Você está na página 1de 8

A Ateliê Colaborativo – 30 de Abril/2022

Cartografia de uma prática pedagógica – André de Araújo Lima

Experimentar o experimental: a arte como estratégia de afecção na educação online

[...] a experiência, e não a verdade é o que dá sentido a


escrita [...] Se alguma coisa nos anima a escrever é a
possibilidade de que esse ato de escrita, essa experiência
em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades, de
modo a deixamos de ser o que somos para ser outra coisa,
diferentes do que vimos sendo. (LARROSA e KOHAN, 2007)

Introdução

Tentarei abordar nesse texto, passagens de práticas pedagógicas vivenciadas como


mestrando do programa de pós-graduação em docência e diversidade MPED, da
Universidade do Estado da Bahia Campus Jacobina e também outras passagens como
professor de arte na educação básica. Por alguns momentos estes dois campos se atravessam
ao longo do texto. Os acontecimentos em torno de tais práticas estão marcados numa linha
temporal que como ponto de ignição o ano de 2021, dolorosos e intensos meses da pandemia
de covid-19, pois persistem ainda em mim estas sequelas, assim como os abalos que esta
provocara em educadores ao redor do mundo no sentido de repensar as possibilidades de
reconfiguração das práticas pedagógicas, repensar a escola, o ensino, o papel do professor, e,
inevitavelmente, refletir sobre as potencialidades do ensino online pós pandemia para não
apenas uma consciência de que lacunas foram abertas no modelo tradicional de ensino, mas
antes, insistir na ideia de que o ensino online tornou-se uma estratégia renovada de
aproximação de grupos e sujeitos implicados nesta nova paisagem global em que rearranjos
e remodelagens de práticas pedagógicas podem tornar-se cada vez mais abertos à
experiência como experimento, pois tais práticas justamente não estão fixadas nos
parâmetros protocolares do ensino tradicional.
A partir de uma escrita cartográfica, que insistentemente torna-se um emaranhado de
fragmentos de tempo que retomam outras linhas temporais da minha formação como
professor de arte, emergem nesse contexto, memórias e imagens para tensionar e
agrimensurar os modos como a professoralidade1 tem se constituído nos agenciamentos
coletivos no ciberespaço, sendo assim possível vislumbrar a criação de diferenças
provocadas por fissuras da experiência como experimento, tanto na educação básica como
no ensino superior.

Arte, afecção e metáfora

Instalação artística de Laura Vinci, 50 toneladas de areia escorrem por um orifício de 12mm de um andar para
outro num movimento de ampulheta
https://www.lauravinci.com.br/1997semtitulo

A instalação nos transporta a um mundo experienciável infinito de potenciais


subjetividades. Refletindo sobre a areia caindo por um orifício de 12mm, pensando nas
sensações, nos sons, nas experiências. Cinquenta toneladas de areia conseguem vazar
totalmente por tímidos 12mm. A areia caindo devagar, com toques de sutileza, o seu
potencial insurgente - no início uma poeira que quase não toca o chão, depois, um monte
denso. Ela vaza e ocupa grão por grão um espaço que antes não lhe pertencia. Está dentro de
si, mas fora do seu espaço anterior, esperando uma nova oportunidade para vazar
novamente.
A imagem apresentada sugere uma possibilidade de metáfora para fazer pensar nos
processos iniciais de construção de uma metodologia de pesquisa, especialmente questões
em torno da pesquisa de campo. Por onde começar a pesquisa? Utilizei estas imagens
durante o primeiro semestre do mestrado profissional em educação e diversidade, no

1
O conceito de professoralidade tratado aqui é inspirado no livro Estética da Professoralidade: um estudo
crítico sobre a formação do professor, do professor Dr. Marcos Villela Pereira, definido pelo autor como “uma
marca produzida no sujeito, ela é um estado, uma diferença na organização da prática subjetiva” (PEREIRA,
2016,p. 53)
componente curricular Laboratório de Pesquisa 2 (LAPE 2), ministrado pelas professoras
Drª Ana Lúcia Gomes da Silva e Drª Juliana Cristina Salvadori. A proposta de trabalho era a
construção inicial da metodologia das pesquisas dos discentes da turma de 2021.1, proposta
que fora organizada por grupos de trabalho e ateliês de pesquisa com a finalidade compor
uma escrita em que os mais variados objetos de pesquisa e as variadas formações dos
sujeitos pudessem, a partir das dissonâncias entre vozes e olhares, criar novas possibilidades
de leitura de suas pesquisas num movimento de co-criação colaborativa.
A arte surge nesse sentido como uma provocação na perspectiva de pensar outros
caminhos possíveis quanto às definições metodológicas da pesquisa, não pela via da
ilustração mas antes como potencialidade, enquanto movimento que desloca significados e
empresta outros para diferentes modos de compreensão e assim poder realocar conceitos em
diferentes contextos.
Apresentei estas imagens para o grupo de trabalho no qual fiz parte, meus colegas
vieram de formações diversas: letras, direito e geografia. Tive a apreensão de não me fazer
compreender perante eles ao arriscar lançar a proposta de pensar a imagem pelas vias da
metáfora. O senso comum aceita de forma muito passiva a ideia de arte como contemplação
e por vezes rejeita outras abordagens. Vivi essa aflição por anos enquanto atuei como
professor de arte na educação básica, e dentre muitos os dilemas da aula de arte um deles era
apresentar para os estudantes arte contemporânea. Muitos estudantes nutriam uma ideia
bastante negativa sobre tal categoria e se inspiravam nos argumentos de vídeos e perfis
estrangeiros nas redes sociais que argumentam de forma bastante pejorativa sobre arte
contemporânea2.
Apesar da apreensão, expus aos meus colegas minha proposta e, durantes as reuniões
online para execução do diário coletivo3 do componente curricular, pudemos refletir sobre o
papel da arte e suas possibilidades de entrecruzamento, de abordagens interdisciplinares e de
como ainda somos em grande medida silenciados por um mass media especializado em
promover ataques de ódio a tudo que se coloca como avesso à cristalização, ao eterno, ao
imutável e ao poder instituído.

2
Um dos vídeos mais destacados pelos estudantes para abafar a discussão pode ser visto aqui: Arte Moderna -
Paul Joseph Watson - YouTube.
3
O trabalho em questão pode ser consultado na íntegra aqui: GTE - Diário com comentários! - Documentos
Google
Percebo que viver esta experiência de acionar a arte no contexto da produção
coletiva me desloca para um estado de afecção4, aciona potências de agir, pois em alguma
medida este movimento de co-criação dilui a configuração cartesiana5 no Eu a partir de de
um estado de contaminação mútuo, o medo e a apreensão passam a dar lugar a um estado de
potencialidades de criação da vida. Este corpo-professor se dilata na planície do ciberespaço,
tensiona outros corpos, a arte, agora vista pelo recorte do fotográfico, nos distancia de sua
materialidade física para nos lançar num plano de percepção completamente inventado pelo
experimento que vai surgindo na inexperiência de como criar deslocamentos de conceitos. A
arte passa a fluir desemoldurada e pilhada de seus circuitos de validação para fazer vazar
potencialidades de novas percepções, novos usos, outras cartilagens para seu significado.
Talvez já não seja mais arte, quem sabe agora assuma uma forma precária de antiarte para
logo após desfazer-se.

Redesenhando rastros de um corpo

Quero trazer a experiência do corpo e evidenciá-lo numa perspectiva que tentarei


esboçar aqui. Preciso entender que a dimensão do corpo diz respeito a uma dimensão
estética, além das dimensões políticas, sociais, que desejo evocar para propor o diálogo em
torno da construção da professoralidade, pois este corpo passa por processos de
modelização. Tenho pensado nessa questão da modelização do corpo na ação do professor, o
que seria interessante também se pensasse pela via da expressividade da dança. O corpo no
espaço. O corpo do professor no espaço da sala de aula (sala de aula como espaço real e
virtual), agenciado por outros corpos, ressignificado, modelizado.
Meses se passaram após este evento e me encontro agora tendo uma idéia de noção6
sobre tais acontecimentos para pensar sobre as estratégias promovidas no componente
curricular Lape 2 no contexto da educação online pelas docentes e pelos discentes, pois ao
provocar o debate, o tensionamento dos corpos, o desconforto pela exposição da
inexperiência e a consequente criação de métodos e metodologias, de conceitos e de uma
4
Em seu livro Espinosa: filosofia prática, Deleuze, diz que “afecção remete a um estado do corpo afetado e
implica a presença do corpo afetante, ao passo que o afeto remete à transição de um estado a outro, tendo em
conta variação correlativa dos corpos afetantes.”(DELEUZE, 2002, p. 56).
5
O cartesianismo ainda tem presença marcante na educação básica. Faço esta observação aqui para
problematizar minha formação desde os primeiros anos na escola até este momento em que escrevo este relato
de prática, numa tentativa de me atentar para os pontos molares do pensamento cartesiano que ainda me
marcam como artista e como professor.
6
Conceito criado por Espinosa, compreende que possamos apreender as causas dos efeitos vividos no estado
de afecção, para ele, afecção seria uma espécie de primeiro gênero do conhecimento, já a ideia de noção seria
o conhecimento das relações que compõem causas e efeitos, uma noção de ideias adequadas, da composição
das relações entre as coisas.
escrita, além de outras potencialidade que escapam à observação da pesquisa, tudo isso me
impele a tentar perceber, num outro movimento, os efeitos do distanciamento sentidos
experienciados por mim em relação às aulas presenciais que foram interrompidas pela
pandemia e pelo meu desligamento da instituição de ensino onde atuava como professor de
arte desde 2015.
Estes dois acontecimentos ocorridos entre 2020 e 2021 marcam a constituição da
minha professoralidade, a primeira é uma marca que fere o corpo, a infecção viral toma este
corpo que passa a viver de outra forma, a sobreviver dia após dia, os impactos e sequelas
ainda estão presentes. Passo a tentar me reinventar enquanto tento sobreviver. O colapso
mental também é avassalador: o isolamento social é a rotina possível. Sinto que às vezes,
neste tempo em que vivo e que pulsa o sangue em minhas veias, que naturalizamos a
tragédia da pandemia, nos chocamos demais para falar sobre ela às vezes. Somos um país
dilacerado e isso me remete às imagens das guerras que não vivi, mas sinto também que vivi
um inferno proporcional a desumanidade das guerras nestes últimos meses, desde março de
2020, quando nos afundamos em uma pandemia em que ainda não vislumbramos uma saída.
Ainda antes de conseguir êxito nas avaliações do MPED, contrai covid-19 no mês de junho
de 2020. Foi a experiência mais terrível da minha vida, a sensação de aniquilação é
constante, o delírio da morte me atormentou por longos dias. Vi minha vida se desestruturar
por causa das sequelas que tive: pressão alta, miocárdicas, fadiga, confusão mental, dores e
dores pelo corpo inteiro me fizeram pensar em desistir de continuar o mestrado.
Nesse novo cenário, nesta nova condição do corpo, como pensar em reinventar
práticas pedagógicas do ensino da arte? Como este professor pode se reinventar e
experimentar os afetamentos dos corpos em diálogo com a arte na construção de novas
experiências estéticas, de novas afecções, de repensar o currículo?
O segundo acontecimento: fui exonerado do cargo de professor na instituição que
desenvolvia minhas atividades de ensino, pesquisa e extensão desde 2015. Desligamento
abrupto. Ordem judicial decorrente de uma decisão baseada em julgamento. Cumpra-se!
Letra da lei. Mandado de segurança encaminhado pelo autor diante do argumento de que a
instituição tinha burlado aspectos legais em concurso público. Novo desfazimento, nova
reinvenção, a arte me recoloca em dimensão produtiva, não me deixa parar. A pesquisa
durante o percurso no mestrado profissional no MPED também tem me movido a não
desesperançar e a habitar um estado constante de produção.
Nesse movimento constante, buscando caminhos no caminhar da pesquisa no
mestrado profissional, deparo-me com certas angústias inerentes ao ato de pesquisar: nem
sempre há uma resposta, elas precisam ser produzidas, inventadas. A arqueologia das
imagens de um artista, procurando algo em seus trabalhos sem a pretensão de estabelecer um
modelo metodológico, vasculhar essa caixa oculta fisgada pela memória, procurando quase
às cegas por aquilo que não se sabe. Vasculho imagens das minhas imagens e chego a uma
imagem de mim mesmo, uma fotografia, uma experimentação artística, um nú de angústias
incontidas ganham corpo no corpo da fotografia, habitat de artifício criando novas
temporalidades. Um corpo cria um corpo. A fotografia emerge nesta paisagem recente de
acontecimentos para provocar a instauração de uma outra marca da professoralidade do
professor de arte.

“Um Dia para Corridas” (detalhe)


2011
Autor: André de Araújo Lima
Fotografia: 33 x 43 cm

Revejo tal fotografia para vasculhar este novo campo de potencialidades onde me
encontro: imerso numa condição física limitada, tento recompor uma linha de
professoralidade e me servir das personas que fui criando em meu trabalho de arte ao longo
da última década para dar conta da angústia de não estar atuando em sala de aula, me
reinvento ao produzir e reapropriar-me destas personas e criar estratégias pedagógicas no
ciberespaço, sobretudo através do Youtube7, onde venho publicando vídeo-aulas com
conteúdo sobre arte e fotografia. O fotográfico se articula com a produção técnica dos
vídeos, há as demandas da plataforma, critérios de qualidade, roteiro, edição do vídeo,
audiência, interação com o conteúdo.

Frame de vídeo do Youtube


Fonte: https://youtu.be/eufIChSi-s8

Este recurso de publicar vídeos na internet me permitiu rever algumas práticas que
vinha nutrindo como professor e agora me revelam dificuldades que através da fotografia,
venho tentando aprender: falar para ninguém era um enorme entrave para que as aulas
pudessem ter um caráter mais fluido onde o conteúdo não fosse o foco mas sim uma
problematização a respeito deste. Como sair da armadilha da aula gravada do conteúdo pelo
conteúdo onde não existem questionamentos? A temporalidade do ciberespaço se articula
com a temporalidade do fotográfico e nessa complexa dobra procuro me revitalizar, sentir o
entusiasmo de estar sendo professor.
Reinvento-me pela experiência como experimento nas redes do ciberespaço pela arte
como uma estratégia de fabulação do sujeito que se recria ao criar um novo território,
tentando não cair na insularização do sujeito e perder-se, tentando provocar, provocar-se e
ser provocado ao criar vida numa nova perspectiva, transformada pelos desafios da

7
Link do canal: Sonhos entre Pedras - YouTube
pandemia, tentando insistir na arte como potência agenciadora de afecções significativas,
insurgentes, provocativas e inventivas.

Você também pode gostar