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helkein_filosofia
Há, entretanto, um outro tipo de falha que não é nem uma questão de crenças falsas
sobre o bem, resultante de uma educação inadequada ou distorcida, nem uma questão de
simples imaturidade. Considere o caso de um indivíduo que aprendeu o suficiente para
saber o que é o bem, no sentido de que se essa questão e outras relacionadas sobre por
que o bem é o que é são postas a ele, por ele próprio ou por outros ele dá respostas
corretas, compreendendo e realmente querendo dizer o que diz. Isso implica que sua
instrução intelectual deve ter sido suficiente para informá-lo adequadamente e que suas
paixões e hábitos foram pelo menos bons o suficiente para dar-lhe esse grau de
instrução intelectual. No entanto, de vez em quando, em vez de fazer o que o bem e o
seu bem exigem, o indivíduo cede a impulsos passionais e faz o que é contrário ao seu
bem e ao bem. Tal indivíduo não é corrompido. A pessoa corrompida deliberadamente e
em princípio propõe-se fazer aquilo que é contrário ao seu bem e ao bem, porque fez
juízos falsos sobre em que consistem o seu bem e o bem em geral. Esse tipo de
indivíduo falha de um outro modo; suas paixões ainda não estão sob controle racional
porque, de uma forma ou de outra, seu conhecimento do que é bom não é conduzido de
forma a atuar sobre elas. Ele é incontinente, acrático. O tipo de pessoa que não sofre
de akrasía, mas que controla bem suas paixões que, de outra forma, resultariam em
situações de colapso acrático, a pessoa continente encrática, não é o mesmo que a
pessoa virtuosa, assim como o acrático não deve ser identificado com o
corrompido. A pessoa encrática sabe o que é bom e racional fazer e o faz, mas suas
paixões ainda não foram completamente transformadas, de modo que seus
prazeres e dores são os mesmos da pessoa completamente virtuosa. De modo que a
pessoa encrática faz o que a pessoa racional e virtuosa faz, mas suas motivações
não são as mesmas da pessoa completamente virtuosa. É apesar de suas paixões,
pelo menos em algum grau, que faz o que faz ao julgar e agir corretamente, apesar
de se formado para resultar em proáiresis, desejo racional.
Proáiresis: desejo racional
Pessoa encrática: difere da virtuosa pela natureza de sua motivação.
Pessoa acrática: difere da corrompida pela falta de continência e melhor juízo do
Bem.

Alasdair MacIntyre – Justiça de quem? Qual racionalidade? p.143

O bom selvagem de Rousseau, modelo de homem da metafísica da revolução. Modelo


revisto pela antropologia estrutural de Lévi-Strauss, em seu Pensamento Selvagem.
Um eminente folclorista italiano, G. Cocchiara, escreveu recentemente que “antes de ser
descoberto, o selvagem foi primeiro inventado”. A fórmula, que é feliz, não deixa de
conter alguma verdade. Os séculos XVI, XVII e XVIII inventaram um tipo de “bom
selvagem”, à medida das suas preocupações morais, políticas e sociais. Os ideólogos e
os utopistas empanturraram-se de “selvagens”, sobretudo com o seu comportamento em
relação à família, à sociedade, à propriedade; invejaram as suas liberdades, a sua
judiciosa e equitativa divisão do trabalho, a sua existência beatífica no seio da Natureza.
Mas esta invenção do “selvagem”, combinada com a sensibilidade e a ideologia dos
séculos XVI-XVIII, não era senão a revalorização, radicalmente secularizada, de um
mito muito mais antigo: o mito do paraíso terrestre e dos seus habitantes nos tempos
fabulosos que precederam a História. Mais do que uma “invenção” do bom selvagem,
deveria falar-se da recordação mitificada da sua imagem exemplar.

Recordemos o essencial do problema. Sabe-se que, antes de constituir o dossier de uma


etnografia ainda nascente, os relatos de viagens em terras recentemente descobertas
foram lidos e saboreados por um motivo muito particular: eles revelavam uma
humanidade feliz, que tinha escapado aos malefícios da civilização, e forneciam
modelos para as sociedades utópicas. Desde Pietro Martire e Jean de Léry a Lafitau, os
viajantes e os eruditos esmerar-se-ão a ilustrar a bondade, a pureza e a felicidade dos
selvagens. Nas suas Décadas do Orbe Novo (I511, terminadas em 1530), Pietro Martire
evoca a idade de ouro e realça a ideologia cristã de Deus e do paraíso terrestre com
reminiscências clássicas; equipara o estado dos selvagens ao reino de beatitude cantado
por Virgílio, saturnia regna.

Mircea Eliade – Mitos, Sonhos e Mistérios p.31-32

Assim, o naturalismo, ou o modo puramente fisicalista de explicação, jamais será


suficiente: assemelha-se a um exercício de cálculo insolúvel na aritmética. Cadeia
causal sem começo nem fim, forças fundamentais insondáveis, espaço infinito, tempo
sem começo, divisibilidade sem fim da matéria, e tudo isso ainda condicionado por um
cérebro que conhece, unicamente no qual existem, justamente como o sonho, e sem o
qual desaparecem, — tudo isso constitui o labirinto no qual o naturalismo nos faz dar
voltas incessantemente. A altura que nos nossos dias as ciências da natureza escalaram
coloca, nesse sentido, todos os séculos precedentes em densa sombra e é um cume que a
humanidade alcançou pela primeira vez. Porém, por mais progresso que a FÍSICA
(entendida no sentido amplo dos antigos) possa fazer; com ele não se terá dado o menor
passo para a METAFÍSICA; tão pouco quanto uma superfície jamais adquire conteúdo
cúbico por mais vasta que seja a sua ampliação. Pois semelhante progresso sempre
complementará apenas o conhecimento da APARÊNCIA; enquanto a METAFÍSICA
procura perpassar a aparência mesma, até aquilo que aparece. E mesmo se tivéssemos
toda a experiência em mãos; através disso nada no principal seria melhorado. Sim,
mesmo se alguém explorasse todos os planetas de todas as estrelas fixas; com isso ainda
não teria dado um passo sequer na METAFÍSICA. Antes, os maiores progressos da
FÍSICA tornam sempre mais sensível a necessidade de uma METAFÍSICA; justamente
porque, de um lado, o corrigido, ampliado e mais fundamentado conhecimento da
natureza sempre mina e por fim invalida as suposições metafísicas até então válidas, de
outro, apresenta de um modo mais distinto, corretor completo o problema da metafísica
mesma, separando-o nitidamente de tudo o que é meramente físico, e, ademais, o
conhecimento mais completo e preciso do ser das coisas individuais exige com mais
urgência a explicação do todo e universal que, quanto mais correta, fundamental e
completamente é conhecido pela experiência, tanto mais enigmático expõe-se.

Arthur Schopenhauer - O Mundo como Vontade e como Representação Tomo II


p.216

O fracasso de todas as revoluções desde 1789 teve por causa, segundo percebia
Buonarroti, a falta de líderes fortes preparados previamente para dar poder ao
“governo revolucionário dos sábios”. Ele repisou a idéia de Babeuf de delegar
autoridade imediatamente a “comissários gerais” (commisaires généraux)
treinados em “seminários” revolucionários e insistiu na necessidade de uma
“autoridade provisória encarregada de completar a revolução e de governar até
que as instituições populares entrem em plena atividade”.
Buonarroti defendia que o regime revolucionário não se submetesse às eleições
populares enquanto as mudanças revolucionárias iniciais estivessem sendo
realizadas; deveria, isto sim, ter três funções: (1) “dirigir toda a força da nação
contra os inimigos internos e externos”; (2) “criar e estabelecer as instituições
mediante as quais o povo será imperceptivelmente levado a exercer real
soberania”; e (3) “preparar a Constituição popular que consumaria e encerraria a
revolução”.
O objetivo final da revolução era o retorno rousseuniano do homem ao seu estado
“natural” de liberdade, no qual a “vontade geral” prevalece. Assim, o poder
revolucionário deve ser de imediato confiado a uma “inamovível vontade forte,
constante e esclarecida”, a qual “deve dirigir a emancipação e preparar a
liberdade. A experiência demonstrou” que os privilegiados são “péssimos
dirigentes de revoluções populares” e que “os povos são incapazes tanto de se
regenerar por si próprios quanto de apontar aqueles deveriam guiar a
regeneração”.
Buonarroti propiciou um mandato para a existência permanente de uma dura da
elite revolucionária e uma licença implícita para que uma polícia secreta exercesse
vigilância sobre o futuro. Na versão retrospectiva da conspiração de Babeuf, o
“diretório secreto” tomou a decisão de que “uma que a revolução esteja completa,
que não cesse o seu trabalho e que vigie a conduta da nova assembleia”.
James H. Billington – A Fé Revolucionária p.301-302

É um erro cartesiano, fomentado pela má compreensão da geometria euclidiana,


supor que, primeiramente, através de um ato inicial de apreensão, podemos
compreender o significado completo das premissas de um sistema dedutivo e então,
apenas secundariamente, proceder à pesquisa daquilo que decorre delas. Na
verdade, é apenas à medida que compreendemos o que decorre dessas premissas
que compreendemos as próprias premissas. Se e quando começamos pelas
premissas, nossa apreensão inicial será tipicamente parcial e incompleta,
aumentando à medida que compreendemos que essas premissas implicam ou não.
Assim, na construção de qualquer ciência demonstrativa, argumentamos tanto
partindo daquilo que consideramos, amiúde corretamente, serem verdades
subordinadas em direção aos primeiros princípios, quanto partindo de primeiros
princípios em direção às verdades subordinadas. E nesse trabalho de vir a
compreender quais premissas afirmam o que é verdadeiro per se, de modo que
possam funcionar como primeiros princípios, nós continuamente aprofundamos
nossa apreensão do conteúdo desses primeiros princípios e corrigimos os erros que
todos tendem a cometer.
Naturalmente, essa concepção de como os primeiros princípios são compreendidos
e de seu lugar na pesquisa é profundamente contrária não apenas à concepção
cartesiana e outras concepções racionalistas da estrutura da teoria filosófica e
científica, mas também às teorias morais de pensadores tão diversos quanto
Hobbes, Hume, Bentham e Kant, para cada um dos quais há um modo de fundar
adequadamente o primeiro princípio ou primeiros princípios da ação reta, através
de considerações que eles pensam estar igualmente disponíveis, no início da
pesquisa, a toda pessoa racional como tal. Por nenhum deles a vida moral é
concebida como um percurso rumo à descoberta dos primeiros princípios como
um fim, cujo total desvelamento é, em ambos os sentidos de “fim”, o fim desse
percurso, de modo que, num sentido estrito, é apenas no fim que sabemos se no
início sabíamos, de fato, qual era o verdadeiro início. Como observou Aristóteles, é
difícil saber que se sabe.
Alasdair MacIntyre – Justiça de quem? Qual racionalidade? p.192-193

Talvez a filosofia tenha sofrido três "dumps":


a) aquele que se inicia após a morte de Aristóteles e permanece até mais ou menos
Plotino.
a) o do meme, que se inicia na adoção do nominalismo e no abandono do realismo
(flósofos do meme: Sto. Tomás (realismo), Duns Scotus (realismo) e Guilherme de
Ockam (nominalismo).
c) aquele que se inicia no advento do cartesianismo e, talvez, não tenha terminado
até hoje.
Muito curiosamente o Voegelin tem um termo técnico para esses eventos:
descarrilamento. Ocorre quando uma nova iluminação acerca de um setor da
realidade é perdida na próxima geração de pensadores
.
No ponto de partida das nossas reflexões convém traçar uma primeira figura conceptual
do que entendemos por experiência mística. Evidentemente a fonte principal, e mesmo
única, na qual podemos haurir uma informação segura sobre a natureza e o conteúdo
desse tipo singular de experiência é o testemunho dos próprios místicos. Na verdade,
eles são os primeiros teóricos da sua própria experiência, e é reconhecendo como
autêntico seu testemunho experiencial e aceitando, em princípio, a interpretação por eles
proposta que os estudiosos da mística podem definir o objeto da sua própria
investigação. Essa, por sua vez, é necessariamente pluridisciplinar, pois a experiência
mística é um fenômeno totalizante, no qual estão integrados todos os aspectos da
complexa realidade humana. Como primeira aproximação, podemos dizer que a
experiência mística tem lugar no terreno desse encontro com o Outro absoluto, cujo
perfil misterioso desenha-se sobretudo nas situações-limite da existência, e diante do
qual acontece a experiência do Sagrado. No entanto, a experiência mística apresenta-se
dentro da esfera do Sagrado caracterizada pela certeza de uma anulação da distância
entre o sujeito e o objeto imposta pela manifestação do Outro absoluto como
tremendum (para usar a terminologia de R. Otto); ela é experiência do Outro absoluto
como fascinosum, mas o fascinium aqui é apelo a uma forma de união na qual prevalece
o aspecto participativo e fruitivo, tendendo dinamicamente a uma quase-identidade com
o Absoluto e transformando radicalmente a existência daquele que se vê implicado
nessa experiência. Desta sorte, podemos adotar inicialmente a definição de J. Maritain,
segundo a qual a experiência mística consiste essencialmente numa “experiência
fruitiva do Absoluto”. [...] A definição maritainiana nos permite, assim, excluir desde
logo do terreno da experiência mística toda uma série de fenômenos extraordinários ou
anormais, espontâneos ou induzidos...

Henrique C. de Lima Vaz – Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental


p.15-17
Em que sentido a captação pela política representa a mais grave perversão da mística?
Uma primeira resposta pode ser dada pela simples consideração da natureza das duas
experiências, a mística e a política, do ponto de vista respectivamente do sujeito e do
objeto. Do ponto de vista do sujeito, a experiência mística tem lugar num plano
transracional, ou seja, onde cessa o discurso da razão: inteligência e amor
convergem na fina ponta do espírito – o apex mentis— numa experiência inefável
do Absoluto, que arrasta consigo toda a energia pulsional da alma. Vale dizer que,
da parte do sujeito, a experiência mística é absolutamente singular e, como tal, não pode
ser partilhada. Já o sujeito da experiência política é, por definição, o indivíduo
partilhando a vida de uma comunidade constituída pelo consenso racional em torno de
leis livremente aceitas e submetendo-se à equânime distribuição de direitos e deveres.
Vê-se, portanto, que a experiência mística e a experiência política se desenrolam em
patamares distintos do espírito e supõem usos da razão inconfundíveis por natureza [...].
A mais grave, portanto, e a mais devastadora perturbação da ordem natural do nosso
espírito tem lugar quando a política, numa iniciativa de suprema violência espiritual,
arrasta para o campo da relatividade histórica a intenção do Absoluto própria da
experiência mística e da experiência religiosa em geral. Trata-se de uma desordem que
revelou inequivocamente sua face após a descoberta grega da racionalidade política [...]
Mais profunda e realmente mortal foi a desordem nos espíritos implantada pelas
religiões seculares da modernidade, que atingiu seu paroxismo no trágico século XX. A
mística passou então a estar inteiramente a serviço da política, e a própria prática cristã
foi tentada por formas de politização do religioso que revelavam uma desordem
espiritual muito mais grave do que a sacralização medieval do poder político.
Henrique C. de Lima Vaz – Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental
p.11-13
.

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