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ali sido a Idade Média uma época sem nenhuma sensibilidade estética? Embora os estudas sobre a era medieval te- nham se intensificado nos Gltimos anos, ainda € comum attibuir 3 [dade Média fal- tade identidade on falta de sentido de ino- vaio. Neste livro, Umberto Eco desfaz es. sas.¢ outras impresses, mostrando toda a multiplicidade de idéias sobre a arte ¢ © belo que citcularam durante aquele pe- riodo, mas que nunca formaram uma “ceoria estética’” explicita, mesmo porque esse conceito $6 viria a nascet no século XVIII. Eco nos aprtesenta aqui um sumé- rio da hist6ria das teotias do belo do sécu- lo VI ao século XV. Sua leitura constitai uma instigante oportnidade para se fot- mar uma imagem do rico pensamento ¢s- tético medieval. “san es2e0-so7 UMBERTO €CO RTE (e) J E E E 29 EDICAO oxo ARTE © ARTE E BELEZA NA ESTETICA MEDIEVAL UMBERTO ECO Tradugao Mario Sabino Filho Revisiio técnica Roberto Romano 2.* Edigao 10 ‘Tilo do oxginat elmo: Are « Belleras wel eseica medieale ibe © Gra Bite a, ens, Smoen, Conn “Etas S\P.At Milan 1987 Diniz mundi da cio om tings poragvea, ‘ar 9 Bel, agus pot EDHTORA GLOBO S.A. ‘us do Curiae, 685, CEP 0508, io Pato "els (ott) 262300, Tee: (01) 38071, 5. Boost sete cn Net ede tig pb beg eee aes etree Sivas an nari vine ete ek ee Lmpressio acabamento: Lis Gia © Bivona eda, alos de apm Fabio (Cine Sets an, Shh en, Uber, 1932- Ae tela x xa medical! Umber Fen; ego Masio Sebioa Hb evi desis Robes Romane, Ride ooeue Gh- sm. EoN'enocsas 1. «et 2, ie til Tis cp sotto: oa ‘et pars eng cic: SUMARIO 4, INTRODUCAO 2, A SENSIBILIDADE ESTETICA MEDIEVAL 2.1 Os interesses estéticos dos medievais.......... 2.2 Os misticos «ese. 2.3 O colecionament0 ....scsesrsevsen 2.4 Utilidade e beleza...... 4 ESTETICAS DA PROPORCAO 28 POPPE 0 classica GROSS 4 .2 Otica e perspectiva... ica da luz: a 7. PSICOLOGIA & GNOSIOLOGIA DA VISAO ESTETICA .. 7.1 Sujelto e objeto 7.2K emogio estética . 1.3 Psicologia da visto. 74 A visio estética em Santo Toms &, SANTO TOMAS E A ESIETICA DO ORGANISNO «sca. 1B 8.1 Forma ¢ substancia ... 8.2 Proportio ¢ integnitas 8.3 Claritas. 9. DESENVOLVIMENTOS E CRISE DE UMA ESTETICA DO ‘ORGANISNO .. 123 9.4 Ulrich de Estrasburgo, 123, 9.2 Duns Scotus, Oekharn ¢ individuo. 25 9.3 Os misticos alemies.. 129 10. TEORIAS DA ARTE ..... . wt 10.1 A teotia da ar BL 10.2 Ontologia da forma artistica. 134 10.3 Anes liberais ¢ artes sexvis 136 10.4 As artes belas 137 10.5 As poéticas... 141 11. AINVENCAO ARTISTICA B A DIGNIDADE DO ARTISTA 143, 11.1 A infims doctrina. ot 143, 11.2 O poeta sheolo, a 11.3 A idéia exemy 11.4 Intuiczo e sentimento : dg 11.5 A nova dignidade do artista 452 11.6 Dante ¢ a nova concepsio do poeta . 34 12. DEPOIS DA ESCOLASTICA........-++.01e0+ . 161 12.10 dualismo pritico medieval . 2 161 12.2 As estruturas do pensamento me 163 12.3 A estética de Nicolau de Cusa . 168 32:4 O bermetismo neoplatdnico 172 12.3 Asttologia x Prov léncia. 12.6 Simpatia x Proportio 179 12.7 Talisma x Prece.....-- 18; 12.8 A estética como notma de vida . 8d 12.9 O artista e a nova interpretacio dos textos ¢ do mundo 186 12.10 Concluséies 138 FONTES BIBLIOGRAFICAS .. 1 INTRODUCAO Este é um compéndio de histéria das teorias estéticas, ela- boradas pela cultura da Idade Média latina, dos séculos V1 a XV de nossa era. Trata-se, porém, de uma definigao cujos ter- mos devem ser definidos um a um. Compéndio. Nao se tata de uma pesquisa com pretensdes, de originalidade, mas de am resumo ¢ de uma sistematizagao de pesquisas precedentes — entre as quais, também a tealizada pelo autor em seu estudo sobre o problema estético em Toms de Aquino (1956). Em particular, este compéndio néo poderia ter sido concebido se ndo tivessem sido publicadas, em 1946, dogs obras fundamentals: Etudes d'esthétique médiévale, de Ed- gard de Bruyne, ¢ a coletinea de textos sobre a metafisica do belo feita por D-H. Pouillon. Acho que se pode tranqitilamen- te dizer que tudo que foi escrito antes dessas duas contribui- ‘goes & incompleto e que elas sto a base de tudo o que foi escri- to depois.t Sendo um compéndio, este livro pretende ser acessivel mes- ‘mo a quem no é especialista em filosofia medieval ou em his- storia da estética. Neste sentido, todas as citagdes latinas ~ ¢ so muitas —, quando breves, vémn logo parafraseadas e, quando longas, véou seguidas de tradugdio? Histéria. Compéndio historico ¢ néo tedrice. Como tam- ‘bém se esclarecerd no final, 0 objetivo deste livro ¢ oferecer uma imagem de uma época, no uma contribuicdo filoséfica a defi- ni¢do contemporanea de estética, de seus problemas e de suas solugOes. Hsta explicacdo deveria bastar, ¢ bastaria se esta fos- se uma historia da estética cldssica ou da estética barroca. Po- rém, como a filosofia medieval foi objeto, desde o século pas- sado, de uma reatualizacdo que tendew a apresenté-la como phi- 9 osophia perennts, todo discurso sobre cla deve sempre esclare- cer a fundo os préptios pressupostos filos6ficos. Esclareco: ¢5- te estudo sobre a estética medieval tem os mesmos propésitos de compreensio de uma época hist6rica que poderia ter um outro sobre a estética grega ou sobre a estética barroca, Naturalmen- te, decide-se estudar uma época por acbé-la interessante e por considerar que vale a pena compreendé-la melbor. Historia das teorias estétieas. Justamente por se tratar de um compendio histérico, ndo se pretende redefinir, em termos ainda hoje aceitéveis, o que seja uma teoria estética, Partiuse a acepcdo mais ample do termo, que da conta de todos os ca- sos em que uma teoria apresentou-se ou foi reconbecida como ‘estética. Assim, entenderemos como teoria estética todo discurso que, com qualquer propdsito sistematico e pondo em jogo can- ceitos filoséficos, ocupe-se de alguns fendmenos referentes & beleza, a arte e as condigdes de producio e apreciacao das obras de arte, as relagGes entre arte © outras atividades e entre arte e moral, a fungdo do artista, as nocBes de agradével, de omna~ mental, de estilo, aos juizos de gosto e também & critica destes jnizos, eas teorias e as priticas de interpretagdo dos textos, ver- bais ow nio, isto é, a questéo hermentutica — pois ela cruza 0s problemas precedentes, mesmpo que, como acontecia parti- ‘cularmente na Idade Média, ndo interesse apenas aos fendme- nos ditos estéticos. ‘No fim das contas, em vez de partir de uma definigo con- temporiinea de estética e vetificar se numa época passada ela era satisfeita (0 que deu lugar a péssimas histérias da estética), melhor partir de uma definigdo o mais sincrética ¢ tolerante pos- sfvel, e depois ver o que se encontra. Com estes objetivos, ¢ as- sim como outros estudiosos fizeram, procurou-se integrar na ‘medida do possivel os discursos tebricos propriamente ditos com todos os textos que, embora escritos sem propésitos sistemati- cos (como, por exemplo, as observagdes dos preceptores de re- ‘6rica, as paginas dos misticos, dos colecionadores de arte, dos educadares, dos enciclopedistas ou dos intérpretes das Sagra- das Hscrituras), refletem ou influenciam as idéias filoséficas da época. Assim como procurou-se, no limite do possivel e sem propésitos exaustivos, deduzir idéias estéticas subjacentes aos aspectos da vida cotidiana e prépria evolugao das formas e das técoicas artisticas, 10 Idade Média latina. A téade Média fer em latim os diseur- 808 teéricos, filos6ficos ou teolégicos, ¢ de lingua latina é a Tdade Média escoléstica. Quando se comeca a conduzir um discurso tedrico em Vingua vulgar, a despeito das datas, jd estamos fora da Idade Média, Ao menos em boa parte. Este compéndio exa- ming as concepsGes estéticas expressas pela Idade Média latina ‘endo toca, a ndo ser de leve, nas idéias da poesia trovadoresca, dos estilonovistas, de Dante (ainda que, no caso de Dante, te- nham sido feitas substanciais exeecdes, especialmente no wti- ‘mo capitulo), para nao dizer de que vem depois dele. Sublinha- ria que na Italia estamos acostnmados a colocar Dante, Petrar- ‘cae Boccaccio na Idade Média, a espera de que Colombo des- ‘cnbra a América, enquanto em muitos paises, em relagiio a es- tes autores, jd se fala de inicio do Renascimento. Para contra- bbalancar, os mesmos que situam Petrarca no Renascimento fa- Jam de outono medieval referindo-se ao século XV borgonhés, flamengo e alemio, ou seja, aos contempordneos de Pico della Mirandola, Leon Battista Alberti ¢ Aldo Manuzio. Por outro lado, 0 préprio conceito de ‘“Idade Média” snuito dificil de definis, ¢ a prépria etimologia clara do termo nos diz que ele foi inventado para alojar uma dezena de sécu- 10s que ninguém conseguie mais situar, uma vez que se acha- vam. 2 meio caminho entre duas époces “ilustres”” — uma das ‘quais J se sentia multo orgutho, ¢ outra onde se sentia muita nostalgia. Entre as muitfssimas acusagGes que eram dirigidas a essa €poca sem identidade (exceto a de ser “‘do meio”), havia justa- ‘mente a de ndo ter tido sensibilidade estética. Nao discutiremos agora este ponto, pois os capitulos seguintes servem exatamen- te para corrigit essa falsa impresso — e 0 capitulo conelusiva ‘mostrard como, por volta do século XV, a sensibilidade estéti- ‘ca jé havia se transformado tdo radicalmente, para explicar, se ndo para justificar, 0 véu langado sobre a estética medieval. Mas a nogdo de Idade Média ¢ embaragante também por ou- tras razées. Como se pode reunir sob 0 mesmo rétulo uma sétie de sé- culos to diferentes entre si? De um lado, aqueles entre a que- da do Império Romano e a teestruturagao car nos quais a Europa atravessa a mais asststadora crise politica, religiosa, , agricola, urbana, lingilistica (¢ a lista poderia con- tinuar) de toda a sua histéria, e, do outro, os séculos da renas- uw ccenga apés o ano mil, pelos quais se falou em primeira Revolu- ‘¢G0 Industrial, quando nascem as linguas ¢ as nagdes moder- nas, ademocracia comunal, 0 banco, a promiss6ria ¢ as parti- das dobradas, quando se revolucionam os sistemas de tragéo, de transporte maritimo, as téenicas agricolas, os procedimen- tos artesanais, inventam-se a Wnissola, a abdébada ogival e, per- todo final, a pélvora ¢ a imprensa? Como se pode ajuntar os séculos em gue os 4rabes traduzem Aristételes e se ocupam de medicina e astronomia, quando a leste da Espana, embora te- znham sido superados os séculos “barbéricos”, a Buropa toda- via no pode se orgulhar da prépria cultura? ‘No entanto, a culpa, se assim se pode dizer, desse “paco- te’ indiscriminado de dez séculos é também, um pouco, da cul- tura medieval, que, tendo escolhido cu achando-se obrigada a escolher 0 latim como lingua franca, 0 texto biblico como livro fundamental c a tradigao patristica como tnico testemunho da cultura cléssica, trabalha comentando ¢ citando fSrmulas au- torizadas, com ar de no dizer nunca nada de novo. Nao € ver- dade; a cultura medieval tem o sentido da inovagdo, mas pro- cura escondé-la sob as vestes da repetigao (ao contrario da cul- fra moderna que finge inovar mesmo quando repete). A trabalhosa experiéncia de entender quando algo de no- vo foi dito — ao passo que o medieval se apressa ei nos con- vencer de que estd simplesmente redizendo o que foi dite antes — também é sofrida por quem quer ocupar-se de idéias estéti- cas, Para torné-la menos ardua, ao menos para o Ieitor, este compéndio avanca por problemas ¢ no por perfis de autores. ‘Ao tragar perfis, corre-se o risco de achar que cada pensador, ‘j4 que usa os mesmos termos ¢ as mesmas formulas dos seus ppredecessores, continua a repetir a mesma coisa (para compreen- der que acontece 0 contrério, seria necessério reconstruir umn ‘um cada sistema). J avancando por problemas fica mais fa- Gil, nos limites de uma répida pincelada, na qual se dedicam ‘menos de duzentas paginas a quase dez séculos, seguir 0 per- curso de certas férmulas ¢ descobrir como estas, amizide insen- sivelmente, as vezes de modo bem evidente, mudamt de signifi- eadlo — tanto que, ao final, percebe-se que uma expresso muito desgastada, por exemplo forma, no inicio era usada para indi- car 0 que se vé na superficie, ¢ no fim para indicar 0 que se oculta no Amago. Por isso, mesmo reconhecendo que certos problemas e cer- 2 SY tas solugdes permaneceram inalterados, preferiu-se, com fre- qiiéncia, acentuar os momentos de desenvolvimento, de trans- formagio — artiscando cait no vicio historiografico (que nos permitiremos criticar nas pdginas conclasivas) que consiste ‘em achac que 0 pensamento estético medieval avance “‘meltio- fando”’, Certamente a estética medieval sofreu uma matura- Go, levando-se em conta que, de citagdes um tanto acriticas de idéias recebidas de modo indireto do mundo classico, che- ga a se organizar no interior daquelas obras-primas de rigor sistemético que sao as summae do século XII. Mas se Isidoro de Sevilha nos faz sorrir com suas etimologias fantasiosas ¢ Gui- Iherme de Ockham, ao contrério, nos obriga a interpretar ura pensamento denso de sutilezas formais que ainda poem & pro- ‘va.os l6gicos do nosso tempo, isto nao significa que Boécio fosse menos arguto que Duns Scotus ainda que tenha vivido oito sé- cutos antes dele. A hist6ria que nos dispomos a seguir é complexa, € feita de permanéncias ¢ de rupturas. Em boa parte ¢ hist6ria de per- manéncias, pois a Idade Média foi uma época de autores que se copiavam em cadeia sem citar-se — mesmo porque em uma época de cultura manuscrita, com 9s manuscritos dificilmente acessiveis, copiar era 0 tinico meio de fazer circular as idéias. \Ninguém considerava isso um delito; de cépia em c6pia, era fre- iiente que no se soubesse mais qual a verdadeira paternidade de uma férmula; no fim das contas, pensava-se que, se uma idéia cra verdadeira, pertencia a todos. ‘Mas essa histéria tem também alguns golpes teatrais. Nao apenas cenas barulhentas como o cogito cartesiano. Jacques Ma ritain observa que sé com Descartes um pensadot s¢ apresenta como “um iniciante em absolute” — ¢ depois de Descartes to- do pensador procurara surgir, por sua vez, mum palco jamais pisado anteriormente, Os medievais nao eram assim tio espe- taculosos; pensavam que a originalidade fosse um pecado de orgutho (¢, naquela época, ao se pdr em questo a tradicao ofi- cial, corriasu-se alguns riscos, nflo s6 académicos). No entanto (erevelamos isso s6 a quem ainda néo sabia), eles também eram capazes de achados engenhosos e lances geniais. B OO 2. 7 A SENSIBILIDADE ESTETICA MEDIEVAL 2.1 Os interesses estéticos dos medievais A Idade Média tirou da antigtidade clissica grande parte de seus problemas estéticos, mas conferiu a tais temas um no- ‘vo significado, inserindo-os no sentimento do homem, do mundo ¢ da divindade tipicos da visio crist@. Extraiu da tradiglo bf- blica e patristica outras categorias, mas empenhou-se em inseri- las nos quadros filos6ficos propostos por uma nova conscién- «ia sistemstica. Em conscaliéncia, sua especulagdo estética de- senvolveu-se num plano de indiscutivel originalidade. Todavia, ‘temas, problemas e solugGes poderiam ainda ser entendidos tam. bém como depésito verbalista, assumido & forga de tradigéo, vazio de ressomdncias efetivas no animo tanto dos autores co- mo dos leitores. Foi observado como, no fundo, ao falar de problemas estéticos e ao propor regras de produgao artistica, @ antigilidade cléssica tinha o olhar voltado para a natureza, enquanto os wedievais, ao tratar dos mesmos temas, tinham oolhar voltado para a antigilidade cléssica; e, por um lado, to-* daa cultura medieval é, efetivamente, mais do que uma refle- xio sobre a realidade, um comentério da tradigo cultural. Mas este aspecto no exaure a atitude critica do homer medieval: a0 lado do culto dos conesitos transmitidos como de- pésito de verdade e sabedoria, a0 lado de um modo de ver a natureza como refiexo da transcendéncia, obsticulo ¢ dilacio, esté viva na sensibilidade da época uma fresca solicitude para com a realidade sensivel em todos 0s seus aspecios, compreen- ido 0 de sua fruigso em termos estéticos. Reconhecida a presenta desta reatividade espontdinea & be- Jeza da natureza ¢ das obras de arte (talvez solicitada por esti- snulos doutrinais, mas que vai além do fato aridamente livres- 15 co), temos a garantia de que, quando o filésofo medieval fala de beteza, ndo entende somente um conceito abstrato, mas se remete a experigncias concretas, E claro que na Idade Média existe uma concepyao da bele- za puramente inteligivel, da harmonia moral, do esplendor me- tafisico, ¢ que nés 86 podemos entender este modo de sentir se penetrarmos com muito amor na mentalidade e na sensibi de daquela época. A propésito disto, Curtins (1948, 12.3) afir- ‘ma que: ‘Quando a Escolistica fala da beleza, ela a entende como um atri- ‘buto de Deus, A metafisica da beleza (por exemplo Ploting) a ‘eoria da arte ndo tém nenhuma relagdo entre si. © homem “mo derno” supervaloriza exageradamente a arte porque perdu 0 sen ‘ido da beleza inteligivel que possuiam o neoplatonismo ¢ a Ida- de Média (...) Trata-se, aqui, de uma beleza da gual a estética no tem nenhuma idéia. Porém, tais afirmativas nao devem limitar em nada o nos- So interesse acerca desias especulacdes, De fato, a experiencia da beleza inteligivel constitufa, antes de tudo, uma realidade ‘moral e psicoldgica para o homem da Idade Média, ea cultura da época nao permaneceria suficientemente jluminada se nos desciridssemos deste fator; em segundo lugar, ampliando 0 ia- tetesse estético para o campo da beleza no sensivel, os medie- vais elaboravam ao mesmo tempo, por analogia, por paralelos explicitos ou implicitos, uma série de opinides a respeito do be- lo sensivel, da beleza das coisas da natureza eda arte. Ocampo de interesse estético dos medievais era mais dilatado que o nos- 0, € sua atencdo para a beleza das coisas era freqilentemente estimulada pela consciéncia da beleza enquanto dado metatisi- co; mas também existia o gosto do homem comum, do artista ¢ doamante das coisas de arte, vigorosamente voltado para os aspectos sensiveis. Os sistemas doutrinais procuravam justi car ¢ dirigir esie gosto, documentado de muitas maneiras, de modo que a atcneéo para 0 sensivel ndo sobrepujasse jamais a tensdo para oespiritual. Alcuino admite que & mais facil amar “05 objetos de belo aspect, os doces sabores, 05 sons suiaves”, eassim por diante, do que amar a Deus (ver De rhetorica, in ‘Halm 1863, p. 550). Mas se saborearmos estas coisas com a fi- nalidade de methor amar a Deus, entiio poderemos também se- 16 ee cundar a inctinagdo pare o amor ornamenti, para as igrojas stun- tuosas, para o bel canto ¢ para a bela musica, Pensar na Idade Média como a época da negacto moralis- ta do belo sensivel indica, além de um conhecimento superfi- ial dos textos, uma incompreensdo bdsica da mentalidade me- x08, sobretudo no século XII, contra o hnko € 6 emprego de meios figurativos na decoracdo das igrejas: seda, ouro, prata, vitrais coloridos, esculturas, pinturas, tapetes sio rigorosamente banidos pelo estatuto cisterciense (Guigo, Annales, PL 153, col. 655 ss.). So Bernardo, Alexandre Neckman, Hugo de Fouilloi se langam_ com veeméncia contra estas superfluitates que desviamn os iis da piedade ¢ da concentragiio na prece. Mas et todas estas con- denagdes a beleza ea graca dos omamentos munca é negada; aliés, 4 justamente combatida porque se reconhece seu atrativo irre- sistivel, inconcilifvel com as exigéncias do lugar sagrado. ‘A propésito, Hugo de Fouilloi fala em mira sed perversa de- Jectatio (um prazer maravithoso e perverso). O perverso, como em todos 0s rigoristas, é ditado por razBes morais e saciais: isto é, ‘questiona-se se se deve decorar suntuosamente uma igreja quando 05 filhos de Deus vivem na indigéncia. Mas 0 mira manifesta um assenso indiscutivel 4s qualidades estéticas do ornamento. 7 Bernardo nos confirma esta disposi¢ao de fnimo, estendi- da as belezas do mundo em geral, quando explica a que os mon- ges renunciaram abandonando 0 mundo: ‘Nos vero qui iam de populo exivimus, qui mundi quaeque pro- ‘iosa ac speciosa pro Christo reliquimus, qui omnia pulchre hi- centia, canore mulcentia, suave olentia, dulce supientia, tactu pla- centia, cuncta denique oblectamenta corporea arbitrati sumus ut slercora... Nés, monges, que estamos agora separados do povo, nés que abandonamos pelo Cristo todas as coisas preciosas e especiosas do mundo, nds, que, para akcancar o Cristo, julgamos esterco to- das as coisas que resplandecem de belera, que acariciam 0 ouvi- do com a dogure dos sons, que tém chciro siiave, que tém gosto doce, que agradam 20 tato, e tudo aquilo, em suma, que acaricia © corpo. (Apotogia ad Guilietmum abbatem, PI. 182, col. 914-9155 tr. it. p. 209.) Nao hé quem nfo repare, mesmo na ira da repulsa ¢ no insulto final, um vivo sentimento das coisas refutadas ¢ uma sombra de saudade. Mas hi uma outra pagina da mesma Apo- Jogia ad Guillelmum que constitui um documento mais explici- to de sensibiidade estética. Langando-se contra os templos muito ‘yastos e ricos demais de escuituras, Sdo Bernardo fornece uma imagem da igreja estilo Cluny e da escultura romanica que cons- titui um modelo de critica descritiva; e, ao retratar 0 que re- prova, demonstra o quio paradoxal era o desdém deste homem, que consoguia analisar com tanta sutileza as coisas que ndlo que- ta ver. Primeiro é desenvolvida a polémica contra a amplidéo imoderada dos edificios: Onitto oratoriorum immensas altitudines, immoderatas longit- dines, supervacuas latitudines, somptuosas depolitiones, curio- ‘sas depictiones quae dum orantium in se retorquent aspectum, impediunt et affectum, et mihi quodammodo repraesentant anti- ‘gunn ritum Tudacorune, ‘Omito as alturas imensas dos arat6rios, 0s comprimenios desmmen- sutados, as amplidées desproparcionais, os soberbos polimentos, as pinturas curiosas que, ao desviar para si os ollios dos que oram, 18 impedem-lhes a devosdo e, de certo modo, dfo-me a impressao do antigo rito dos judeus. (PL 182, col. 914; tr. it. pp. 207-209.) ‘Tantas riquezas néo teriam sido dispostas para atrair ou- tras e ajudar o afiuxo de donativos as igrejas? Aluro tectis reliquils signantur oculi, et loculi aperientur, Osten- itur pulcherrima forma sancti vel sanctae altcuius, et e0 credi- tur sanctior, quo coloratior. Os olftos sfio feridos pelas seliquias cobertas de ouro, enquanto das bolsas saem as moedas. Uma imagem belissima de santo ou de santa é mostrada, ¢ 0s santos sto tides como mais santos quan- to mais vivamente so coloridos. (PL. 182, col. 9155 ur. it, p. 210.) © fato estético nao € posto em discussio; ¢ criticado, ao invés, o seu emprego em fins extracultuais, com propésitos im confessaveis de lucro, (Currant homines od osculandum, invitantur ad donandum, et ma- 48s mirantur pulchra quam venerantur sacra. A gente corre a beijar, é convidada a fazer donativos emais ad- mira o belo do que venera 0 sagrado. bidem.) O ornamento distrai da pré ‘nto para que server to- das aquelas esculturas que se observam nos capitis? Ceterum in claustris, coram legentibus fratribus, quide facit ila ‘idicula monsiruositas, mira quaedam deformis formositas a for- ‘mosa deformitas? Quid ibi immundae simiae? Quid feri leones? Quid monstruosi centauri? Quid semihomines? Quid maculosae tigrides? Quid millites pugnantes? Quid venatores tubicinantes? Videas sub uno caplte multa corpora, et rursus in uno corpore ‘capita mutta. Cernitur hincin quadrapede cauda serpentis,iline in pisce caput quadrupedis, Ibi bestia praefert equum, capram tra- ‘hens retro dimidiami; hie cornutum animal equum gestat poste- hus, Tar multa denique, tamgue mira diversarum formarim ap- ‘paret ubique varietas, ut magis egere leat in marmoribus, quam 19 Jin codicibus, totumgue diem occupare singulaista mirando, quam in lege Dei meditando, Prok Deo! Si non pudet ineptiarum, cur vel non piget expensarum? De resto, 0 que faz nos claustros, onde 0s frades esto lendo 0 Oficio, aquela ridicule monstruosidade, aquela espécie de estra- aha formasura deforme e deformidade formosa? O que esto a fazer ali os imundos macacos? Ou os ferozes lebes? Ou os mons- ‘ruosos centauros? Ou os semi-homens? Ov os manchados tigres? ‘Qu os soldados na batalha? Ou os cacadores com as tubas? Po-

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