estavam os seus companheiros
e os matou a todos

Depois que Roberto saiu do castelo do duque, se foi com grande


pressa para o monte, onde tinha um forte, com grande temor de ser
achado pela gente do exercito de seu pae. Chegou ao forte, achou os
seus companheiros comendo, e, levantando-se todos para o receber com
grande alegria, respeito e veneração. Sentado Roberto á mesa, mandou a
todos que se sentassem e, depois de terem comido, lhes disse Roberto
que estivessem atentos e ouvissem o que lhes queria dizer. 0 que to-
dos fizeiam e estiveram ouvindo com muita atenção
Falou Roberto e lhes disse: —Amigos, bem sabeis os grandes
pecados que contra Deus temos cometido. Peço-vos de todo o meu
coração que vos arrependaes, fazendo uma inteira confissão e, contric-
tos de coração, façaes pepitencia para que Deus vos perdoe e vades
lograr a bemaventurança j e adverti que sois christãos remidos com o
sangue de Jesus Christo, que só ele sabe dar, a quem do coração o
serve, o verdadeiro premio. Deixae o Diabo, que vos traz enganados
com as suas diabólicas astúcias, de que não haveis de colher outros
fructos senão eternas penas.
Estas e outras cousas santas e virtuosas lhes disse Roberto, quando
de entre eles se levantou um e disse com grande ira: — No que dizes,
senhor Roberto, parece que zombas de nós todos. E acrescentou:
Não foste tu o mestre, o que nos trouxeste comtigo para esta montanha ?
Não foste tu o mestre que nos ensinou esta má doutrina? Não foste tu
que nos guiaste, como temerário capitão, n'estas maliciosas emprezas ?
Pois como nos vens agora ensinar diferente doutrina e dizer que nos
apartemos d'ela, isso depois de termos por amor de ti adquirido no
no mundo tão terrível fama que, se nos colherem, nos castigarão como
merece a nossa ruim vida? Agora te digo que trabalhas debalde no
que nos ensinas; porque eu jámais me quero apartar da vida que
tenho n'ela protesto morrer; e que faças o que quizeres. Os outros
companheiros a uma voz responderam o mesmo.
Respondeu Roberto: —Amigo, bem sei que eu fui a causa de todos
os males que tendes feito, porém agora quero ser a causa do vosso
arrependimento; e, assim como me seguiste no mal, vos peço, agora
pelas sacrosantas Chagas de Jesus Christo, nosso Redemptor, qae me
Historia do Grande Roberto do Diabo 15

hajaes de seguir no bem que agora vos aconselho.— Responderam


todos que não queriam senão seguir a vida em que estavam.
Vendo Roberto a contumácia dos companheiros, e que nada apro-
veitavam os seus documentos e considerando os malefícios que podiam
fazer; segundo o mau proposito que tinham e por evitar as ruinas
futuras, pesando-lhe muito do seu coração d'ele ter sido o principio
e origem de tantos males, determinou de os matar a todos; e assim,
dissimulando quanto pôde por algum espaço de tempo, estando eles
descuidados, fechou Roberto a porta da casa onde todos estavam,
meteu a chave na algibeira, tomou uma acha de lenha e começou a
dar-lhes com ela tanta pancada, que brevemente os matou a todos.
E, determinando lançar fogo á casa para os queimar, fez escrúpulo de
queimar tanta fazenda do que haviam furtado, que n'ela estava e o
não fez; porém, fechou a porta e, levando comsigo a chave, montou a
cavalo e se foi.

Como Roberto de Deus se foi d'aquele monte para


uma abadia e d'ali mandou a chave da casa a seu pae

Caminhando Roberto para Roma, chegou ao outro dia a uma abadia,


cujo abade era seu parente: e, como tinha na abadia feito grandes
malefícios, tanto o abade como os monges começaram a ter grande
medo de Roberto. Caminhou Roberto para a egreja e fez oração a Deus,
Nosso Senhor, com muita devoção e começou a chamar os sacerdotes
que iam fugindo, afirmando que não lhes queria fazer mal algum;
porém como sabiam que Roberto era tyrano, não se confiavam muito
na sua promessa e assim não ousaram voltar; mas Roberto instando
fortemente em os chamar, lhes pediu pelo amor de Deus quizessem
chegar a ele e não fugissem.
Comovidos os monges pelas exclamações e promessas de Roberto,
se chegaram a ele e lhe perguntaram o que queria. Respondeu Roberto
pelo amor de Deus lhe chamassem o abade, o qual chegando, lhe
disse Roberto, posto já de joelhos, que lhe perdoasse quantos malefí-
cios lhe tinha feito por sua causa na sua abadia; e assim também
pedia perdão a todos os escandalisados, por amor de Deus, para que
Deus também lhe perdoasse a ele. Entregando ao abade as chaves da
casa onde ficavam os companheiros mortos e muita fazenda que tinham
roubado, e lhe pediu que as entregasse ao duque seu pae, para que
restituísse aquela fazenda a seus donos, e lhe pedisse da sua parte
16 Historia do Grande Roberto do Diabo

que lhe pesdoasse, e alcançasse a sua benção, porque ele caminhava


para Roma a pedir absolvição ao sumo pontífice e fazer penitencia
dos seus pecados.
Quando o abade tal ouviu, começou com lagrimas de alegria e
dar graças a Deus pela conversão de Roberto ao seu santo conheci-
mento e lhe prometeu fazer tudo o que pedia e que ficasse ahi aquela
noite, que ao outro dia faria jornada para Roma, o que Roberto acei-
tou ; e os monges ficaram muito contentes de vêr tal resignação e
assim não cessavam de louvar o Altíssimo.

Como Roberto de Deus partiu da abadia


e chegou a Roma
Ao outro dia, muito de manhã, largou Roberto o cavalo e armas e
se vestiu ordinariamente e partiu a pé, pedindo esmola pelo caminho
para se sustentar. Chegou a Roma em quinta-feira santa, estando o
santo padre na egreja de S. Pedro ao oficio divino. Chegou Roberto
á porta e esteve em breve espaço sem poder entrar livremente, por
ser a gente muita.
Porém, como o seu ardente desejo o não deixava esperar, meteu-
-se por entre a gente pouco a pouco, ainda que com muito trabalho,
porque uns empurravam e outros o apertavam e o peior foi que os
guardas do pontífice lhe davam uns com as armas pela cabeça e ou-
tros pelo corpo; e ele, com muita paciência, feito já manso cordeiro,
o que era leão bravo, chegou aos pés do pontífice e, chorando amar-
gamente, lhe disse:
— Santíssimo padre, pelo amor de Deus te rogo que me ouças de
confissão e me dês a penitencia dos meus grandes pecados. Pregun-
tou-lhe o papa quem era; respondeu que era o maior pecador do
mundo, que tinha cometido os mais enormes e torpes pecados que
havia e assim o ia procurar para lhe dar uma saudavel peuitencia.
Disse então o pontífice: — Por ventura tu és Roberto do Diabo, de
quem tantos males se dizem ? Roberto deu um suspiro, que parecia
que lhe arrancava as entranhas e disse que sim. Mandou o padre
que se calasse e deixasse acabar o oficio divino, que então lhe fala-
ria. Calou-se Roberto e esteve de joelhos com muita devoção, ouvindo
o oficio.
Acabado o oficio divino chamou o papa a Roberto e este, posto
de joelhos, com muita contrição, confessou todos os seus pecados e
lhe disse que a sua mãe, quando o concebeu o entregára ao Diabo.
Historia do Grande Roberto do Diabo 17

Ouvida a confissão, mandou-lhe o papa que fosse a certo monte, cujo


nome lhe disse e lá acharia um ermitão, que era seu confessor e lhe
dissesse que ele o mandava lá para que o confessasse e o absolvesse-

Como Roberto de Deus partiu para o monte


para onde o mandou o pontífice

Desejoso Roberto da sua salvação, partiu ao outro dia, ao ama-


nhacer, para o monte, para onde o mandou o pontífice, que ficava
distante de Roma três léguas e chegando a ele, começou a correr por
uma e outra parte, buscando o ermitão, até que o foi achar dentro de
uma cova; e tanto que o viu se poz de joelhos diante d'ele e lhe disse
que o papa o mandava lá para que o confessasse e lhe desse a peni-
tencia.
Saiu o ermitão da cova e o tomou pela mão. Levantou-se, folgando
muito de ver tão contricto, e chorar de coração os seus pecados; de-
pois de falar com ele um pouco, o levou a uma capela, muito devoto,
onde com muitas lagrimas confessou os seus pecados e disse como
sua mãe, no tempo que o concebera, o tinha recomendado ao Diabo.
Ouvindo tal confissão, mandou o ermitão a Rolerto que se levan-
tasse e que ao outro dia o absolveria. Chegada a noite, Roberto ficou
na ermida e o ermitão se foi para a sua cova e esteve toda a noite em
oração, rogando a Deus por ele e que lhe revelasse a penitencia que
lhe havia de dar por tão grandes pecados.

Como um anjo apareceu em sonho


ao ermitão e lhe disse a penitencia que havia de dar
a Roberto

Vencido o ermitão do somno e do trabalho, saindo pela madru-


gada, tomou uma pedra e a poz por cabeceira como costumava e sobre
ela poz a cabeça para se deitar. Estando dormindo, ouviu em sonhos
um anjo do céu que lhe disse:
— Homem de Deus escuta o que Deus me manda que te diga:
Manda a Roberto que em penitencia dos seus pecados vá para Roma
e se faça louco e mudo e não coma outra cousa senão aquilo que ele
puder apanhar aos cães e o faça até que Deus lhe mande outra cousa
e assim alcançará a remissão de todos os seus pecados.
Çom esta revelação, despertou o ermitão muito alegre e contente
18

e, entrando na capela, mandon a Roberto que se pozesse de joelhos


para lhe dar a penitencia, o que ele fez com muita obediência e con-
trição. Posto de joelhos, disse o ermitão a Roberto: — Deus me reve-
lou esta noite a penitencia que has-de fazer pelos teus pecados e é
que vás para Roma, não faças mal a cousa alguma e tenhas paciência
com o que te fizerem, e te faças louco e mudo, não comas senão o que
apanhares aos cães e isto farás até que por Deus te seja mandada
outra cousa. E, se prometes fazer, eu te absolvo dos teus pecados, em
nome do Padre, Filho, Espirito Santo e vae em paz.
Quando Roberto ouviu a penitencia e recebeu a absolvição/das
suas culpas, todo banhado em lagrimas, nascidas do intimo do seu
coração, começou a dar graças a Deus por tão grande mercê e bene-
ficio que lhe fazia por tão pequena penitencia, livral-o da pena eterna;
e assim, com muito contentamento da sua alma, se despediu logo do
ermitão e partiu para Roma.

Como Roberto de Deus partiu do monte e em Roma


começou a fazer penitencia

Entrou Roberto em Roma, fazendo varias visagens de olhos e tor-


cimentos da boca, bailando e saltando pelas ruas e andando n'elas
de uma para outra parte, como um louco, sem sentido; e em pouco
espaço de tempo se juntou em redor d'ele tanta multidão de rapazes
que não tinha numero e começaram a dar-lhe pancadas como costu-
mam, atirando-lhe uns com lodo, outros com pedras, outros lhe puxa-
vam pelos vestidos e outros o empurravam ; finalmente, faziam dele
o que queriam sem que Roberto respondesse a cousa alguma nem
fizesse a minima acção para se defender; antes estava tão resignado,
com tanta paciência, que parece que Job lhe ficaria a perder de vista.
Estando Roberto um dia junto ao palacio do imperador e estando
com fome, por não achar cães de que se socorresse, entrou, para den-
tro fazendo seus esgares e foi ter á sala onde o imperador estava jan-
tando. E assim que entrou, fez uma reverencia e logo começou a fazer
cousas de louco, de sorte que o imperador gostou muito de o ver.
Tinha o imperador um cão junto a si, o qual era tão feroz que nunca
consentiu que pessoa alguma lhe puzesse a mão, senão o imperador ;
. deitando-lhe um osso, se lançou Roberto ao cão e lh'o tirou da boca ;
começou a comer n'ele e, como o cão se não enfureceu, ficaram o im-
derador e todos os mais que assistiam admirados. Entendendo o
Historia do Grande Roberto do Diabo 19

imperador que Roberto tinha fome, mandou que junto a ele se pozesse
uma mesa, para a qual vieram varias iguarias : porém Roberto, por
mais que o obrigassem a comer, não quiz aceitar, antes estava olhando
para o cão, vendo se lhe deitavam alguma cousa ; vendo o imperador
isso, deitou um pão inteiro ao cão e logo Roberto se lançou ao cão e
lh'o tirou da boca, partiu-o pelo meio, deu-lhe metade e comeu ele a
outra metade ; e o imperador cada vez estava mais admirado da man-
sidão do cão, sem que nunca tivesse visto Roberto.
Depois de Roberto comer a metade do pão, começou a saltar pela
casa e fazer varias invenções. Vendo uma porta aberta que ia para o
jardim, onde foi correndo e saltando como um louco e chegou á fonte
onde bebeu.
Chegada a noite, começou Roberto a buscar sitio para se deitar;
e, achando atraz de uma escada um cão deitado sobre um pouco de
palha, deitou-se juntamente com ele. Indo um creado dizer isto ao
imperador, este mandou que lhe fizessem uma cama; porém não foi
possível querer deitar-se n'ela e assim ficou com o cão, que sempre
d'ahi em diante foi seu companheiro, tanto de cama como de mesa.

Como um almirante, vassalo do imperador


lhe fez guerra, porque lhe
não quiz dar sua filha para esposa

Tinha o imperador por vassalo um almirante pagão e infiel, que


era grande senhor, muito poderoso, o qual mandou pedir ao impera-
dor uma única filha que tinha (ainda era muda) para sua mulher.
Não querendo o imperador dar-lh'a, veio o almirante com um
grande exercito contra o imperador e, entrando-lhe pelas suas terras
fez-lhe grandes destruições, foi preciso ao imperador sair-lhe ao encon-
tro com toda a gente que pôde ajuntar, que era menos do que a que
o almirante tinha.
Começaram a batalha ás nove horas da manhã, a qual foi tão cruel
e sanguinolenta, que durou até á noite, com grande perda do impera-
dor, pois lhe mataram a melhor e a mais luzida gente do seu exer-
cito ; sendo preciso retirar-se para uma terra sua, que estava perto, e
fazer-se forte n'ela, com aquela pouca gente que lhe ficou.
Ao outro dia, de manhã, o almirante mandou desafial-o para sair
a batalha, o que o imperador não quiz aceitar, por entender que per-
deria, pela pouca gente com que se achava e queria só defender-se,
20

esperando que algum amigo seu o socorresse para entrar na batalha;


porém o almirante atacou-o, de sorte que foi necessário sahir com a
pouca gente que tinha, a dar-lhe batalha.
Como um anjo trouxe um cavalo branco e armas
a Roberto para que fosse ajudar o Imperador
Estando Roberto muito triste pelas noticias que vinham do aperto
em que estava o imperador, entrou uma manhã no jardim para beber
na fonte, como tinha por costume c, depois que bebeu se encostou a
uma arvore a descorrer e imaginar nas cousas do imperador e na perda
da sua gente, desejando muito socorrel-o; porém, como não podia, por
não faltar á sua penitencia, oferecia a Deus a sua pena e pedia-lhe
que socorresse o imperador e o livrasse do almirante, inimigo de
Christo.
Estando n'esta aflicção, ouviu uma voz do céu, que lhe disse: —
Roberto, Deus manda que te armes com estas armas e montes n'este
cavalo e vás socorrer o imperador.
Assim que Roberto ouviu esta voz, voltou a cara e viu um cavalo
branco e sobre ele um arnez muito luzido, uma lança e uma espada.
Vendo Roberto este prodígio, poz-se logo de joelhos, e deu a Deus
infinitas graças e logo se começou a armar; e chegou ao exercito a
tempo que o imperador estava tão desbaratado, que já se queria reti-
rar e largar o campo; porém Roberto entrou no exercito do almirante
com tanto valor, que o desbaratou, de sorte que se puzeram em fuga
e ficou o imperador victorioso e senhor do campo.
E logo Roberto, sem ser reconhecido, se retirou e tornou a entrar
pela porta do jardim; e, apeando-se e despindo-se, poz as armas em
cima do cavalo, o qual logo desapareceu, e ficou outra vez Roberto
no seu estado de louco.
Porém a uma janela do jardim estava a filha do imperador, vendo
a Roberto sem ser vista, tanto ao sair para a campanha, como ao vol-
tar d'ela; e, como era muda não o pôde dizer a pessoa alguma, mas
ficou suspensa e admirada de tal maravilha.
Como o imperador vollou para Roma,
victorioso do seu inimigo, e como sua filha lhe disse
que Roberto tinha vencido a batalha
Tanto que o imperador viu o inimigo desbaratado e fugido, ficando
senhor do campo, voltou para Roma triumphante e foi recebido de
Historia do Grande Roberto do Diabo 21

todo o povo com grande aplauso. Estando já no palacio com alguns


cavaleiros da sua corte, entrou Roberto com uma pequena ferida na
cara, a qual tinha recebido na campanha. Tanto que o imperador o
viu ferido, ficou muito sentido e disse que algum malfeitor fizera
aquilo àquele louco; e assim mandou publicar um edicto que todo
aquele que lhe fizesse mal morreria de morte natural. De que ficaram
os fidalgos muito contentes, dizendo que o louco não fazia mal a pes-
soa alguma, e a tudo estava Roberto muito dissimulado, fazendo que
não entendia cousa alguma.
Perguntou depois o imperador aos cavaleiros se acaso conheciam
aquele cavaleiro do cavalo branco que o foi ajudar em tão grande
aperto, porque desejava conhecel-o para o premiar, conforme o seu
merecimento; porque não era possível que houvesse homem mais sá-
bio e dextro na guerra do que aquele. Ao que responderam os cava-
leiros que assim era, porém que o não poderam conhecer, porque não
dera para isso lugar; pois, tanto que se acabou a batalha, se retirára
sem falar com pessoa alguma e desaparecera.
Chegou n'esse tempo a filha do imperador e disse por acenos que
o louco era o cavaleiro que vencera os inimigos, pois que ela tinha
presenciado e visto tudo o que sobre isso se tinha passado. E não en-
tendendo o imperador a filha, mandou chamar as damas para lhes
perguntar o que ela queria dizer, por estarem já acostumadas a enten-
del-a. E dizendo-lhe as damas o que a filha tinha dito de Roberto ou
do louco, respondeu-lhes que não era possível que o louco fizesse
tantos prodígios na campanha como fizera o cavaleiro que fora socor-
rel-o, pois as suas operações eram do mais entendido homem do
mundo. Com esta repreensão se retiraram a filha e as damas, ficando
só o imperador e os cavaleiros, fazendo sobre isto vários discursos.
Como o almirante voltou segunda vez com
um grande exercito contra o imperador
Envergonhado o almirante de que um homem lhe destruísse o seu
exercito e o puzesse em fuga depois de estar victorioso do imperador,
começou a vacilar sobre este ponto e se resolveu a reunir um exercito
mais numeroso e com ele saiu a campo com animo de vencer ou perder.
Chegando ao primeiro sitio e tendo o imperador noticia d'isto, lhe
saiu ao encontro, precipitadamente, com a gente que pôde ajuntar em
tão breve tempo; encontrando-o na batalha, o carregou o almirante de
tal sorte, que se viu o imperador perdido Porém Deus, que é o que dá
22

a victoria, mandou outra vez por um anjo o mesmo caválo e as mes-


mas armas a Roberto que, estando no jardim, todo sentido que o im-
perador tivesse tão mau sucesso, ao aparecer-lhe o cavalo, saiu pela
mesma porta do jardim; e, chegando ao campo de batalha, estando o
imperador em fugida, começou Roberto a juntar gente e a esforçal-a e
acometeu ao almirante com tanta fúria, que parecia um feroz leão,
destruindo de tal sorte o inimigo, que nenhum lhe parava diante e os
cavaleiros do imperador deixaram de pelejar só para o ver manejar a
espada; e assim, em breve tempo, põz o almirante em fugida e lhe
destruiu todo o exercito, de modo que, se muito fez Roberto na pri-
meira vez, mais fez na segunda. E assim ficou o imperador trium-
phante e senhor do campo e Roberto se retirou sem ser conhecido.
Chegou Roberto ao jardim e, apeando-se, se desarmou e poz as
armas sobre o cavalo, que logo desapareceu. E a filha do imperador
viu tudo, tanto ao sair á batalha, como ao retirar-se d'ela, sem que
fosse vista.
Como Roberto de Deus venceu terceira vez
o almirante
Retirando-se segunda vez triumphante o imperador para Roma,
começou a vacilar fortemente sobre quem seria o cavaleiro do cavalo
branco, que tanto beneficio lhe tinha feito. Estando n'estas considera-
ções alguns mezes, lhe chegou a noticia de que o almirante tornava
terceira vez, com muito mais gente a dar-lhe batalha j e assim chegou
até ás portas de Roma, c:m o seu exercito. 0 imperador se viu tão
apertado, que saiu repentinamente, sem ordem, com aquela gente que
o quiz acompanhar, para rebater a fúria com que o almirante vinha.
Porém, como o imperador tinha grande desejo de saber quem era
o cavaleiro do cavalo branco, ençomendou a alguns fidalgos a em-
presa do seu conhecimento e que para isso não fossem pelejar. E as-
sim se apartaram vinte homens a cavalo e trinta a pé, para este efeito.
Estando já o imperador pelejando, com o almirante, foi Roberto
ao jardim, achando o cavalo branco com as armas, se armou logo e,
montando a cavalo, sahiu pela porta do jardim. Chegando ao exer-
cito, fez tal derrota no almirante, que o fez fugir só com cincoenta
cavalos, ficando todos os mais do exercito mortos, feridos e captivos.
Destruído o exercito do almirante, logo Roberto se retirou e como
a escolta para o seu reconhecimento o viu retirar, trataram de o cer-
car para o conhecer; porém ele, rompendo o cerco, fugiu e n'esta fu-
Historia do Grande Roberto do Diabo 23

gida o seguiu um fidalgo, que, não o podendo apanhar, lhe atirou


com a lança, cujo ferro ficou metido em uma perna de Roberto e a
haste cahiu no chão, a qual apanhou o fidalgo, porém não pôde apa-
nhar a Roberto e assim se retirou este sem ser conhecido.
Chegando Roberto ao jardim logo se desarmou e, pondo as armas
sobre a cela do cavalo, desapareceu; e como Roberto ia ferido, tirou
o ferro da lança da perna e o meteu debaixo de uma pedra que es-
tava junto da fonte e tratou de curar a ferida com umas hervas; e
logo veiu saltando para o palacio, fazendo loucuras. Todas estas coi-
sas viu a filha do imperador da janela, tanto quando Roberto saiu
para a batalha, como quando veiu d'ela; como não podia falar
para o dizer, só se suspendia n'estes prodígios trez vezes repetidas,
sem saber a que atribuísse aquelas maravilhas.
Como o imperador chegou da batalha e o que sobre
o cavaleiro do cavalo branco se tratou
Chegou terceira vez triumphante o imperador, cujos triumphos e
vencimentos só eram devidos ao cavaleiro do cavalo branco. Começou
terceira vez a discorrer com toda a eficacia quem seria e com instan-
cia dizia aos fidalgos da escolta a sua pena, e todos também a tinham
da frustrada diligencia que fizeram. Disse então um ao imperador: —
Senhor, vendo que não o podíamos aprisionar, nem conhecer ao cava-
leiro do cavalo branco, eu o segui e tomei a resolução de lhe atirar
com a minha lança; meti-lhe o ferro por uma perna e n'ela o levou,
e a haste caiu no chão, que tornei a apanhar. E assim mande vossa
magestade examinar por medicos e cirurgiões as casas d'esta cidade,
sobre este particular, que só assim se pode vir ao conhecimento de
quem é.
Quando o imperador tal ouviu, ficou muito contente, porque d'este
modo lhe parecia que se havia de vir ao verdadeiro conhecimento de
tal cavaleiro. Tomaram exactas diligencias por toda Roma e partes
circumvizinhas; porém nunca foi possível saber do cavaleiro do ca-
valo branco, nem havia quem desse noticia, do que o imperador ficou
muito desgostoso por não conseguir o seu intento.
Como o imperador viu a impossibilidade de conhecer o dito cava-
leiro, tomou um acordo de mandar publicar um edito, para ver se
d'esta sorte descobriria quem era o cavaleiro do cavalo branco, que o
tinha nas três batalhas socorrido, viesse manifestar-se á côrte, porque
lhe prometia dar-lhe a metade do seu império e casal-o com sua filha.
24 Historia do Grande Roberto do Diabo

Como o almirante para casar com a filha


do Imperador, meteu um ferro da lança pela perna,
indo a Roma manifestar-se ao imperador,
para que lhe desse sua filha
Sabido e publicado o edito do imperador, ficou o almirante muito
alegre e satisfeito, por entender que por industria fazia o seu gosto,
pois o imperador não sabia quem era o cavaleiro do cavalo branco e
pelos signaes que manifestasse (ainda que supostos) entendesse ser
ele. Tirou o ferro de uma lança e o meteu em uma perna e montou em
um cavalo branco e acompanhado de alguns criados, partiu para Ro-
ma e mandou pedir licença ao imperador para lhe falar. Sendo esta
concedida, chegou ao palacio e lhe disse: — Senhor, vossa magestade
mandou publicar um edito que casaria com a sua lilha o cavaleiro do
cavalo branco que o ajudou nas batalhas; e como eu sou este mesmo,
deve vossa majestade dar-me a sua filha para esposa; e se n'isio ha
alguma duvida, sirva por testemunha este ferro de lança que tenho
metido n'esta perna e o cavalo branco em que venho montado.
G assim mostrou a ferida com o ferro da lança dentro.
Como o imperador tal ouviu e viu, disse: — Não sois vós o que me
puzeste guerra? pois como é crivei que me ajudasses contra vós mes-
mo ?—Respondeu o almirante: — Senhor, é tão grande o amor que
tenho a vossa magestade e sua filha, que me obrigou a fazer estes ex-
cessos e assim não duvide vossa majestade que a troco de casar com
ela, quizesse eu perder e ser contra os meus exércitos, pois o amor
como cego, obriga a excesssos não esperados e vibra muitas vezes fle-
xas contra si mesmo. E assim fui eu, pois não esperando volta mages-
tade de min senão fatalidades, eu não desejava nem concorrer, senão
para que alcançasses victorias, assim desconhecido de todos fiz por
vossa magestade tantos prodígios.
Ouvindo o imperador ao almirante com palavras de tão grande
afecto e vendo a ferida e o ferro da lança, deu credito a que era ver-
dade tudo o que ele dizia. Assim consentiu o casamento, ainda que
contra seu gosto, por ser o almirante pagão, inimigo da lei de Christo
porém não tinha outro remedio mais do que dar cumprimento ao sçu
edito.
Historia do Grande\Roberto do Diabo 25

Como um anjo revelou ao ermitão que


a penitencia de Roberto de Deus já estava cumprida
e lhe disse da parte de Deus que fosse
a Roma e o dissesse a Roberto

Fez Roberto penitencia com tanta devoção, que nunca cessou de


pedir a Deus perdão de suas grandes culpas; e foi tão grande a sua
contricção, que o tez capaz da misericórdia divina, que pela sua infi-
nita bondade o quiz tirar da imundicie, onde assistiu com cães e dos
desprezos que todos d'ele faziam e dal-o a conhecer a todos por quem
era e pela sua humildade fosse exaltado ao throno mais sublime.
Estando o almirante em Roma, como dissemos veio um anjo de Deus
ao monte, onde estava o ermitão, confessor do pontífice e de Roberto,
que lhe disse da parte de Deus que fosse a Roma e dissesse a Roberto
que já a sua penitencia estava cumprida e acabada e que o mesmo
Senhor estava satisfeito d'ela; e assim lhe mandava que falasse e des-
cobrissse quem era e não comesse mais com os cães, nem fizesse lou-
curas. Ouvindo santo ermitão ao anjo, se por de joelhos e deu muitas
graças e louvores ao Omnipotente Deus, por tão grande beneficio como
tinha feito a Roberto.
Como o ermitão partiu para Roma a buscar
Roberto e se encontrou com os desposorlos do almirante
Saiu logo o ermitão do monte e partiu para Roma a buscar
Roberto, para lhe dar aviso da revelação que Deus lhe mandára pelo
anjo; e buscando-o por toda a cidade, não o achou, de que ficou
muito atribulado e triste.
Indo á egreja de S. Pedro fazer oração, n'este mesmo tempo que
chegou, chegava também o almirante acompanhado do pontífice, o
imperador e tôda a mais côrte e curia romana, para se receber com a
infanta. Porém ela vinha tão descontente e chorosa, que não lhe podia
o coração sofrer a traição do almirante, pois bem sabia, pelo ter visto
tres vezes, que quem ajudára e livrára seu pae dos perigos fôra o
louco; mas, como era muda, não podia dizer com a lingua e assim ia
receber-se com o almirante por força pois a sua vontade era despo-
sar-se com o louco.
Porém, como Deus é a suma verdade, sempre nos maiores apertos
a descobre, assim sucedeu no caso presente; pois estando a infanta na
egreja para se receber (caso admirável!) lhe restituiu Deus a fala que
26

de nascimento tinha perdida e assim começon a dizer ao imperador


n'esta forma:
— Meu pae e senhor: Dê vossa magestade graças a Deus, que pela
divina misericórdia me restituiu a fala, para que a traição do almi-
rante fosse descoberta e conhecida para não se executar o seu perverso
desejo, que com fálsidade disse a vossa magestade que ele fôra o
que vos ajudára e livrára dos perigos das batalhas, porque, meu pae
e senhor, quem livrou a vossa magestade dos perigos foi o louco, que
está no jardim; pois com os meus olhos vi da janela do meu quarto
aparecer no jardim um cavalo branco com as armas com que ele se
armava e saia pela porta falsa e voltava ao mesmo jardim onde ele se
desarmava muito depressa, punha as armas sobre o cavalo e logo este
desaparecia; e da ultima ou terceira vez lhe vi tirar de uma perna o
ferro de uma lança e metel-a debaixo de uma pedra que está junto da
fonte, curando depois a ferida com umas hervas; e como eu era muda,
não podia dizer a vossa magestade estas proezas e maravilhas.
Quando o pontífice e todos os mais que estavam presentes viram
este prodígio, ouvindo o que a infanta dizia ficaram suspensos e admi-
rados e o pontífice lhe perguntou onde estava o cavaleiro que tinha
livrado ao imperador; e ela lhe respondeu que estava no seu palacio,
e que lá estava o ferro da lança.
Voltou logo o pontífice e mais acompanhamento para o palacio do
imperador, para vêr aquilo que a infanta lhe disse; o almirante fugiu
sem ser visto; e o ermitão também foi acompanhando ao pontífice,
para também vêr aquele caso.
Chegando ao palacio, foi logo a infanta guiando ao pontífice e ao
imperador para aonde estava o ferro e ajuntando-se com a haste da
lança se achou ser o mesmo e o cavaleiro que lhe atirou com ela o re-
conheceu muito bem. Logo foram onde estava Roberto deitado com o
cão, que lhe lambia a ferida, dizendo-lhe o imperador por acenos que
se levantasse para ser a ferida e ele zombou d'isso. Porém, levan-
tando a cabeça e tanto que viu o pontífice, a infanta e mais acompa-
nhamento, começou a fazer loucuras e a zombar do pontifice e de
toda a gente, pondo-se a brincar com o cão, fazendo varias visagens.
Vendo o pontífice estas cousas, lhe disse:—Eu te mando da parte
de Deus que fales e que respondas ao que te perguntarem. Quando
Roberto tal ouviu, tomou o cão nos braços, levantou-se e deu dois sal-
tos por entre a gente para fugir. Tanto que estava em pé, o conheceu
logo o ermitão e lhe disse: — Amigo, não te encubras, que se até
»
Historia do Grande Roberto do Diabo 27

agora eras conhecido como Roberto de Deus, pois já Esse Senhor sendo
da sua misericórdia, te tem perdoado e se dá por satisfeito da tua pe-
nitencia; e assim sou mandado aqui por Deus, para que to diga.
Quando Roberto viu o ermitão e ouviu taes palavras, se poz de
joolhos e, pondo as mãos, com os olhos levantados para o céu, disse
d'esta maneira: — Oh! Todo Poderoso Deus, fonte de misericórdia e
de piedade, que hoje recebe este indigno servo tão grande bem por
tão pequeno trabalho ! Rogo-te por tua infinita bondade que em todo
o tempo te lembres de mim e que não me apartes do caminho dos
teus mandamentos e te mereça louvar para sempre.
Quando o padre santo e os mais que presente estavam viram as
concertadas razões de Roberto, ficaram atonitos e a infanta ficou
muito alegre com a esperança de ser sua esposa; porque as suas fa-
çanhas lhe tinham acendido amoroso fogo no coração, cujo incêndio
lhe captivaram muito a liberdade, pois nunca se lhe tirava do
sentido.
Disse então o imperador a Roberto que lhe havia fazer a honra
de casar com sua filha, pois bem a tinha merecido e o ficaria substi-
tuindo no império; porém, Roberto, se escusou como politico, com o
pretexto de ir a uma romaria cumprir certa promessa. E assim ficou
todo aquele dia e noite no palacio e todos com grande contentamento

Como Roberto de Deus sahiu de Roma e se foi meter


em o áspero de um monte, sem ser visto
e como lhe apareceu o ermitão
é
Ao outro dia de manhã se despediu Roberto do imperador e de
todos os cavaleiros e, saindo de Roma sem ser visto de pessoa alguma,
se meteu no mais áspero de um monte, com o proposito de não sair
mais d'ele, até que Deus o levasse.
Estando Roberto servindo Deus, fazendo vida solitária e contem-
plativa, comendo hervas cruas, passado pouco tempo lhe apareceu o
ermitão, e disse : — Roberto, Deus por um anjo me mandou dizer que
te buscasse e dissesse que fosses para Roma, que casasses com a filha
do imperador, que de ti e d'ela nasceria descendência agradavel ao
seu santo serviço.
Quando Roberto ouviu isto, partiu logo e, entrando em Roma, foi
para casa do imperador que, tanto que o viu, se lhe converteu a tris-
28 Historia do Grande Roberto do Diabo

teza que tinha da sua ausência em uma eficaz alegria ; e sentiu mais
a infanta que era a que mais padecia os combates com que o ermo a
atacava e não menos toda a nobreza de Roma, que muito a amava.
Logo, sem demora, se ajustou o casamento e se receberam com
toda aquela solemnidade devida a pessoas de tão superior esphera.
E todo o povo ficou tão contente, que uniformemente o festejaram,
dando aos céus infinitas graças por tão grande beneficio de lhe dar
Roberto por substituto no império, de quem esperavam um santo e
justo governo, que este é o maior premio para os vassalos.

Como Roberto de Deus partiu para a Normandia


para socegar os trabalhos que sua mãe tinha e o que
n'este tempo sucedeu em Roma

Recebido Roberto, esteve em Roma tres anos com socego, mas


sempre empregado no serviço de Deus. Chegando-lhe a noticia de que
seu pae era falecido e por esta causa havia no seu ducado um levam-
tado que negou a obediência de vassalo a sua mãe e lhe usurpou al-
gumas terras, comunicou isto ao imperador e lhe pediu licença para
ir acudir a este insulto e castigar aquele traidor, e, vendo o impera-
dor a justa razão que tinha, lh'a concedeu, ainda que com muita
magua de seu coração, pois não se atrevia a estar sem Roberto nem
um instante.
Concedida a licença, partiu Roberto com a sua esposa para Nor-
mandia e, chegando á corte de Ruão, onde estava sua mãe, esta o
recebeu com muito contentamento e o mesmo fizeram os vassalos do
seu ducado. E, contando-lhe a duqueza o agravo que lhe havia feito
certo cavaleiro em lhe desobedecer e tomar-lhe uma fortaleza depois
da morte do duque seu pae, ficou Roberto muito triste em ver o des-
prezo que aquele vassalo a sua mãe tinha feito; e assim determinou
ir castigal-o.
Passados poucos dias, começou Roberto a ajuntar os soldados; e,
tanto que os teve juntos, partiu com o exercito para a fortaleza e lhe
deu tão grande combate, que em poucos dias a rendeu e captivou o
cavaleiro rebelde e o trouxe preso para sua mãe lhe dar o castigo que
merecia de sua desobediência. E ela lhe mandou cortar a cabeça e
esquartejar como traidor. Assim esteve Roberto em seu ducado com
sua mulher, muito pacifico, quasi dois anos, sendo muito venerado de
Historia do Grande Roberto do Diabo 29

todos ; tanto pela sua santa vida, como pela boa governança que fazia,
de que todos os seus vassalos estavam muito contentes e satis-
feitos.

Como o almirante veiu com poderoso exercito


contra o imperador e este mandou aviso a Roberto
para que o viesse socorrer

Estando o almirante muito injuriado do que lhe tinha sucedido,


vendo que de nenh um modo podia conseguir o seu intento, destruir o
imperador de todo, para o que reuniu um poderoso exercito, confiado
na ausência de Roberto; e logo partiu para Roma, destruindo e quei-
mando todas as terras do imperador e fazendo tais ruinas, que o im-
perador chegou a temer as armas e assim resolveu mandar logo um
postilhão a Roberto, para que viesse com toda a brevidade em seu
socorro.
Chegado o postilhão á Normandia e dando a Roberto a noticia,
tratou este logo com toda a brevidade de ajuntar um exercito e par-
tiu em socorro de seu sogro. Chegou a tempo em que estava o impe-
rador em notável perigo. Porém, tanto que Roberto chegou, achou a
noticia de que o almiraute com suas próprias mãos matara o impe-
rador.
Como Roberto matou o almirante

Tanto que Roberto soube da morte de seu sogro, começou logo a


andar pelo exercito do almirante a busca-lo e, tanto que o achou
logo lhe deu a morte. E assim lhe cercou o exercito, de sorte que,
quasi todos ficaram mortos, feridos e rendidos e poucos escaparam,
ficando Roberto senhor do campo.
Partiu Roberto para Roma todo vitorioso e mandou vir o almirante
arrastado ao rabo de um cavalo. E logo á vista de todos o fez em pe-
daços, depois de andar arrastado por toda a cidade. Todos os romanos
ficaram mui contentes e admirados do valor de Roberto, dando-lhe
mil vivas e fazendo muitas festas por tão grandes victorias.
Ao outro dia mandou fazer as exequias ao imperador, com aquela
pompa que era devida a tão grande magestade. E, assim que tomou
posse do império, reformou o governo e a justiça, estabeleceu leis jus-
tas ; e, depois de ter tudo muito bem disposto, voltou para a Norman-
30 Historia do Grande Roberto do Diabo

dia, a viver com sua esposa uma vida santa e contemplativa. E tive-
ram um filho, por nome Ricardo, que também viveu santamente e fez
grandes prodígios em favor da lei de Christo; e n'isto empregou todo
o seu tempo, nem podia tão boa arvore deixar de produzir tão bom
fructo, o qual foi um dos doze Pares de França, do templo de Carlos
Magno, chamado Ricardo de Normandia.

FIM
Obras á Tenda na LIVRARIA BARATEIRA 3A!!!Í ?,0„o0.u^íii-6
PUBLICAÇÕES ANUAIS: Agenda para algi A madoma do Convento, por Manuel Ribei-
beira. Alniannch Borda d'Agaa. ro. O caso do patco das Bichas, por Henriquo
ORAÇÕES A $30 : Anjo Custodio. Carta Mi Roldão. O Presidente de Republica, por Rei-
lagroaa. Justo Juiz. Mulher das Montanha* naldo Ferreira. A Dama de O'.fOS, pelo I)r.
Nossa Senhora da Boa Viagem. Nossa Senho»» Sobral de Campos. A Crus de Brilhantes, por
da Conoeição. Nossa Senhora da Fátima. Nos Norberto Lopes. O vencido, por Assis Espe
sa Senhora de Lourdes. Nossa Senhora de Mon- rança. Memoriae d'um hospede, por Cristiano
serrat*. Nossa Senhora da Saúde. Bainha San Lima. O trambôlho, por Guedes de Amaral. O
ta Isabel. Santa Rita de Cassia. Santo Antonio Triunfo da Arte, por Eduardo Frias. Um caso
Senhor dos Passos da Qraça. Paixão de N. 8 de consciência, por Lourenço Cayola. A Rui
Jesus Cristo. Oração contra terramotos, tro oa, por Gomes de la Berna. Nos braços da
voadas n peste, amendoeira, por Mafalda Mouzinho de Albu
COLECÇÃO ECONÓMICA A $60: O» mai- Suerque. Historia macabra, por Dionísio de
lindos Fados e Canções. Anedotas de Bocage. astro.
Livro do3 Namorados. Jx>sè do Telhado. Diog' LIVROS DIVERSOS: Arte de lacar a roupa,
Alves. João Brandão. Livro dos Sonhos. Me
nino da Mata e o seu cão Piloto. Urbino de indispensável As donas da oasa, 560. Amor de
Freitas. Incêndio da rua da Madalena. Os cri- Perdição, por C. C. Branco, 7460; eno. 12450.
mes do Romoxido. Antonio Silvino. Confissàt Aquae Meris, D. Carlos 1 perante a historia
do Vicente Marujo. Historia de João Soldado. cósmica, por Eugénio Battaglia, 1500. Aguas
Miguel de Vasconcelos. O livro de S. Cipriano Claras, frases de amor e de sandade, por Or-
Oráculo do Destino. Arte de conquistar as mu 1 lando Marçal, 5500. A hora do silencio, A mi-
lhoros. O crime de Augusto Gomes. Trova. nha Tebaida, Ode ao sol, ventos, por C. de
i ara o povo. Colecção ae quadras populares. Mendonça 2400. Barrabás, romanco cinemato-
Pedro-Sero. Sangue do Cristo. Os mais moder- gráfico, por Maurice Level, 6500. Caça aos
nos fados e cançõo*. submarinos, heroieo • emocionante episodio da
COLECÇÃO NACIONAL A 1$00 S Historia d» Grande Guerra, 430- Carlitos, puhhoaçAo in-
Branca-Klor. Historia de D. Inex de Castro fantil, cerca de 50 variedade', 460. Cartilha In-
Rainha Santa Izabel. A Padeira de Aljubarro fantil, por A. Simões Lopes, 1.* parte, 1560. 2.*
ta. Cartas de amor de Soror Mariana, O mila- parte, 24 50. Contos para as creanças, por An
gre do Fátima. Historia do João de Calais. onio Figueirinha., oart. 8,>U). Contos das
História do Touro Azul. Aventuras de Bertol creanças, 6400. Contos para os nossos filhos.
do. Historia da Prinneza Magalona. Verdadeira por D. M. Amalia Vaz de Carvalho e Gonçal
história da donzela Teodora. Marquez de Pom ves Crespo, com 100 gr. 10500. Camilo, a sua
bal. Vasco da Gama. Vida de Cacasãeno. Di vida, o seu génio, e a soa obra, por Paulo Oso-
cionario das Flores. Historia do Grande Ho rio, 12550. Cateoismo da doutrina ohrist», vol.
borto do Diabo. Je <00 pag. cart. 2560. Crime da estrada do
. COLECÇÃO DO POVO A 2$00 : Amores Tra- Pinhal da Azambuja, por Artur Patrício, 460.
ÇJpsos, por Eugénio Battaglia. Arte de explT Dicionário da antiga linguagem portugue-
cr(&^s sonhos, Amor, as mulheres ; as muthe- sa, por li. Brnnsvick, 5500. Dama das Ca-
res^e Ç arnor (Os pensamentos de Camilo). Ban melias, por Alexandre Dumas, filho, com 23
c<f Paktastico. Angola e Metrópole, novel» gravuras 5500. D. Quichote de la Mancha, 5500.
soiialjvbr Eugénio Battaglia. A Canção dePor Dicionário popular, 1468 pags., contendo a mo-
tngali-O crime de um anarquista, Eugénio Bat derna e antiga ortografia por Augusto Moreno,
>T ^Uplia.'f*õ00. Historia de Carlos Magno. Des- eno. em percalina 2S400. Entre precipícios, oro
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sem mestre. Gravides e Parto, por William torias da Carochinha, stoO- Ingles sem mestre,
Schatf, 50 ílmt. Guta da Coslnhelra. Guitar- por Charlas Boquette, <400 Impressões Varias,
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po H. P. K.crich. MU anedotas para rir. Mis panha, 55o. Lioro verdadeiro de S. Cipriano,
terios da Inquisição Não há Deus nem alma ediç&o completa, 7560. Livro de M.me Brouil,
Eugénio Battaglia. O one i o casamento, por lard, Dloinaçdo do passado, presente e futu-
H. de Balzac. Paulo e Virginia, por Bernardin ro, 3400. Livros para apontamentos, 160 pag.
do Saint-Pierre. Romeu e Julieta. Registo du- pautadas. 1450. Lusíadas, por Lois de Camões,
ma cocóte, «atira politica, por Eugénio Batta- comentados por Epifânio as Silva Dias, 2 vols.
glia. Rosa Setoagem. Ublrajara por K. de 20400 Meus pequeninos, Taatro infantil » osn-
Alencar. Ultimo dia de um condenado, por ções de gesto, musica de Estsfsnia Cabreira,
Viotor Hugo. versos de Olivia Cabral, 7460. Manual do Fo-
OBRAS DE M. CARDOSO DE SÃ ! Esoritura gueteiro. ou arte doe foces de artificio, carto-
çào o Calculo Comeroial. 5400. Ezercioios Pra nado, 3400. Manual da Formosura, O» segre-
tico. de Escrituração a Caloulo Comercial. dos da Mnlher pela condessa d'Arley, 2460
Bf». Mundo Novo, romance por Ana de Castro Oso
LIVROS DE AVENTURAS : Proeza» de Raf rio, 12460. Novo método pratico, para aprsn
fies, 12 números a 460. Texas Jack. 100 nume- der a lsr, eicrevsr e falar a lingua inglesa poi
ros a 560. Capitão Morgan, 20 números a #50. Jacob Bensabat, 8400 oart. 10460. NODO metodi
Stoerto Becker, aventuras de um oapitAo de pratico, para aprender a lsr, esorsvsr e fala
18 anos, 10 num. a 1500. Novela polioial, 3 va- a língua frenessa, por Jacob Bensabat, 8400
riedade. a 1400. cart 10450. Marques de Pombal, por Mana»
NÒVELA SUCESSO : Lindos volumes oom Caldas Cordeiro, 460. Neurastenia, por Florei
bonita oapa artistioa a maior parte ilustrados oio de 8ou*a. Rosa do Adro, 7460; ene. 1246I
cada vol. 1500.

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